FILOSOFIA CLÁSSICA
Os Pré-Socráticos
A
característica fundamental do pensamento grego está na solução dualista
do problema metafísico-teológico, isto é, na solução das relações entre
a realidade empírica e o Absoluto que a explique, entre o mundo e Deus,
em que Deus e mundo ficam separados um do outro. Consequência desse
dualismo é o irracionalismo, em que fatalmente finaliza a serena
concepção grega do mundo e da vida. O mundo real dos indivíduos e do
“vir-a-ser” depende do princípio eterno da matéria obscura, que tende
para Deus como o imperfeito para o perfeito; assimila em parte, a
racionalidade de Deus, mas nunca pode chegar até ele porque dele não
deriva. E a consequência desse irracionalismo outra não pode ser senão o
pessimismo: um pessimismo desesperado, porque o grego tinha
conhecimento de um absoluto racional, de Deus, mas estava também
convicto de que ele não cuida do mundo e da humanidade, que não criou,
não conhece, nem governa; e pensava, pelo contrário, que a humanidade é
governada pelo Fado, pelo Destino, a saber, pela necessidade irracional.
O último remédio desse mal da existência será procurado no ascetismo,
considerando-o como a solidão interior e a indiferença heroica para com
tudo, a resignação e a renúncia absoluta.
O Gênio Grego
A característica do gênio filosófico grego pode-se compendiar em alguns traços fundamentais: racionalismo, ou seja, a consciência do valor supremo do conhecimento racional; esse racionalismo não é, porém, abstrato, absoluto, mas se integra na experiência, no conhecimento sensível; o conhecimento, pois, não é fechado em si mesmo, mas aberto para o ser, é apreensão (realismo); e esse realismo não se restringe ao âmbito da experiência, mas a transpõe, a transcende para o absoluto, do mundo a Deus, sem o qual o mundo não tem explicação; embora, para os gregos, o "conhecer" - a contemplação, o teorético, o intelecto - tenham a primazia sobre o "operar" - a ação, o prático, a vontade - o segundo elemento, todavia, não é anulado pelo primeiro, mas está a ele subordinado; e o otimismo grego, consequência lógica do seu próprio racionalismo, cederá lugar ao pessimismo, quando se manifestar toda a irracionalidade da realidade, quando o realismo impuser tal concepção. Todos esses elementos vêm sendo, ainda, organizados numa síntese insuperável, numa unidade harmônica, realizada por meio de um desenvolvimento também harmônico, aperfeiçoado mediante uma crítica profunda. Entre as raças gregas, a cultura e a filosofia são devidas, sobretudo, aos jônios, sendo jônios também os atenienses.
Divisão da
História da Filosofia Grega
Os Períodos Principais do Pensamento Grego
Consoante a ordem cronológica e a
marcha evolutiva das ideias pode dividir-se a história da filosofia grega em
quatro períodos:
I. Período pré-socrático (séc.
VII - V a.C.) - Problemas cosmológicos. Período Naturalista: pré-socrático, em
que o interesse filosófico é voltado para o mundo da natureza;
II. Período socrático (séc. IV
a.C.) - Problemas metafísicos. Período Sistemático ou Antropológico: o período
mais importante da história do pensamento grego (Sócrates, Platão,
Aristóteles), em que o interesse pela natureza é integrado com o interesse pelo
espírito e são construídos os maiores sistemas filosóficos, culminando com Aristóteles;
III. Período pós-socrático (séc.
IV a.C. - VI p.C.) - Problemas morais. Período Ético: em que o interesse
filosófico é voltado para os problemas morais, decaindo, entretanto a
metafísica;
IV. Período Religioso: assim
chamado pela importância dada à religião, para resolver o problema da vida, que
a razão não resolve integralmente. O primeiro período é de formação, o segundo
de apogeu, o terceiro de decadência.
Primeiro Período
O
primeiro período do pensamento grego toma a denominação substancial de
período naturalista, porque a nascente especulação dos filósofos é
instintivamente voltada para o mundo exterior, julgando-se encontrar aí
também o princípio unitário de todas as coisas; e toma a denominação
cronológica de período pré-socrático, porque precede Sócrates e os
sofistas, que marcam uma mudança e um desenvolvimento e, por
conseguinte, o começo de um novo período na história do pensamento
grego. Esse primeiro período tem início no alvor do VI século a.C., e
termina dois séculos depois, mais ou menos, nos fins do século V. Surge e
floresce fora da Grécia propriamente dita, nas prósperas colônias
gregas da Ásia Menor, do Egeu (Jônia) e da Itália meridional, da
Sicília, favorecido sem dúvida na sua obra crítica e especulativa pelas
liberdades democráticas e pelo bem-estar econômico. Os filósofos deste
período preocuparam-se quase exclusivamente com os problemas
cosmológicos. Estudar o mundo exterior nos elementos que o constituem,
na sua origem e nas contínuas mudanças a que está sujeito, é a grande
questão que dá a este período seu caráter de unidade. Pelo modo de a
encarar e resolver, classificam-se os filósofos que nele floresceram em
quatro escolas: Escola Jônica; Escola Itálica; Escola Eleática; Escola
Atomística.
Escola Jônica
A Escola Jônica, assim chamada
por ter florescido nas colônias jônicas da Ásia Menor, compreende os jônios
antigos e os jônios posteriores ou juniores. A escola jônica é também a
primeira do período naturalista, preocupando-se os seus expoentes com achar a
substância única, a causa, o princípio do mundo natural vário, múltiplo e
mutável. Essa escola floresceu precisamente em Mileto, colônia grega do litoral
da Ásia Menor, durante todo o VI século (a.C.), até a destruição da cidade
pelos persas no ano de 494 a.C., prolongando-se ainda pelo V século (a.C). Os
jônicos julgaram encontrar a substância última das coisas em uma matéria única;
e pensaram que nessa matéria fosse imanente uma força ativa, de cuja ação
derivariam precisamente a variedade, a multiplicidade, a sucessão dos fenômenos
na matéria una. Daí ser chamada esta doutrina hilozoísmo (matéria animada). Os
jônios antigos consideram o Universo do ponto de vista estático, procurando
determinar o elemento primordial, a matéria primitiva de que são compostos
todos os seres. Os mais conhecidos são: Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto,
Anaxímenes de Mileto. Os jônios posteriores distinguem-se dos antigos não só
por virem cronologicamente depois, senão principalmente por imprimirem outra
orientação aos estudos cosmológicos, encarando o Universo no seu aspecto
dinâmico, e procurando resolver o problema do movimento e da transformação dos
corpos. Os mais conhecidos são: Heráclito de Éfeso, Empédocles de Agrigento,
Anaxágoras de Clazômenas.
Tales de Mileto - (624-548 a.C.) "Água"
Tales
de Mileto, fenício de origem, é considerado o fundador da escola
jônica. É o mais antigo filósofo grego. Tales não deixou nada escrito
mas sabemos que ele ensinava ser a água a substância única de todas as
coisas. A terra era concebida como um disco boiando sobre a água, no
oceano. Cultivou também as matemáticas e a astronomia, predizendo, pela
primeira vez, entre os gregos, os eclipses do sol e da lua. No plano da
astronomia, fez estudos sobre solstícios a fim de elaborar um
calendário, e examinou o movimento dos astros para orientar a navegação.
Provavelmente nada escreveu. Por isso, do seu pensamento só restam
interpretações formuladas por outros filósofos que lhe atribuíram uma
ideia básica: a de que tudo se origina da água. Segundo Tales, a água,
ao se resfriar, torna-se densa e dá origem à terra; ao se aquecer
transforma-se em vapor e ar, que retornam como chuva quando novamente
esfriados. Desse ciclo de seu movimento (vapor, chuva, rio, mar, terra)
nascem as diversas formas de vida, vegetal e animal. A cosmologia de
Tales pode ser resumida nas seguintes proposições: A terra flutua sobre a
água; A água é a causa material de todas as coisas. Todas as coisas
estão cheias de deuses. O imã possui vida, pois atrai o ferro.
Segundo
Aristóteles sobre a teoria de Tales: elemento estático e elemento
dinâmico. Elemento Estático - a flutuação sobre a água. Elemento
Dinâmico - a geração e nutrição de todas as coisas pela água. Tales
acreditava em uma "alma do mundo", havia um espírito divino que formava
todas as coisas da água. Tales sustentava ser a água a substância de
todas as coisas.
Anaximandro de Mileto (611-547 A.C.) "Ápeiron"
Anaximandro
de Mileto, geógrafo, matemático, astrônomo e político, discípulo e
sucessor de Tales e autor de um tratado Da Natureza, põe como princípio
universal uma substância indefinida, o ápeiron (ilimitado), isto é,
quantitativamente infinita e qualitativamente indeterminada. Deste
ápeiron (ilimitado) primitivo, dotado de vida e imortalidade, por um
processo de separação ou "segregação" derivam os diferentes corpos.
Supõe também a geração espontânea dos seres vivos e a transformação dos
peixes em homens. Anaximandro imagina a terra como um disco suspenso no
ar. Eterno, o ápeiron está em constante movimento, e disto resulta uma
série de pares opostos - água e fogo, frio e calor, etc. - que
constituem o mundo. O ápeiron é assim algo abstrato, que não se fixa
diretamente em nenhum elemento palpável da natureza. Com essa concepção,
Anaximandro prossegue na mesma via de Tales, porém dando um passo a
mais na direção da independência do "princípio" em relação às coisas
particulares. Para ele, o princípio da "physis" (natureza) é o ápeiron
(ilimitado). Atribui-se a Anaximandro a confecção de um mapa do mundo
habitado, a introdução na Grécia do uso do gnômon (relógio de sol) e a
medição das distâncias entre as estrelas e o cálculo de sua magnitude (é
o iniciador da astronomia grega). Ampliando a visão de Tales, foi o
primeiro a formular o conceito de uma lei universal presidindo o
processo cósmico total. Diz-se também, que preveniu o povo de Esparta de
um terremoto. Anaximandro julga que o elemento primordial seria o
indeterminado (ápeiron), infinito e em movimento perpétuo.
Fragmentos
"Imortal...
e imperecível (o ilimitado enquanto o divino) - Aristóteles, Física".
Esta (a natureza do ilimitado, ele diz que) é sem idade e sem velhice.
Hipólito, Refutação.
Anaxímenes de Mileto (588-524 A.C.) "Ar"
Segundo
Anaxímenes, a arkhé (comando) que comanda o mundo é o ar, um elemento
não tão abstrato como o ápeiron, nem palpável demais como a água. Tudo
provém do ar, através de seus movimentos: o ar é respiração e é vida; o
fogo é o ar rarefeito; a água, a terra, a pedra são formas cada vez mais
condensadas do ar. As diversas coisas que existem, mesmo apresentando
qualidades diferentes entre si, reduzem-se a variações quantitativas
(mais raro, mais denso) desse único elemento. Atribuindo vida à matéria e
identificando a divindade com o elemento primitivo gerador dos seres,
os antigos jônios professavam o hilozoísmo e o panteísmo naturalista.
Dedicou-se especialmente à meteorologia. Foi o primeiro a afirmar que a
Lua recebe sua luz do Sol. Anaxímenes julga que o elemento primordial
das coisas é o ar.
Fragmentos
"O
contraído e condensado da matéria ele diz que é frio, e o ralo e o
frouxo (é assim que ele expressa) é quente". (Plutarco). "Com nossa
alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim também todo o
cosmo sopro e ar o mantém". (Aécio).
Vida de Heráclito
Heráclito
nasceu em Éfeso, cidade da Jônia, de família que ainda conservava
prerrogativas reais (descendentes do fundador da cidade). Seu caráter
altivo, misantrópico e melancólico ficou proverbial em toda a
antiguidade. Desprezava a plebe. Recusou-se sempre a intervir na
política. Manifestou desprezo pelos antigos poetas, contra os filósofos
de seu tempo e até contra a religião. Sem ter sido mestre, Heráclito
escreveu um livro Sobre a Natureza, em prosa, no dialeto jônico, mas de
forma tão concisa que recebeu o cognome de Skoteinós, o Obscuro.
Floresceu em 504-500 a.C. - Heráclito é por muitos considerados o mais
eminente pensador pré-socrático, por formular com vigor o problema da
unidade permanente do ser diante da pluralidade e mutabilidade das
coisas particulares e transitórias. Estabeleceu a existência de uma lei
universal e fixa (o Lógos), regedora de todos os acontecimentos
particulares e fundamento da harmonia universal, harmonia feita de
tensões, "como a do arco e da lira".
Filosofia de Heráclito
Heráclito concebe o próprio absoluto como processo, como a própria dialética. A dialética é:
A. Dialética exterior, um raciocinar de cá para lá e não a alma da coisa dissolvendo-se a si mesma;
B. Dialética imanente do objeto, situando-se, porém, na contemplação do sujeito;
C. Objetividade de Heráclito, isto é, compreender a própria dialética como princípio.
É
o progresso necessário, e é aquele que Heráclito fez. O ser é o um, o
primeiro; o segundo é o devir - até esta determinação avançou ele. Isto é
o primeiro concreto, o absoluto enquanto nele se dá a unidade dos
opostos. Nele encontra-se, portanto, pela primeira vez, a ideia
filosófica em sua forma especulativa; o raciocínio de Parmênides e Zenão
é entendimento abstrato; por isso Heráclito foi tido como filósofo
profundo e obscuro e como tal criticado.
O
que nos é relatado da filosofia de Heráclito parece, à primeira vista,
muito contraditório; mas nela se pode penetrar com o conceito e assim
descobrir, em Heráclito, um homem de profundos pensamentos. Ele é a
plenitude da consciência até ele - uma consumação da ideia na totalidade
que é o início da Filosofia ou expressa a essência da ideia, o
infinito, aquilo que é.
O Princípio Lógico
O
princípio universal. Este espírito arrojado pronunciou pela primeira
vez esta palavra profunda: "O ser não é mais que o não-ser", nem é
menos; ou ser e nada são o mesmo, a essência é mudança. O verdadeiro é
apenas como a unidade dos opostos; nos eleatas, temos apenas o
entendimento abstrato, isto é, apenas o ser é. Dizemos, em lugar da
expressão de Heráclito: O absoluto é a unidade do ser e do não-ser. Se
ouvimos aquela frase "O ser não é mais que o não-ser", desta maneira,
não parece, então, produzir muito sentido, apenas destruição universal,
ausência de pensamento. Temos, porém, ainda uma outra expressão que
aponta mais exatamente o sentido do princípio. Pois Heráclito diz: "Tudo
flui (panta rei), nada persiste, nem permanece o mesmo". E Platão ainda
diz de Heráclito: "Ele compara as coisas com a corrente de um rio - que
não se pode entrar duas vezes na mesma corrente"; o rio corre e toca-se
outra água. Seus sucessores dizem até que nele nem se pode mesmo
entrar, pois que imediatamente se transforma; o que é, ao mesmo tempo já
novamente não é. Além disso, Aristóteles diz que Heráclito afirma que é
apenas um o que permanece; disto todo o resto é formado, modificado,
transformado; que todo o resto fora deste um flui, que nada é firme, que
nada se demora; isto é, o verdadeiro é o devir, não o ser - a
determinação mais exata para este conteúdo universal é o devir. Os
eleatas dizem: só o ser é, é o verdadeiro; a verdade do ser é o devir;
ser é o primeiro pensamento enquanto imediato. Heráclito diz: Tudo é
devir; este devir é o princípio. Isto está na expressão: "O ser é tão
pouco como o não-ser; o devir é e também não é". As determinações
absolutamente opostas estão ligadas numa unidade; nela temos o ser e
também o não-ser. Dela faz parte não apenas o surgir, mas também o
desaparecer; ambos não são para si, mas são idênticos. É isto que
Heráclito expressou com suas sentenças. O não ser é, por isso é o
não-ser, e o não-ser é, por isso é o ser; isto é a verdade da identidade
de ambos.
É
um grande pensamento passar do ser para o devir; é ainda abstrato, mas,
ao mesmo tempo, também é o primeiro concreto, a primeira unidade de
determinações opostas. Estas estão inquietas nesta relação, nela está o
princípio da vida. Com isto está preenchido o vazio que Aristóteles
apontou nas antigas filosofias - a falta de movimento; este movimento é
aqui, agora mesmo, princípio.
É
uma grande convicção que se adquiriu, quando se reconheceu que o ser e o
nada são abstrações sem verdade, que o primeiro elemento verdadeiro é o
devir. O entendimento separa a ambos como verdadeiros e de valor; a
razão, pelo contrário, reconhece um no outro, que num está contido seu
outro - e assim o todo, o absoluto deve ser determinado como o devir.
Heráclito
também diz que os opostos são características do mesmo, como, por
exemplo, "o mel é doce e amargo" - ser e não-ser ligam-se ao mesmo.
Sexto observa: Heráclito parte, como os céticos, das representações
correntes dos homens; ninguém negará que os sãos dizem do mel que é
doce, e os que sofrem de icterícia que é amargo - se fosse apenas doce,
não poderia modificar sua natureza através de outra coisa e assim também
para os que sofrem de icterícia seria doce. Zenão começa a sobressumir
os predicados opostos e aponta no movimento aquilo que se opõe - um por
limites e um sobressumir os limites; Zenão só exprimiu o infinito pelo
seu lado negativo -, por causa de sua contradição, como o não
verdadeiro. Em Heráclito, vemos o infinito como tal expresso como
conceito e essência: o infinito, que é em si e para si, é a unidade dos
opostos e, na verdade, dos universalmente opostos, da pura oposição, ser
e não-ser. Tomamos nós o ente em si e para si, não a representação do
ente, do pleno, assim o puro ser é o pensamento simples, em que todo o
determinado é negado, o absolutamente negativo - nada é o mesmo, apenas
este igual a si mesmo -, passagem absoluta para o oposto, ao qual Zenão
não chegou! "Do nada, nada vem." Em Heráclito o momento da negatividade é
imanente; disto trata o conceito de toda a Filosofia.
Primeiro
tivemos a abstração de ser e não-ser, numa forma bem imediata e
universal; mais exatamente, porém, também Heráclito concebeu as
oposições de maneira mais determinada. É esta unidade de real e ideal,
de objetivo e subjetivo; o objetivo somente é o devir subjetivo. Este
verdadeiro é o processo do devir; Heráclito expressou de modo
determinado este pôr-se numa unidade das diferenças. Aristóteles diz,
por exemplo, que Heráclito "ligou o todo e o não-todo" (parte) - o todo
se torna parte e a parte o é para se tornar o todo -, o "que se une e se
opõe", do mesmo modo, "o que concorda e o dissonante"; e de que de tudo
(que se opõe) resulta um, e de um tudo. Este um não é o abstrato, a
atividade de dirimir-se; a morta infinitude é uma má abstração em
oposição a esta profundidade que vemos em Heráclito. Sexto Empírico cita
o seguinte que Heráclito teria dito: A parte é algo diferente do todo;
mas é também o mesmo que o todo é; a substância é o todo e a parte. O
fato de Deus ter criado o mundo Ter-se dividido a si mesmo, gerado seu
Filho, etc. - todos estes elementos concretos estão contidos nesta
determinação. Platão diz, em seu Banquete, sobre o princípio de
Heráclito: "O um, diferenciado de si mesmo, une-se consigo mesmo" - este
é o processo da vida, "como a harmonia do arco e da lira". Deixa então
que Erixímaco, que fala no Banquete, critique o fato de a harmonia ser
desarmônica ou se componha de opostos, pois que a harmonia se formaria
de altos e baixos, mas da unidade pela arte da música. Mas isto não
contradiz Heráclito, que justamente quer isto. O simples, a repetição de
um único som não é harmonia. Da harmonia faz parte a diferença; é
preciso que haja essencial e absolutamente uma diferença. Esta harmonia é
precisamente o absoluto devir, transformar-se - não devir outro, agora
este, depois aquele. O essencial é que cada diferente, cada particular
seja diferente de um outro - mas não de um abstrato qualquer outro, mas
de seu outro; cada um apenas é, na medida em que seu outro em si esteja
consigo, em seu conceito. Mudança é unidade, relação de ambos a um, um
ser, este e o outro. Na harmonia e no pensamento concordamos que seja
assim; vemos, pensamos a mudança, a unidade essencial. O espírito
relaciona-se na consciência com o sensível e este sensível é seu outro.
Assim também no caso dos sons; devem ser diferentes, mas de tal maneira
que também possam ser unidos - e isto os sons são em si. Da harmonia faz
parte determinada oposição, seu oposto, como na harmonia das cores. A
subjetividade é o outro da objetividade, não de um pedaço de papel - o
absurdo disto logo se mostra - , deve ser seu outro, e nisto reside sua
identidade; assim cada coisa é o outro do outro enquanto seu outro. Este
é o grande princípio de Heráclito; pode parecer obscuro, mas é
especulativo; e isto é, para o entendimento que segura para si o ser, o
não-ser, o subjetivo e objetivo, o real e o ideal, sempre obscuro.
Os Modos da Realidade
Heráclito
não ficou parado, em sua exposição, nesta expressão em conceitos, no
puro lógico, mas além desta forma universal, na qual expôs seu
princípio, deu à sua ideia também uma expressão real. Esta figura pura é
precipuamente de natureza cosmológica, ou sua forma é mais a forma
natural; por isso, é incluído ainda na Escola Jônica, e com isto deu
novos impulsos à filosofia da natureza. Sobre esta forma real de seu
princípio os historiadores, contudo, não estão de acordo entre si. A
maioria diz que ele teria posto a essência ontológica como fogo, outros
dizem que como ar, outros dizem que antes o vapor que o ar; mesmo o
tempo é citado, em Sexto, como o primeiro ser do ente. A questão é a
seguinte: Como compreender esta diversidade? Não se deve absolutamente
crer que se deva atribuir estas notícias à negligência dos escritores,
pois as testemunhas são as melhores, como Aristóteles e Sexto Empírico,
que não falam destas formas de passagem, mas de modo bem determinado,
sem, no entanto, chamar a atenção para estas diferenças e contradições.
Uma outra razão mais próxima parece-nos resultar da obscuridade do
escrito de Heráclito, o qual, na confusão de seu modo de expressão,
poderia dar motivos para mal-entendidos. Mas, considerando mais
detidamente, esta dificuldade desaparece; esta mostra-se mais para uma
análise superficial; no conceito profundo de Heráclito acha-se a
verdadeira saída deste empecilho. De maneira alguma podia Heráclito
afirmar, como Tales, que a água ou o ar ou coisa semelhante seria a
essência absoluta; e não o podia afirmar como um primeiro donde emanaria
o outro, na medida em que pensou ser como idêntico como o não-ser ou no
conceito infinito. Assim, portanto, a essência absoluta que é não pode
surgir nele como uma determinidade existente, por exemplo, a água, mas a
água enquanto se transforma, ou apenas o processo.
A.
- Processo abstrato, tempo. Heráclito, portanto, disse que o tempo é o
primeiro ser corpóreo, como exprime Sexto. "Corpóreo" é uma expressão
inadequada. Os céticos escolhiam muitas vezes as expressões mais
grosseiras ou tornavam os pensamentos grosseiros para mais facilmente
liquidá-los. "Corpóreo" significa sensibilidade abstrata; o tempo é a
intuição abstrata do processo; diz que ele é o primeiro ser sensível. O
tempo, portanto, é a essência verdadeira. Na medida em que Heráclito não
parou na expressão lógica do devir, mas deu a seu princípio a forma de
um ente, deduz-se disto que primeiro tinha que oferecer-se a forma do
tempo; pois precisamente, no sensível, no que se pode ver, o tempo é o
primeiro que se oferece como o devir; é a primeira forma do devir.
Enquanto intuído, o tempo é o puro devir. O tempo é puro transformar-se,
é o puro conceito, o simples, que é harmônico a partir de absolutamente
opostos. Sua essência é ser e não-ser, sem outra determinação - ser
puro e abstrato não-ser, postos imediatamente numa unidade e ao mesmo
tempo separados. Não como se o tempo fosse e não fosse, mas o tempo é
isto: no ser imediatamente não-ser e no não-ser imediatamente ser - esta
mudança de ser para não-ser, este conceito abstrato, é, porém, visto de
maneira objetiva, enquanto é para nós. No tempo não é o passado e o
futuro, somente o agora; e este é, para não ser, está logo destruído,
passado - e este não-ser passa, do mesmo modo, para o ser, pois ele é. É
a abstrata contemplação desta mudança. Se tivéssemos de dizer como
aquilo que Heráclito reconheceu como a essência existe para a
consciência, nesta pura forma em que ele o reconheceu, não haveria outra
que nomear a não ser o tempo; é, por conseguinte, absolutamente certo
que a primeira forma do que devém é o tempo; assim isto se liga ao
princípio do pensamento de Heráclito.
B.
- A forma real como processo, fogo. Mas este puro conceito objetivo
deve realizar-se mais. No tempo estão os momentos, ser e não-ser, postos
apenas negativamente ou como momentos que imediatamente desaparecem.
Além disso, Heráclito determinou o processo de um modo mais físico. O
tempo é intuição, mas inteiramente abstrata. Se quisermos
representar-nos o que ele é, de modo real, isto é, expressar ambos os
momentos como uma totalidade para si, como subsistente, então levanta-se
a questão: que ser físico corresponde a esta determinação? O tempo,
dotado de tais momentos, é o processo; compreender a natureza significa
apresentá-la como processo. Este é o elemento verdadeiro de Heráclito e o
verdadeiro conceito; por isso, logo compreendemos que Heráclito não
podia dizer que a essência é o ar ou a água ou coisas semelhantes, pois
eles mesmos não são (isto é o próximo) o processo. O fogo, porém, é o
processo: assim afirmou o fogo como a primeira essência - e este é o
modo real do processo heracliteano, a alma e a substância do processo da
natureza. Justamente no processo distinguem-se os momentos, como no
movimento:
1. o puro momento negativo,
2. os momentos da oposição subsistente, água e ar, e
3. a totalidade em repouso, a terra. A vida da natureza é o processo destes momentos: a divisão da totalidade em repouso da terra na oposição, o pôr desta oposição, destes momentos - e a unidade negativa, o retorno para a unidade, o queimar da oposição subsistente. O fogo é o tempo físico; ele é esta absoluta inquietude, absoluta dissolução do que persiste - o desaparecer de outros, mas também de si mesmo; ele não é permanente. Por isso compreendemos (é inteiramente consequente) por que Heráclito pode nomear o fogo como o conceito do processo de sua determinação fundamental.
1. o puro momento negativo,
2. os momentos da oposição subsistente, água e ar, e
3. a totalidade em repouso, a terra. A vida da natureza é o processo destes momentos: a divisão da totalidade em repouso da terra na oposição, o pôr desta oposição, destes momentos - e a unidade negativa, o retorno para a unidade, o queimar da oposição subsistente. O fogo é o tempo físico; ele é esta absoluta inquietude, absoluta dissolução do que persiste - o desaparecer de outros, mas também de si mesmo; ele não é permanente. Por isso compreendemos (é inteiramente consequente) por que Heráclito pode nomear o fogo como o conceito do processo de sua determinação fundamental.
"Os homens são deuses mortais e os deuses, homens imortais; viver é-lhes morte e morrer é-lhes vida".
"Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos".
Segundo
o pitagorismo, a essência, o princípio essencial de que são compostas
todas as coisas, é o número, ou seja, as relações matemáticas. Os
pitagóricos, não distinguindo ainda bem forma, lei e matéria, substância
das coisas, consideraram o número como sendo a união de um e outro
elemento. Da racional concepção de que tudo é regulado segundo relações
numéricas, passa-se à visão fantástica de que o número seja a essência
das coisas.
Mas,
achada a substância una e imutável das coisas, os pitagóricos se acham
em dificuldades para explicar a multiplicidade e o vir-a-ser,
precisamente mediante o uno e o imutável. E julgam poder explicar a
variedade do mundo mediante o concurso dos opostos, que são - segundo os
pitagóricos - o ilimitado e o limitado, ou seja, o par e o ímpar, o
imperfeito e o perfeito. O número divide-se em par, que não põe limites à
divisão por dois, e, por conseguinte, é ilimitado (quer dizer,
imperfeito, segundo a concepção grega, a qual via a perfeição na
determinação); e ímpar, que põe limites à divisão por dois e, portanto, é
limitado, determinado, perfeito. Os elementos constitutivos de cada
coisa - sendo cada coisa número - são o par e o ímpar, o ilimitado e o
limitado, o pior e o melhor. Radical oposição esta, que explicaria o
vir-a-ser e o multíplice, que seriam reconduzidos à concordância e à
unidade pela fundamental harmonia (matemática), que governa e deve
governar o mundo material e moral, astronômico e sonoro.
Como
a filosofia da natureza, assim a astronomia pitagórica representa um
progresso sobre a jônica. De fato, os pitagóricos afirmaram a
esfericidade da Terra e dos demais corpos celestes, bem como a rotação
da Terra, explicando assim o dia e a noite; e afirmaram também a
revolução dos corpos celestes em torno de um foco central, que não se
deve confundir com o Sol. Pelo que diz respeito à moral, enfim, dominam
no pitagorismo o conceito de harmonia, logicamente conexo com a
filosofia pitagórica, e as práticas ascéticas e abstinenciais, com
relação à metempsicose e à reencarnação das almas.
Para
compreendermos seus princípios fundamentais, é preciso partir do
eleatismo. Como é possível uma pluralidade? Pelo fato de o não-ser ter
um ser. Portanto, identificam o não-ser ao Ápeiron de Anaximandro, ao
absolutamente Indeterminado, àquilo que não tem nenhuma qualidade; a
isso opõe-se o absolutamente Determinado, o Péras. Mas ambos compõem o
Uno, do qual se pode dizer que é impar, delimitado e ilimitado,
inqualificado e qualificado. Dizem, pois, contra o eleatismo, que, se o
Uno existe, foi em todo caso formado por dois princípios, pois, nesse
caso, há também uma pluralidade; da unidade procede a série dos números
aritméticos (monádicos), depois os números geométricos ou grandezas
(formas espaciais). Portanto, a Unidade veio a ser; portanto, há também
uma pluralidade. Desde que se têm o ponto, a linha, as superfícies e os
corpos, têm-se também os objetos materiais; o número é a essência
própria das coisas. Os eleatas dizem: "Não há não-ser, logo, tudo é uma
unidade". Os pitagóricos: "A própria unidade é o resultado de um ser e
de um não-ser, portanto há, em todo caso, não-ser e, portanto, também
uma pluralidade".
À
primeira vista, é uma especulação totalmente insólita. O ponto de
partida me parece ser a apologia da ciência matemática contra o
eleatismo. Lembramo-nos da dialética de Parmênides. Nela, é dito da
Unidade (supondo que não existe pluralidade):
1) que ela não tem partes e não é um todo;
2) que tampouco tem limites;
3) portanto, que não está em parte nenhuma;
4) que não pode nem mover-se nem estar em repouso, etc. Mas, por outro lado, o Ser e a Unidade dão a Unidade existente, portanto a diversidade, e as partes múltiplas, e o número, e a pluralidade do ser, e a delimitação, etc. É um procedimento análogo: ataca-se o conceito da Unidade existente porque comporta os predicados contraditórios e é, portanto, um conceito contraditório, impossível. Os matemáticos pitagóricos acreditavam na realidade das leis que haviam descoberto; bastava-lhes que fosse afirmada a existência da Unidade para deduzir dela também a pluralidade. E acreditavam discernir a essência verdadeira das coisas em suas relações numéricas. Portanto, não há qualidades, não há nada além de quantidades, não quantidades de elementos (água, fogo, etc.), mas delimitações do ilimitado, do Ápeiron; este é análogo ao ser potencial da hyle de Aristóteles. Assim, toda coisa nasce de dois fatores opostos. De novo, aqui, dualismo. Notável quadro estabelecido por Aristóteles (Metaf. I, 5): delimitado, ilimitado; ímpar, par; uno, múltiplo; direita, esquerda; masculino, feminino; imóvel, agitado; reto, curvo; luz, trevas; bom, mau; quadrado, ablongo. De um lado têm-se, portanto: delimitado, ímpar, uno, direita, masculino, imóvel, reto, luz, bom, quadrado. De outro lado, ilimitado, par, múltiplo, esquerda, feminino, agitado, curvo, trevas, mau, ablongo. Isso lembra o quadro-modelo de Parmênides. O ser é luz e, portanto, sutil, quente, ativo; o não-ser é noite e, portanto, denso, frio, passivo.
1) que ela não tem partes e não é um todo;
2) que tampouco tem limites;
3) portanto, que não está em parte nenhuma;
4) que não pode nem mover-se nem estar em repouso, etc. Mas, por outro lado, o Ser e a Unidade dão a Unidade existente, portanto a diversidade, e as partes múltiplas, e o número, e a pluralidade do ser, e a delimitação, etc. É um procedimento análogo: ataca-se o conceito da Unidade existente porque comporta os predicados contraditórios e é, portanto, um conceito contraditório, impossível. Os matemáticos pitagóricos acreditavam na realidade das leis que haviam descoberto; bastava-lhes que fosse afirmada a existência da Unidade para deduzir dela também a pluralidade. E acreditavam discernir a essência verdadeira das coisas em suas relações numéricas. Portanto, não há qualidades, não há nada além de quantidades, não quantidades de elementos (água, fogo, etc.), mas delimitações do ilimitado, do Ápeiron; este é análogo ao ser potencial da hyle de Aristóteles. Assim, toda coisa nasce de dois fatores opostos. De novo, aqui, dualismo. Notável quadro estabelecido por Aristóteles (Metaf. I, 5): delimitado, ilimitado; ímpar, par; uno, múltiplo; direita, esquerda; masculino, feminino; imóvel, agitado; reto, curvo; luz, trevas; bom, mau; quadrado, ablongo. De um lado têm-se, portanto: delimitado, ímpar, uno, direita, masculino, imóvel, reto, luz, bom, quadrado. De outro lado, ilimitado, par, múltiplo, esquerda, feminino, agitado, curvo, trevas, mau, ablongo. Isso lembra o quadro-modelo de Parmênides. O ser é luz e, portanto, sutil, quente, ativo; o não-ser é noite e, portanto, denso, frio, passivo.
O ponto de partida que permite afirmar que tudo o que é qualitativo é quantitativo encontra-se na acústica.
Teoria das cordas sonoras; relação de intervalos; modo dórico.
A
música, com efeito, é o melhor exemplo do que queriam dizer os
pitagóricos. A música, como tal, só existe em nossos nervos e em nosso
cérebro; fora de nós ou em si mesma (no sentido de Locke), compõe-se
somente das relações numéricas quanto ao ritmo, se se trata de sua
quantidade, e quanto à tonalidade, se se trata de sua qualidade,
conforme se considere o elemento harmônico ou o elemento rítmico. No
mesmo sentido, poder-se-ia exprimir o ser do universo, do qual a música
é, pelo menos em certo sentido, a imagem, exclusivamente com o auxílio
de números. E tal é, estritamente, o domínio da química e das ciências
naturais. Trata-se de encontrar fórmulas matemáticas para as forças
absolutamente impenetráveis. Nossa ciência é, nesse sentido, pitagórica.
Na química, temos uma mistura de atomismo e de pitagorismo, para a qual
Ecphantus na Antiguidade passa por ter aberto o caminho.
A
contribuição original dos pitagóricos é, pois, uma invenção
extremamente importante: a significação do número e, portanto, a
possibilidade de uma investigação exata em física. Nos outros sistemas
de física, tratava-se sempre de elementos e de sua combinação. As
qualidades nasciam por combinação ou por dissociação; agora, enfim,
afirma-se que as qualidades residem na diversidade das proporções. Mas
esse pressentimento estava ainda longe da aplicação exata. Contentou-se,
provisoriamente, com analogias fantasiosas.
Se
se pergunta a que se pode vincular a filosofia pitagórica, encontra-se,
inicialmente, o primeiro sistema de Parmênides, que fazia nascer todas
as coisas de uma dualidade; depois, o Ápeiron de Anaximandro, delimitado
e movido pelo fogo de Heráclito. Mas estes são apenas, evidentemente,
problemas secundários; na origem há a descoberta das analogias numéricas
no universo, ponto de vista inteiramente novo. Para defender essa ideia
contra a doutrina unitária dos eleatas, tiveram de erigir a noção de
número, foi preciso que também a Unidade tivesse vindo a ser; retomaram
então a idéia heraclitiana do pólemos, pai de todas as coisas, e da
Harmonia que une as qualidades opostas; a essa força, Parmênides chamava
Aphrodite. Simbolizava a gênese de todas as coisas a partir da oitava.
Decompuseram os dois elementos de que nasce o número em par e ímpar.
Identificaram essas noções com termos filosóficos já usuais. Chamar o
Ápeiron de Par é sua grande inovação; isso porque os ímpares, os
gnómones, davam nascimento a uma série limitada de números, os números
quadrados. Remetem-se, assim, a Anaximandro, que reaparece aqui pela
última vez. Mas identificam esse limite com o fogo de Heráclito, cuja
tarefa é, agora, dissolver o indeterminado em tantas relações numéricas
determinadas; é essencialmente uma força calculadora. Se houvessem
tomado emprestado de Heráclito a palavra lógos, teriam entendido por ela
a proporção (aquilo que fixa as proporções, como o Péras fixa o
limite). Sua idéia fundamental é esta: a matéria, que é representada
inteiramente destituída de qualidade, somente por relações numéricas
adquire tal ou tal qualidade determinada. Tal é a resposta dada ao
problema de Anaximandro. O vir-a-ser é um cálculo. Isso lembra a palavra
de Leibniz, ao dizer que a música é "exercitium arithmeticae occultum
nescientis se numerare animi" (¹). Os pitagóricos teriam podido dizer o
mesmo do universo, mas sem poder dizer quem faz o cálculo.
(¹) O exercício de aritmética oculto do espírito que não sabe calcular.
A
força mística do grande filósofo e reformador religioso, há 2.600 anos
vem, poderosamente, influindo no pensamento Ocidental. Dentre as
religiões de mistérios, de caráter iniciático, a doutrina pitagórica foi
a que mais se difundiu na antiguidade.
Não
consideramos apenas lenda o que se escreveu sobre essa vida
maravilhosa, porque há, nessas descrições, sem dúvida, muito de
histórico do que é fruto da imaginação e da cooperação ficcional dos que
se dedicaram a descrever a vida do famoso filósofo de Samos.
O
fato de negar-se, peremptoriamente, a historicidade de Pitágoras (como
alguns o fazem), por não se ter às mãos documentação bastante, não
impede que seja o pitagorismo uma realidade empolgante na história da
filosofia, cuja influência atravessa os séculos até nossos dias.
Acontece
com Pitágoras o que aconteceu com Shakespeare, cuja existência foi
tantas vezes negada. Se não existiu Pitágoras de Samos, houve com
certeza alguém que construiu essa doutrina, e que, por casualidade,
chamava-se Pitágoras. Podemos assim parafrasear o que foi dito quanto a
Shakespeare. Mas, pondo de lado esses escrúpulos ingênuos de certos
autores, que preferem declará-lo como não existente, como se houvesse
maior validez na negação da sua historicidade do que na sua afirmação,
vamos a seguir relatar algo, sinteticamente, em torno dessa lenda.
Em
1917, perto de Porta Maggiori, sob os trilhos da estrada de ferro, que
liga Roma a Nápoles, foi descoberta uma cripta, que se julgou a
princípio fosse a porta de uma capela cristã subterrânea. Posteriormente
verificou-se que se tratava de uma construção realizada nos tempos de
Cláudio, por volta de 41 a 54 d.C., e que nada mais era do que um
templo, onde se reuniam os membros de uma seita misteriosa, que, afinal, averiguou-se ser pitagórica. Sabe-se hoje, com base histórica, que
antes, já em tempos de César, proliferavam os templos pitagóricos, e se
essa seita foi tão combatida, deve-se mais ao fato de ser secreta do que
propriamente por suas ideias. Numa obra, hoje cara aos pitagóricos,
Carcopino (La Brasilique pythagoricienne de la Porte Majeure) dá-nos um
amplo relato desse templo. E foi inegavelmente essa descoberta tão
importante que impulsionou novos estudos, que se realizaram sobre a
doutrina de Pitágoras, os quais tendem a mostrar o grande papel que
exerceu na história, durante vinte e cinco séculos, essa ordem, que
ainda existe e tem seus seguidores, embora esteja, em nossos dias, como
já esteve no passado, irremediavelmente infectada de ideias estranhas
que, ao nosso ver, desvirtuam o pensamento genuíno de Pitágoras de
Samos.
É
aceito quase sem divergência por todos que se debruçaram a estudar a
sua vida, que Pitágoras nasceu em Samos, entre 592 a 570 antes da nossa
era; ou seja, naquele mesmo século em que surgiram tantos grandes
condutores de povos e criadores de religiões, como foi Gautama Buda,
Zoroastro (Zaratustra), Confúcio e Lao Tsé.
Inúmeras
são as divergências sobre a verdadeira nacionalidade de Pitágoras, pois
uns afirmam ter sido ele de origem egípcia; outros, síria ou, ainda,
natural de Tiro.
Relata
a lenda que Pitágoras, cujo nome significa o Anunciador pítico
(Pythios), era filho de Menesarco e de Partêmis, ou Pythaia. Tendo esta,
certa vez, levado o filho à Pítia de Delfos, esta sacerdotiza
vaticinou-lhe um grande papel, o que levou a mãe a devotar-se com o
máximo carinho à sua educação. Consta que Pitágoras, que desde criança
se revelava prodigioso, teve como primeiros mestres a Hermodamas de
Samos até os 18 anos, depois Ferécides de Siros, tendo sido,
posteriormente, aluno de Tales, em Mileto, e ouvinte das conferências de
Anaximandro. Foi depois discípulo de Sonchi, um sacerdote egípcio,
tendo, também, conhecido Zaratos, o assírio Zaratustra ou Zoroastro, em
Babilônia, quando de sua estada nessa grande metrópole da antiguidade.
Conta-nos,
ainda, a lenda que o hierofante Adonai aconselhou-o a ir ao Egito,
recomendado ao faraó Amom, onde, afirma-se, foi iniciado nos mistérios
egípcios, nos santuários de Mênfis, Dióspolis e Heliópolis. Afirma-se,
ademais, que realizou um retiro no Monte Carmelo e na Caldéia, quando
foi feito prisioneiro pelas tropas de Cambísis, tendo sido daí conduzido
para a Babilônia. Foi em sua viagem a essa metrópole da Antiguidade,
que conheceu o pensamento das antigas religiões do Oriente, e frequentou
as aulas ministradas por famosos mestres de então.
Observa-se,
porém, em todas as fontes que nos relatam a vida de Pitágoras, que este
realizou, em sua juventude, inúmeras viagens e peregrinações, tendo
voltado para Samos já com a idade de 56 anos. Suas lições atraíram-lhe
muitos discípulos, mas provocaram, também, a inimizade de Policrates,
então tirano de Samos, o que fez o sábio exilar-se na Magna Grécia
(Itália), onde, em Crotona, fundou o seu famoso Instituto.
Antes
de sua localização na Magna Grécia, relata-se que esteve em contato com
os órficos, já em decadência, no Peloponeso, tendo então conhecido a
famosa sacerdotiza Teocléia de Delfos.
Mas
é na Itália que desempenha um papel extraordinário, porque aí é que
funda o seu famoso Instituto, o qual, combatido pelos democratas de
então, foi finalmente destruído, contando-nos a lenda que, em seu
incêndio, segundo uns, pereceu Pitágoras, junto com os seus mais amados
discípulos, enquanto outros afirmam que conseguiu fugir, tomando um rumo
que permaneceu ignorado.
Segundo
as melhores fontes, Pitágoras deve ter falecido entre 510 e 480. A
sociedade pitagórica continuou após a sua morte, tendo desaparecido
quando do famoso massacre de Metaponto, depois da derrota da liga
crotoniata.
"Com ordem e com tempo encontra-se o segredo de fazer tudo e tudo fazer bem". (Pitágoras)
O Pitagorismo
Durante
o século VI a.C. verificou-se, em algumas regiões do mundo grego, uma
revivescência da vida religiosa. Os historiadores mostram que um dos
fatores concorreram para esse fenômeno foi a linha política adotada, em
geral, pelos tiranos, para garantir seu papel de líderes populares e
para enfraquecer a antiga aristocracia - que se supunha descendente dos
deuses protetores das polis, das divindades "oficiais" -, os tiranos
favoreciam a expansão de cultos populares ou estrangeiros.
"Ajuda teus semelhantes a levantar sua carga, mas não a carregues". (Pitágoras)
A Pátria Estelar
Dentre
as religiões de mistério, de caráter iniciático, uma teve enorme
difusão: o culto de Dioniso, originário da Trácia, e que passou a
constituir o núcleo da religião órfica. O orfismo - de Orfeu, que
primeiro teria recebido a revelação de certos mistérios e os teria
confiado a iniciados sob a forma de poemas musicais - era uma religião
essencialmente esotérica. Os órficos acreditavam na imortalidade da alma
e na metempsicose, ou seja, na transmigração da alma através de vários
corpos, a fim de efetivar sua purificação. A alma aspiraria, por sua
própria natureza, a retornar à sua pátria celeste, às estrelas, de onde
caíra. Para libertar-se, porém, do ciclo das reincarnações, o homem
necessitaria da ajuda de Dioniso, deus libertador que completava a
libertação preparada pelas práticas catárticas (entre as quais se incluía a abstinência de certos alimentos). A religião órfica
pressupunha, portanto, uma distinção - não só de natureza como também de
valor - entre a alma ignea e imortal e os corpos pereciveis através dos
quais ela realizava sua purificação.
"O que fala, semeia - o que escuta, recolhe". (Pitágoras)
Salvação pela Matemática
Pitágoras
de Samos, que se tornou figura legendária na própria Antiguidade, teria
sido antes de mais nada um reformador religioso, pois realizou uma
modificação fundamental na doutrina órfica, transformando o sentido da
"via de salvação"; em lugar do deus Dioniso colocou a matemática.
Da
vida de Pitágoras quase nada pode ser afirmado com certeza, já que ela
foi objeto de uma série de relatos tardios e fantasiosos, como os
referentes às suas viagens e a seus contatos com culturas orientais.
Parece certo, contudo, que ele teria deixado Samos (na Jônia), na
segunda metade do século VI a.C. fugindo à tirania de Polícrates,
transferindo-se para Crotona (na Magna Grécia) fundou uma confraria
científico-religiosa.
Pitágoras
criou um sistema global de doutrinas, cuja finalidade era descobrir a
harmonia que preside à constituição do cosmo e traçar, de acordo com
ela, as regras da vida individual e do governo das cidades. Partindo de
ideias órficas, o pitagorismo pressupunha uma identidade fundamental, de
natureza divina, entre todos os seres. Essa similitude profunda entre
os vários existentes era sentida pelo homem sob a forma de um "acordo
com a natureza", que, sobretudo, depois do pitagórico Filolau, será
qualificada como uma "harmonia", garantida pela presença do divino em
tudo. Natural que dentro de tal concepção - vista por alguns autores
como o fundamento do "mito helênico" - o mal seja entendido sempre como
desarmonia.
A
grande novidade introduzida certamente pelo próprio Pitágoras na
religiosidade órfica foi a transformação do processo de libertação da
alma num esforço puramente humano, porque basicamente intelectual. A
purificação resultaria do trabalho intelectual, que descobre a estrutura
numérica das coisas e torna, assim, a alma semelhante ao cosmo,
entendido como unidade harmônica, sustentada pela ordem e pela
proporção, e que se manifesta como beleza.
Pitágoras
teria chegado à concepção de que todas as coisas são números através
inclusive de uma observação no campo musical: verificou no monocórdio
que o som produzido varia de acordo com a extensão da corda sonora. Ou
seja, descobriu que há uma dependência do som em relação à extensão, da
música, (tão importante como propiciadora de vivências religiosas
estáticas) em relação à matemática.
"Todas as coisas são números". (Pitágoras)
De
acordo com essa concepção, os pitagóricos adotaram uma representação
figurada dos números, em substituição às representações literais mais
arcaicas, usadas pelos gregos e depois pelos romanos. A representação
figurada permitia explicitar a lei de composição dos números e torna-se
um fator de avanço das investigações matemáticas dos pitagóricos. Os
primeiros números, representados figurativamente, bastavam para
justificar o que há de essencial no universo: o um é o ponto, mínimo de
corpo, unidade de extensão; o dois determina a linha; o três gera a
superfície, enquanto o quatro produz o volume. Já por sua própria
notação figurativa evidencia-se que a primitiva matemática pitagórica
constitui uma aritmo-geometria, a associar intimamente os aspectos
numéricos e geométrico, a quantidade e sua expressão espacial.
"Pensem o que quiserem de ti; faze aquilo que te parece justo". (Pitágoras)
O Escândalo dos "Irracionais"
A
primitiva concepção pitagórica de número apresentava limitações que
logo exigiriam dos próprios pitagóricos tentativas de reformulação. O
principal impasse enfrentado por essa aritmo-geometria baseada em
inteiros (já que as unidades seriam indivisíveis) foi o levantado pelos
números irracionais. Tanto na relação entre certos valores musicais
(expressos matematicamente), quanto na base mesma da matemática, surgem
grandezas inexprimíveis naquela concepção de número. Assim, a relação
entre o lado e a diagonal do quadrado (que é a da hipotenusa do
triângulo retângulo isósceles com o cateto) tornava-se "irracional",
aquelas linhas não apresentavam "razão comum" ou "comum medida", o que
se evidenciava pelo aparecimento na tradução aritmética da relação entre
elas, de valores sem possibilidade de determinação exaustiva, como V¯².
O "escândalo" dos irracionais manifestava-se no próprio teorema de
Pitágoras (o quadrado construído sobre a hipotenusa é igual a soma dos
quadrados construídos sobre os catetos). Com efeito, desde que se
atribuísse valor 1 ao cateto de um triângulo isósceles, a hipotenusa
seria igual a V¯². Ou então, quando se pressupunha que os valores
correspondentes à hipotenusa e aos catetos eram números primos entre si,
acabava-se por se concluir pelo absurdo de que um deles não era afinal
nem par nem ímpar.
Apesar
desses impasses - e em grande parte por causa deles - o pensamento
pitagórico evoluiu e expandiu-se, influenciando praticamente todo o
desenvolvimento da ciência e da filosofia gregas. Sua astronomia,
estreitamente vinculada à sua religião astral foi o ponto de partida das
várias doutrinas que os gregos formulariam, pressupondo o universo
harmonicamente constituído por astros que desenvolvem trajetórias,
presos a esferas homocêntricas. Essa geometrização do cosmo estava
aliada, no pitagorismo, às concepções musicais também desenvolvidas pela
escola: separadas por intervalos equivalentes aos intervalos musicais,
aquelas esferas produziram, em seu movimento, sons de acorde perfeito.
Essa "harmonia das esferas", permanentemente soante, seria a própria
tessitura do que o homem considera "silêncio".
"Educai as crianças e não será preciso punir os homens". (Pitágoras)
ZENÃO - Vida, Obras e Pensamento
Zenão
floresceu cerca de 464/461 a.C. Nasceu em Eléia (Itália). Ao contrário
de Heráclito, interveio na política, dando leis à sua pátria. Tendo
conspirado contra a tirania e o tirano (Nearco?), acabou preso,
torturado e, por não revelar o nome dos comparsas, perdeu a vida. -
Escreveu várias obras em prosa: Discussões, Contra os Físicos, Sobre a
Natureza, Explicação Crítica de Empédocles. - Considerado criador da
dialética (entendida como argumentação combativa ou erística), Zenão
erigiu-se em defensor de seu mestre, Parmênides, contra as críticas dos
adversários, principalmente os pitagóricos. Defendeu o ser uno, contínuo
e indivisível de Parmênides contra o ser múltiplo, descontínuo e
divisível dos pitagóricos.
A
característica de Zenão é a dialética. Ele é o mestre da Escola
Eleática; nela seu puro pensamento torna-se o movimento do conceito em
si mesmo, a alma pura da ciência - é o iniciador da dialética. Pois até
agora só vimos nos eleatas a proposição: "O nada não possui realidade,
não é, e aquilo que é surgir e desaparecer cai fora". Em Zenão, pelo
contrário, também descobrimos tal afirmar e sobressumir daquilo que o
contradiz, mas não o vemos, ao mesmo tempo, começar com esta afirmação; é
a razão que realiza o começo - ela aponta, tranquila em si mesma,
naquilo que é afirmado como sendo sua destruição. Parmênides afirmou: "O
universo é imutável, pois na mudança seria posto o não-ser daquilo que
é; mas somente é ser, no 'não-ser é' se contradizem sujeito e
predicado". Zenão, pelo contrário, diz: "Afirmai vossa mudança: nela
enquanto mudança, é o nada para ela, ou ela não é nada". Nisto consistia
o movimento determinado, pleno para aquela mudança; Zenão falou e
voltou-se contra o movimento como tal ou puro movimento.
Também
Zenão era um eleata; é o mais jovem e viveu particularmente em convívio
com Parmênides. Este o amava muito e o adotou como filho. Seu pai
verdadeiro chamava-se Teleutágoras. Em sua vida não apenas era algo de
muito respeito em seu Estado, mas também em geral era célebre e muito
respeitado como professor. Platão o lembra: de Atenas e de outros
lugares vinham homens a ele para entregar-se à sua formação.
Atribuiu-se-lhe orgulhosa auto-suficiência, pelo fato de (exceto sua
viagem a Atenas) ter sua residência fixa em Eléia, negando-se a viver
por mais tempo na grande e poderosa Atenas, para lá colher fama. Segundo
muitas lendas, a fortaleza de sua alma tornou-se célebre pela sua
morte. Ela teria salvo um Estado (não se sabe se sua pátria Eléia ou se
Sicília) de seu tirano, sacrificando da seguinte maneira sua vida: Teria
participado de uma conjuração para derrubar o tirano, tendo, porém,
esta sido traída. Quando o tirano, diante de seu povo, o fez torturar de
todos os modos, para arrancar-lhe a confissão dos nomes dos outros
conjuradores, e ao perguntar pelos inimigos do Estado, Zenão delatou
primeiro todos os amigos do tirano como participantes da conjuração,
chamando então o tirano mesmo a peste do Estado. Dessa maneira, as
poderosas admoestações ou também as torturas horríveis e a morte de
Zenão ergueram os cidadãos e levantaram-lhes o ânimo, para caírem sobre o
tirano, liquidá-lo e assim libertar-se. De modo violento e furioso de
sua reação. Diz-se que ele se postou como se quisesse dizer ainda algo
aos ouvidos do tirano, mordendo-lhe, no entanto, a orelha e cerrando os
dentes até ter sido trucidado pelos outros. Outros narram que ele teria
ferrado os dentes em seu nariz, segurando-o assim. Outros ainda dizem
que, tendo suas respostas sido seguidas de enormes torturas, ele cortou a
língua com os próprios dentes e a cuspiu no rosto do tirano, para lhe
mostrar que dele nada arrancaria; depois disso teria sido triturado num
pilão.
1)
Segundo seu elemento tético, a filosofia de Zenão é, em seu conteúdo,
inteiramente igual à que vimos em Xenófanes e Parmênides, apenas com
esta diferença fundamental, que os momentos e as oposições são expressos
mais como conceitos e pensamentos. Já em seu elemento tético vemos
progresso; ele já está mais avançado no sobressumir das oposições e
determinações.
"É
impossível", diz ele, "que, quando algo é, surja" (ele relaciona isto
com a divindade); "pois teria que surgir ou do igual ou do desigual.
Ambas as coisas são, porém. impossíveis; pois não se pode atribuir, ao
igual, que dele se produza mais do que deve ser produzido já que os
iguais devem ter entre si as mesmas determinações." Com a aceitação da
igualdade, desaparece a diferença entre o que produz e aquilo que é
produzido. "Tampouco pode surgir o desigual do desigual; pois se do mais
fraco se originasse o mais forte ou do menor o maior ou do pior o
melhor, ou se, inversamente, o pior viesse do melhor, originar-se-ia o
não-ser do ente, o que é impossível; portanto. Deus é eterno." Isto foi
denominado panteísmo (spinozismo), que repousaria sobre a proposição ex
nihilo nihil fit. Em Xenófanes e Parmênides tínhamos ser e nada. Do nada
é imediatamente nada, do ser, ser; mas assim já é. Ser é a igualdade
expressa como imediata; pelo contrário, igualdade como igualdade
pressupõe o movimento do pensamento e a mediação, a reflexão em si. Ser e
não-ser situam-se assim, lado a lado, sem que sua unidade seja
concebida como a de diferentes; estes diferentes não são expressos como
diferentes. Em Zenão a desigualdade é o outro membro em oposição a
igualdade.
Em
seguida, é demonstrada a unidade de Deus: "Se Deus é o mais poderoso de
tudo, então Ihe é próprio que seja um; pois, na medida em que dele
houvesse dois ou ainda mais, ele não teria poder sobre eles; mas
enquanto Ihe faltasse o poder sobre os outros não seria Deus. Se,
portanto, houvesse mais deuses, eles seriam mais poderosos e mais fracos
um em face do outro; não seriam, por conseguinte, deuses; pois faz
parte da natureza de Deus não ter acima de si nada mais poderoso; pois o
igual não é nem pior nem melhor que o igual - ou não se distingue dele.
Se, portanto, Deus é e se ele é de tal natureza, então só há um Deus;
não seria capaz de tudo o que quisesse, se houvesse mais deuses".
"Sendo
um, é em toda parte igual, ouve, vê e possui também, em toda parte, os
outros sentimentos; pois, não fosse assim, as partes de Deus dominariam
uma sobre a outra" (uma estaria onde a outra não está, reprimi-la-ia;
uma parte teria determinações que faltariam às outras), "o que é
impossível. Como Deus é em toda parte igual, possui ele a forma
esférica; pois não é aqui assim, em outra parte de outro modo, mas em
toda parte igual." Diz ainda: "Já que é eterno, um e esférico, ele nao é
nem infinito (ilimitado) nem limitado. Pois, a) ilimitado é o não-ente;
pois este não possui nem meio, nem começo, nem fim, nem uma parte - tal
coisa é o ilimitado. Como, porém, é o não-ente, assim não é o ente. 0
ilimitado é o indeterminado, o negativo; seria o não-ente, a supressão
do ser, e é assim, ele mesmo, determinado como algo unilateral. b)
Dar-se-ia delimitação mútua, se houvesse diversos; mas. como é apenas
um, ele não é limitado." Assim Zenão também mostra: "O um não se move,
nem é imóvel. Pois imóvel é a) o não-ente" (no não-ente não se realiza
nenhum movimento; com a falta de movimento estaria posto o não-ser ou o
vazio; o imóvel é negativo; "pois para ele nenhuma outra coisa advém,
nem vai para coisa alguma. b) Movido, porém, somente é o múltiplo; pois
um dever-se-ia mover para o outro." Movido só é o que é diferente de
outro; pressupõe-se uma multiplicidade de tempo, espaço. "O um,
portanto, não está nem em repouso nem se movimenta; pois não se parece
nem com o não-ente nem com o múltiplo. Em tudo isto, Deus se comporta
assim; pois ele é eterno e um, idêntico a si mesmo e esférico nem
ilimitado nem limitado, nem em repouso nem em movimento." Do fato de
nada poder provir, quer do igual quer do desigual, Aristóteles conclui
que, ou nada existe fora de Deus, ou tudo é eterno.
Vemos,
em tal tipo de raciocínio, uma dialética que se pode denominar de
raciocínio metafísico. 0 princípio da identidade Ihe serve de
fundamento: "O nada é igual ao nada, não passa para o ser, nem
vice-versa; do igual, portanto, nada pode provir". O ser, o um da Escola
Eleática é apenas esta abstração, este afundar-se no abismo da
identidade do entendimento. Este modo, o mais antigo, de argumentar é
ainda, até o dia de hoje, válido, por exemplo, nas assim chamadas
demonstrações da unidade de Deus. A isto vemos ligada uma outra espécie
de raciocínio metafísico: são feitas pressuposições, por exemplo. o
poder de Deus, raciocinando-se, a partir daí. negando-se predicados.
Esta a maneira comum de nós raciocinarmos. No que se refere às
determinações deve-se observar que elas, enquanto algo negativo, devem
ser mantidas afastadas do ser positivo e apenas real.
Para
ir a esta abstração fazemos um outro caminho, não utilizamos a
dialética que usa a Escola Eleática; nosso caminho é trivial e mais
óbvio. Nós dizemos que Deus é imutável, a mudança apenas se atribui às
coisas finitas (isto como que sendo uma proposição empírica); de um lado
temos, assim, as coisas finitas e a mudança; de outro lado, a
imutabilidade nesta unidade abstrata e absoluta consigo mesma. É a mesma
separação; só que nós deixamos valer como ser também o finito. o que os
eleatas desprezaram. Ou também partimos das coisas finitas para as
espécies, gêneros, e deixamos, passo a passo, o negativo de lado; e o
gênero mais alto é então Deus, que, enquanto o ser supremo, é apenas
afirmativamente, mas sem qualquer determinação. Ou passamos do finito
para o infinito, dizendo que o finito, enquanto limitado, deve ter seu
fundamento no infinito. Em todas estas formas que nos são bem familiares
está contida a mesma dificuldade da questão que se levanta no que diz
respeito ao pensamento eleático: De onde vem a determinação, como deve
ela ser concebida, tanto no um mesmo, que deixa o finito de lado, como
no modo como o infinito se manifesta no finito? Os eleatas
distinguem-se, em seu pensamento, de nosso modo de refletir comum, pelo
fato de terem posto mãos à obra de maneira especulativa - o especulativo
tem lugar no fato de afirmarem que a mudança não é - e pelo fato de,
desta maneira. terem mostrado que, assim como se pressupõe o ser, a
mudança é em si contradição, algo incompreensível: pois do um, do ser,
está afastada a determinação do negativo, da multiplicidade. Enquanto
nós deixamos valer, em nossa representação, a realidade do mundo finito,
os eleatas foram mais consequentes, avançando até a afirmação de que só
o um é e de que o negativo não é - consequência que, ainda que deva ser
por nós admirada, é, contudo, não menos, uma grande abstração
Particularmente
digno de nota é o fato de que. em Zenão, já há a consciência mais alta
de que uma determinação é negada de que esta negação mesma é novamente
uma determinação, devendo então, na negação absoluta. não ser negada
apenas uma determinação, mas ambas as negações que se opõem. Antes é
negado o movimento e a essência absoluta aparece como em repouso; ou é
negada enquanto finita. e então é puramente infinita. Isto, porém,
também é determinação, também ela finita. Do mesmo modo, também o ser em
oposição ao não-ser é uma determinação.
Sendo
a essência absoluta posta como o um ou o ser, ela é posta através da
negação; é determinada como o negativo e, assim, como o nada, e ao nada
se atribuem os mesmos predicados que ao ser: o puro ser não é movimento,
é o nada do movimento. Isto pressentiu Zenão; e, porque previu que o
ser é o oposto do nada, assim negou ele do um o que deveria dizer-se do
nada. Mas o mesmo deveria acontecer com o resto. 0 um é o mais poderoso e
nisto determinado propriamente como o destruir absoluto; pois o poder é
também o não-ser absoluto de um outro, o vazio. 0 um é igualmente o não
dos muitos: tanto no nada como no um, a multiplicidade está
sobressumida. Esta dialética mais alta encontramo-la em Platão, em seu
Parmênides. Aqui isto surge apenas referido a algumas determinações não
com referência às determinações do um e do ser mesmo.
A
consciência mais alta é a consciência sobre a nulidade do ser enquanto
algo determinado em face do nada; isto se dá, parte em Heráclito e,
então, nos sofistas; com isto não permanece verdade alguma, ser-em-si,
mas apenas o ser para o outro é, ou seja, a certeza da consciência
individual e a certeza como refutação - o lado negativo da dialética.
Zenão
possui o aspecto importante de ser o descobridor da dialética: se não é
ele propriamente, no que vimos, o descobridor da dialética em sua
plenitude, ao menos é quem está em seu começo; pois ele nega predicados
que se opõem. Portanto, Xenófanes, Parmênides, Zenão põem como
fundamento a proposição: Nada é nada, o nada não é, ou o igual (como diz
Melisso) é a essência; isto é, eles afirmam um dos predicados que se
opõem, como a essência. Eles põem-no fixamente; onde encontram, numa
determinação, o oposto, suprimem com isto essa determinação. Mas, assim,
esta somente se suprime através de um outro, através de minha
afirmação, através da distinção que faço de que um lado é o verdadeiro, o
outro sem importância (nulo) (parte-se de uma determinada proposição);
sua nulidade não aparece nela mesma, não de maneira que se suprima a si
mesma, isto é, que contenha em si uma contradição. Como movimento:
Verifiquei algo e vejo que é o nulo; demonstrei isto, segundo o
pressuposto, no movimento; conclui-se, portanto, que ele é o nulo. Mas
uma outra consciência não verifica aquilo; eu declaro isto como
imediatamente verdadeiro; a outra consciência tem razão em afirmar uma
outra: coisa como imediatamente verdadeira, por exemplo, o movimento.
Como sempre é o caso quando um sistema filosófico refuta o outro, o
primeiro sistema é posto como fundamento e a partir dele se entra em
debate contra o outro. Assim a coisa é facilitada: "O outro sistema não
possui verdade, porque não concorda com o meu"; mas o outro sistema tem o
mesmo direito de dizer assim. Eu não devo demonstrar sua não-verdade
através de um outro, mas em si mesmo. De nada ajuda demonstrar meu
sistema ou minha proposição e então concluir: portanto, o sistema que se
opõe está errado; para esta proposição aquela sempre parecerá algo de
estranho, algo exterior. O falso não deve ser apresentado corno falso
porque o oposto é verdadeiro, mas em si mesmo.
Esta
convicção racional vemos despertar em Zenão. No Parmênides de Platão
(127-128), esta dialética é muito bem descrita. Platão fá-lo falar assim
sobre isto: faz Sócrates dizer que Zenão afirma em seu escrito o mesmo
que Parmênides, isto é, que tudo é um: mas que nos procura enganar com
uma expressão, procurando dar a impressão de que está dizendo algo de
novo. Sócrates diz que Parmênides afirma em seu poema que tudo é um:
Zenão, pelo contrário, que o múltiplo não é. Zenão responde que escreveu
isto, antes contra aqueles que procuram tornar ridícula (komodeiñ) a
proposição de Parmênides, quando mostram quantas coisas ridículas e que
contradições contra si mesmos resultam de suas afirmações. Diz que
combateu aqueles que afirmam o ser do múltiplo, para demonstrar que
disto resultariam muito mais coisas discordantes que da proposição de
Parmênides.
Isto
é a determinação mais exata da dialética objetiva. Nesta dialética não
vemos afirmar-se o pensamento simples para si mesmo, mas, fortalecido,
levar a guerra para território inimigo. Este lado possui a dialética na
consciência de Zenão; mas ela deve ser considerada também de seu lado
positivo. Conforme a representação corrente da ciência, em que
proposições são resultado da demonstração, é a demonstração o movimento
da convicção, ligação através de mediação. A dialética como tal é a)
dialética exterior, este movimento distinto do compreender deste
movimento; b) não é um movimento apenas de nossa intuição, mas a partir
da coisa mesma, isto é, demonstrada para o puro conceito do conteúdo.
Aquela dialética é uma mania de contemplar objetos, de neles apontar
razões e aspectos, através dos quais se torna vacilante o que em geral
vale como firme. Podem ser então razões bem exteriores. A outra
dialética, porém, é a consideração imanente do objeto: ele é tomado para
si, sem pressuposições, ideia, dever-ser, não segundo circunstâncias
exteriores, leis, razões. A gente se põe inteiramente dentro da coisa,
considera o objeto em si mesmo e o toma segundo as determinações que
possui. Nesta consideração, ele se demonstra a si mesmo, mostra que
possui determinações opostas, que se suprime (sobressume): esta
dialética encontramos precipuamente junto aos antigos. A dialética
subjetiva, que raciocina, baseando-se em razões exteriores, torna-se
norma quando se concede: "No correto está o incorreto e no falso também o
verdadeiro". A dialética verdadeira não deixa nada sobrando em seu
objeto, de tal modo que apresentaria falhas apenas de um lado; mas ele
se dissolve segundo sua natureza inteira. 0 resultado desta dialética é
zero, o negativo; o afirmativo que nela se esconde ainda não aparece. A
esta dialética verdadeira pode juntar-se o que os eleatas fizeram. Mas
junto a eles ainda não vingou a determinação, a essência do
com-preender; ficaram parados na ideia de que através da contradição o
objeto se torna nulo.
A
dialética da matéria de Zenão não foi até hoje ainda refutada; não se
conseguiu ainda passar além dela e a questão fica esquecida no
indeterminado. "Ele demonstra que, quando é o múltiplo, então é grande e
pequeno: grande, assim o múltiplo é infinito, segundo a grandeza" (tò
mégethos), deve-se ultrapassar a multiplicidade, enquanto limite
indiferente, para passar para o infinito; o que é infinito não é “mais
grande”, nem “mais múltiplo”; infinito é o negativo do múltiplo;
"pequeno, de maneira que não tem mais grandeza", átomos, o não-ente.
"Aqui mostra ele que o que não tem tamanho, nem espessura, nem massa
(ónkos), também não é. Pois se fosse acrescentado a um outro não
aumentaria a este; pois, se não tem tamanho e grandeza, nada poderia
acrescentar ao tamanho do outro; assim o que foi acrescentado não é
nada. O mesmo aconteceria ao ser retirado; o outro não seria por isso
diminuído; não é, portanto, nada".
Os
aspectos mais exatos desta dialética nos conservou Aristóteles; o
movimento foi tratado particularmente por Zenão, de maneira objetiva e
dialética. Mas o caráter exaustivo que vemos no Parmênides de Platão não
Ihe corresponde. Vemos desaparecer para a consciência de Zenão o
simples pensamento imóvel para tornar-se ele mesmo movimento pensante;
na medida em que combate o movimento sensível, ele o dá a si. O fato de a
dialética ter tido atraída sua atenção primeiro para o movimento é a
razão de a dialética mesma ser este movimento ou o movimento mesmo ser a
dialética de todo ente. A coisa tem. enquanto se move, sua dialética
mesma em si, e o movimento é: tornar-se outro, sobressumir-se.
Aristóteles afirma que Zenão teria negado o movimento pelo fato de
possuir contradição interna. Mas não se deve entender isto assim como se
o movimento não fosse - como nós dizemos, não há elefantes, não há
rinocerontes. Que o movimento existe, que ele é fenômeno, isto nem está
em questão; o movimento possui certeza sensível, como existem elefantes.
Neste sentido, Zenão nem teve a idéia de negar o movimento. Pelo
contrário, seu questionar vai em busca de sua verdade; mas o movimento é
não verdadeiro, pois ele é contradição. Com isto quer ele dizer que não
se Ihe deveria atribuir verdadeiro ser. Zenão mostra então que a
representação do movimento contém uma contradição e apresenta quatro
modos de refutação do movimento. Os argumentos repousam sobre a infinita
divisão do espaço e do tempo.
1)
Primeira forma: Zenão diz que o movimento não tem verdade alguma,
porque o movido deveria atingir primeiro a metade do espaço como sua
meta. Aristóteles diz isto de maneira tão breve por ter tratado antes
amplamente o objeto e tê-lo exposto detidamente. Isto deve ser
compreendido de maneira mais universal; é pressuposta a continuidade do
espaço. O que se move deve atingir uma determinada meta; este caminho é
um todo. Para percorrer o todo, o que é movido deve antes ter percorrido
a metade. Agora a meta é o fim desta metade. Mas esta metade é
novamente um todo, este espaço possui assim uma metade; deve, portanto,
ter atingido antes a metade desta metade, e assim até o infinito. Zenão
toca aqui na divisibilidade infinita do espaço. Pelo fato de espaço e
tempo serem absolutamente contínuos, nunca se pode parar com a divisão.
Cada grandeza - e cada tempo e espaço sempre tem uma grandeza - é
novamente divisível em duas metades; estas devem ser percorridas e,
mesmo onde colocamos um espaço o menor possível, sempre surge este mesmo
estado de coisas. O movimento que seria o percurso destes momentos
infinitos nunca termina; portanto, o que é movido nunca atinge sua meta.
É
conhecido como Diógenes de Sínope, o Cínico, refutou tais provas da
contradição do movimento, de maneira muito simples; levantou-se em
silêncio e caminhou de cá para lá - ele as refutou pela ação. Mas a
estória é continuada também assim: a um aluno que se contentara com esta
refutação, Diógenes o castigou pela simples razão de que, se o
professor havia discutido com argumentos, ele só poderia deixar valer
uma refutação também com argumentos. Da mesma maneira a gente não deve
satisfazer-se com a certeza sensível; mas é preciso compreender.
Vemos
aqui desenvolvido o infinito aparecer. Primeiro em sua contradição -
uma consciência dele. O movimento, o puro aparecer em si mesmo é o
objeto e surge como um pensado, um posto segundo sua essência, a saber,
(consideramos a forma dos momentos) em suas diferenças da pura igualdade
consigo mesmo e da pura negatividade - do ponto contra a continuidade.
Na nossa representação não parece contraditório que o ponto no espaço
ou, do mesmo modo, o momento no tempo contínuo seja posto ou que seja
afirmado o agora do tempo como uma continuidade, uma duração (dia, ano);
mas seu conceito contradiz-se a si mesmo. A igualdade consigo mesmo, a
continuidade é absoluta homogeneidade, é eliminação de toda diferença,
de todo negativo, de todo ser para si; o ponto é, pelo contrário, o puro
ser para si, o absoluto distinguir-se e a supressão de toda igualdade e
homogeneidade com outro. Mas estes dois estão postos numa unidade, no
espaço e no tempo, espaço e tempo, portanto, a contradição. O mais fácil
é mostrá-la no movimento; pois, no movimento, o oposto é também posto
para a representação. Pois o movimento e a essência, a realidade do
tempo e do espaço; e, enquanto esta aparece, é posta, também é posto já o
fenômeno da contradição. É para esta contradição que Zenão chama a
atenção.
É
a continuidade de um espaço, é o positivo que é posto; e nele o limite
que o divide ao meio. Mas o limite que divide ao meio não é limite
absoluto ou em si e para si, mas é algo limitado, é novamente
continuidade. Mas esta continuidade também novamente nada é de absoluto,
mas põe o oposto nela - limite que divide ao meio; mas com isto
novamente não é posto o limite da continuidade, a metade ainda é
continuidade e assim até o infinito. Até o infinito - com isto nos
representamos um além, que não pode ser atingido, fora da representação
que não pode atingi-lo. É um inacabado ultrapassar, mas presente no
conceito - um passar além de uma determinação oposta para outra, de
continuidade para negatividade, de negatividade para continuidade; elas
estão diante de nós. Destes dois momentos pode, no processo, ser
afirmado um deles como o essencial. Primeiro Zenão põe o progresso
contínuo de maneira tal que não se atinge nada igual a si, um
determinado - nenhum espaço limitado, portanto, continuidade; ou Zenão
afirma o avanço neste limitar.
A
resposta geral e a solução de Aristóteles é que espaço e tempo não são
divididos infinitamente, mas apenas divisíveis. Parece, entretanto, que,
enquanto são divisíveis (potentia, dynámei, não actu, energeía), também
devem estar efetivamente divididos infinitamente; pois, de outro modo,
não poderiam ser divididos ao infinito - uma resposta geral para a
representação.
2)
"O segundo argumento" (que também é pressuposição da continuidade e
posição da divisão) chama-se "argumento de Aquiles", o homem dos pés
velozes. Os antigos gostavam de vestir as dificuldades com
representações sensíveis. De dois corpos que se movem numa direção, dos
quais um está na frente e outro o segue numa determinada distância,
movendo-se, porém, mais rapidamente que aquele, sabemos que o segundo
alcançará o primeiro. Zenão, porém, diz: "O mais vagaroso nunca poderá
ser alcançado nem mesmo pelo mais rápido"; e isto ele demonstra assim: o
que segue necessita de uma determinada parte do tempo para "alcançar o
lugar de onde partiu o que está em fuga", no começo desta determinada
parte do tempo. Durante o tempo em que o segundo atingiu o ponto onde o
primeiro se achava, este já avançou para mais longe, deixou atrás de si
novo espaço que o segundo novamente deverá percorrer numa parte desta
parte do tempo; e assim se vai até o infinito. B percorre numa hora duas
milhas, A, no mesmo tempo, uma milha. Se estão separados entre si por
duas milhas, então B chegou numa hora onde A estava no começo da hora.
Mas o espaço (uma milha), vencido por A, será percorrido por B na metade
de uma hora, e assim ao infinito. Desta maneira, o movimento mais
rápido nada ajuda ao segundo corpo para percorrer o espaço intermediário
que o separa do outro; o tempo de que necessita, também o mais vagaroso
sempre tem à sua disposição, e "com isto ele já sempre conseguiu uma
vantagem".
Aristóteles,
que trata disto, diz brevemente sobre o mesmo: "Este argumento
representa a mesma divisão infinita'' ou o infinito ser dividido através
do movimento. "É algo não verdadeiro; pois o rápido, contudo, alcançará
o vagaroso, se Ihe for permitido ultrapassar o limite, o limitado." A
resposta é correta e contém tudo. Nesta representação são admitidos dois
pontos de tempo e dois de espaço que estão separados entre si - isto é,
são limitados, são limites um para o outro. Se, ao contrário, se admite
que tempo e espaço são contínuos, de maneira tal que dois pontos do
tempo ou dois pontos de espaço se relacionam entre si de maneira
contínua, então eles são, igualmente, na medida em que são dois também
não dois - são idênticos.
Zenão
apenas faz valer o limite, a divisão, o momento da separação de espaço e
tempo em sua total determinação; por isto surge a contradição. O que
gera a dificuldade sempre é o pensamento, porque separa em sua distinção
aqueles momentos de um objeto, na realidade unidos. 0 pensamento
produziu a queda original, quando o homem comeu da árvore do
conhecimento do bem e do mal; mas também ressarce este prejuízo. É uma
dificuldade superar o pensamento e é somente ele que causa esta
dificuldade.
3)
"O terceiro argumento" tem a forma que Zenão descreve assim: "A flecha
em voo repousa", e isto porque "o que se move sempre está no mesmo
agora" e no aqui igual a si mesmo, no "não-distinguível" (en tõ nyn,
katà tò íson); ele está aqui, e aqui e aqui. Assim que dizemos que
sempre é o mesmo; a isto, porém, não chamamos movimento, mas repouso: o
que sempre está no aqui e agora, repousa. Ou deve-se dizer da flecha que
sempre está no mesmo espaço e no mesmo tempo; não consegue ultrapassar
seu espaço, não conquista um outro espaço, isto é, um espaço maior ou
menor. Aqui o tornar-se outro foi sobressumido; o ser limitado é posto
como tal, mas o limitar é, contudo, um momento. No aqui agora como tais,
não há diferença. No espaço, um ponto é tão bem um aqui como o outro,
isto aqui e isto aqui e mais um outro, etc.; e, contudo, o aqui é sempre
o mesmo aqui; não são distintos entre si. A continuidade, a igualdade
do aqui e afirmada aqui contra a opinião da diferença. Cada lugar é
lugar diferente - portanto, o mesmo; a diferença é apenas aparente. Não é
neste estado de coisas, mas no mundo do espírito que se manifesta a
verdadeira e objetiva diferença.
Isto
acontece também na mecânica: pergunta-se qual se move de dois corpos.
Para determinar qual deles se move é preciso mais de dois lugares, ao
menos três. Mas uma coisa é correta: o movimento é absolutamente
relativo; se, no espaço absoluto, por exemplo, o olho repousa ou se
move, é inteiramente o mesmo. Ou, conforme uma proposição de Newton: se
dois corpos giram, em círculo, um em torno do outro, surge a pergunta se
um repousa ou se ambos se movem. Newton quer decidir isto por uma
circunstância exterior, os fios estendidos (tensio filorum). Se num
navio caminho na direção oposta da direção em que se move o navio, o
mover-me é movimento com relação ao navio, mas repouso com relação a
outra coisa.
Nos
dois primeiros argumentos a continuidade no avançar é o que predomina:
não existe limite absoluto, nem espaço limitado, mas apenas continuidade
absoluta, transgredir todos os limites. No argumento agora em questão é
retido o aspecto inverso, a saber, o absoluto ser-limitado, a
interrupção da continuidade, nenhuma passagem para outro. Sobre este
terceiro argumento diz Aristóteles que ele se origina do fato de se
aceitar que o tempo consiste de "agoras"; pois, se não se concede isto,
não se pode tirar a conclusão a que Zenão chegou.
4)
"O quarto argumento" e tomado de corpos iguais que se movem no estádio
ao lado de um igual, com velocidade igual, um a partir do fim do
estádio, o outro a partir do meio, um em direção do outro; disto se
deveria concluir que a metade do tempo é igual ao dobro. O erro da
conclusão consiste no fato de admitir que, no que se move e no que está
em repouso, a coisa percorre uma mesma extensão em tempo igual, com
velocidade igual; isto, porém, é falso.
Esta
quarta forma diz respeito à contradição no movimento oposto. A oposição
possui aqui uma outra forma: a) mas também novamente o universo, o
comum, que deve ser atribuído inteiramente a cada parte, enquanto
realiza para si apenas uma parte; b) é apenas posto como verdadeiro
(como sendo) o que cada parte faz para si. Aqui a distância de um corpo é
a soma do afastar se de ambos; é o que acontece quando caminho dois pés
para o leste e outro, partindo do mesmo ponto, caminha dois pés para o
oeste; assim estamos distantes um do outro quatro pés - aqui ambos devem
ser somados; na distância de ambos, ambos são positivos. Ou avancei e
retrocedi dois pés - no mesmo ponto; ainda que tenha andado quatro pés,
não saí do ponto em que estava. 0 movimento é, portanto, nulo; pois pelo
movimento de ir para frente e para trás há aqui coisas opostas que se
suprimem.
Isto
é então a dialética de Zenão. Ele captou as determinações que contém
nossa representação do espaço e tempo; ele as tinha em sua consciência e
nelas mostra o aspecto contraditório. As antinomias de Kant nada mais
são do que aquilo que Zenão aqui já fizera.
O
elemento universal da dialética, a proposição universal da escola
eleática foi, portanto: "0 verdadeiro é apenas o um, todo o resto é
não-verdadeiro"; como a filosofia kantiana chegou ao resultado:
"Conhecemos apenas fenômenos". No todo é o mesmo princípio: "O conteúdo
da consciência é apenas um fenômeno, nada verdadeiro"; mas nisto também
reside uma diferença. Pois Zenão e os Eleatas afirmaram sua proposição
com a seguinte significação: "O mundo sensível é em si mesmo apenas
mundo fenomenal, com suas formas infinitamente diversas - este lado não
possui verdade em si mesmo". Nào é, porém, isto que pensa Kant. Ele
afirma: Voltando-se para o mundo, quando o pensamento se dirige para o
mundo exterior (para o pensamento também o mundo dado no interior é algo
exterior), voltando-se para ele, fazemos dele um fenômeno; é a
atividade de nosso pensamento que atribui ao exterior tantas
determinações: o sensível, determinações da reflexão, etc. Só nosso
conhecimento é fenômeno, o mundo é em si absolutamente verdadeiro; só
nossa aplicação, nosso acréscimo o arruína para nós; o que
acrescentamos, nada vale. O mundo torna-se não-verdadeiro pelo fato de
Ihe jogarmos em cima uma massa de determinações. Isto é então a grande
diferença. Este conteúdo também é nulo em Zenão; mas, em Kant, porque é
obra nossa. Em Kant é o elemento espiritual que arruína o mundo; segundo
Zenão, é o mundo, o que aparece em si que é não-verdadeiro. Segundo
Kant, é nosso pensar, a atividade de nosso espírito o elemento mau - é
uma enorme humildade do espírito não ter confiança no conhecimento. Na
Bíblia diz Cristo: "Pois não sois melhores que os pardais?" Nós o somos
enquanto pensamos - enquanto seres sensíveis, tão bons ou tão maus como
os pardais. O sentido da dialética de Zenão possui maior objetividade
que esta dialética moderna. A dialética de Zenão ainda se conteve nos
limites da metafísica: mais tarde, com os sofistas, tornou se universal.
De
sua vida sabemos poucas coisas seguras. mas muitas lendas. Viagens
extraordinárias, a ruína material, as honras que recebeu de seus
concidadãos, sua solidão, seu grande poder de trabalho. Uma tradição
tardia afirma que ele ria de tudo...
Demócrito
e Leucipo partem do eleatismo. Mas o ponto de partida de Demócrito é
acreditar na realidade do movimento porque o pensamento é um movimento.
Esse é seu ponto de ataque: o movimento existe porque eu penso e o
pensamento tem realidade. Mas se há movimento deve haver um espaço
vazio, o que equivale a dizer que o não-ser é tão real quanto o ser. Se o
espaço é absolutamente pleno, não pode haver movimento. Com efeito: 1) o
movimento espacial só pode ter lugar no vazio, pois o pleno não pode
acolher em si nada que lhe seja heterogêneo; se dois corpos pudessem
ocupar o mesmo lugar no espaço, poderia haver uma infinidade deles, pois
o menor poderia acolher em si o maior; 2) a rarefação e a condensação
só se explicam pelo espaço vazio; 3) o crescimento só se explica porque o
alimento penetra nos interstícios do corpo; 4) Em um vaso cheio de cinza pode-se ainda derramar tanta água quanta se
ele estivesse vazio, a cinza desaparece nos interstícios vazios da água.
O não ser é, portanto, também o pleno, nastón (de nasso, ou aperto), o
stereón. O pleno é aquilo que não contém nenhum Kenón. Se toda grandeza
fosse divisível ao infinito, não haveria mais nenhuma grandeza, não
haveria mais ser. Se deve subsistir um pleno, isto é, um ser, é preciso
que a divisão não possa ir ao infinito. Mas o movimento demonstra o ser,
tanto quanto o não-ser. Se somente o não ser existisse, não haveria
movimento. O que resta são os átomos. O ser é a unidade indivisível.
Mas,
se esses seres devem agir uns sobre os outros pelo choque, é preciso
que sejam de natureza idêntica. Demócrito afirma, portanto, como
Pitágoras, que o ser deve ser semelhante a si mesmo em todos os pontos. O
ser não pertence mais a um ponto do que a outro. Se um átomo fosse o
que o outro não é, haveria um não-ser, o que é uma contradição. Somente
nossos sentidos nos mostram coisas qualitativamente diferentes. São
chamadas também idéai ou skhémata. Todas as qualidades são nómo, os
seres só diferem pela quantidade. É preciso, pois, remeter todas as
qualidades a diferenças quantitativas. Elas só se distinguem pela forma
(rhysmós, skhéma), pela ordem (diathigé, táxis), peia posição (tropé,
thésis). A difere de N pela forma, AN de NA pela ordem, Z de N pela
posição. A principal diferença está na forma, que indica diferença de
grandeza e de peso. O peso pertence a cada corpo (como medida de todas
as quantidades). Como todos os seres são da mesma natureza, o peso deve
pertencer igualmente a todos, isto é, à mesma massa, o mesmo peso. O
ser, portanto, é definido como pleno, dotado de uma forma, pesado; os
corpos são idênticos a esses predicados. Temos aqui a distinção que
reaparece em Locke: as qualidades primárias pertencem às coisas em si
mesmas, fora de nossa representação; não se pode fazer abstração delas;
são: a extensão, a impermeabilidade, a forma, o número. Todas as outras
qualidades são secundárias, produzidas pela ação das qualidades
primárias sobre os órgãos de nossos sentidos, dos quais são apenas as
impressões: cor, som, gosto, odor, dureza, moleza, polido, rugoso, etc.
Pode-se, portanto, fazer abstração da natureza dos corpos na medida em
que é apenas a ação dos nervos sobre os órgãos sensoriais.
Uma
coisa nasce quando se produz um certo agrupamento de átomos; desaparece
quando esse grupo se desfaz, muda quando muda a situação ou a
disposição desse grupo ou quando uma parte é substituída por outra.
Cresce quando lhe são acrescentados novos átomos. Toda ação de uma coisa
sobre outra se produz pelo choque dos átomos; se há separação no
espaço, recorre-se à teoria das aporrhoaí. Percebe-se, pois, que
Empédocles foi utilizado a fundo, pois este havia discernido o dualismo
do movimento em Anaxágoras e recorrido à ação mágica. Demócrito adota
uma posição adversa. Anaxágoras reconhecia quatro elementos; Demócrito
esforçou-se por caracterizá-los a partir de seus átomos da mesma
natureza. O fogo é feito de átomos pequenos e redondos; nos outros
elementos estão misturados átomos diversos; os elementos distinguem-se
apenas pela grandeza de suas partes. É por isso que a água, a terra e o
ar podem nascer um do outro por dissociação.
Demócrito
pensa, com Empédocles, que somente o semelhante age sobre o semelhante.
A teoria dos poros e das aporrhoaí preparava a do kenón. O ponto de
partida de Demócrito, a realidade do movimento, Ihe é comum com
Anaxágoras e Empédocles, provavelmente também sua dedução a partir da
realidade do pensamento. Com Anaxágoras, tem em comum os ápeira ou
matérias originais. Naturalmente, é antes de tudo de Parmênides que ele
procede, é este que domina todas as suas concepções fundamentais. Ele
retorna ao primeiro sistema de Parmênides, segundo o qual o mundo se
compunha de ser e de não-ser. Toma emprestado de Heráclito a crença
absoluta no movimento, a idéia de que todo movimento pressupõe uma
contradição e de que o conflito é o pai de todas as coisas.
De
todos os sistemas antigos, o de Demócrito é o mais lógico: pressupõe a
mais estrita necessidade presente em toda parte, não há nem interrupção
brusca nem intervenção estranha no curso natural das coisas. Só então o
pensamento se desprende de toda a concepção antropomórfica do mito,
tem-se, enfim, uma hipótese cientificamente utilizável; esta hipótese, o
materialismo, sempre foi da maior utilidade. É a concepção mais
terra-a-terra; parte das qualidades reais da matéria, não procura logo
de início, como a hipótese do Nous ou as causas finais de Aristóteles,
ultrapassar as forças mais simples. É um grande pensamento reconduzir às
manifestações inumeráveis de uma força única, da espécie mais comum,
todo esse universo cheio de ordem e de exata finalidade. A matéria que
se move segundo as Ieis mais gerais produz, com o auxílio de um
mecanismo cego, efeitos que parecem os desígnios de uma sabedoria
suprema. Leia-se Kant, História Natural do Céu, p. 48. Rosenkr.:
''Admito que a matéria de todo o universo está em um estado de dispersão
geral e faço dele um perfeito caos. Vejo as substâncias se formarem em
virtude de leis conhecidas de atração e modificarem, pelo choque, seu
movimento. Sinto o prazer de ver um todo bem ordenado nascer sem o
auxílio de fábulas arbitrárias, pelo efeito de leis mecânicas bem
conhecidas, e esse todo é tão semelhante ao universo que temos sob os
olhos que não posso impedir-me de tomá-lo por ele mesmo. Não contestarei
então que a teoria de Lucrécio ou de seus predecessores, Epicuro,
Leucipo, Demócrito, tem muita analogia com a minha. Parece-me que se
poderia dizer aqui, em certo sentido, sem muita imprudência: 'Dai-me a
matéria, e eu vos farei um mundo' ".
Eis
como Demócrito se representa a formação de um mundo dado: os átomos
flutuam, perpetuamente agitados, no espaço infinito; censurou-se desde a
Antiguidade esse ponto de partida, dizendo que o mundo teria sido
movido e teria nascido por "acaso", concursu quodam fortuito, que o
"acaso cego" reinaria entre os materialistas. Esta é uma maneira muito
pouco filosófica de se exprimir. O que é preciso dizer é que há uma
causalidade sem finalidade, anánke sem intenções. Não há acaso, mas um
conjunto de leis rigorosas, embora não racionais.
Demócrito
deduz todo movimento do espaço vazio e do peso. Os átomos pesados caem e
fazem subir os átomos leves com sua pressão. O movimento original é,
bem entendido, vertical, uma queda regular e eterna no infinito do
espaço; não se pode indicar sua velocidade, pois, como o espaço é
infinito e a queda regular não há medida para essa velocidade...
Como
os átomos vieram a operar movimentos laterais, a formar turbilhões na
regularidade das combinações que se faziam e se desfaziam? Se tudo caía
na mesma velocidade, isso seria equivalente ao repouso absoluto; a
velocidade sendo desigual, eles se encontram, alguns são repelidos,
produz-se um movimento giratório. Esse turbilhão aproxima,
primeiramente, o que é de mesma natureza. Quando os átomos em equilíbrio
são tão numerosos que não podem mais se mover, os mais leves são
repelidos para o vazio exterior, como se fossem expulsos; os outros
permanecem juntos, entrelaçando-se e formando uma espécie de
conglomerado... Cada um desses conglomerados que se separam da massa dos
corpos primitivos é um mundo; há infinitos mundos. Estes nasceram e
perecerão.
Cada
vez que nasce um mundo, é que uma massa produzida pelo choque de átomos
heterogêneos se separou; as partes mais leves são empurradas para o
alto; sob o efeito combinado de forças opostas, a massa entra em
rotação, os elementos repelidos para fora depositam-se no exterior como
uma película. Esse invólucro vai-se tornando cada vez mais fino, certas
partes sendo atraídas para o centro pela rotação. Os átomos centrais
formam a terra, aqueles que se elevam formam o céu, o fogo, o ar. Alguns
formam massas espessas, mas o ar que os leva é por sua vez levado em um
rápido turbilhão; neste eles secam pouco a pouco e se inflamam pela
rapidez do movimento (astros). Do mesmo modo, as partículas do corpo
terrestre são pouco a pouco arrancadas pelos ventos e pelos astros e se
acumulam em água nos ocos. Assim a terra se solidifica. Pouco a pouco
ela tomou uma posição fixa no centro do universo; no começo, quando ela
era ainda pequena e leve, movia-se de um lado para outro. O sol e a lua,
em um estágio antigo de sua formação, foram apanhados pelas massas que
se moviam em torno do núcleo terrestre e desse modo viram-se atraídos
para nosso sistema sideral.
Nascimento
dos seres animados. A essência da alma reside em sua força animadora; é
esta que move os seres animados. O pensamento é um movimento. A alma
deve, pois, ser feita da matéria mais móvel, de átomos sutis, lisos e
arredondados (de fogo). Essas partículas de fogo estão espalhadas por
todo o corpo; entre todos os átomos corporais se intercala um átomo de
alma. Estes se movem perpetuamente. Por causa de sua sutileza e de sua
mobilidade arriscam-se a serem arrancados do corpo pelo ar circundante. É
disso que nos preserva a respiração, que nos traz constantemente de
fora novos átomos de fogo e de alma para substituir os átomos
desaparecidos e que prende no interior do corpo aqueles que quereriam
escapar. Se a respiração cessa, o fogo interior escapa. Disso resulta a
morte. Isso não acontece em um instante; pode ocorrer que a vida seja
restaurada depois da desaparição de uma parte da alma. O sono - morte
aparente.
Teoria
das percepções dos sentidos. O contato não é imediato, opera-se por
meio das aporrhoaí. Estas penetram no corpo pelos sentidos e espalham-se
por todas as partes; disso nasce a representação das coisas. Duas
condições são necessárias: uma certa força da impressão e a afinidade do
órgão que a recebe. Somente o semelhante sente o semelhante, percebemos
as coisas por meio das partes de nosso ser que Ihes são análogas.
A
percepção é idêntica ao pensamento. Uma e outro são modificações
mecânicas da matéria da alma; se a alma é levada por esse movimento à
temperatura conveniente, percebe exatamente os objetos, o pensamento é
sadio. Se o movimento a aquece ou a esfria excessivamente, as
representações são falsas e o pensamento é malsão. É aqui que começam as
verdadeiras dificuldades do materialismo, porque ele próprio começa a
sentir seu prõton pseudos. Tudo o que é objetivo, extenso, agente,
potanto material, tudo aquilo que o materialismo considera como seu
fundamento mais solido, não passa de um dado extremamente mediato, um
concreto extremamente relativo, que passou pelo mecanismo do cérebro e
acomodou-se às formas do tempo, do espaço e da causalidade, graças às
quais se apresenta como extenso no espaço e agente no tempo. É de um tal
dado que o materialismo quer, agora, deduzir o único dado imediato, a
representação. É uma prodigiosa petição de princípios; de repente, o
último elo aparece como o ponto de partida de que já dependia o primeiro
elo da corrente. Assim, comparou-se o materialismo ao Barão de Crac
(sic), que, quando atravessava o rio a cavalo, suspendia sua montaria
apertando-a entre as pernas e se suspendia a si mesmo por meio de sua
peruca, que puxava para cima. O absurdo consiste em partir do dado
objetivo, enquanto, na verdade, todo dado objetivo é determinado de
várias maneiras pelo sujeito pensante e desaparece totalmente quando se
faz abstração do sujeito. Por outro lado, o materialismo é uma hipótese
preciosa e de uma verdade relativa, mesmo depois que se descobriu o
prõton pseudos; é uma representação cômoda nas ciências naturais, e
todos os seus resultados permanecem verdadeiros para nós, se não no
absoluto. Trata-se do mundo que é o nosso, para cuja produção cooperamos
sempre.
Anotações sobre Demócrito
Deveríamos
a Demócrito muitos sacrifícios fúnebres, simplesmente para reparar os
erros do passado para com ele. Com efeito, é raro que um escritor
considerável tenha tido de sofrer tantos ataques devidos o razões
diversas. Teólogos e metafísicos acumularam sobre seu nome suas
acusações inveteradas contra o materialismo. O divino Platão chegou
mesmo a considerar seus escritos tão perigosos que pretendia destruí-los
em um auto-de-fé privado e só foi impedido disso por considerar que já
era tarde demais, que o veneno já estava por demais alastrado. Mais
tarde, os obscurantistas da Antigüidade se vingaram dele, introduzindo,
sob sua marca, o contrabando de seus escritos de magia e de alquimia, o
que imputou ao pai de todas as tendências racionais uma reputação de
grande mágico. O cristianismo nascente, enfim, logrou executar o
enérgico desígnio de Platão; e sem dúvida um século anticósmico devia
considerar os escritos de Demócrito, assim como os de Epicuro, como a
encarnação do paganismo. Enfim, foi reservado à nossa época negar também
a grandeza filosófica do homem e atribuir-lhe um temperamento de
sofista. Todos esses ataques se desenrolam em um terreno que não podemos
mais defender.
Os
fragmentos de Moral (= Estudos Éticos) têm, por um lado, um tom
desenvolto de homem do mundo e uma bela forma. Não recendem a estoicismo
nem a platonismo, mas, aqui e ali, lembram Aristóteles e sua
metropathía.
Não
são indignos de Demócrito. É um problema psicológico saber se foi ele
que os escreveu. A tradição não prova nada... Junta-se a isso a
obscuridade em que nos encontramos a respeito de Leucipo. Se este é o
inventor da ideia principal, podemos entretanto atribuir também a
Demócrito uma grande diversidade de concepções.
Todos
os materialistas pensam que, se o homem é infeliz, é por não conhecer a
natureza. Assim o Sistema da Natureza começa nestes termos: "O homem é
infeliz porque não conhece a natureza".
Sobre
a questão da criação do mundo, Demócrito é perfeitamente claro. Uma
sequência infinita de anos, a cada mil anos uma pedrinha é juntada às
outras, e a terra acaba por ser o que é.
Sobre o problema da origem do mundo, ele foi, igualmente, de uma completa clareza.
O materialismo é o elemento conservador na ciência como na vida. A ética de Demócrito é conservadora.
"Contenta-te
com o mundo tal como é", é o cânon moral que o materialismo produziu.
Uma plena virilidade do pensamento e da investigação aparece cm
Demócrito. Entretanto, ele não perde o senso da poesia. É o que prova
sua própria descrição, seu juízo sobre os poetas, que considera como
profetas da verdade (isso lhe parece um fato natural).
Não acreditamos nos contos, mas sentimos sua força poética.
Características do Pensamento de Demócrito
• Gosto pela ciência. Aitíai. Viagens;
• Clareza. Aversão ao bizarro;
• Simplicidade do método;
• Arrojo poético (poesia do atomismo);
• Sentimento de um progresso poderoso;
• Fé absoluta em seu sistema;
• O Mal excluído de seu sistema.
• Paz de espírito, resultado do estudo cientifico. Pitágoras.
• Inquietações míticas: racionalismo.
• Inquietações morais: ascetismo.
• Inquietações políticas: quietismo.
• Inquietações conjugais: adoção de filhos.
Vauvenargues |
–
É a meta de sua filosofia. Os sistemas anteriores não lhe davam isso,
pois deixavam subsistir um elemento irracional. Eis por que ele procurou
remeter tudo àquilo que é mais fácil de compreender, a queda e o
choque.
Queria
sentir-se no mundo como em um quarto claro. Racionalista encarnado, pai
do racionalismo, acomodava à sua maneira os deuses, o espetáculo dos
sacrifícios, etc. Demócrito, sem dúvida, deve igualmente ser incluído
entre os melancólicos...
A meta é o otium litteratum: "ter a paz"
Demócrito, esse Humboldt do mundo antigo.
Sente-se
impelido a correr o mundo. Retorna pobre e sem recursos, reduzido, como
um mendigo, a viver das esmolas de seu irmão. Sua cidade natal o toma
por um pródigo. Recusam-lhe uma sepultura honrada, até o dia em que seus
parentes tomam as dores do morto e em que se elevam monumentos em honra
daquele que, desprezado em vida, quase morrera de fome.
Ele
se desempenha com excessiva rapidez dos encargos de construir o mundo e
a moral. Os problemas mais profundos Ihe permanecem ocultos. É que sua
vontade é a mola de sua investigação; o que quer é terminá-la e atingir o
conhecimento último. Ele se atrela a este, e é isso que Ihe dá sua
segurança e sua confiança em si. Ainda não havia notado, ao passar em
revista os sistemas anteriores, uma abundância infinita de pontos de
vista diversos; conservou, de seus raros predecessores, aquilo que Ihe
era homogêneo, aquilo que lhe parecia inteligível e simples, e condenou
sem indulgência a intrusão de um mundo mítico. É, pois, um racionalista
confiante; crê na capacidade liberadora de seu sistema e elimina dele
tudo aquilo que é mau e imperfeito.
Período Sistemático (SOFISTAS)
O
segundo período da história do pensamento grego é o chamado período
sistemático. Com efeito, nesse período realiza-se a sua grande e lógica
sistematização, culminando em Aristóteles, através de Sócrates e Platão,
que fixam o conceito de ciência e de inteligível, e através também da
precedente crise cética da sofística. O interesse dos filósofos gira, de
preferência, não em torno da natureza, mas em torno do homem e do
espírito; da metafísica passa-se à gnosiologia e à moral. Daí ser dado a
esse segundo período do pensamento grego também o nome de
antropológico, pela importância e o lugar central destinado ao homem e
ao espírito no sistema do mundo, até então limitado à natureza exterior.
Esse
período esplêndido do pensamento grego - depois do qual começa a
decadência - teve duração bastante curta. Abraça, substancialmente, o
século IV a.C., e compreende um número relativamente pequeno de grandes
pensadores: os sofistas e Sócrates, daí derivando as chamadas escolhas
socráticas menores, sendo principais a cínica e a cirenaica,
precursoras, respectivamente, do estoicismo e do epicurismo do período
seguinte; Platão e Aristóteles, deles procedendo a Academia e o Liceu,
que sobreviverão também no período seguinte e além ainda, especialmente a
Academia por motivos éticos e religiosos, e em seus desenvolvimentos
neoplatônicos em especial - apesar de o aristotelismo ter superado
logicamente o platonismo.
É
certo, não obstante, que as obras completas de Demócrito (que incluem
as obras de Leucipo e outros, bem como as de Demócrito) continuaram a
existir, porquanto a escola as conservou em Abdera e Teos ao longo dos
tempos helenísticos. Por isso, foi possível para Trasilo, sob o reinado
de Tibério, fazer uma edição das obras de Demócrito, organizada em
tetralogias, exatamente como sua edição dos diálogos de Platão. Mesmo
isso não foi suficiente para preservá-las. Os epicuristas, que tinham a
obrigação de ter estudado o homem a quem deviam tanto, detestavam
qualquer tipo de estudo, e provavelmente nem se preocuparam em
multiplicar os exemplares de um escritor cujas obras teriam sido um
testemunho permanente para a carência de originalidade que caracterizou o
próprio sistema deles.
Sabemos
extremamente pouco sobre a vida de Demócrito. Como Protágoras, era
natural de Abdera na Trácia, uma cidade que nem mereceria a reputação
proverbial de embotamento, considerando que pode dar origem a dois
homens de tanta envergadura. Quanto à data do seu nascimento, temos
apenas conjeturas para nos orientar. Em uma das principais obras,
afirmou que elas foram escritas 730 anos após a queda de Tróia; não
sabemos; porém, quando, segundo a suposição dele, isto ocorrera. Havia
nessa época e posteriormente diversas eras em uso. Disse também algures
que, quando Anaxágoras era velho, ele era jovem, e a partir dai
concluiu-se que nasceu em 460 a.C. Parece, entretanto, cedo demais,
visto estar baseado na hipótese de que tinha quarenta anos quando se
encontrou com Anaxágoras, e a expressão "jovem" sugere menos que esta
idade. Demais, cumpre-nos encontrar um espaço para Leucipo entre eles
[Demócrito] e Zenão. Se Demócrito morreu, como se diz, com a idade de
noventa ou cem anos, de qualquer maneira ainda vivia quando Platão
fundara a Academia. Mesmo a partir de fundamentos meramente
cronológicos, é falso classificar Demócrito entre os predecessores de
Sócrates, e obscurece o fato de que, como Sócrates, ele tentou responder
ao seu distinto concidadão Protágoras.
Demócrito
foi discípulo de Leucipo, e temos uma prova contemporânea, a de Glauco
de Régio, que também os pitagóricos foram seus mestres. Um membro
posterior da escola, Apolodoro de Quizico, diz que tomou conhecimento
por intermédio de Filolau, o que parece muito provável. Isto esclarece o
seu conhecimento geométrico, bem como, outros aspectos do seu sistema.
Sabemos, outrossim, que Demócrito falou nas obras das doutrinas de
Parmênides e Zenão, que chegou a conhecê-las através de Leucipo. Fez
menção a Anaxágoras, e parece ter dito que a sua teoria do sol e da lua
não era original. Isto pode referir se à explicação dos eclipses, que
geralmente fora atribuída em Atenas, e sem dúvida alguma na Jonia, a
Anaxágoras, ainda que Demócrito naturalmente estivesse ciente de ser ela
pitagórica.
Diz-se
ter visitado o Egito, mas há uma certa razão para se acreditar que o
fragmento onde isto é mencionado (fragmento 298 b) é apócrifo. Há um
outro (fragmento 116) no qual ele diz: "Eu fui a Atenas e ninguém tomou
conhecimento de mim". Se disse isto, sem dúvida deu a entender que não
conseguira causar uma impressão tal como o fizera o seu mais brilhante
concidadão Protágoras. Por outro lado, Demétrio de Falerão afirmou que
Demócrito jamais visitou Atenas; então é possível que este fragmento
também seja apócrifo. Seja como for, ele deve ter despendido a maior
parte do seu tempo no estudo, ensinando e escrevendo em Abdera. Não era
um sofista itinerante do tipo moderno, mas sim o cabeça de uma escola
regular.
A
verdadeira grandeza de Demócrito não está na teoria dos átomos e do
vazio, que ele parece ter exposto bem conforme a tinha recebido de
Leucipo. Menos ainda está no seu sistema cosmológico, que deriva
mormente de Anaxágoras. Pertence inteiramente a uma outra geração que a
desses homens, e não está preocupado de modo especial em encontrar uma
resposta a Parmênides. A questão à qual tinha que se dedicar era a de
sua própria época. A possibilidade de ciência havia sido negada, bem
como todo o problema do conhecimento levantado por Protágoras, e era
isto que exigia uma solução. Ademais, o problema do comportamento
tornara-se premente. A originalidade de Demócrito, portanto, está
precisamente na mesma linha que a de Sócrates.
Teoria do Conhecimento
Demócrito
procedeu como Leucipo ao fazer uma avaliação puramente mecânica da
sensação, e é provável que ele seja o autor da doutrina minuciosa dos
átomos com respeito a este assunto. Uma vez que a alma se compõe de
átomos como qualquer outra coisa, a sensação deve consistir no impacto
dos átomos externos sobre os átomos da alma, e os órgãos dos sentidos
devem ser simplesmente ''passagens" (póroi = poros) através das quais
estes átomos se introduzem. Disto decorre que os objetos da visão não
são estritamente as coisas que nós mesmos presumimos ver, mas as
"imagens" (deíkela, eídola) que os corpos estão constantemente emitindo.
A imagem na pupila do olho era considerada como a coisa essencial em
visão. Não é, porém, uma semelhança exata do corpo do qual provém, pois
está sujeita às distorções causadas pela interferência do ar. Este é o
motivo por que vemos as coisas a distância de um modo embaraçado e
indistinto, e por que, se a distância for grande, não podemos vê-las de
modo algum. Se não houvesse ar, mas somente o vazio, entre nós e os
objetos da visão, isto não seria assim; "poderíamos ver uma formiga
rastejando no firmamento". As diferenças de cor devem-se à lisura ou
aspereza das imagens ao tato. A audição explica-se de uma maneira
similar. O som é uma torrente de átomos que jorram do corpo sonante e
produzem movimento no ar entre ele [corpo] e o ouvido. Chegou, portanto,
ao ouvido junto com aquelas porções do ar que se Ihe assemelham. As
diferenças de paladar são devidas às diferenças nas figuras (eide,
skhémata) dos átomos que entram em contato com os órgãos desse sentido; e
o olfato explica-se semelhantemente, embora não com os mesmos detalhes.
De modo idêntico, o tato, considerado como o sentido pelo qual sentimos
o calor e o frio, o molhado e o seco e outros que tais, é afetado de
acordo com a forma e o tamanho dos átomos chocando nele.
Aristóteles
afirma que Demócrito reduziu todos os sentidos ao tato, e é realmente
verdade se entendermos por tato o sentido que percebe qualidades, tais
como forma, tamanho e peso. Este, todavia, deve ser cautelosamente
distinguido do sentido próprio do tato, que acima foi descrito. Para
compreender esta questão, temos que considerar a doutrina do
conhecimento "legítimo" e "ilegítimo".
É
aqui que Demócrito entra nitidamente em conflito com Protágoras, que
asseverou serem todas as sensações igualmente verdadeiras para o objeto
sensível. Demócrito, pelo contrário, considera falsas todas as sensações
dos sentidos próprios, posto que elas não têm uma contrapartida real
fora do objeto sensível. Nisto, naturalmente, está em conformidade com a
tradição eleática onde repousa a teoria atômica. Parmênides afirmara
claramente que o paladar, as cores, o som e outros semelhantes eram
apenas "nomes" (onómata), e é bastante idêntico a Leucipo que disse algo
de parecido, apesar de não haver razão de se acreditar que ele tenha
elaborado uma teoria sobre o assunto. Seguindo o exemplo de Protágoras,
Demócrito foi obrigado a ser explícito com referência à questão. Sua
doutrina, felizmente, foi-nos preservada através de suas próprias
palavras. "Por convenção (nómo)": disse ele (fragmento 125), "há o doce;
por convenção há o amargo; por convenção há o quente e por convenção há
o frio; por convenção há a cor". Porém, na realidade (etee), há os
átomos e o vazio. Deveras, as nossas sensações não representam nada de
externo, apesar de serem causadas por algo fora de nós, cuja verdadeira
natureza não pode ser apreendida pelos sentidos próprios. Esta é a razão
por que a mesma coisa às vezes dá a sensação de doce e às vezes de
amargo. "Pelos sentidos", afirmou Demócrito (fragmento 9),"nós na
verdade não conhecemos nada de certo, mas somente alguma coisa que muda
de acordo com a disposição do corpo e das coisas que nele penetram ou
Ihe opõem resistência". Não podemos conhecer a realidade deste modo,
pois "a verdade jaz num abismo" (fragmento 117). Vê-se que esta doutrina
tem muito em comum com a distinção moderna entre as qualidades
primárias e secundárias da matéria.
Demócrito,
pois, rejeita a sensação como fonte de conhecimento, exatamente como
fizeram os pitagóricos e Sócrates; contudo, como eles, ressalva a
possibilidade de ciência, afirmando que existe uma outra fonte de
conhecimento que não a dos sentidos próprios. "Há", diz ele (fragmento
11), "duas formas de conhecimento (gnóme): o legítimo (gnesíe) e o
ilegítimo (skotíe). Ao ilegítimo pertencem todos estes: a visão, a
audição, o olfato, o paladar e o tato. O legítimo, porém, está separado
daquele". Esta é a resposta de Demócrito a Protágoras. Ele diz que o
mel, por exemplo, é tanto amargo quanto doce, doce para mim e amargo
para você. Na realidade, é "não mais tal do que tal" (oudèn mãllon toion
è toion). Sexto Empírico e Plutarco afirmaram claramente que Demócrito
argüiu contra Protágoras, e o fato, por conseguinte, está fora da
discussão.
Ao
mesmo tempo, não se pode ignorar que Demócrito dera uma explicação
puramente mecânica deste conhecimento legítimo, como o fizera do
ilegítimo. Defendeu, com efeito, que os átomos fora de nós poderiam
afetar diretamente os átomos da nossa alma sem a intervenção dos órgãos
dos sentidos. Os átomos da alma não se restringem a algumas partes
específicas do corpo, mas nele penetram em qualquer direção, e não há
nada que os impeça de ter contato imediato com os átomos externos,
chegando assim a conhecê-los como realmente são. O "conhecimento
legítimo" é, afinal de contas, da mesma natureza do "ilegítimo", e
Demócrito recusou-se, como Sócrates, a fazer uma separação absoluta
entre os sentidos e o conhecimento. "Pobre Mente", imagina ele os
sentidos dizerem (fragmento 125); "é por causa de nós que conseguiste as
provas com as quais atiras contra nós. Teu tiro é uma capitulação." O
conhecimento "legítimo" não é, apesar de tudo, pensamento, mas uma
espécie de sentido interno, e seus objetos são como os "sensíveis
comuns" de Aristóteles.
Como
seria de esperar de um seguidor dos pitagóricos e de Zenão, Demócrito
ocupou-se com o problema da continuidade. Em uma passagem digna de nota
(fragmento 155), ele o confirma desta forma: "Se um cone fosse cortado
por um plano em linha paralela à base, o que se deveria pensar das
superfícies das duas partes cortadas? Seriam iguais ou desiguais? Se
forem desiguais, farão irregular o cone, pois ele terá muitas incisões
em forma de degraus e muitas asperezas. Se forem iguais, então as partes
cortadas serão iguais, e o cone terá a aparência de um cilindro, que é
composto de círculos iguais e não desiguais, o que é o maior absurdo".
Segundo um comentário de Arquimedes, parece que Demócrito prosseguiu
afirmando que o volume do cone era a terça parte do volume do cilindro
sobre a mesma base e do mesmo peso, cujo teorema foi demonstrado
primeiro por Eudoxo. É evidente, pois, que ele estava empenhado em
problemas tais como aqueles que finalmente deram origem ao método
infinitesimal do próprio Arquimedes. Vemos mais uma vez como foi
importante a obra de Zenão como um fermento intelectual.
A Sofística
Após
as grandes vitórias gregas, atenienses, contra o império persa, houve
um triunfo político da democracia, como acontece todas as vezes que o
povo sente, de repente, a sua força. E visto que o domínio pessoal, em
tal regime, depende da capacidade de conquistar o povo pela persuasão,
compreende-se a importância que, em situação semelhante, devia ter a
oratória e, por conseguinte, os mestres de eloquência. Os sofistas,
sequiosos de conquistar fama e riqueza no mundo, tornaram-se mestres de
eloquência, de retórica, ensinando aos homens ávidos de poder político a
maneira de consegui-lo. Diversamente dos filósofos gregos em geral, o
ensinamento dos sofistas não era ideal, desinteressado, mas sobejamente
retribuído. O conteúdo desse ensino abraçava todo o saber, a cultura,
uma enciclopédia, não para si mesma, mas como meio para fins práticos e
empíricos e, portanto, superficial.
A
época de ouro da sofística foi - pode-se dizer - a segunda metade do
século V a.C. O centro foi Atenas, a Atenas de Péricles, capital
democrática de um grande império marítimo e cultural. Os sofistas
maiores foram quatro. Os menores foram uma plêiade, continuando até
depois de Sócrates, embora sem importância filosófica.
Protágoras foi o maior de todos, chefe de escola e teórico da sofística.
Moral, Direito e Religião
Em
coerência com o ceticismo teórico, destruidorda ciência, a sofística
sustenta o relativismo prático, destruidor da moral. Como é verdadeiro o
que tal ao sentido, assim é bem o que satisfaz ao sentimento, ao
impulso, à paixão de cada um em cada momento. Ao sensualismo, ao
empirismo gnosiológicos correspondem o hedonismo e o utilitarismo ético:
o único bem é o prazer, a única regra de conduta é o interesse
particular. Górgias declara plena indiferença para com todo moralismo:
ensina ele a seus discípulos unicamente a arte de vencer os adversários;
que a causa seja justa ou não, não lhe interessa. A moral, portanto, -
como norma universal de conduta - é concebida pelos sofistas não como
lei racional do agir humano, isto é, como a lei que potencia
profundamente a natureza humana, mas como um empecilho que incomoda o
homem.
Desta
maneira, os sofistas estabelecem uma oposição especial entre natureza e
lei, quer política, quer moral, considerando a lei como fruto
arbitrário, interessado, mortificador, uma pura convenção, e entendendo
por natureza, não a natureza humana racional, mas a natureza humana
sensível, animal, instintiva. E tentam criticar a vaidade desta lei, na
verdade tão mutável conforme os tempos e os lugares, bem como a sua
utilidade comumente celebrada: não é verdade - dizem - que a submissão à
lei torne os homens felizes, pois grandes malvados, mediante graves
crimes, têm frequentemente conseguido grande êxito no mundo e, aliás, a
experiência ensina que para triunfar no mundo, não é mister justiça e
retidão, mas prudência e habilidade.
Então
a realização da humanidade perfeita, segundo o ideal dos sofistas, não
está na ação ética e ascética, no domínio de si mesmo, na justiça para
com os outros, mas no engrandecimento ilimitado da própria
personalidade, no prazer e no domínio violento dos homens. Esse domínio
violento é necessário para possuir e gozar os bens terrenos, visto estes
bens serem limitados e ambicionados por outros homens. É esta, aliás, a
única forma de vida social possível num mundo em que estão em jogo
unicamente forças brutas, materiais. Seria, portanto, um prejuízo a
igualdade moral entre os fortes e os fracos, pois a verdadeira justiça
conforme à natureza material, exige que o forte, o poderoso, oprima o
fraco em seu proveito.
Quanto
ao direito e à religião, a posição da sofística é extremista também,
naturalmente, como na gnosiologia e na moral. A sofística move uma justa
crítica, contra o direito positivo, muitas vezes arbitrário,
contingente, tirânico, em nome do direito natural. Mas este direito
natural - bem como a moral natural - segundo os sofistas, não é o
direito fundado sobre a natureza racional do homem, e sim sobre a sua
natureza animal, instintiva, passional. Então, o direito natural é o
direito do mais poderoso, pois em uma sociedade em que estão em jogo
apenas forças brutas, a força e a violência podem ser o único elemento
organizador, o único sistema jurídico admissível.
A
respeito da religião e da divindade, os sofistas não só trilham a mesma
senda dos filósofos racionalistas gregos do período precedente e
posterior, mas - de harmonia com o ceticismo deles - chegam até o
extremo, até o ateísmo, pelo menos praticamente. Os sofistas, pois,
servem-se da injustiça e do muito mal que existe no mundo, para negar
que o mundo seja governado por uma providência divina.
Protágoras de Abdera
Protágoras
nasceu em Abdera - pátria de Demócrito, cuja escola conheceu - pelo ano
480. Viajou por toda a Grécia, ensinando na sua cidade natal, na Magna
Grécia, e especialmente em Atenas, onde teve grande êxito, sobretudo
entre os jovens, e foi honrado e procurado por Péricles e Eurípedes.
Acusado de ateísmo, teve de fugir de Atenas, onde foi processado e
condenado por impiedade, e a sua obra sobre os deuses foi queimada em
praça pública. Refugiou-se então na Sicília, onde morreu com setenta
anos (410 a.C.), dos quais, quarenta dedicados à sua profissão. Dos
princípios de Heráclito e das variações da sensação, conforme as
disposições subjetivas dos órgãos, inferiu Protágoras a relatividade do
conhecimento. Esta doutrina enunciou-a com a célebre fórmula; o homem é a
medida de todas as coisas. Esta máxima significava mais exatamente que
de cada homem individualmente considerado dependem as coisas, não na sua
realidade física, mas na sua forma conhecida. Subjetivismo, relativismo
e sensualismo são as notas características do seu sistema de ceticismo
parcial. Platão deu o nome de Protágoras a um dos seus diálogos, e a um
outro o de Górgias.
Górgias de Leôncio
Górgias
nasceu em Abdera, na Sicília, em 480-375 a.C - correlacionado com
Empédocles - representa a maior expressão prática da sofística, mediante
o ensinamento da retórica; teoricamente, porém, foi um filósofo
ocasional, exagerador dos artifícios da dialética eleática. Em 427 foi
embaixador de sua pátria em Atenas, para pedir auxílio contra os
siracusanos. Ensinou na Sicília, em Atenas, em outras cidades da Grécia,
até estabelecer-se em Larissa na Tessália, onde teria morrido com 109
anos de idade. Menos profundo, porém, mais eloquente que Protágoras,
partiu dos princípios da escola eleata e concluiu também pela absoluta
impossibilidade do saber. É autor duma obra intitulada "Do não ser", na
qual desenvolve as três teses:
Nada
existe; se alguma coisa existisse não a poderíamos conhecer; se a
conhecêssemos não a poderíamos manifestar aos outros. A prova de cada
uma destas proposições e um enredo de sofismas, sutis uns, outros
pueris.
No
Górgias de Platão, Górgias declara que a sua arte produz a persuasão
que nos move a crer sem saber, e não a persuasão que nos instrui sobre
as razões intrínsecas do objeto em questão. Em suma, é mais ou menos o
que acontece com o jornalismo moderno. Para remediar este extremo
individualismo, negador dos valores teoréticos e morais, Protágoras
recorre à convenção estatal, social, que deveria estabelecer o que é
verdadeiro e o que é bem!
SÓCRATES
A Vida
Quem
valorizou a descoberta do homem feita pelos sofistas, orientando-a para
os valores universais, segundo a via real do pensamento grego, foi
Sócrates. Nasceu Sócrates em 470 ou 469 a.C., em Atenas, filho de
Sofrônico, escultor, e de Fenáreta, parteira. Aprendeu a arte paterna,
mas dedicou-se inteiramente à meditação e ao ensino filosófico, sem
recompensa alguma, não obstante sua pobreza. Desempenhou alguns cargos
políticos e foi sempre modelo irrepreensível de bom cidadão. Combateu a
Potidéia, onde salvou a vida de Alcebíades e em Delium, onde carregou
aos ombros a Xenofonte, gravemente ferido. Formou a sua instrução
sobretudo através da reflexão pessoal, na moldura da alta cultura
ateniense da época, em contato com o que de mais ilustre houve na cidade
de Péricles.
Inteiramente
absorvido pela sua vocação, não se deixou distrair pelas preocupações
domésticas nem pelos interesses políticos. Quanto à família, podemos
dizer que Sócrates não teve, por certo, uma mulher ideal na quérula
Xantipa; mas também ela não teve um marido ideal no filósofo, ocupado
com outros cuidados que não os domésticos.
Quanto
à política, foi ele valoroso soldado e rígido magistrado. Mas, em
geral, conservou-se afastado da vida pública e da política
contemporânea, que contrastavam com o seu temperamento crítico e com o
seu reto juízo. Julgava que devia servir a pátria conforme suas
atitudes, vivendo justamente e formando cidadãos sábios, honestos,
temperados - diversamente dos sofistas, que agiam para o próprio
proveito e formavam grandes egoístas, capazes unicamente de se
acometerem uns contra os outros e escravizar o próximo.
Entretanto,
a liberdade de seus discursos, a feição austera de seu caráter, a sua
atitude crítica, irônica e a consequente educação por ele ministrada,
criaram descontentamento geral, hostilidade popular, inimizades
pessoais, apesar de sua probidade. Diante da tirania popular, bem como
de certos elementos racionários, aparecia Sócrates como chefe de uma
aristocracia intelectual. Esse estado de ânimo hostil a Sócrates
concretizou-se, tomou forma jurídica, na acusação movida contra ele por
Mileto, Anito e Licon: de corromper a mocidade e negar os deuses da
pátria introduzindo outros. Sócrates desdenhou defender-se diante dos
juizes e da justiça humana, humilhando-se e desculpando-se mais ou
menos. Tinha ele diante dos olhos da alma não uma solução empírica para a
vida terrena, e sim o juízo eterno da razão, para a imortalidade. E
preferiu a morte. Declarado culpado por uma pequena minoria, assentou-se
com indômita fortaleza de ânimo diante do tribunal, que o condenou à
pena capital com o voto da maioria.
Tendo
que esperar mais de um mês a morte no cárcere - pois uma lei vedava as
execuções capitais durante a viagem votiva de um navio a Delos - o
discípulo Criton preparou e propôs a fuga ao Mestre. Sócrates, porém,
recusou, declarando não querer absolutamente desobedecer às leis da
pátria. E passou o tempo preparando-se para o passo extremo em palestras
espirituais com os amigos. Especialmente famoso é o diálogo sobre a
imortalidade da alma - que se teria realizado pouco antes da morte e foi
descrito por Platão no Fédon com arte incomparável. Suas últimas
palavras dirigidas aos discípulos, depois de ter sorvido tranqüilamente a
cicuta, foram: "Devemos um galo a Esculápio". É que o deus da medicina
tinha-o livrado do mal da vida com o dom da morte. Morreu Sócrates em
399 a.C. com 71 anos de idade.
Método de Sócrates
É
a parte polêmica. Insistindo no perpétuo fluxo das coisas e na
variabilidade extrema das impressões sensitivas determinadas pelos
indivíduos que de contínuo se transformam, concluíram os sofistas pela
impossibilidade absoluta e objetiva do saber. Sócrates restabelece-lhe a
possibilidade, determinando o verdadeiro objeto da ciência.
O
objeto da ciência não é o sensível, o particular, o indivíduo que
passa; é o inteligível, o conceito que se exprime pela definição. Este
conceito ou ideia geral obtém-se por um processo dialético por ele
chamado indução e que consiste em comparar vários indivíduos da mesma
espécie, eliminar-lhes as diferenças individuais, as qualidades mutáveis
e reter-lhes o elemento comum, estável, permanente, a natureza, a
essência da coisa. Por onde se vê que a indução socrática não tem o
caráter demonstrativo do moderno processo lógico, que vai do fenômeno à
lei, mas é um meio de generalização, que remonta do indivíduo à noção
universal.
Praticamente,
na exposição polêmica e didática destas ideias, Sócrates adotava sempre
o diálogo, que revestia uma dúplice forma, conforme se tratava de um
adversário a confutar ou de um discípulo a instruir. No primeiro caso,
assumia humildemente a atitude de quem aprende e ia multiplicando as
perguntas até colher o adversário presunçoso em evidente contradição e
constrangê-lo à confissão humilhante de sua ignorância. É a
ironiasocrática. No segundo caso, tratando-se de um discípulo (e era
muitas vezes o próprio adversário vencido), multiplicava ainda as
perguntas, dirigindo-as agora ao fim de obter, por indução dos casos
particulares e concretos, um conceito, uma definição geral do objeto em
questão. A este processo pedagógico, em memória da profissão materna,
denominava ele maiêutica ou engenhosa obstetrícia do espírito, que
facilitava a parturição das ideias.
Doutrinas Filosóficas
A introspecção é o característico da filosofia de Sócrates. E exprime-se no famoso lema conhece-te a ti mesmo - isto é, torna-te consciente de tua ignorância - como sendo o ápice da sabedoria, que é o desejo da ciência mediante a virtude. E alcançava em Sócrates intensidade e profundidade tais, que se concretizava, se personificava na voz interior divina do gênio ou demônio.
Como
é sabido, Sócrates não deixou nada escrito. As notícias que temos de
sua vida e de seu pensamento, devemo-las especialmente aos seus dois
discípulos Xenofonte e Platão, de feição intelectual muito diferente.
Xenofonte, autor de Anábase, em seus Ditos Memoráveis, legou-nos de
preferência o aspecto prático e moral da doutrina do mestre. Xenofonte,
de estilo simples e harmonioso, mas sem profundidade, não obstante a sua
devoção para com o mestre e a exatidão das notícias, não entendeu o
pensamento filosófico de Sócrates, sendo mais um homem de ação do que um
pensador. Platão, pelo contrário, foi filósofo grande demais para nos
dar o preciso retrato histórico de Sócrates; nem sempre é fácil
discernir o fundo socrático das especulações acrescentadas por ele. Seja
como for, cabe-lhe a glória e o privilégio de ter sido o grande
historiador do pensamento de Sócrates, bem como o seu biógrafo genial.
Com efeito, pode-se dizer que Sócrates é o protagonista de todas as
obras platônicas embora Platão conhecesse Sócrates já com mais de
sessenta anos de idade.
"Conhece-te
a ti mesmo" - o lema em que Sócrates cifra toda a sua vida de sábio. O
perfeito conhecimento do homem é o objetivo de todas as suas
especulações e a moral, o centro para o qual convergem todas as partes
da filosofia. A psicologia serve-lhe de preâmbulo, a teodicéia de
estímulo à virtude e de natural complemento da ética.
Em
psicologia, Sócrates professa a espiritualidade e imortalidade da alma,
distingue as duas ordens de conhecimento, sensitivo e intelectual, mas
não define o livre arbítrio, identificando a vontade com a inteligência.
Em
teodicéia, estabelece a existência de Deus: a) com o argumento
teológico, formulando claramente o princípio: tudo o que é adaptado a um
fim é efeito de uma inteligência; b) com o argumento, apenas esboçado,
da causa eficiente: se o homem é inteligente, também inteligente deve
ser a causa que o produziu; c) com o argumento moral: a lei natural
supõe um ser superior ao homem, um legislador, que a promulgou e
sancionou. Deus não só existe, mas é também Providência, governa o mundo
com sabedoria e o homem pode propiciá-lo com sacrifícios e orações.
Apesar destas doutrinas elevadas, Sócrates aceita em muitos pontos os
preconceitos da mitologia corrente que ele aspira reformar.
Moral
- É a parte culminante da sua filosofia. Sócrates ensina a bem pensar
para bem viver. O meio único de alcançar a felicidade ou semelhança com
Deus, fim supremo do homem, é a prática da virtude. A virtude adquiri-se
com a sabedoria ou, antes, com ela se identifica. Esta doutrina, uma
das mais características da moral socrática, é consequência natural do
erro psicológico de não distinguir a vontade da inteligência. Conclusão:
grandeza moral e penetração especulativa, virtude e ciência, ignorância
e vício são sinônimos. "Se músico é o que sabe música, pedreiro o que
sabe edificar, justo será o que sabe a justiça".
Sócrates
reconhece também, acima das leis mutáveis e escritas, a existência de
uma lei natural - independente do arbítrio humano, universal, fonte
primordial de todo direito positivo, expressão da vontade divina
promulgada pela voz interna da consciência.
Sublime
nos lineamentos gerais de sua ética, Sócrates, em prática, sugere quase
sempre a utilidade como motivo e estímulo da virtude. Esta feição
utilitarista empana-lhe a beleza moral do sistema.
Gnosiologia
O
interesse filosófico de Sócrates volta-se para o mundo humano,
espiritual, com finalidades práticas, morais. Como os sofistas, ele é
cético a respeito da cosmologia e, em geral, a respeito da metafísica;
trata-se, porém, de um ceticismo de fato, não de direito, dada a sua
revalidação da ciência. A única ciência possível e útil é a ciência da
prática, mas dirigida para os valores universais, não particulares. Vale
dizer que o agir humano - bem como o conhecer humano - se baseia em
normas objetivas e transcendentes à experiência. O fim da filosofia é a
moral; no entanto, para realizar o próprio fim, é mister conhecê-lo;
para construir uma ética é necessário uma teoria; no dizer de Sócrates, a
gnosiologia deve preceder logicamente a moral. Mas, se o fim da
filosofia é prático, o prático depende, por sua vez, totalmente, do
teorético, no sentido de que o homem tanto opera quanto conhece:
virtuoso é o sábio, malvado, o ignorante. O moralismo socrático é
equilibrado pelo mais radical intelectualismo, racionalismo, que está
contra todo voluntarismo, sentimentalismo, pragmatismo, ativismo.
A
filosofia socrática, portanto, limita-se à gnosiologia e à ética, sem
metafísica. A gnosiologia de Sócrates, que se concretizava no seu
ensinamento dialógico, donde é preciso extraí-la, pode-se
esquematicamente resumir nestes pontos fundamentais: ironia, maiêutica,
introspecção, ignorância, indução, definição. Antes de tudo, cumpre
desembaraçar o espírito dos conhecimentos errados, dos preconceitos,
opiniões; este é o momento da ironia, isto é, da crítica. Sócrates, de
par com os sofistas, ainda que com finalidade diversa, reivindica a
independência da autoridade e da tradição, a favor da reflexão livre e
da convicção racional. A seguir será possível realizar o conhecimento
verdadeiro, a ciência, mediante a razão. Isto quer dizer que a instrução
não deve consistir na imposição extrínseca de uma doutrina ao discente,
mas o mestre deve tirá-la da mente do discípulo, pela razão imanente e
constitutiva do espírito humano, a qual é um valor universal. É a famosa
maiêutica de Sócrates, que declara auxiliar os partos do espírito, como
sua mãe auxiliava os partos do corpo.
Esta
interioridade do saber, esta intimidade da ciência - que não é
absolutamente subjetivista, mas é a certeza objetiva da própria razão -
patenteiam-se no famoso dito socrático"conhece-te a ti mesmo" que, no
pensamento de Sócrates, significa precisamente consciência racional de
si mesmo, para organizar racionalmente a própria vida. Entretanto,
consciência de si mesmo quer dizer, antes de tudo, consciência da
própria ignorância inicial e, portanto, necessidade de superá-la pela
aquisição da ciência. Esta ignorância não é, por conseguinte, ceticismo
sistemático, mas apenas metódico, um poderoso impulso para o saber,
embora o pensamento socrático fique, de fato, no agnosticismo filosófico
por falta de uma metafísica, pois, Sócrates achou apenas a forma
conceptual da ciência, não o seu conteúdo.
O
procedimento lógico para realizar o conhecimento verdadeiro,
científico, conceptual é, antes de tudo, a indução: isto é, remontar do
particular ao universal, da opinião à ciência, da experiência ao
conceito. Este conceito é, depois, determinado precisamente mediante a
definição, representando o ideal e a conclusão do processo gnosiológico
socrático, e nos dá a essência da realidade.
A Moral
Como
Sócrates é o fundador da ciência em geral, mediante a doutrina do
conceito, assim é o fundador, em particular da ciência moral, mediante a
doutrina de que eticidade significa racionalidade, ação racional.
Virtude é inteligência, razão, ciência, não sentimento, rotina, costume,
tradição, lei positiva, opinião comum. Tudo isto tem que ser criticado,
superado, subindo até à razão, não descendo até à animalidade - como
ensinavam os sofistas. É sabido que Sócrates levava a importância da
razão para a ação moral até àquele intelectualismo que, identificando
conhecimento e virtude - bem como ignorância e vício - tornava
impossível o livre arbítrio. Entretanto, como a gnosiologia socrática
carece de uma especificação lógica, precisa - afora a teoria geral de
que a ciência está nos conceitos - assim a ética socrática carece de um
conteúdo racional, pela ausência de uma metafísica. Se o fim do homem
for o bem - realizando-se o bem mediante a virtude, e a virtude mediante
o conhecimento - Sócrates não sabe, nem pode precisar este bem, esta
felicidade, precisamente porque lhe falta uma metafísica. Traçou,
todavia, o itinerário, que será percorrido por Platão e acabado, enfim,
por Aristóteles. Estes dois filósofos, partindo dos pressupostos
socráticos, desenvolverão uma gnosiologia acabada, uma grande metafísica
e, logo, uma moral.
Escolas Socráticas Menores
A
reforma socrática atingiu os alicerces da filosofia. A doutrina do
conceito determina para sempre o verdadeiro objeto da ciência: a indução
dialética reforma o método filosófico; a ética une pela primeira vez e
com laços indissolúveis a ciência dos costumes à filosofia especulativa.
Não é, pois, de admirar que um homem, já aureolado pela austera
grandeza moral de sua vida, tenha, pela novidade de suas ideias,
exercido sobre os contemporâneos tamanha influência. Entre os seus
numerosos discípulos, além de simples amadores, como Alcibíades e
Eurípedes, além dos vulgarizadores da sua moral (socratici viri), como
Xenofonte, havia verdadeiros filósofos que se formaram com os seus
ensinamentos. Dentre estes, alguns, saídos das escolas anteriores não
lograram assimilar toda a doutrina do mestre; desenvolveram
exageradamente algumas de suas partes com detrimento do conjunto.
Sócrates
não elaborou um sistema filosófico acabado, nem deixou algo de escrito;
no entanto, descobriu o método e fundou uma grande escola. Por isso,
dele depende, direta ou indiretamente, toda a especulação grega que se
seguiu, a qual, mediante o pensamento socrático, valoriza o pensamento
dos pré-socráticos desenvolvendo-o em sistemas vários e originais. Isto
aparece imediatamente nas escolas socráticas. Estas - mesmo
diferenciando-se bastante entre si - concordam todas pelo menos na
característica doutrina socrática de que o maior bem do homem é a
sabedoria. A escola socrática maior é a platônica; representa o
desenvolvimento lógico do elemento central do pensamento socrático - o
conceito - juntamente com o elemento vital do pensamento precedente, e
culmina em Aristóteles, o vértice e a conclusão da grande metafísica
grega. Fora desta escola começa a decadência e desenvolver-se-ão as
escolas socráticas menores.
São fundadores das escolas socráticas menores, das quais as mais conhecidas são:
1.
A escola de Megara, fundada por Euclides (449-369), que tentou uma
conciliação da nova ética com a metafísica dos eleatas e abusou dos
processos dialéticos de Zenão.
2.
A escola cínica, fundada por Antístenes (n. c. 445), que, exagerando a
doutrina socrática do desapego das coisas exteriores, degenerou, por
último, em verdadeiro desprezo das conveniências sociais. São bem
conhecidas as excentricidades de Diógenes.
3.
A escola cirenaica ou hedonista, fundada por Aristipo, (n. c. 425) que
desenvolveu o utilitarismo do mestre em hedonismo ou moral do prazer.
Estas escolas, que, durante o segundo período, dominado pelas altas
especulações de Platão e Aristóteles , verdadeiros continuadores da
tradição socrática, vegetaram na penumbra, mais tarde recresceram
transformadas ou degeneradas em outras seitas filosóficas. Dentre os
herdeiros de Sócrates, porém, o herdeiro genuíno de suas ideias, o seu
mais ilustre continuador foi o sublime Platão.
Introdução à Apologia de Sócrates
De
acordo com Diógenes Laércio, a acusação apresentada contra Sócrates, em
janeiro de 399 a.C., foi a que segue: "A seguinte acusação escreve e
jura Meleto, filho de Meleto, do povoado de Piteo, contra Sócrates,
filho de Sofronisco, do povoado de Alópece. Sócrates é culpado de não
aceitar os deuses que são reconhecidos pelo Estado, de introduzir novos
cultos, e, também, é culpado de corromper a juventude. Pena: a morte"
A
cidade de Atenas não podia mover ações, mas um cidadão podia,
assumindo, porém, total responsabilidade, se a acusação não fosse
considerada procedente pelo júri. O acusador era Meleto, mas não só ele;
também Ânito e Lícon, com os mesmos direitos à palavra no decorrer do
processo. Meleto era o acusador oficial, porém nada exigia que o
acusador oficial fosse o mais respeitável, hábil ou temível, mas somente
aquele que assinava a acusação.
E,
neste caso, a influência exercida por Ânito constituiu o elemento mais
respeitável no desfecho do processo, que foi por ele zelosamente
preparado nas reuniões dos diversos cidadãos, sustentando-o com a
autoridade de seu nome.
No
Eutífron, vemos que Sócrates, ao se aproximar do Pórtico do Rei, onde
fora afixada a acusação por Meleto, ao ser inquirido pelo adivinho
Eutífron a respeito de quem era aquele que o acusava, respondeu: "Sei
bem pouco a respeito dele, talvez porque seja um homem jovem e
desconhecido. Acredito chamar-se Meleto, do povoado de Piteo, de cabelos
lisos, barba rala e nariz em forma de bico de pássaro".
A
respeito de saber com exatidão quem era esse Meleto, existem muitas
dúvidas, sendo uma delas se se tratava do personagem citado por
Aristófanes. Mas não há elementos em que basear essa suposição, pois um
jovem poeta de 399 a.C. pouco provavelmente chamaria a atenção de
Aristófanes em 405 a.C., além de considerar que Sócrates insiste no fato
de que Meleto é desconhecido.
Julgar
tratar-se do Meleto que, em 399 a.C., chegou a tomar parte da acusação
contra Andócides, no célebre processo por causa da mutilação da estátua
de Hermes e da profanação dos Mistérios, seria muito conveniente, por
haver sido essa também uma acusação de impiedade. Contudo, existe outro
obstáculo, de acordo com a própria informação de Andócides: esse Meleto
foi um dos que, em 404 a.C., por ordem dos Trinta Tiranos, se prestaram a
deter Leon de Salamina. À parte o problema da mudança de lado - de
partidário dos Trinta Tiranos tornar-se aliado de Ânito, que derrotara e
expulsara esses mesmos Trinta Tiranos -, sobra a dificuldade de
explicar por que motivo Sócrates, que conforme ele mesmo afirma na
Apologia, juntamente com outros quatro homens recebera a ordem de deter a
Leon de Salamina, tendo sido o único a recusar-se a obedecer, não disse
que Meleto era um desses homens.
Exceto
se reputarmos que essa defesa não seja de fato de Sócrates, e sim
escrita por Platão, que se vale do nome de Meleto, já então tido como um
fanático religioso, a fim de engrandecer o mestre desaparecido.
Desse
modo, podemos considerar Meleto de Sócrates o mesmo Meleto de
Andócides, assim solucionando o problema que tanta discussão tem
provocado, embora, logicamente, fique apenas no campo da suposição, já
que nada corrobora realmente esta pretensão.
O
pouco que conhecemos ou podemos presumir a respeito de Lícon é que
pouca importância e autoridade teve no decorrer do processo, com seu
nome sendo citado sempre com evidente desapreço.
Ânito,
o mais importante dos acusadores, é aquele que, não resta dúvida, dava a
impressão de conhecer Sócrates, que a ele alude como se Meleto fosse
seu subordinado, como se deste tivesse se originado a idéia da pena de
morte para persuadir Sócrates a abandonar a cidade antes que o processo
tivesse seguimento. Ânito era filho de Antemione, comerciante de couro,
nascera por volta de - 150 a.C. e já havia exercido importantes cargos e
magistraturas, sendo estratego em 410 a.C. Após ter sido enviado ao
exílio pelos Trinta Tiranos, juntamente com Trasíbulo e outros,
regressou de File com estes e tomou parte da expedição armada contra o
governo dos tiranos. Depois da restauração do regime democrático,
tornou-se um dos mais eminentes cidadãos de Atenas.
Ânito
manteve relação com Sócrates, segundo comprova sua atuação no Mênon,
onde manifesta uma ameaça velada a este: "Afigura-se-me, ó Sócrates, que
com muita facilidade te dedicas à maledicência, e eu te aconselho, se
quiseres me ouvir, que tenhas cuidado".
A
opinião de Platão a esse respeito é bem clara: não foi por razões
religiosas que Sócrates recebeu a condenação, mas sim por questões
evidentemente políticas.
A bem da verdade, Sócrates dera, mediante palavras e atos, patente mostra de sua obstinada repulsa aos governos democráticos.
Portanto,
nessa época de instalação do regime democrático, convinha afastar de
Atenas o mestre de Crísias, o homem que sempre se recordava de haver
sido discípulo de Arquesilau, o qual, por sua vez, fora discípulo de
Anaxágoras, expulso de Atenas em decorrência de um processo parecido com
o seu.
Mas
é preciso frisar que o propósito, como o próprio Sócrates repete, não
era matá-lo, e sim afastá-lo de Atenas, e se isso não ocorreu deveu-se à
demasiada teimosia do próprio Sócrates, que em vez de escolher o exílio
preferiu a proposta de uma multa irrisória, vindo a ser, por
conseguinte, condenado.
No
que concerne à condenação por motivos religiosos, da mesma maneira que
se dá com condenações por motivos políticos, o texto da sentença
preocupa-se muito mais em esconder do que apresentar as verdadeiras
causas. Tanto isso é verdade que, em sua defesa, vemos o réu inverter a
ordem das acusações e colocar em primeiro lugar a última imputação:
corromper os jovens.
Desde
a época de Sócrates, afirmara-se o culto patriarcal, em que Zeus era o
deus-pai, o líder máximo. Se a acusação tivesse se dado em épocas mais
antigas, poderíamos presumir que Sócrates teria adotado a defesa do
culto da deusa, isto é, um movimento reacionário em termos de culto.
Coloquemos a questão com mais clareza: as lendas referem a revolta patriarcal contra o matriarcado.
A
Tripla Deusa, venerada como Réia, esposa de Cronos, em seus três
aspectos: lua crescente, lua cheia a lua minguante, era a suprema deusa e
gerava uma vez por ano a Dionisos - Zagreus, seu filho, que era sempre
devorado pelo tempo.
Dessa
maneira, as múltiplas facetas da deusa prevaleciam, constituindo as
sacerdotisas os verdadeiros líderes das povoações e os homens, seus
instrumentos de fertilização e prazer, executando os trabalhos mais
necessários à sobrevivência e à defesa.
Numerosas
revoltas começaram a eclodir com a chegada de contínuas levas de
dórios, minianos e jônios, em cujas culturas o patriarcalismo era
arraigado, que acabaram por fomentar a rebelião de Zagreus contra seu
pai e mãe. Zagreus torna-se Zeus, o Deus-Agnes, ou o Agnos-Deus, que
pode significar tanto o deus desconhecido quanto o deus-carneiro; Réia
vem a ser adorada como Hera, e seus aspectos: marinho, lunar e noturno,
como Anfitrite, Ártemis e Cérbero. Anfitrite é esposa de Posêidon, um
dos aspectos de Zeus; Ártemis é filha de Zeus, e permanece virgem;
quanto a Cérbero, representa Hécate, sendo fiel guardião dos domínios de
Hades, outro aspecto de Zeus, seu culto tendo sido de novo extinto
durante o período de estabelecimento do culto olímpico.
Nessa
fase seria de fato correto crer que alguém sofresse um processo por
questões religiosas, mas à época de Sócrates tudo isso já se encontrava
devidamente solidificado, e a argumentação de Burnet, em seu comentário à
Apologia, revela-se, portanto, bem pouco confiável, quando afirma "que
esses novos deuses da cosmologia jônica eram uma antiga história e que
poderia ser uma violação da anistia colocá-los de novo à luz do dia".
Portanto,
considerando-se a anistia garantida até mesmo pelo próprio Ânito, que
juntamente com Trasíbulo fora seu principal defensor, não era possível
levar em conta as culpas passadas de Sócrates para condená-lo, isso
presumindo que existisse alguma, e era necessário arranjar o pretexto
para executá-lo.
Era
todo o ensinamento socrático que se tornava perigoso, e não os novos
fatos. O que significava aquela sabedoria, proclamada superior até mesmo
pelo oráculo, que consistia em saber que não se sabe?
Qual
a postura dos políticos diante disso? Que direitos seriam mais opostos
aos da democracia do que aqueles originados da experiência e da
competência, e a superioridade da inteligência sobre os direitos da
assembléia popular e soberana?
É
isso que causou a condenação de Sócrates, a exigência de que o piloto
do barco conheça seu ofício, isto é, a superioridade do saber sobre a
aclamação do povo.
Ademais,
é necessário recordar que Sócrates manteve relações com os Trinta
Tiranos: estes não lhe teriam ordenado a prisão de Leon de Salamina se
não o considerassem um deles; Crísias, o mais feroz dos Tiranos, havia
sido seu discípulo, e também Alcebíades, que voltara a ser assunto pela
recente inclusão de seu nome entre os envolvidos na profanação dos
Mistérios. E mais: Sócrates menciona a seu favor sua participação no
caso do exílio de Querofonte, porém, assim, insiste no fato de que,
durante o mandato dos Trinta, Querofonte foi obrigado a se exilar,
enquanto Sócrates pôde permanecer.
Some-se
a isto que Sócrates jamais desejou exercer nenhuma magistratura, nem
participar de alguma forma do governo de sua cidade, embora não seja
verdade que permanecesse fora do âmbito do governo, pois com frequência
era visto discutindo em público; e não se pode afirmar, pelos
testemunhos que possuímos, que fosse singularmente prudente ou
diplomático em sua maneira de discutir.
As
mais importantes orientações da vida eram subvertidas por seu orgulho
de ter consciência da sua ignorância, e os jovens, de fato, iriam acabar
desrespeitando qualquer autoridade que não se identificasse com a
inteligência e a sabedoria, provocando ainda o desapreço por tudo que
não buscasse a sabedoria, desprezando a economia doméstica e a riqueza.
Apologia de Sócrates
Preâmbulo
Desconheço
atenienses, que influência tiveram meus acusadores em vosso espírito; a
mim próprio, quase me fizeram esquecer quem sou, tal o poder de
persuasão de sua eloquência. De verdades, porém, não disseram nenhuma.
Uma, sobretudo, me espantou das muitas perfídias que proferiram: a
recomendação de precaução para não vos deixardes seduzir pelo orador
formidável que sou. Com efeito, não corarem de me haver eu de desmentir
prontamente com os fatos, ao mostrar-me um orador nada formidável, eis o
que me pareceu a maior de suas insolências, salvo se essa gente chama
formidável a quem diz a verdade; se é o que entendem, eu admitiria que,
em contraste com eles, sou um orador. Seja como for, repito-o, de
verdades eles não disseram alguma; de mim, porém, vós ouvireis a verdade
inteira. Mas não por Zeus, atenienses, não ouvireis discursos como os
deles, aprimorados em substantivos e verbos, em estilo florido; serão
expressões espontâneas, nos termos que me ocorrerem, porque deposito
confiança na justiça do que digo; nem espere outra coisa qualquer um de
vós. Verdadeiramente, senhores, não ficaria bem a um velho como eu vir
diante de vós modelar seus discursos como um rapazinho. Faço-vos,
contudo, um pedido, atenienses, uma súplica premente; se ouvirdes, na
minha defesa, a mesma linguagem que habitualmente emprego na praça,
junto das bancas, onde tantos dentre vós me haveis escutado, e em outros
lugares, não a estranheis nem vos revolteis por isso. Acontece que
venho ao tribunal pela primeira vez aos setenta anos de idade; sinto-me,
assim, completamente estrangeiro à linguagem do local. Se eu fosse de
fato um estrangeiro, sem dúvida me desculparíeis o sotaque e o linguajar
de minha criação; peço-vos nesta oportunidade a mesma tolerância, que é
de justiça a meu ver, para a minha linguagem, que poderia ser talvez
pior, talvez melhor, e que examineis com atenção se o que digo é justo
ou não. Nisso reside o mérito de um juiz; o de um orador, em dizer a
verdade.
A Defesa de Sócrates - Primeira Parte
Diversidade Entre Duas Categorias de Acusadores: os Antigos e os Recentes
Em
princípio, ó atenienses, é legítimo que eu me defenda das calúnias das
primeiras acusações que me foram dirigidas e dos primeiros acusadores, e
depois das mais recentes acusações e dos novos acusadores. Pois muitos
que se encontram entre vós já me acusaram no passado, sempre faltando
com a verdade, e esses me causam bem mais temor do que Ânito e seus
amigos, embora estes sejam acusadores perigosos. Mas os primeiros são
muito mais perigosos, ó cidadãos, aqueles que convivendo com a maior
parte de vós, como crianças que deviam ser educadas, procuraram
convencer-vos de acusações não menos caluniosas contra mim: que existe
um certo Sócrates, homem de muita sabedoria, que especula a respeito das
coisas do céu, que esquadrinha todos os segredos obscuros, que
transforma as razões mais fracas nas mais consistentes. Estes, ó
atenienses, que propalaram essas coisas acerca de mim, são os acusadores
que mais receio, porque, ao ouvi-los, as pessoas acreditam que quem se
dedica a tais investigações não admite a existência dos deuses. E esses
acusadores são muito numerosos e me acusaram há bastante tempo, e, o que
é mais grave, caluniaram-me quando vós tínheis aquela idade em que é
bastante fácil – alguns de vós éreis crianças ou adolescentes – dar
crédito às calúnias, e assim, em resumo, acusaram-me obstinadamente, sem
que eu contasse com alguém para me defender. E o que é mais assombroso é
que seus nomes não podem sequer ser citados, exceto o de um
comediógrafo; porém os outros – os que, por inveja ou por vício em fazer
falsas acusações, procuraram colocar-vos contra mim, ou os que
pretenderam convencer os outros por estarem verdadeiramente convencidos e
de boa fé –, esses todos não podem ser encontrados, nem se pode exigir
que ao menos alguns deles venham até aqui, nem acusar ninguém por
difamação, e, em verdade, a fim de me defender só posso lutar contra
sombras, e acusar de mentiroso a quem não responde. Portanto, vós deveis
vos certificar de que existem duas categorias de acusadores: de um
lado, os que me acusam há pouco tempo, e de outro, os que já me acusam
há bastante tempo e dos quais tenho falado a respeito, e então
reconhecereis que devo defender-me destes em primeiro lugar. Ainda mais
porque esses acusadores fizeram-se ouvir por vós antes e mais
demoradamente do que aqueles que vieram depois.
Defender-me-ei,
portanto, ó atenienses, e assim descobrirei se aquela calúnia, que
martiriza meu coração há tanto tempo, possa ser extirpada, embora deva
fazê-lo em tão curto prazo. E se eu for bem-sucedido, se conseguir
acarretar-vos algum benefício com a minha defesa, será excelente para
vós e para mim. Bem sei quanto isto é difícil e tenho plena consciência
da enorme dificuldade que me espera. Que tudo se passe de acordo com a
vontade do Deus, pois à lei é necessário obedecer e defender-se.
Defesa Contra os Antigos Acusadores
Calúnia a Respeito do Saber de Sócrates
Vamos
começar desde o início e examinar que tipo de acusação motivou essa
calúnia, na qual Meleto se baseou para redigir sua acusação neste
processo. Que afirmavam meus detratores? Façamos de conta que se trate
de uma acusação juramentada de acusadores reais e dos quais seja preciso
ler o texto: "Sócrates é réu de haver-se ocupado de assuntos que não
eram de sua alçada, e investigando o que existe embaixo da terra e no
céu, procurando transformar a mentira em verdade e ensinando-a às
pessoas". A acusação possui mais ou menos este teor. Assististes a
alguma coisa semelhante na comédia de Aristófanes, na qual um certo
Sócrates aparece andando de lá para cá, afirmando que caminha em cima
das nuvens, e outro amontoado de tolices, que não consigo compreender
nem um pouco. E não digo isso por julgar aquelas ciências coisas vis, se
é mesmo verdade que haja cientistas de tais ciências. Não faltaria
quem, acompanhando Meleto, fizesse contra mim uma acusação tão grave! Eu
só vos asseguro, ó atenienses, que não me ocupo desses assuntos, e
recorro à maioria de vós para que sirvam de testemunhas. Peço que
revelem publicamente quantos de vós já me ouviram falar a respeito
dessas coisas, e então compreendereis que tudo o mais que dizem sobre
mim possui o mesmo valor.
Resumindo:
nada existe em tudo isso que corresponda à verdade; e, mais ainda, se
ouvistes alguém declarar que instruo os homens em troca de dinheiro,
isto também não passa de mentira. Mesmo que, se alguém se propõe a
instruir homens como fazem Górgias de Leontini, Pródico de Ceo e Hípias
de Élida, se me afigure coisa em absoluto nada condenável. Esses
valorosos homens percorrem as cidades com o propósito de instruir os
jovens, aos quais seria mais fácil, e sem ter de gastar dinheiro,
fazer-se instruir por um de seus concidadãos; e convencem esses jovens a
preferir a sua companhia à dos seus, recebendo em troca dinheiro e
ainda por cima gratidão. Ouvi também referências a outro homem, de
Paros, que possui muita sabedoria e veio morar em Atenas, e o soube por
intermédio de Cálias, filho de Hipônico, homem que gastou mais dinheiro
com sofistas do que qualquer outro ateniense. Perguntei a ele:
–
Cálias, se teus dois filhos fossem dois potros ou duas vitelas, terias
de contratar e pagar uma pessoa que tomasse conta deles, que tivesse a
capacidade de lhes ensinar as virtudes para serem acrescentadas à sua
natureza, e eles se tomariam cavalariços ou agricultores; mas teus
filhos são homens; que educação, então: tencionas proporcionar-lhes?
Quem entende das virtudes que lhes são necessárias, ou seja, das
virtudes do homem e cidadão? Acredito que pensaste a respeito disso
quando puseste os filhos no mundo. Existe alguém capaz de fazê-lo?
– Claro que sim – respondeu-me.
– E quem é ele? – indaguei-lhe. – de onde é e quanto cobra para ensinar?
– Eveno de Paros. E seu preço é cinco minas – respondeu-me.
No
íntimo, parabenizei esse tal de Eveno, se é de fato possuidor dessa
doutrina e a ensina a tão baixo preço. Eu mesmo me orgulharia se fosse
capaz de tal coisa, contudo eu não sei, ó atenienses.
O Que é o Saber de Sócrates
O Oráculo de Delfos
Oráculo de Delfos |
Procurarei
esclarecer-vos a respeito da causa dessas calúnias contra mim.
Escutai-me, portanto. É possível que alguns entre vós creiam que eu
esteja brincando; não, estou falando sério. Ó atenienses, é verdade que
adquiri renome por possuir certa sabedoria. E que tipo de sabedoria é
essa? Possivelmente, uma sabedoria estritamente humana. E a respeito de
ser sábio, receio possuir esta única sabedoria. Ao passo que esses, de
quem vos falava há pouco, talvez sejam possuidores de uma sabedoria
sobre-humana, mas afirmo que não a conheço, e quem diz o contrário
mente, apenas com o intuito de caluniar-me. Peço-vos para não fazer
algazarra, ó atenienses, embora possais ter a impressão de que eu esteja
proferindo palavras por demais fortes; que não é meu depoimento, mas o
de uma testemunha que merece toda a vossa confiança. De minha sabedoria,
se de fato se trata de sabedoria, e de sua natureza, invocarei como
testemunha, diante de vós, o próprio deus de Delfos. Todos vós conheceis
Querefonte. Era meu amigo desde o tempo da juventude e pertencente ao
vosso partido popular; partiu no último exílio em vossa companhia e
regressou também em vossa companhia. Sabeis que tipo de homem era
Querofonte e de como era determinado em suas resoluções Dirigiu-se em
certa ocasião a Delfos e atreveu-se a perguntar ao oráculo se existia
alguém mais sábio que eu. A pitonisa respondeu que não existia ninguém.
Como testemunho deste fato se prestará o irmão de Querefonte, em virtude
de este haver falecido.
Pesquisa Junto aos Políticos
Saberão
agora o motivo pelo qual vos relato isso: meu intento é pôr-vos a par
de onde se originou a calúnia contra mim. Após ter ouvido a resposta do
oráculo, refleti da seguinte maneira: "Que pretende o deus dizer? Qual é
o significado oculto do enigma? Tendo em vista que eu não me considero
sábio, que quer dizer o deus ao afirmar que sou o mais sábio dos homens?
Com certeza não mente, pois ele não pode mentir". E longamente me
mantive nesta dúvida. Por fim, ao arrepio de minha vontade, comecei a
investigar acerca disso. Fui ter com um daqueles que possuem reputação
de sábios, julgando que somente assim poderia desmentir o oráculo e
responder ao vaticínio: "Este é mais sábio que eu e afirmastes que era
eu". Mas enquanto estava analisando este – o nome não é necessário que
eu vos revele, ó cidadãos; basta dizer que era um de nossos políticos –,
enfim, este com que, analisando e raciocinando em conjunto, fiz a
experiência que irei descrever-vos, e este homem aparentava ser sábio,
no entender de muitas pessoas e especialmente de si mesmo, mas talvez
não o fosse de verdade. Procurei fazê-lo compreender que embora se
julgasse sábio, não o era. Em vista disso, a partir daquele momento, não
só ele passou a me odiar, como também muitos dos que se encontravam
presentes. Afastei-me dali e cheguei à conclusão de que era mais sábio
que aquele homem, neste sentido, que nós, eu e ele, podíamos não saber
nada de bom, nem de belo, mas aquele acreditava saber e não sabia,
enquanto eu, ao contrário, como não sabia, também não julgava saber, e
tive a impressão de que, ao menos numa pequena coisa, fosse mais sábio
que ele, ou seja, porque não sei, nem acredito sabê-lo. Aí procurei um
outro, entre os que possuem reputação de serem mais sábios que aqueles, e
me ocorreu exatamente a mesma coisa, e também este me dedicou ódio,
juntamente com muitos outros.
Pesquisa Junto aos Poetas
Não
obstante isso, continuei diligentemente com minha pesquisa, embora
notando, com desagrado e assombro, que todos passaram a me odiar e que,
contudo, afigurava-se-me impossível deixar de atentar para as palavras
do deus. "Se almejas saber o que o oráculo quer dizer", dizia a mim
mesmo, "deves visitar todos aqueles que possuem reputação de sabedoria."
Por isso, ó atenienses, devo dizer-vos de novo a verdade; juro-vos que
este foi o resultado da minha pesquisa: os que eram famosos por
possuírem maior sabedoria, conforme minha pesquisa, conforme a palavra
do deus, pareceram-me quase todos em maior erro. E outros, sem fama
alguma, se me afiguraram melhores e mais sábios. Mas desejo terminar de
relatar-vos minhas peregrinações e as fadigas que sofri para
convencer-me de que a palavra do oráculo era incontestável.
Em
seguida aos políticos, fui procurar os poetas, tanto os que escreviam
ditirambos e tragédias como os demais, convencido de que diante daqueles
confirmaria minha ignorância e sua superioridade. Peguei suas melhores
poesias, as que considerava mais bem construídas, e indaguei aos
próprios poetas o que eles pretendiam dizer; porque dessa maneira
aprenderia alguma coisa com eles. Estou com vergonha, ó atenienses, de
contar-vos a verdade! Mas é obrigatório que eu a diga. Resumindo, todas
as outras pessoas presentes discorriam melhor a respeito do que os
poetas haviam escrito que os próprios autores; diante disto, descobri
que não era por nenhum tipo de sabedoria que eles faziam versos, mas por
uma propensão e inspiração natural que eu desconheço, como os adivinhos
e vaticinadores, que dizem de fato muitas coisas belas, mas não
conhecem nada do que dizem, e aproximadamente o mesmo, e isto eu percebi
com clareza, é o que ocorre entre os poetas. E compreendi também que os
poetas, pelo fato de fazerem poesias, julgavam-se os mais sábios dos
homens até mesmo em outras coisas em que realmente não o eram. Então
afastei-me deles, com a certeza de ser mais sábio que eles, pelo mesmo
motivo que era mais que os políticos.
Pesquisa Junto aos Artesãos
No
final, dirigi-me aos artesãos, que de sua arte tinha a consciência de
não conhecer nada, e eles sabiam que eu os considerava conhecedores de
numerosas e belas coisas. E não me equivoquei, eles conheciam coisas que
eu não conhecia, e nisso eram mais sábios do que eu. Porém, ó
atenienses, também os artesãos famosos apresentavam o mesmo defeito dos
poetas: por conhecerem muito bem sua arte, cada um deles julgava-se
extremamente sábio, até mesmo em outros assuntos de maior realce e
dificuldade, e este importante defeito deslustrava toda sua sabedoria.
De forma que eu, em nome do oráculo, indaguei a mim mesmo se deveria
permanecer tal como era, nem sabedor de minha sabedoria nem ignorante de
minha ignorância, ambas as coisas, como eles, e respondi a mim e ao
oráculo que convinha continuar tal qual eu era.
O Verdadeiro Saber Consiste em Saber Que Não se Sabe
Em
virtude desta pesquisa, fiz numerosas e perigosíssimas inimizades, e a
partir destas inimizades surgiram muitas calúnias, e entre as calúnias, a
fama de sábio, porque, toda vez que participava de uma discussão, as
pessoas julgavam que eu fosse sábio naqueles assuntos em que somente
punha a descoberto a ignorância dos demais. A verdade, porém, é outra, ó
atenienses: quem sabe é apenas o deus, e ele quer dizer, por intermédio
de seu oráculo, que muito pouco ou nada vale a sabedoria do homem, e,
ao afirmar que Sócrates é sábio, não se refere propriamente a mim,
Sócrates, mas só usa meu nome como exemplo, como se tivesse dito: "Ó
homens, é muito sábio entre vós aquele que, igualmente a Sócrates, tenha
admitido que sua sabedoria não possui valor algum". É por esta razão
que ainda hoje procuro e investigo, de acordo com a palavra do deus, se
existe alguém entre os atenienses ou estrangeiros que possa ser
considerado sábio e, como acho que ninguém o seja, venho em ajuda ao
deus provando que não há sábio algum. E tomado como estou por esta ânsia
de pesquisa, não me restou mais tempo para realizar alguma coisa de
importante nem pela cidade nem pela minha casa, e levo uma existência
miserável por conta deste meu serviço ao deus.
As Muitas Inimizades e a Acusação
Vós
tendes conhecimento de que os jovens que dispõem de mais tempo que os
outros, os filhos das famílias mais ricas, seguem-me de livre e
espontânea vontade, e se regozijam em assistir a esta minha análise dos
homens; inúmeras vezes procuram imitar-me e tentam, por sua própria
conta, analisar alguma pessoa. Logicamente, deparam-se com numerosos
homens que julgam saber alguma coisa e sabem pouco ou nada, e então,
aqueles que são analisados por eles voltam-se contra mim e não contra
quem os analisou, declarando que Sócrates é homem por demais infame e
corruptor dos jovens. E se alguém indaga: "Afinal, o que faz e o que
ensina este Sócrates para corromper os jovens?", nada respondem, porque o
desconhecem, e, só para não evidenciar que estão confusos, dizem as
coisas que comumente são ditas contra todos os filósofos, além de
afirmar que ele especula sobre as coisas que se encontram no céu e as
que ficam embaixo da terra, e que também ensina a não acreditar nos
deuses e apresenta como melhores as piores razões. A verdade, porém, é
que esses homens demonstraram ser pessoas que dão a impressão de saber
tudo, porém, naturalmente, não querem dizer a verdade. Desta maneira,
ambiciosos, dominados pela paixão e numerosos como são, e todos da mesma
opinião nesta difamação a meu respeito e com argumentos que podem
parecer também convincentes, sem escrúpulo algum encheram vossos ouvidos
com suas calúnias. Este é o motivo pelo qual, finalmente, lançaram-se
contra mim Meleto, Ânito e Lícon: Meleto profundamente irado por causa
dos poetas, Ânito por causa dos artesãos e dos políticos, Lícon por
causa dos oradores. Contudo, como vos disse desde o início, seria de
fato um verdadeiro milagre se eu tivesse a capacidade de arrancar-vos do
coração esta calúnia que possui raízes tão firmes e profundas. Esta é, ó
cidadãos, a verdade, e eu a revelo por completo, sem ocultar-vos nada,
nem mesmo esquivando-me dela, embora saiba que sou odiado por muitos
exatamente por isso. Por sinal, é outra prova de que digo a verdade, e
que esta é a calúnia contra mim e esta a causa. Indagai quanto
quiserdes, agora ou depois, e recebereis sempre a mesma resposta.
Defesa Contra Meleto
No
que diz respeito aos meus primeiros acusadores, isso é o bastante para a
defesa das culpas a mim atribuídas; procurarei em seguida defender-me
de Meleto, homem digno e patriota, como ele mesmo se define, e dos
acusadores que virão depois. Vou começar desde o início e como se na
verdade dissesse respeito a outra espécie de acusadores, analisemos
também o ato de acusação deste. Declarou mais ou menos isto:"Sócrates é
réu de corromper os jovens, de não crer nos deuses nos quais a cidade
crê e também de praticar cultos religiosos extravagantes".
Analisemos
esta acusação minuciosamente. Meleto afirma que corrompo a juventude, e
eu digo, ó atenienses, que o réu é o próprio Meleto, porque aborda com
leviandade assuntos sérios e tão inescrupulosamente leva homens diante
do tribunal, com o intuito de fazer crer que se preocupa com coisas com
as quais, na verdade, nunca se preocupou. E procurarei provar-vos que
isso é a pura verdade.
Meleto Não Sabe o Que é Educar Nem Corromper
Meleto, mostra-te e responde. Não julgas de suprema importância que os jovens consigam se tornar os melhores possíveis?
MELETO: — Julgo.
SÓCRATES:
— Dize, então, aos juizes o que os torna melhores. Com certeza o sabes,
pois esta é uma preocupação tua e descobriste quem os corrompe,
conforme afirmas, e por este motivo citaste-me diante do tribunal e me
acusaste. Vamos, dize aos juizes o que os faz melhores. Vês, Meleto,
como ficas calado, sem saber o que dizer? E isto não te se afigura
vergonhoso, e prova suficiente do que afirmo: que nunca te preocupaste
com estes assuntos? Vamos, ó excelente homem, responde: que os faz
melhores?
MELETO: — As leis.
SÓCRATES:
— Não se trata disto, meu amigo. Indago-te qual é o homem que, em
primeiro lugar, deve ter conhecimento, conforme dizes, das leis.
MELETO: — Estes, ó Sócrates, os juizes.
SÓCRATES: — Afirmas, então, Meleto, que estes possuem a capacidade de educar os jovens e torná-los melhores?
MELETO: — Afirmo.
SÓCRATES: — Crês que todos, ou alguns sim e outros não?
MELETO: — Todos.
SÓCRATES:
— Dizes bem, por Hera! E grande a quantidade de bons educadores! Também
estes que estão nos ouvindo tornam os jovens melhores ou não?
MELETO: — Sim, também estes.
SÓCRATES: — E os senadores?
MELETO: — Também os senadores.
SÓCRATES:
— Quer dizer, então, Meleto, que talvez aqueles das Assembléias
Populares corrompam os jovens? Ou também aqueles os tornam melhores?
MELETO: — Também aqueles.
SÓCRATES:
— Todos os atenienses que te ouvem tornam os jovens bons e belos,
todos, exceto eu. Portanto, sou eu quem os corrompe. É isto que queres
dizer?
MELETO: — Exatamente isto.
SÓCRATES:
— Como sou infeliz! Mas responde-me a isto: também com os cavalos crês
que seja assim? Que todos os homens os tornem melhores e somente um os
mutile? Ou, ao contrário, que somente um os torne melhores, ou poucos,
aqueles que são peritos em cavalos, e que os demais se sirvam dos
cavalos e os mutilem? E não acontece assim, ó Meleto, com os cavalos e
com todos os seres vivos? Com certeza é assim, digam Ânito e tu mesmo
que sim ou não. Seria uma grande felicidade para os jovens se
correspondesse à verdade que somente um lhes causa danos e todos os
outros os educam e melhoram. Mas, prossegue, Meleto, já que demonstrei a
contento que tu nunca te preocupaste com os jovens. Mais ainda,
demonstrei que nunca tiveste preocupação com as coisas pelas quais me
trouxeste diante deste tribunal.
Agora
dize-me, ó Meleto, o que mais convém, viver entre bons cidadãos ou
entre maus cidadãos? Amigo, responde, não é difícil o que te pergunto.
Os maus não prejudicam aqueles que lhes são próximos? E os bons não lhes
fazem o bem?
MELETO: — Com toda a certeza.
SÓCRATES:
— Pode existir alguém que esteja com eles e que prefira receber o mal
em lugar do bem? Responde, excelente homem. Também a lei deseja que
respondas. Pode existir alguém que prefira receber o mal?
MELETO: — Não, realmente.
SÓCRATES: — Então, trouxeste-me a este tribunal porque corrompo os jovens por querer è os torno maus, ou faço isto sem querer?
MELETO: — Afirmo que é por querer.
SÓCRATES:
— Quer dizer, então, ó Meleto, tua sabedoria sendo maior que a minha,
na tua idade, tendo eu os anos que tenho, que pensas conhecer melhor do
que eu que os maus sempre causam algum mal, principalmente àqueles mais
próximos deles, e que os bons façam o bem, e que eu ignore essas coisas a
ponto de não saber que se se torna mau a um deles corre-se o risco de
receber algo mau dele e que, no caso de saber disso, eu me empenhe em
torná-los maus? Não me persuadirás disto, ó Meleto. Nem acredito que
possas persuadir a ninguém. Ou seja, não corrompo os jovens, ou, se os
corrompo, faço-o sem querer, de maneira que em ambos os casos mentes. Se
eu os corrompo sem querer, por faltas involuntárias, não existe lei
alguma que possa me obrigar a vir até aqui, mas sim que faça com que
seja afastado, a fim de advertir-me ou censurar-me, e é claro que, uma
vez advertido, não mais farei o que fazia sem querer. Tens evitado
encontrar-te comigo e advertir-me; não o quiseste fazer de forma alguma e
me trazes aqui, embora as leis estabeleçam que aqui sejam trazidos
somente os que devem ser castigados, e não censurados.
Meleto Acusa Sócrates de Ateísmo e se Contradiz
Neste
momento, cidadãos de Atenas, é bastante evidente aquilo que eu
afirmava: que Meleto nunca se preocupou com essas coisas. Apesar disso,
dize-nos, Meleto, de que maneira, de acordo com tua opinião, eu corrompo
a juventude? Não o faço, como afirma com clareza a acusação que
apresentaste contra mim, ensinando-os a não acreditar nos deuses nos
quais a cidade acredita, mas em outras divindades novas? Não é, conforme
dizes, ensinando estas coisas que os corrompo?
MELETO: — Sim, eu digo exatamente isto.
SÓCRATES:
— Em nome desses mesmos deuses a respeito dos quais agora falamos,
explica-te com maior clareza, tanto para mim como para estes juízes,
porque não consigo compreender a quais deuses eu ensino que os jovens
devem acreditar, pois se naqueles que acredito são deuses, não sou ateu
e, por conseguinte, não posso ser culpado disso, mesmo que não sejam os
da cidade, e sim outros; é por causa disso que me trazes a este
tribunal, por que são outros ou por que afirmas que não acredito de
maneira alguma nos deuses e ensino isto aos jovens?
MELETO: — Eu afirmo que não acreditas de maneira alguma nos deuses.
SÓCRATES:
— Ó excelente Meleto! Por que dizes que não acredito, da mesma maneira
que os outros homens, que o sol e a lua sejam deuses?
MELETO: — Com certeza, ó juízes, pois afirma que o sol é uma pedra e a lua é feita de terra.
SÓCRATES:
— Pensas, meu bom Meleto, em acusar também Anaxágoras? E tens em tão
pouca estima e reputas tão ignorantes nas letras a estes juízes, a ponto
de não saberem que os livros de Anaxágoras de Clazomena estão repletos
destes ensinamentos? E por que motivo os jovens iriam aprender de mim
estas coisas que por uma simples dracma podem comprar na ágora e
zombarem de Sócrates, se este as apresentasse como suas, ainda mais
sendo tão extravagantes? Por Zeus, pensas de fato que eu não acredite em
deus algum?
MELETO: — Em nenhum, com certeza.
SÓCRATES:
— Ninguém acredita em ti, ó Meleto, e naquilo que afirmas; creio que
não consegues persuadir nem a ti mesmo. Na verdade, ó atenienses, tudo
isto se me afigura desaforado e atrevido, e quem escreveu esta acusação
foi desaforado e a escreveu por atrevimento e desrespeito juvenil. É
como se alguém desejasse pôr-me à prova compondo uma espécie de
enigma: "Dar-se-á conta Sócrates, aquele grande sábio, que o estou
ridicularizando e me contradigo? Ou conseguirei enganá-lo e a todos
aqueles que me ouvem?" Com efeito, parece-me que Meleto se contradiz na
acusação, como se declarasse: "Sócrates é réu de não acreditar nos
deuses, mas também de acreditar nos deuses". E isto significa desejo de
se divertir.
Ó
atenienses, analisai comigo de que maneira creio que ele se contradiz.
Responde, ó Meleto. E vós, como já vos exortei no começo, recordai-vos
de não me interromper se continuo a raciocinar à minha maneira.
Existe
alguém, ó Meleto, que acredite na existência de fatos humanos e não em
homens? Fazei com que responda, ó atenienses, e não criai tanta agitação
por causa de uma palavra. Há quem não acredite na existência de
cavalos, mas sim nas coisas relativas a cavalos? E que não acredite na
existência de flautistas, mas sim que existam sons de flauta? Não ha
ninguém, eu mesmo respondo, a ti e aos outros que aqui se encontram, se
não queres responder. Mas responde ao menos à pergunta seguinte: existe
quem possa acreditar em coisas demoníacas, mas não em demônios?
MELETO: — É completamente impossível.
SÓCRATES:
— Quanta satisfação me proporcionou tua resposta, embora tenhas sido
obrigado pelos juízes. Portanto, acusas-me de acreditar em coisas
demoníacas e de ensiná-las; é isto que afirmas e que juraste no teu ato
de acusação. Mas se acredito em coisas demoníacas, devo obrigatoriamente
crer em demônios, não é assim? Com certeza é assim. Parece-me que
aceitas, já que não contestas. E não consideramos estes demônios filhos
dos deuses?
MELETO: — Logicamente.
SÓCRATES:
— Ora, se afirmas que existem demônios, se estes demônios são deuses, é
neste ponto que eu digo que fazes enigmas e brincadeiras, quando
declaras que eu, embora não acreditando na existência dos deuses, afirmo
a sua existência, uma vez que digo existirem demônios. De outra forma,
se estes demônios são filhos dos deuses, são também filhos bastardos
gerados por ninfas ou outras mães; então, quem poderá pensar que existam
filhos de deuses e de deuses não? Seria disparate igual se pensasse que
os mulos fossem filhos de jumentos e cavalos e que estes últimos não
existissem. Por isso, Meleto, é impossível, exceto que haja sido para
pôr-me à prova, que tenhas escrito contra mim uma acusação como esta, ou
é necessário dizer que não sabias do que me acusar? Mas que consiga
convencer quem quer que seja, mesmo se fraco de intelecto, que a mesma
pessoa que acredita em coisas demoníacas possa não acreditar em coisas
divinas e, de outra forma, que a mesma pessoa que acredita em coisas
demoníacas possa não acreditar nem em demônios, nem em deuses, nem em
heróis, isto é impossível.
A Missão Divina
Fazer o Que é Justo, Permanecer no Lugar Adequado, Obedecer ao Deus
Chega,
ó atenienses, isto é o bastante para demonstrar que não sou culpado das
acusações de Meleto, pois não se faz necessária uma defesa muito longa.
O que eu vos disse, desde o início, que um profundo ódio ergueu-se
contra mim, e vindo de muitas pessoas, é verdade, vós sabeis; e se algo
me causará dano, não será nem Meleto nem Ânito, mas sim este ódio, esta
calúnia e esta raiva das pessoas. Pessoas estas que já causaram a perda
de tantos outros e valorosos homens, e, acredito, outros ainda irão
perder, não havendo perigo que causem somente a minha perda.
Algum
de vós poderia talvez altercar-me: "Sócrates, não te envergonhas de
haveres exercido tal atividade, que agora coloca em risco tua vida?" Eu
responderia a este: "Não falas bem se pensas que alguém, tendo a
capacidade de fazer algum bem, mesmo sendo pequeno, deva calcular os
riscos de vida ou de morte e não deva olhar o injusto e se pratica as
ações de homem honesto e corajoso ou de infame e mau. Por outro lado,
acompanhando este teu raciocínio, teriam sido néscios todos os heróis
que morreram em Tróia, e o mais néscio de todos seria o filho de Tétis
que, sem se envergonhar, tamanho desdém mostrou pelo perigo, quando sua
mãe, uma deusa, estando ele ávido do sangue de Heitor, disse-lhe, se bem
me lembro: 'Ó filho, se vingares a morte do teu companheiro Pátroclo e
matares Heitor, também morrerás'. Ao ouvir tais palavras, Aquiles
negligenciou o perigo e a morte, receando muito mais viver
miseravelmente sem vingar o amigo, e declarou: 'Rapidamente eu morra,
logo após ter castigado a quem matou, nem que para isso me torne objeto
de desprezo'. Acreditas que Aquiles tenha pensado na morte e no perigo?"
É
assim que deve ser, ó atenienses, que onde alguém se haja instalado,
considerando ser aquele seu lugar mais honroso, ou onde tenha sido
instalado por quem ordena, aí, creio, deve ficar e enfrentar os riscos e
não pensar na morte, nem em outra desgraça qualquer, à exceção de na
desonra e na vergonha.
Declaro-vos,
ó cidadãos, que meu comportamento seria anormal e excêntrico se, ao
passo que em Potidéia, Anfípolis e Délio, quando os comandantes que vós
elegestes me designaram uma posição, lá fiquei, como qualquer outro,
arriscando minha vida, aqui, ao contrário, ao receber ordens do deus, ao
menos conforme pude ouvir e interpretar essa mesma ordem, pela qual
deveria viver filosofando e dedicando-me a conhecer a mim mesmo e aos
outros, que, digo, por temor à morte ou a outra desgraça semelhante,
tivesse desertado do posto a mim designado pelo deus. Seria algo,
repito, anormal e, de fato, existiriam então motivos para trazer-me aqui
no tribunal como sendo um desumano que não cresse nos deuses, já que
desobedece ao oráculo, receia a morte e julga ser sábio sem sê-lo. Com
efeito, atenienses, recear a morte não passa de julgar ser sábio e não
sê-lo, dado que significa pensar saber aquilo que não se sabe. E, em
verdade, ninguém sabe se, por acaso, ela não seja o maior de todos os
bens que podem ser dados ao homem e, contudo, receiam-na como se
soubessem que ela é a maior das desgraças. E não é ignorância, a mais
vergonhosa das ignorâncias, acreditar saber o que não se sabe? Ora,
atenienses, acredito distinguir-me por este motivo e precisamente neste
ponto da maior parte dos homens, e se me atrevesse a dizer que em alguma
coisa sou mais sábio que os outros, somente por isto o diria, que como
não sei nada de preciso a respeito das coisas do Hades, também nada
penso saber a esse respeito. Mas ser injusto e desobedecer a quem é
melhor que nós, seja deus, seja homem, isto bem sei que é coisa
vergonhosa e indecente. Por isso, como ocorre diante dos males que sei
que são nefastos, nunca acontecerá que eu fuja diante daqueles de que
não sei se por acaso não são bens.
Portanto,
mesmo que me concedesses a liberdade, contra a vontade de Ânito que,
desde o começo, declarava não ser necessário que eu viesse até este
tribunal, ou, uma vez aqui trazido, que era impossível não condenar-me à
morte, porque, dizia, se consigo safar-me da condenação, daquele
momento em diante, seus filhos prosseguindo a praticar os ensinamentos
de Sócrates, estariam inapelavelmente perdidos e corrompidos; se, ao
ouvir este raciocínio de Ânito, me dissésseis: "Ó Sócrates, não
pretendemos dar, agora, atenção a Ânito e deixamos-te livre, desde que
não empregues mais teu tempo nessas pesquisas, nem te ocupes mais de
filosofia, e se fores surpreendido a praticar ainda estas coisas,
morrerás"; se, como dizia, com esta condição me deixásseis em liberdade,
eu vos responderia: "Ó atenienses, eu vos amo, mas obedecerei primeiro
ao deus do que a vós, e enquanto tiver ânimo, e enquanto for capaz, não
pararei de filosofar, não pararei de estimular-vos e censurar-vos; e a
quem quer que eu encontrasse de vós, em qualquer ocasião, conversando da
minha maneira habitual, assim diria: "E tu, que és o melhor dos homens;
tu, ateniense, cidadão da maior cidade e mais célebre por sabedoria e
poder, não te envergonhes de pensar em acumular o máximo de riquezas,
fama e honras, sem te preocupar em cuidar da inteligência, da verdade e
da tua alma, para que se tornem tão boas quanto possível?" E se algum de
vós retrucasse que cuida de fato delas, não o deixaria afastar-se nem
iria embora, mas o interrogaria, o analisaria, o impugnaria, e se me
afigurasse que não possui virtude mas apenas afirma possuí-la, eu o
envergonharia demonstrando-lhe que considera infames as coisas mais
estimáveis e de valor, as infames. E agiria assim com qualquer um que eu
quisesse: jovens ou velhos, atenienses ou estrangeiros, e também com
vós, que me sois mais estritamente próximos. Isto, vós não desconheceis,
é ordem do deus e estou convencido de que haja para vós maior bem na
cidade do que esta minha obediência ao deus.
Em
verdade, com este meu caminhar não faço outra coisa a não ser
convencer-vos, jovens e velhos, de que não deveis vos preocupar nem com o
corpo, nem com as riquezas, nem com qualquer outra coisa antes e mais
que com a alma, a fim de que ela se torne excelente e muito virtuosa, e
de que das riquezas não se origina a virtude, mas da virtude se originam
as riquezas e todas as outras coisas que são venturas para os homens,
tanto para os cidadãos individualmente como para o Estado. Se ao falar
desta maneira corrompo os jovens, está certo, isto significará que
minhas palavras são nocivas, mas se alguém afirma que falo
diferentemente e não deste modo, então diz coisas insensatas. Por tudo
isso, permiti que vos diga, ó cidadãos atenienses: ou dareis ouvidos a
Ânito, ou não dareis, absolver-me-eis ou não, mas, de qualquer forma,
tende a certeza de que nunca agirei de outra maneira que esta, mesmo que
não só uma, mas muito mais vezes devesse morrer.
Não
promoveis algazarra, ó cidadãos, lembrai-vos de meu pedido de que não
causásseis balbúrdia diante do que eu dissesse, mas que vos limitásseis a
ouvir. Ademais, creio que vos será útil escutar. Restam-me algumas
outras coisas a dizer-vos, às quais, talvez, erguereis a voz. Não, não
fazei assim. Convencei-vos: se me condenardes à morte, a mim que sou
como vos disse, não me causareis maior dano que podeis causar a vós
mesmos. A mim não causarão dano nem Meleto nem Ânito. E nem o poderiam.
Não penso que seja possível que um homem de bem receba o mal de um
malvado. Poderá sim, Ânito, condenar-me à morte, ou ao desterro,
espoliar-me dos direitos civis; tudo em que este homem crer e outros
crerem serão grandes males, não o creio eu; penso que seja um mal bem
mais grave aquele que é cometido por esses que tentam condenar à morte
um homem inocente. Logo, ó atenienses, de maneira alguma estou falando
em minha defesa, como alguém poderia achar, mas falo por vós, que não
necessitais pecar, condenando-me à morte, contra o dom do deus. Pois se
me matardes, não encontrarão facilmente um outro igual a mim, que, não
riam da comparação, tenha sido colocado de fato pelo deus aos flancos da
cidade como aos flancos de um cavalo grande e de boa raça, mas pelo seu
próprio tamanho, um pouco lerdo e necessitado de estímulo, um ferrão.
Assim parece-me que o deus me colocou aos flancos da cidade; nunca paro
de exortar-vos, de convencer-vos, de falar-vos, um por um, estando a
vosso lado, em todo lugar. Afirmo, pois, que outro como eu não nascerá
facilmente, ó atenienses, e se desejais me ouvir, me poreis a salvo. Mas
se estais irritados comigo como o que está em vias de adormecer com
quem o desperta, e golpeais como a matar um inseto inoportuno,
condenar-me-eis à morte, por obediência a Ânito, e depois, no decorrer
de todo o resto de vossa existência, dormireis tranquilamente, se o deus
não vos mandar algum outro para substituir-me. E se for eu mesmo a
pessoa indicada pelo deus para presentear a cidade, podereis me
reconhecer por isso: que não parece humano que haja descuidado todos os
meus negócios e ainda aguentar por tantos anos que tenham sido
descuidadas as coisas da minha casa, e sempre, ao contrário, cuidando
das vossas, estando por perto como estaria um pai ou irmão mais velho,
para convencer-vos a buscar a virtude. Que se desta vida tirasse algum
proveito e se pelos conselhos que dou recebesse alguma compensação, aí
sim haveria uma razão, mas vistes que meus detratores, que me acusaram
tão despudoradamente de tantas outras culpas, desta não tiveram o
despudor de me acusar, pondo-me frente a frente com uma testemunha,
somente uma, que provasse ter eu recebido uma única vez compensação ou
de havê-la solicitado. E a prova cabal de que é verdade o que vos
declaro, eu dou: a minha pobreza.
Repugnância e Abstenção Socrática da Política Comum
É
possível que pareça estranho eu me encontrar sempre próximo e me dar
tanto ao trabalho de fornecer conselhos a este ou àquele em particular,
se, ao se tratar de aconselhar a cidade e de ir à tribuna para falar ao
povo, então me falte coragem. E o motivo disso me haveis ouvido dizer
várias vezes e em vários lugares, que existe em mim não sei que espírito
divino e demoníaco, a respeito do qual, também Meleto, com jeito de
estar se divertindo, aponta no ato da acusação. É como uma voz que
possuo dentro de mim desde criança, e que, toda vez que eu a ouço,
sempre faz com que eu desista do que estou para fazer, e nunca me
convence a realizar qualquer outra coisa. É essa voz que me impede de me
ocupar das coisas do Estado, e parece-me que faz muito bem em agir
dessa forma. Sabeis perfeitamente, ó cidadãos, que se eu tivesse, por
algum tempo, me ocupado dos negócios de Estado, teria sido morto também
num curto espaço de tempo e não teria realizado nada de útil, nem por
vós nem por mim. E não me desprezei se falo assim, pois é a verdade. Não
existe homem que possa se salvar ao opor-se com sinceridade, não digo a
vós, mas a qualquer outra multidão, e tente impedir que muitas vezes se
cometam injustiças as leis na cidade; e é também preciso que aquele que
luta em defesa do que é justo, se de fato pretende escapar da morte,
mesmo que por breve tempo, de viver de forma privada e não exercer
funções públicas.
aquilo
que afirmo eu mesmo posso oferecer-vos provas cabais, e não palavras,
mas do que mais necessitais: fatos. Escutai o que me sucedeu e vereis
então que diante do que é justo não sou homem de ceder a ninguém por
temor à morte; e que, além de não ceder, estou pronto a morrer. Falarei
um pouco grosseiramente, como fazem alguns dos frequentadores dos
tribunais, mas com sinceridade. Tendes conhecimento, ó cidadãos, de que
nunca exerci em nossa cidade magistratura alguma, exceto uma vez em que
fiz parte do Conselho, justamente no dia em que era o vosso desejo
julgar em conjunto, ao arrepio da lei, e em seguida acolhestes todos ao
meu parecer, aqueles dez capitães que não haviam recolhidos os náufragos
e os mortos depois da batalha naval das Arginusas. Então eu me opus,
lutando para que nada fosse feito contra a lei, e votei contra. Os
oradores habituais já estavam prontos para suspender-me da função e
aprisionar-me, e vós a instigá-los e a gritar; julguei que era meu dever
correr aquele risco mantendo-me ao lado do direito e do justo em vez de
apoiar-vos e deliberar o injusto por temer a prisão e a morte. E isto
ocorreu quando a cidade ainda era regida por uma democracia. Mais tarde,
depois que surgiu a oligarquia, os Trinta mandaram-me chamar, e a mais
outros quatros, levaram-nos à sala do Tolo e ordenaram que retirássemos
de Salamina o Leon de Salamina, para que este viesse a morrer. E davam
ordens semelhantes a vários outros homens, na tentativa de envolver em
seus atos cruéis o maior número de pessoas possível. E naquela ocasião,
não com palavras, e sim com fatos, demonstrei que a morte, se a palavra
não soar por demais vulgar, não possui importância alguma para mim, mas
de não cometer injustiças ou crueldades, isto sim me importa acima de
qualquer coisa.E aquele governo, apesar de prepotente, não me
atemorizou, não me obrigou a cometer um ato injusto, e, quando saímos do
Tolo e os outros quatro se dirigiram para Salamina a fim de retirar
Leon, deixei-os ir e voltei para casa. Acredito que só por causa disso,
eu já teria morrido, se aquele governo não tivesse sido deposto logo em
seguida. E disto que relatei possuo muitas testemunhas.
O Testemunho dos Discípulos, de seus Pais e Irmãos
Credes
que eu teria vivido por tantos anos se houvesse me ocupado de assuntos
públicos e, fazendo-o como homem de bem, tivesse lutado em defesa da
justiça e tivesse considerado esta defesa, como é necessário, meu dever
mais alto? Com certeza, atenienses, não existe homem que o tivesse
conseguido! Em verdade, em toda minha existência, tanto em público, nas
poucas vezes que me ocupei de coisas públicas, como privadamente, sempre
fui o mesmo, um homem que diante do justo nunca cedeu a quem quer que
fosse, a ninguém, e nem mesmo àqueles que os caluniadores chamam de meus
discípulos. Nunca fui mestre de quem, quer que seja, principalmente se é
uma pessoa que , quando falo ou atendo àquilo que acredito ser meu
ofício, deseja escutar-me; seja jovem, seja velho, nunca me refutaram, e
não é verdade que, se recebo dinheiro, eu falo e se não recebo, fico
calado, porque estou da mesma maneira à disposição de todos, pobres e
ricos, quem quer que me indague e deseje ouvir as minhas respostas. Por
conseguinte, se entre os homens que me frequentam, um se torne de boa
formação moral ou não, não será justo que eu receba elogios ou
impropérios, já que não prometi ensinamento algum a ninguém, nem nunca
ensinei coisa alguma. E se há quem diga que aprendeu ou ouviu alguma
coisa de mm, em particular, alguma coisa que todos os outros não tenham
aprendido ou ouvido, tenhais a certeza de que este não diz a verdade.
Diante
disso, como é possível que a alguns agrade estar comigo tanto tempo?
Vós ouvistes, ó cidadãos, que eu disse toda a verdade: têm prazer de
ouvir-me quando submeto à prova aqueles que pensam serem sábios e não o
são. Com efeito, não é desagradável. Ao fazer isso, repito-vos, cumpro
as ordens do deus, dadas por intermédios de vaticínios e sonhos, e por
outros meios de que se serve a providência divina para ordenar ao homem
que faça alguma coisa. E estas coisas, ó atenienses, são verdadeiras e
demonstráveis. Se de fato eu corrompo os jovens, se já corrompi algum,
seria ainda necessário que estes, ao envelhecerem, tomassem consciência
de que quando eram jovens eu os aconselhei a praticar o mal, e que
viessem à tribuna para acusar-me e para exigir minha punição, e, se não
quisessem fazê-lo diretamente, que enviassem hoje para cá as pessoas de
sua família, pais, irmãos, e outros, se os que lhe são caro sofreram
algum mal por mim causado, e que me fizessem pagar por isso. Muitos
destes estão presentes, eu os vejo. Ali está Críton, meu contemporâneo e
conterrâneo com sei filho Critóbulo, e também Lisânias de Esfeto, com
seu filho Ésquino,e ainda Antífon de Cefísia, pai de Epígeno, e ali
estão outros, cujos irmãos viveram comigo familiarmente, Nicóstrato, ,
filho de Teozótides, irmão de Teódoto, e como Teódoto faleceu, não
poderá falar com o irmão a meu favor, e aí está Parálio, filho de
Demódoco,de quem era irmão Teages, e ali Adimanto, filho de Aríston, de
quem ali se encontra o irmão Platão, e Aantodoro, de quem temos aqui o
irmão Apolodoro. E poderia nomear muitos outros. E conseguiria indicar
vários outros que Meleto poderia apresentar como testemunhas na sua
acusação; se ele se esqueceu disso, que os apresente agora, cedo-lhe o
lugar; se existe alguma testemunha deste tipo, que se manifeste.
Porém,
atenienses, vereis que todos farão o contrário, todos falarão a favor
do corruptor, em defesa daquele que causa o mal de seus familiares, como
afirmam Meleto e Ânito. Talvez esses, os corrompidos, tenham alguma
razão para me defender, mas aqueles que não foram corrompidos, que são
agora anciãos, que outra razão podem ter para me defender exceto esta,
que é verdadeira e justa: a certeza de que Meleto mente e eu digo a
verdade?
Epílogo
Sócrates não quer Misericórdia
Cidadãos,
são estas, enfim, as razões que posso apresentar em minha defesa, e
algumas mais, que, porém, são bem poucos diferentes destas. É possível
que alguém entre vós, ao pensar em si mesmo, possa irritar-se comigo se,
algum dia, ao ter de enfrentar um processo menos arriscado do que este,
suplicou clemência aos juizes, e, além disso, trouxe ao tribunal os
filhos e vários de seus parentes e amigos, ao passo que eu não me porto
desta maneira, embora, ao que parece, esteja arriscando a vida .É
possível que alguém, ao fazer intimamente esta comparação, se deixe
influenciar pelo amor-próprio ferido e, desta forma, enraivecido com
minha atitude, emita seu voto com raiva. A uma pessoa assim, que talvez
esteja entre vós, não afirmo categoricamente que há, poderei responder
da seguinte maneira: "Meu estimado amigo, eu também trouxe alguém da
minha família, e aqui caberia aquele dito de Homero: 'Que não de
carvalho, nem de pedra nasci, mas de criaturas humanas'.
Eu
também possuo família, ó atenienses; tenho três filhos, um já crescido e
dois ainda crianças, mas não os trouxe aqui para despertar vossa
misericórdia e absolver-me". E não é por orgulho que me comporto assim,
nem por desprezo, nem para provar que sou corajoso diante da mote, mas
pela minha reputação, pela vossa e de toda a cidade, não me pareceu
honroso agir dessa maneira, ainda mais na minha idade e com o meu nome,
verdadeiro ou falso que seja, porque corre pela cidade que, em quaisquer
aspectos, Sócrates se distingue da maioria dos homens. Ora, se aquele
que entre vós possuem fama de se distinguirem pela sabedoria e coragem,
ou por outra virtude qualquer, se procedessem dessa maneira, seria
vergonhoso, e pessoas desse tipo, eu mesmo presenciei muitas vezes,
quando eram réus em um processo, embora possuíssem alguma boa reputação,
têm atitudes excepcionais, como se achassem que iriam sofrer sabe-se lá
que tortura se devessem morrer e como se tornassem imortais se não
fossem condenados à morte por vós. Estes, sim, envergonham a toda a
cidade, tanto que qualquer forasteiro poderia imaginar que aqueles
atenienses que se distinguem por sua virtude e que seus concidadãos
elegem à magistratura e outras honras não são em nada melhores que as
mulheres. Por isso, não nos portamos dessa maneira é o que compete a
nós, que temos fama de sermos ainda alguma coisa. Nem vos conviria, se
nos comportássemos assim, deixar-nos fazê-lo, mas sim mostrar a todos
que julgais com maior rigor quem encena esses dramas lastimosos e cobre a
cidade de ridículo do que quem suporta com serenidade o próprio
destino.
Não
considero justo, ó cidadãos, tentar influir nos juízes e, mediante
súplicas, livrar-me da condenação, mas sim infomá-los e convencê-los.
Os
juízes não se encontram aqui para favorecer o justo, mas para julgar o
justo, nem juraram que favorecerão a quem lhes paga, mas que farão
justiça de acordo com as leis. Portanto, não é necessário que vos
habitueis a isso; não faremos coisas boas e piedosas, nem vos nem eu.
Não iríeis querer então, ó atenienses, que eu cometesse diante de vós
atos que reputo desonestos, injustos e vis, e eu menos ainda, eu que sou
acusado por Meleto, aqui presente, de impiedade. Porque é evidente que
se eu, por meio de súplicas procurasse convencer-vos e obrigar-vos a
violar o juramento, eu vos ensinaria que, desta acusação, seria culpado
de não crer nos deuses. E é justamente o contrário que sucede. Acredito
nos deuses mais do que qualquer um dos meus acusadores, e deixo a vosso
critério, e ao do deus, julgar o que será para vós e para mim o melhor.
Segunda Parte
A Pena
Do Esperado da Pena
Se
eu não estou abalado, ó atenienses, com o que acaba de ocorrer, o de
terem votado pela minha condenação, isso deve-se, entre outras razões,
ao fato de não haver sido apanhado de surpresa. O que, no entanto, me
causa mais estranheza é o grande número de votos favoráveis a mm , pois
acreditava que seria condenado por muito mais votos, e não por tão
poucos. Ao que me parece, com apenas mais trinta votos a meu favor teria
sido absolvido. Portanto, penso haver escapado das mãos de Meleto, e
não só haver escapado delas, mas, o que é bastante evidente, se Ânito e
Lícon não tivessem vindo para me acusar, eu teria sido multado em mil
dracmas por não haver conseguido um quinto dos votos.
Este
homem, então, pensa que mereço a pena capital. E eu, que pena
apresentarei em oposição à vossa, ó atenienses? Não é evidente que seja a
mesma que me foi imposta? Qual será então? Que pena merecerei ou que
multa, por não haver usufruído em paz, ao longo da minha existência, o
que aprendi, e por ter desprezado aquilo que atrai a maioria; riquezas,
interesses particulares, cargos militares e políticos e todas as outras
magistraturas, e as agitações e conspirações que acontecem nas cidades,
pois sempre me considerei por demais honesto para conseguir salvar-me se
me dedicasse a tais coisas e convencido de que não teria sido útil nem
para mm nem para vós, e porque sempre acudi rapidamente aonde quer que
eu reputasse poder proporcionar o maior bem a cada um de vós em
particular, tentando convencer-vos de que, antes de qualquer coisa e de
vós mesmos, procurásseis ser os melhores e mais sensatos possível, e que
vos esforçásseis ao máximo para trabalhar em prol da cidade. Que mereço
por sempre haver agido desta forma? Algum grande bem, ó atenienses, se é
que devo ser recompensado como mereço. Que será apropriado para um
pobre benfeitor que precisa de tempo para aconselhar-vos nos vossos
assuntos? O que mais seria conveniente a esse homem, atenienses não
seria mantê-lo no Pritaneu com muito maior razão do que aqueles que, com
cavalo, biga ou quadriga, tenham conseguido triunfos nos Jogos
Olímpicos. Porque estes vos proporcionam felicidade, e também a mim, e
não precisam ser sustentados como eu precioso. Se, então, devo pedir, de
acordo com o direito, aquilo a que faço jus, peço se alimentado no
Pritaneu.
Contudo,
mesmo nestas minhas palavras de agora, talvez julgais notar quase o
mesmo sentimento de ofensivo orgulho que acreditáveis ter percebido
quando falava a respeito de suplicar e despertar comiseração. Não, não é
isso, ó cidadãos, mas algo bastante diferente. Penso nunca haver
prejudicado ninguém por querer, e mesmo assim não logrei convencer-vos;
tivemos muito pouco tempo para nos entendermos. E acredito que se
houvesse leis entre nós, como as que há entre outros povos, que proíbem
que uma pena de morte seja aplicada em apenas um dia, e sim em mais,
estaríeis convencidos, e, mesmo assim, não é fácil livrar-se em tão
breve espaço de tempo de acusações tão graves. E também pensa em
prejudicar a mm mesmo ao declarar que sou merecedor da pena e pedir que
esta pena seja aplicada a mim. E por temer o que eu deveria agir dessa
forma? Talvez por temer sofrer aquilo que Meleto exige para mim e que eu
declaro não saber se é bom ou mau? E em troca desta pena devo escolher
outra entre aquelas que eu sei serem más? Deverei solicitar a prisão? E
por que motivo deverei viver preso, a serviço da eterna magistratura dos
Onze? Uma pena em dinheiro e permanecer enjaulado enquanto não for
paga? Mas é exatamente a mesma coisa que a anterior, porque não possuo
dinheiro para pagá-la. Pedirei o exílio? Sim, talvez seja precisamente
esta pena que desejastes para mim. Porém, em verdade, ó atenienses, eu
teria de estar imbuído de uma bem ingênua vontade de viver se fosse
assim tão irracional a ponto de não poder nem mesmo fazer este
raciocínio, que enquanto vós, embora sendo meus concidadãos, não fostes
capazes de agüentar minha companhia e os meus discursos, e mais, que
minha companhia foi tão desagradável que procuras agora livrar-vos dela,
que outros a agüentariam de bom grado? E ainda, atenienses, que
excelente vida seria a minha, nesta idade, exilado, mudando sempre de
país para país, perseguido em todos os lugares. Porque sei muito bem que
aonde quer que eu vá, os jovens acorrerão a fim de me ouvir, como aqui,
e, se eu os repelir, serão estes mesmos que me farão perseguir,
convencendo os mais velhos; e se não os repelir, serei perseguido por
seus pais e demais parentes.
Algum
de vós talvez pudesse contestar-me: "Em silêncio e quieto, ó Sócrates,
não poderias viver após ter saído de Atenas?" Isso seria simplesmente
impossível. Porque, se vos dissesse que significaria desobedecer ao deus
e que, por conseguinte, não seria possível que eu vivesse em silêncio,
não acreditaríeis e pensaríeis que estivesse sendo sarcástico. Se vos
dissesse que esse é o maior bem para o homem, meditar todos os dias
sobre a virtude e acerca dos outros assuntos que me ouvistes discutindo e
analisando a meu respeito e dos demais, e que uma vida desprovida de
tais análises não é digna de ser vivida, se vos dissesse isto,
acreditar-me-iam menos ainda. Contudo, é isto que vos digo, ó
atenienses, porém é difícil convencer-vos. Por outro lado, não estou
habituado a considerar-me merecedor de mal algum. Se eu possuísse
dinheiro, poderia ter-me aplicado uma multa que conseguisse pagar,
porque, assim, não teria me infligido mal algum. Mas não possuo dinheiro
e não posso fazer isso, exceto se desejeis multar-me de uma quantia que
eu tenha a possibilidade de pagar. Poderei pagar-vos apenas uma mina de
prata. Portanto, multo-me em uma mina de prata.
Mas
vedes, ó atenienses, que Platão, Críton, Critóbulo e Apolodoro querem
que eu me multe em trinta minas, que eles mesmos garantirão. Multo-me
então em trinta minas. E esses homens, dignos de crédito e confiança,
serão garantes dessa quantia.
Terceira Parte
Após a Condenação
Aos que Votaram Contra
Por
não haverdes aguardado mais um pouco, atenienses, aqueles que desejarem
injuriar a cidade vos impingirão a fama e a acusação de terdes matado
Sócrates, um sábio. Sim, chamar-me-ão de sábio, apesar de que eu não o
seja, os que vos quiserem censurar. Se esperásseis mais algum tempo, a
própria natureza satisfaria o vosso desejo. Bem sabeis a minha idade, já
distante da vida e próxima da morte. Não dirijo essas palavras a todos
vós, mas aos que votaram pela minha morte.
Para
esses mesmos, adito o seguinte: talvez imagineis, senhores, que me
perdi por falta de discursos com que vos poderia persuadir, se na minha
opinião se devesse tudo fazer e dizer para escapar à justiça. Engano!
Perdi-me por falta, não de discursos, mas de atrevimento e descaramento,
por me recusar a proferir o que mais gostais de ouvir, lamentos e
gemidos, fazendo e dizendo uma porção de coisas que declaro indignas de
mm, tais como costumais ouvir dos outros. Ora, se antes achei que o
perigo não justificava indignidade alguma, tampouco me pesa agora da
maneira por que me defendi; ao contrário, muito mais folgo em morrer
após a defesa que fiz, do que folgaria em viver após fazê-la daquele
outro modo. Quer no tribunal, quer na guerra, não devo eu, não deve
ninguém lançar mão de todo e qualquer recurso para escapar à morte. Com
efeito, é evidente que, nas batalhas, muitas vezes se pode escapar à
morte arrojando as armas e suplicando piedade aos perseguidores; em cada
perigo, tem muitos outros meios de escapar à morte quem ousa tudo fazer
e dizer. Não se tenha por difícil escapar à morte, porque muito mais
difícil é escapar à maldade; ela corre mais ligeira que a morte. Neste
momento, fomos apanhados, eu, que sou um velho vagaroso, pela mais lenta
das duas, eu e os meus acusadores, ágeis e velozes, pela mais ligeira, a
malvadez. Agora, vamos partir; eu, condenado por vós à morte; eles,
condenados pela verdade a seu pecado e a seu crime. Eu aceito a pena
imposta; eles igualmente. Por certo, tinha de ser assim e penso que não
houve excessos.
Acerca
do futuro, no entanto, quero fazer-vos um vaticínio, meus condenadores;
de fato, eis-me chegado àquele momento em que os homens vaticinam
melhor, quando estão para morrer. Eu vos afianço, homens que me mandais
matar, que o castigo os vos alcançará logo após a minha morte e será,
por Zeus, muito mais duro que a pena capital que me impusestes. Vós o
fizestes supondo que vos livraríeis de dar boas contas de vossa vida;
mas o resultado será inteiramente oposto, eu vo-lo asseguro. Serão mais
numerosos os que vos pedirão contas; até agora eu os continha e vós não
os percebíeis; eles serão tanto mais importunos quanto são mais jovens, e
vossa irritação será maior. Se imaginais que, matando homens, evitareis
que alguém vos repreenda a má vida, estais enganados; essa não é uma
forma de libertação, enm é inteiramente eficaz nem honrosa; esta outra,
sim, é a mais honrosa e mais fácil; em vez de tapar a boca dos outros,
preparar-se para ser o melhor possível. Com este vaticínio, despeço-me
de vós que me condenastes.
Aos que o Absolveram
Com
os que votaram pela absolvição, gostaria de conversar com respeito ao
que se acaba de suceder, enquanto os magistrados estão ocupados e antes
de ir para onde devo morrer. Por conseguinte, senhores, ficai comigo
mais um pouco; nada obsta que nos entretenhamos enquanto dispomos de
tempo. Quero explicar-vos, como a amigos, o sentido exato de que me
aconteceu agora.
O
que me ocorreu senhores juízes, a vós é que chamo com tino de juízes,
foi algo prodigioso. A usual inspiração, a da divindade, sempre foi
rigorosamente assídua em opor-se a ações mínimas, quando eu ia cometer
um erro; agora, porém, acaba de me ocorrer o que vós estais vendo, o que
se poderia considerar, e há quem o faça, como o maior dos males; mas a
advertência divina não se me opôs de manhã, ao sair de casa, nem
enquanto subia aqui para o tribunal, nem quando ia dizer alguma coisa;
no entanto, quantas vezes ela me conteve em meio de outros discursos!
Mas hoje não se me opôs vez alguma no decorrer do julgamento, em nenhuma
ação ou palavra. A que devo atribuir isso? Vou dizer-vos: é bem
possível que seja um bem para mim o que aconteceu e não é forçoso
acreditar que a morte seja um mal. Disso tenho agora uma boa prova,
porque a usual advertência não poderia deixar de opor-se, se não fosse
uma ação boa o que eu estava para praticar.
Façamos
mais esta reflexão: há grande esperança de que isto seja um bem. Morrer
é uma destas duas coisas: ou o morte é igual a nada, e não sente
nenhuma sensação d coisa nenhuma; ou, então, como se costuma dizer,
trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para
outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o
adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte!
Bem
posso imaginar que, se devêssemos identificar uma noite em que
estivéssemos dormindo tão profundamente que nem mesmo sonhássemos e,
contrapondo a essa as demais noites e dias de nossa vida, pensar e dizer
quantos dias e noites de nossa existência vivemos melhor e mais
agradavelmente do que naquela noite, bem posso imaginar que, já não digo
um homem comum, mas o próprio rei da Pérsia acharia fácil enumerar tal
noite entre as outras noites e dias. Logo, se a morte é isso, digo que é
uma vantagem, porque, assim sendo, toda a duração do tempo se apresenta
como nada mais que uma noite. Se, do outro lado, a morte é como a
mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão
todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes?
Se,
ao chegar ao Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a
gente vai encontrar os verdadeiros juízes que, segundo consta, lá
distribuem a justiça, Minos, ¹ Radamanto, Éaco, Triptólemo e outros
semideuses que foram justiceiros em vida, não valeria a pena a viagem?
Quanto não daria qualquer de vós para estar na companhia de Orfeu, ²
Museu, Hesíodo e Homero? Por mm, estou pronto a morrer muitas vezes, se
isso é verdade; eu de modo especial acharia lá um entretenimento
maravilhoso, quando encontrasse Palamedes, Ajax de Telamon e outros dos
antigos, que tenham morrido por um sentença iníqua; não me seria
desagradável comparar com os deles os meus sofrimentos e, o que é mais,
passar o tempo examinando e interrogando os de lá como aos de cá, a ver
quem deles é sábio e quem, não o sendo, cuida que é. Quanto não se
daria, senhores juízes, para sujeitar a exame aquele que comandou a
imensa expedição contra Tróia, ou Ulisses, ou Sísifo? Milhares de outros
se poderiam nomear, homens e mulheres, com quem seria uma felicidade
indizível estar junto, conversando com eles, sujeitando-os a exame! Os
de lá absolutamente não matam por uma razão dessas! Os de lá são mais
felizes que os de cá, entre outros motivos, por serem imortais pelo
resto do tempo, se a tradição está certa.
Vós
também, senhores juízes, deveis bem esperar da morte e considerar
particularmente esta verdade: não há, para o homem bom, mal algum, quer
na vida, quer na morte, e os deuses não descuidam de seu destino. O meu
não é consequência do acaso; vejo claramente que era melhor para mim
morrer agora e ficar livre de fadigas. Por isso é que a advertência nada
me impediu. Não me insurjo absolutamente contra os que votaram contra
mm ou me acusaram. Verdade é que não me acusaram e condenaram com esse
modo de pensar, mas na suposição de que me causavam dano: nisso merecem
censura. No entanto, só tenho um pedido a lhes fazer: quando meus filhos
crescerem, castigai-os, atormentai-os com os mesmíssimos tormentos que
eu vos infligi, se achardes que eles estejam cuidando mais da riqueza ou
de outra coisa que da virtude; se estiverem supondo ter um valor que
não tenham, repreendei-os, como vos fiz eu, por não cuidarem do que
devem e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se vós assim agirdes, eu
terei recebido de vós justiça; eu, e meus filhos também.
Bem,
é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem
segue melhor destino, se eu, se vós, é segredo para todos, exceto para a
divindade.
¹
Rei lendário de Creta, filho de Europa e de Zeus, marido de Pasífae,
sábio legislador, juiz dos Infernos com Éaco e Triptólemo.
²
Célebre aedo da era pré-homérica, cantava e tocava a lira com tal
perfeição que até as feras se aquietavam e vinham deitar-se a seus pés.
Atribuía-se-lhe a invenção da lira e dos rituais mágicos e divinatórios,
origem de seitas místicas, a que se deu o nome de orfismo.
PLATÃO
A Vida e as Obras
Diversamente
de Sócrates , que era filho do povo, Platão nasceu em Atenas, em 428 ou
427 a.C., de pais aristocráticos e abastados, de antiga e nobre
prosápia. Temperamento artístico e dialético - manifestação
característica e suma do gênio grego - deu, na mocidade, livre curso ao
seu talento poético, que o acompanhou durante a vida toda,
manifestando-se na expressão estética de seus escritos; entretanto isto
prejudicou sem dúvida a precisão e a ordem do seu pensamento, tanto
assim que várias partes de suas obras não têm verdadeira importância e
valor filosófico.
Aos
vinte anos, Platão travou relação com Sócrates - mais velho do que ele
quarenta anos - e gozou por oito anos do ensinamento e da amizade do
mestre. Quando discípulo de Sócrates e ainda depois, Platão estudou
também os maiores pré-socráticos. Depois da morte do mestre, Platão
retirou-se com outros socráticos para junto de Euclides, em Mégara.
Daí
deu início a suas viagens, e fez um vasto giro pelo mundo para se
instruir (390-388). Visitou o Egito, de que admirou a veneranda
antigüidade e estabilidade política; a Itália meridional, onde teve
ocasião de travar relações com os pitagóricos (tal contato será fecundo
para o desenvolvimento do seu pensamento); a Sicília, onde conheceu
Dionísio o Antigo, tirano de Siracusa e travou amizade profunda com
Dion, cunhado daquele. Caído, porém, na desgraça do tirano pela sua
fraqueza, foi vendido como escravo. Libertado graças a um amigo, voltou a
Atenas.
Em
Atenas, pelo ano de 387, Platão fundava a sua célebre escola, que, dos
jardins de Academo, onde surgiu, tomou o nome famoso de Academia.
Adquiriu, perto de Colona, povoado da Ática, uma herdade, onde levantou
um templo às Musas, que se tornou propriedade coletiva da escola e foi
por ela conservada durante quase um milênio, até o tempo do imperador
Justiniano (529 d.C.).
Platão,
ao contrário de Sócrates, interessou-se vivamente pela política e pela
filosofia política. Foi assim que o filósofo, após a morte de Dionísio o
Antigo, voltou duas vezes - em 366 e em 361 - à Dion, esperando poder
experimentar o seu ideal político e realizar a sua política utopista.
Estas duas viagens políticas a Siracusa, porém, não tiveram melhor êxito
do que a precedente: a primeira viagem terminou com desterro de Dion;
na segunda, Platão foi preso por Dionísio, e foi libertado por Arquitas e
pelos seus amigos, estando, então, Arquistas no governo do poderoso
estado de Tarento.
Voltando
para Atenas, Platão dedicou-se inteiramente à especulação metafísica,
ao ensino filosófico e à redação de suas obras, atividade que não foi
interrompida a não ser pela morte. Esta veio operar aquela libertação
definitiva do cárcere do corpo, da qual a filosofia - como lemos no
Fédon - não é senão uma assídua preparação e realização no tempo. Morreu
o grande Platão em 348 ou 347 a.C., com oitenta anos de idade.
Platão
é o primeiro filósofo antigo de quem possuímos as obras completas. Dos
35 diálogos, porém, que correm sob o seu nome, muitos são apócrifos,
outros de autenticidade duvidosa.
A
forma dos escritos platônicos é o diálogo, transição espontânea entre o
ensinamento oral e fragmentário de Sócrates e o método estritamente
didático de Aristóteles. No fundador da Academia, o mito e a poesia
confundem-se muitas vezes com os elementos puramente racionais do
sistema. Faltam-lhe ainda o rigor, a precisão, o método, a terminologia
científica que tanto caracterizam os escritos do sábio estagirita.
A
atividade literária de Platão abrange mais de cinquenta anos da sua
vida: desde a morte de Sócrates , até a sua morte. A parte mais
importante da atividade literária de Platão é representada pelos
diálogos - em três grupos principais, segundo certa ordem cronológica,
lógica e formal, que representa a evolução do pensamento platônico, do
socratismo ao aristotelismo.
O Pensamento: A Gnosiologia
Como
já em Sócrates, assim em Platão a filosofia tem um fim prático, moral; é
a grande ciência que resolve o problema da vida. Este fim prático
realiza-se, no entanto, intelectualmente, através da especulação, do
conhecimento da ciência. Mas - diversamente de Sócrates, que limitava a
pesquisa filosófica, conceptual, ao campo antropológico e moral - Platão
estende tal indagação ao campo metafísico e cosmológico, isto é, a toda
a realidade.
Este
caráter íntimo, humano, religioso da filosofia, em Platão é tornado
especialmente vivo, angustioso, pela viva sensibilidade do filósofo em
face do universal vir-a-ser, nascer e perecer de todas as coisas; em
face do mal, da desordem que se manifesta em especial no homem, onde o
corpo é inimigo do espírito, o sentido se opõe ao intelecto, a paixão
contrasta com a razão. Assim, considera Platão o espírito humano
peregrino neste mundo e prisioneiro na caverna do corpo. Deve, pois,
transpor este mundo e libertar-se do corpo para realizar o seu fim, isto
é, chegar à contemplação do inteligível, para o qual é atraído por um
amor nostálgico, pelo eros platônico.
Platão
como Sócrates, parte do conhecimento empírico, sensível, da opinião do
vulgo e dos sofistas, para chegar ao conhecimento intelectual,
conceptual, universal e imutável. A gnosiologia platônica, porém, tem o
caráter científico, filosófico, que falta a gnosiologia socrática, ainda
que as conclusões sejam, mais ou menos, idênticas. O conhecimento
sensível deve ser superado por um outro conhecimento, o conhecimento
conceptual, porquanto no conhecimento humano, como efetivamente,
apresentam-se elementos que não se podem explicar mediante a sensação. O
conhecimento sensível, particular, mutável e relativo, não pode
explicar o conhecimento intelectual, que tem por sua característica a
universalidade, a imutabilidade, o absoluto (do conceito); e ainda menos
pode o conhecimento sensível explicar o dever ser, os valores de
beleza, verdade e bondade, que estão efetivamente presentes no espírito
humano, e se distinguem diametralmente de seus opostos, fealdade, erro e
mal-posição e distinção que o sentido não pode operar por si mesmo.
Segundo
Platão, o conhecimento humano integral fica nitidamente dividido em
dois graus: o conhecimento sensível, particular, mutável e relativo, e o
conhecimento intelectual, universal, imutável, absoluto, que ilumina o
primeiro conhecimento, mas que dele não se pode derivar. A diferença
essencial entre o conhecimento sensível, a opinião verdadeira e o
conhecimento intelectual, racional em geral, está nisto: o conhecimento
sensível, embora verdadeiro, não sabe que o é, donde pode passar
indiferentemente o conhecimento diverso, cair no erro sem o saber; ao
passo que o segundo, além de ser um conhecimento verdadeiro, sabe que o
é, não podendo de modo algum ser substituído por um conhecimento
diverso, errôneo. Poder-se-ia também dizer que o primeiro sabe que as
coisas estão assim, sem saber porque o estão, ao passo que o segundo
sabe que as coisas devem estar necessariamente assim como estão,
precisamente porque é ciência, isto é, conhecimento das coisas pelas
causas.
Sócrates
estava convencido, como também Platão, de que o saber intelectual
transcende, no seu valor, o saber sensível, mas julgava, todavia, poder
construir indutivamente o conceito da sensação, da opinião; Platão, ao
contrário, não admite que da sensação - particular, mutável, relativa -
se possa de algum modo tirar o conceito universal, imutável, absoluto.
E, desenvolvendo, exagerando, exasperando a doutrina da maiêutica
socrática, diz que os conceitos são a priori, inatos no espírito humano,
donde têm de ser oportunamente tirados, e sustenta que as sensações
correspondentes aos conceitos não lhes constituem a origem, e sim a
ocasião para fazê-los reviver, relembrar conforme a lei da associação.
Aqui
devemos lembrar que Platão, diversamente de Sócrates, dá ao
conhecimento racional, conceptual, científico, uma base real, um objeto
próprio: as ideias eternas e universais, que são os conceitos, ou alguns
conceitos da mente, personalizados. Do mesmo modo, dá ao conhecimento
empírico, sensível, à opinião verdadeira, uma base e um fundamento
reais, um objeto próprio: as coisas particulares e mutáveis, como as
concebiam Heráclito e os sofistas. Deste mundo material e contigente,
portanto, não há ciência, devido à sua natureza inferior, mas apenas é
possível, no máximo, um conhecimento sensível verdadeiro - opinião
verdadeira - que é precisamente o conhecimento adequado à sua natureza
inferior. Pode haver conhecimento apenas do mundo imaterial e racional
das idéias pela sua natureza superior. Este mundo ideal, racional - no
dizer de Platão - transcende inteiramente o mundo empírico, material, em
que vivemos.
Teoria das Idéias
Sócrates
mostrara no conceito o verdadeiro objeto da ciência. Platão
aprofunda-lhe a teoria e procura determinar a relação entre o conceito e
a realidade fazendo deste problema o ponto de partida da sua filosofia.
A
ciência é objetiva; ao conhecimento certo deve corresponder a
realidade. Ora, de um lado, os nossos conceitos são universais,
necessários, imutáveis e eternos (Sócrates), do outro, tudo no mundo é
individual, contingente e transitório (Heráclito). Deve, logo, existir,
além do fenomenal, um outro mundo de realidades, objetivamente dotadas
dos mesmos atributos dos conceitos subjetivos que as representam. Estas
realidades chamam-se Ideias. As ideias não são, pois, no sentido
platônico, representações intelectuais, formas abstratas do pensamento,
são realidades objetivas, modelos e arquétipos eternos de que as coisas
visíveis são cópias imperfeitas e fugazes. Assim a ideia de homem é o
homem abstrato perfeito e universal de que os indivíduos humanos são
imitações transitórias e defeituosas.
Todas
as ideias existem num mundo separado, o mundo dos inteligíveis, situado
na esfera celeste. A certeza da sua existência funda-a Platão na
necessidade de salvar o valor objetivo dos nossos conhecimentos e na
importância de explicar os atributos do ente de Parmênides, sem, com
ele, negar a existência do fieri. Tal a célebre teoria das ideias, alma
de toda filosofia platônica, centro em torno do qual gravita todo o seu
sistema.
A Metafísica
As Ideias
O
sistema metafísico de Platão centraliza-se e culmina no mundo divino
das ideias; e estas contrapõe-se a matéria obscura e incriada. Entre as
ideias e a matéria estão o Demiurgo e as almas, através de que desce das
ideias à matéria aquilo de racionalidade que nesta matéria aparece.
O
divino platônico é representado pelo mundo das ideias e especialmente
pela ideia do Bem, que está no vértice. A existência desse mundo ideal
seria provada pela necessidade de estabelecer uma base ontológica, um
objeto adequado ao conhecimento conceptual. Esse conhecimento, aliás, se
impõe ao lado e acima do conhecimento sensível, para poder explicar
verdadeiramente o conhecimento humano na sua efetiva realidade. E, em
geral, o mundo ideal é provado pela necessidade de justificar os
valores, o dever ser, de que este nosso mundo imperfeito participa e a
que aspira.
Visto
serem as ideias conceitos personalizados, transferidos da ordem lógica à
ontológica, terão consequentemente as características dos próprios
conceitos: transcenderão a experiência, serão universais, imutáveis.
Além disso, as ideias terão aquela mesma ordem lógica dos conceitos, que
se obtém mediante a divisão e a classificação, isto é, são ordenadas em
sistema hierárquico, estando no vértice a ideia do Bem, que é papel da
dialética (lógica real, ontológica) esclarecer. Como a multiplicidade
dos indivíduos é unificada nas ideias respectivas, assim a
multiplicidade das ideias é unificada na ideia do Bem. Logo, a ideia do
Bem, no sistema platônico, é a realidade suprema, donde dependem todas
as demais ideias, e todos os valores (éticos, lógicos e estéticos) que
se manifestam no mundo sensível; é o ser sem o qual não se explica o
vir-a-ser. Portanto, deveria representar o verdadeiro Deus platônico. No
entanto, para ser verdadeiramente tal, falta-lhe a personalidade e a
atividade criadora. Desta personalidade e atividade criadora - ou,
melhor, ordenadora - é, pelo contrário, dotado o Demiurgo o qual, embora
superior à matéria, é inferior às ideias, de cujo modelo se serve para
ordenar a matéria e transformar o caos em cosmos.
As Almas
A
alma, assim como o Demiurgo, desempenha papel de mediador entre as
ideias e a matéria, à qual comunica o movimento e a vida, a ordem e a
harmonia, em dependência de uma ação do Demiurgo sobre a alma. Assim,
deveria ser, tanto no homem como nos outros seres, porquanto Platão é um
pampsiquista, quer dizer, anima toda a realidade. Ele, todavia, dá à
alma humana um lugar e um tratamento à parte, de superioridade, em vista
dos seus impelentes interesses morais e ascéticos, religiosos e
místicos. Assim é que considera ele a alma humana como um ser eterno
(coeterno às ideias, ao Demiurgo e à matéria), de natureza espiritual,
inteligível, caído no mundo material como que por uma espécie de queda
original, de um mal radical. Deve portanto, a alma humana, libertar-se
do corpo, como de um cárcere; esta libertação, durante a vida terrena,
começa e progride mediante a filosofia, que é separação espiritual da
alma do corpo, e se realiza com a morte, separando-se, então, na
realidade, a alma do corpo.
A
faculdade principal, essencial da alma é a de conhecer o mundo ideal,
transcendental: contemplação em que se realiza a natureza humana, e da
qual depende totalmente a ação moral. Entretanto, sendo que a alma
racional é, de fato, unida a um corpo, dotado de atividade sensitiva e
vegetativa, deve existir um princípio de uma e outra. Segundo Platão,
tais funções seriam desempenhadas por outras duas almas - ou partes da
alma: a irascível (ímpeto), que residiria no peito, e a concupiscível
(apetite), que residiria no abdome - assim como a alma racional
residiria na cabeça. Naturalmente a alma sensitiva e a vegetativa são
subordinadas à alma racional.
Logo,
segundo Platão, a união da alma espiritual com o corpo é extrínseca,
até violenta. A alma não encontra no corpo o seu complemento, o seu
instrumento adequado. Mas a alma está no corpo como num cárcere, o
intelecto é impedido pelo sentido da visão das ideias, que devem ser
trabalhosamente relembradas. E diga-se o mesmo da vontade a respeito das
tendências. E, apenas mediante uma disciplina ascética do corpo, que o
mortifica inteiramente, e mediante a morte libertadora, que desvencilha
para sempre a alma do corpo, o homem realiza a sua verdadeira natureza: a
contemplação intuitiva do mundo ideal.
O Mundo
O
mundo material, o cosmos platônico, resulta da síntese de dois
princípios opostos, as ideias e a matéria. O Demiurgo plasma o caos da
matéria no modelo das ideias eternas, introduzindo no caos a alma,
princípio de movimento e de ordem. O mundo, pois, está entre o ser
(ideia) e o não-ser (matéria), e é o devir ordenado, como o adequado
conhecimento sensível está entre o saber e o não-saber, e é a opinião
verdadeira. Conforme a cosmologia pampsiquista platônica, haveria, antes
de tudo, uma alma do mundo e, depois, partes da alma, dependentes e
inferiores, a saber, as almas dos astros, dos homens, etc.
O
dualismo dos elementos constitutivos do mundo material resulta do ser e
do não-ser, da ordem e da desordem, do bem e do mal, que aparecem no
mundo. Da ideia - ser, verdade, bondade, beleza - depende tudo quanto há
de positivo, de racional no vir-a-ser da experiência. Da matéria -
indeterminada, informe, mutável, irracional, passiva, espacial -
depende, ao contrário, tudo que há de negativo na experiência.
Consoante
a astronomia platônica, o mundo, o universo sensível, são esféricos. A
terra está no centro, em forma de esfera e, ao redor, os astros, as
estrelas e os planetas, cravados em esferas ou anéis rodantes,
transparentes, explicando-se deste modo o movimento circular deles.
No
seu conjunto, o mundo físico percorre uma grande evolução, um ciclo de
dez mil anos, não no sentido do progresso, mas no da decadência,
terminados os quais, chegado o grande ano do mundo, tudo recomeça de
novo. É a clássica concepção grega do eterno retorno, conexa ao clássico
dualismo grego, que domina também a grande concepção platônica.
Moral
Segundo
a psicologia platônica, a natureza do homem é racional, e, por
consequência, na razão realiza o homem a sua humanidade: a ação racional
realiza o sumo bem, que é, ao mesmo tempo, felicidade e virtude.
Entretanto, esta natureza racional do homem encontra no corpo não um
instrumento, mas um obstáculo - que Platão explica mediante um dualismo
filosófico-religioso de alma e de corpo: o intelecto encontra um
obstáculo nos sentidos, a vontade no impulso, e assim por diante. Então a
realização da natureza humana não consiste em uma disciplina racional
da sensibilidade, mas na sua final supressão, na separação da alma do
corpo, na morte. Agir moralmente é agir racionalmente, e agir
racionalmente é filosofar, e filosofar é suprimir o sensível, morrer aos
sentidos, ao corpo, ao mundo, para o espírito, o inteligível, a ideia.
Em
todo caso, visto que a alma humana racional se acha, de fato, neste
mundo, unida ao corpo e aos sentidos, deve principiar a sua vida moral
sujeitando o corpo ao espírito, para impedir que o primeiro seja
obstáculo ao segundo, à espera de que a morte solte definitivamente a
alma dos laços corpóreos. Noutras palavras, para que se realize a
sabedoria, a contemplação, a filosofia, a virtude suma, a única virtude
verdadeiramente humana e racional, é necessário que a alma racional
domine, antes de tudo, a alma concupiscível, derivando daí a virtude da
temperança, e domine também a alma irascível, donde a virtude da
fortaleza. Tal harmônica distribuição de atividade na alma conforme a
razão constituiria, pois, a justiça, virtude fundamental, segundo
Platão, juntamente com a sapiência, embora a esta naturalmente inferior.
Temos, destarte, uma classificação, uma dedução das famosas quatro
virtudes naturais, chamadas depois cardeais - prudência, fortaleza,
temperança, justiça - sobre a base da metafísica platônica da alma.
Quanto
ao destino das almas depois da morte, eis o pensamento de Platão: em
geral, o destino da alma depende da sua filosofia, da razão; em
especial, depende da religião, dos mistérios órfico-dionisíacos. Em
geral, distingue ele três categorias de alma:
1. As que cometeram pecados inexpiáveis, condenadas eternamente;
2. As que cometeram pecados expiáveis;
3.
As que viveram conforme à justiça. As almas destas últimas duas
categorias nascem de novo, encarnam-se de novo, para receber a pena ou o
prêmio merecidos. Segundo o pensamento que lemos no Fédon, seria mister
acrescentar uma quarta categoria de almas, as dos filósofos, videntes
de ideias, libertados da vida temporal para sempre.
A Política
Os escritos em que Platão trata especificamente do problema da política, são a República, o Político e as Leis. Na República, a obra fundamental de Platão sobre o assunto, traça o seu estado ideal, o reino do espírito, da razão, dos filósofos, em chocante contraste com os estados e a política deste mundo.
Qual
é, pois, a justificação da sociedade e do estado? Platão acha-a na
própria natureza humana, porquanto cada homem precisa do auxílio
material e moral dos outros. Desta variedade de necessidades humanas
origina-se a divisão do trabalho e, por consequência, a distinção em
classes, em castas, que representam um desenvolvimento social e uma
sistematização estável da divisão do trabalho no âmbito de um estado. A
essência do estado seria então, não uma sociedade de indivíduos
semelhantes e iguais, mas dessemelhantes e desiguais. Tal especificação e
concretização da divisão do trabalho seria representada pela
instituição da escravidão; tal instituição, consoante Platão, é
necessária porquanto os trabalhos materiais, servis, são incompatíveis
com a condição de um homem livre em geral.
Segundo
Platão, o estado ideal deveria ser dividido em classes sociais. Três
são, pois, estas classes: a dos filósofos, a dos guerreiros, a dos
produtores, as quais, no organismo do estado, corresponderiam
respectivamente às almas racional, irascível e concupiscível no
organismo humano. À classe dos filósofos cabe dirigir a república. Com
efeito, contemplam eles o mundo das ideias, conhecem a realidade das
coisas, a ordem ideal do mundo e, por conseguinte, a ordem da sociedade
humana, e estão, portanto, à altura de orientar racionalmente o homem e a
sociedade para o fim verdadeiro. Tal atividade política constitui um
dever para o filósofo, não, porém, o fim supremo, pois este fim supremo é
unicamente a contemplação das ideias.
À
classe dos guerreiros cabe a defesa interna e externa do estado, de
conformidade com a ordem estabelecida pelos filósofos, dos quais e
juntamente com os quais, os guerreiros receberam a educação. Os
guerreiros representam a força a serviço do direito, representado pelos
filósofos.
À
classe dos produtores, enfim, - agricultores e artesãos - submetida às
duas precedentes, cabe a conservação econômica do estado, e,
consequentemente, também das outras duas classes, inteiramente entregues
à conservação moral e física do estado. Na hierarquia das classes, a
dos trabalhadores ocupa o ínfimo lugar, pelo desprezo com que era
considerado por Platão - e pelos gregos em geral - o trabalho material.
Na
concepção ideal, espiritual, ética, ascética do estado platônico, pode
causar impressão, à primeira vista, o comunismo dos bens, das mulheres e
dos filhos, que Platão propugna para as classes superiores. Entretanto,
Platão foi levado a esta concepção política - tornada depois sinônimo
de imanentismo, materialismo, ateísmo - não certamente por estes
motivos, mas pela grande importância e função moral por ele atribuída ao
estado, como veículo dos valores transcendentais da Ideia. Tinha ele
compreendido bem que os interesses particulares, privados, econômicos e,
especialmente, domésticos, estão efetivamente em contraste com os
interesses coletivos, sociais, estatais, sendo estes naturalmente
superiores àqueles - eticamente considerados. E não hesita em sacrificar
totalmente os interesses inferiores aos superiores, a riqueza, a
família, o indivíduo ao estado, porquanto representa precisamente -
consoante seu pensamento - um altíssimo valor moral terreno,
político-religioso, como única e total expressão da eticidade
transcendente.
Se
a natureza do estado é, essencialmente, a de organismo
ético-transcendente, a sua finalidade primordial é
pedagógico-espiritual; a educação deve, por isso, estar substancialmente
nas mãos do estado. O estado deve, então, promover, antes de tudo, o
bem espiritual dos cidadãos, educá-los para a virtude, e ocupar-se com o
seu bem estar material apenas secundária e instrumentalmente. Platão
tende a desvalorizar a grandeza militar e comercial, a dominação e a
riqueza, idolatrando a grandeza moral. O grande, o verdadeiro político
não é - diz Platão - o homem prático e empírico, mas o sábio, o
pensador; não realiza tanto as obras exteriores, mas, sobretudo, se
preocupa com espiritualizar os homens. Desta maneira é concebido o
estado educador de homens virtuosos, segundo as virtudes que se referem a
cada classe, respectivamente. Esta educação é dispensada essencialmente
às classes superiores - especialmente aos filósofos, a quem cabem as
virtudes mais elevadas, e, portanto, a direção da república. Ao
contrário, o estado em nada se interessa - ao menos positivamente - pelo
povo, pelo vulgo, pela plebe, cuja formação é inteiramente material e
subordinada, consistindo sua virtude apenas na obediência, visto a alma
concupiscível estar sujeita à alma racional.
A
educação das classes superiores importa, fundamentalmente, música e
ginástica. A música - abrangendo também a poesia, a história, etc., e,
em geral, todas as atividades presididas pelas Musas - é, todavia,
cultivada apenas para fins práticos e morais. Deveria ela equilibrar,
com a sua natureza gentil e civilizadora, a ação oposta, fortificadora,
da ginástica. Platão reconhece a importância da ginástica, mas não passa
de uma importância instrumental e parcial, pois o prevalecer da cultura
física do corpo torna os homens grosseiros e materiais. Daí a sua
aversão ao culto idolátrico dos exercícios físicos, que foi um dos
indícios da decadência grega.
A Religião e a Arte
A ideia do Bem seria o centro da religião platônica. Seu culto essencial é representado pela ciência e, portanto, pela virtude que deriva necessariamente da ciência. Ao lado, e subordinadas a esta espécie de Deus supremo, estão as demais ideias, denominadas por Platão, deuses eternos. Entretanto, este absoluto - o Bem e as ideias - embora transcendente, espiritual e ético, não pode tornar-se objeto de religião, nem sequer da religião assim chamada natural, dada a sua impersonalidade e inatividade a respeito do mundo.
Quanto
à avaliação da religião positiva, Platão hostiliza o antromorfismo, até
querer banidos de seu estado ideal os poetas, inclusive Homero, pelos
mitos fantásticos e imorais, narrados em torno dos deuses e dos heróis.
Apesar de repelir os deuses da mitologia popular e poética, aceita
francamente o politeísmo. É um politeísmo estranho, cujas divindades são
os astros e o cosmo, animados e racionais, os assim chamados deuses
visíveis, subordinados ao Demiurgo, bem como à ideia do Bem e às outras
ide
ias. Platão pode, pois, conservar - reformada e purificada - a religião helênica, como religião do seu estado ideal.
ias. Platão pode, pois, conservar - reformada e purificada - a religião helênica, como religião do seu estado ideal.
As
doutrinas estéticas de Platão são algo oscilantes entre uma valorização
e uma desvalorização da arte. Em todo caso, no conjunto do seu
pensamento, em oposição ao seu gênio e ao gênio artístico grego,
prevalece a desvalorização por dois motivos, teorético um, prático
outro. O motivo teorético é que a arte resultaria como cópia de uma
cópia: cópia do mundo empírico, que é já uma cópia do mundo ideal; cópia
não de essências, como a ciência, mas de fenômenos. Por consequência, a
arte deveria ser, gnosiologicamente, inferior à ciência. O motivo
prático é que a arte - dada esta sua inferior natureza teorética, impura
fonte gnosiológica - torna-se outro tanto danosa no campo moral.
Atuando cegamente sobre o sentimento, a arte nos atrai para o
verdadeiro, como para o falso, para o bem como para o mal.
Seja
como for, encontramos em Platão uma tentativa de valorização da arte em
si, sendo considerada a arte como uma espécie de loucura divina, de
mania, semelhante à religião e ao amor, ou seja, uma espécie de
revelação superior. A arte, pois - como o amor, que tem por objeto a
Beleza eterna e os graus que levam até ela - deveria ser um itinerário
especial do espírito para o Absoluto e o inteligível, algo como que uma
filosofia, porquanto deveria atingir intuitivamente, encarnada em formas
sensíveis, aquele mesmo ideal inteligível que a filosofia atinge
abstratamente, na sua pureza lógica, conceptual.
A Academia
A
escola filosófica fundada por Platão, a Academia, sobreviveu-lhe por
quase um milênio, até o VI século d.C. Costuma-se dividi-la -
cronologicamente e logicamente - em antiga, média e nova. A antiga
academia dura até o ano de 260 a.C., mais ou menos, isto é, quase um
século. É governada por discípulos, reitores, sucessores de Platão. A
ela pertencem homens insignes e de grande doutrina. Vai-se acentuando a
importância da experiência, segundo os interesses do último Platão, como
também uma tendência para uma sempre maior sistematização do pensamento
platônico, provavelmente também pela influência de Aristóteles.
Segue-se
na média academia, que toma uma orientação cética, sobretudo graças a
Carnéades (213-128 a.C.). Finalmente, a nova academia volta ao antigo
dogmatismo e, depois, orienta-se para o ecletismo, prevalecendo
simpatias pitagóricas. Chegamos assim ao princípio da era vulgar. No
entanto, a academia platônica sobreviverá ainda e tomará uma última
forma e feição com o neoplatonismo. É este o último esforço grandioso do
pensamento grego para resolver o problema filosófico, desenvolvendo o
dualismo no panteísmo emanatista, e valorizando o elemento religioso
positivo, que Platão já tinha valorizado no mito.
Para Entender Platão
Platão,
nascido em 428 a.C., é o primeiro grande filósofo da tradição ocidental
a deixar uma obra escrita considerável. Todavia, a obra de Platão só
pode ser entendida em função de outros pensamentos, anteriores e
contemporâneos - de saída, o pensamento de seu mestre Sócrates, como
também o pensamento dos filósofos anteriores, precisamente denominados
pré-socráticos.
Tratemos,
inicialmente, de evocar Pitágoras de Samos, que viveu no século V antes
de nossa era e que sabemos ter sido um ilustre matemático. Na
realidade, sua matemática desemboca numa metafísica, já que Pitágoras
acredita que os números são o princípio e a chave de todo o universo;
assim como a natureza do som é função do comprimento da corda que vibra,
as aparências coloridas do universo, infinitamente diversas, dissimulam
relações numéricas que constituem o fundo das coisas: ideia capital,
que não só reencontramos em Platão, mas que está na origem da ciência
moderna. Pitágoras (que teria inventado a palavra filosofia, amor à
sabedoria), também é um místico, fundador de sociedades iniciáticas que
visam à salvação de seus membros. A doutrina pitagórica da salvação está
muito próxima dos mistérios do orfismo. Os pitagóricos acreditam na
metempsicose. A alma, como punição de faltas passadas, torna-se
prisioneira de um corpo (soma = sema; corpo = túmulo). A encarnação é
tão somente um encarceramento provisório para a alma. A morte anuncia o
renascimento num outro corpo até que a alma, simultaneamente purificada
pela virtude e pela prática de ritos iniciáticos, mereça ser finalmente
libertada de toda materialização.
Muitas
outras doutrinas dessa época tentam explicar o mundo. Empédocles vê na
matéria quatro elementos (terra, água, ar e fogo), enquanto o ódio que
dissocia e o amor que unifica seriam os princípios motores do universo.
Anaxágoras, que foi professor de Péricles, acha que os elementos
constitutivos do mundo são ordenados por uma Inteligência cósmica, o
Nous.
Duas
doutrinas se opõem radicalmente entre si. Para Heráclito de Éfeso, tudo
muda infinitivamente. "Planta rei", tudo flui: a morte sucede à vida, a
noite ao dia, a vigília ao sono. "Não nos banhamos duas vezes no mesmo
rio". O fluxo que faz do universo uma torrente é constantemente
produzido e destruído por um Fogo cósmico, segundo um ritmo regular. A
esta filosofia da mobilidade universal se opõem Parmênides e seu
discípulo Zenão de Eléia: para eles, a mobilidade não passa de uma
ilusão que engana nossos sentidos; o real é o Ser único, imóvel, eterno.
"O Ser é, o não-ser não é"; o não-ser é a mudança (mudar é deixar de
ser o que se é para ser o que não se é). Demócrito tenta conciliar as
duas doutrinas por intermédio de sua filosofia de átomos, elementos
eternos, cujas combinações mutáveis são infinitas.
Diremos
uma palavra sobre os sofistas, cujo ceticismo é engendrado pela
multiplicidade de doutrinas contraditórias, pelo abuso da retórica (um
orador hábil pode demonstrar o que quiser) e, de um modo geral, pelo
incremento do individualismo e decadência dos costumes após Péricles.
Um
dos mais célebres, Protágoras de Abdera, dizia, segundo o testemunho de
Platão, que "o homem é a medida de todas as coisas". Em outras
palavras: não existe verdade absoluta, mas tão somente opiniões
relativas ao homem (este vinho, delicioso para o amador, é amargo para o
enfermo).
Platão,
no entanto, só reencontra a filosofia a partir de preocupações de
caráter político. É um jovem aristocrata que une aos seus dons
intelectuais e físicos (duas vezes coroado nos jogos atléticos
nacionais, é belo e vigoroso: apelidam-no "Platão" em virtude de seus
ombros largos), o nascimento mais prestigioso: sua mãe descendia de
Sólon, seus ancestrais paternos, do último rei de Atenas. Estava
destinado, portanto, a uma brilhante carreira política. Mas Atenas, que
por ocasião do nascimento de Platão se encontra no apogeu - com
inigualável poder marítimo - , esboroa-se na época em que Platão atinge a
idade adulta. Platão tinha quatro anos quando começaram as guerras do
Peloponeso e trinta e um quando eles terminaram, com a capitulação de
Atenas. A destruição da frota, a peste, o arrasamento dos famosos muros
(uniam a cidade ao Pireu) pelos esparciatas vencedores, assinalam a
importância da catástrofe. Platão vai sonhar com a reconstrução de uma
cidade, mas uma cidade cuja potência é antes moral e espiritual do que
material, uma cidade que seja a encarnação da Justiça.
Para
compreender isto, recordemos o acontecimento fundamental da juventude
de Platão, seu encontro com Sócrates. Sócrates tem sessenta e três anos
quando, em 407, Platão a ele se une. Alain falou a propósito desse
"choque dos contrários": Platão, aristocrata jovem e belo, torna-se
discípulo de um cidadão de origem modesta, velho e muito feio (seus
olhos salientes e seu nariz achatado são célebres). E isto é
significativo e simbólico. A verdade e a justiça (das quais Sócrates
será o símbolo) não possuem bom aspecto, pertencem a um mundo que não o
das aparências. Na Atenas vencida, o jovem Platão é convocado por
parentes e amigos a participar do governo autoritário dos Trinta; ele se
retrai, porém, e constata que os Trinta acumulam injustiças e
violências. Devemos agora, portanto, caracterizar os grandes traços da
filosofia de Sócrates:
1.
Sócrates não pretende, como Empédocles ou Heráclito, elaborar uma
cosmologia; segundo ele, deve-se deixar aos deuses o cuidado de se
ocupar com o universo; devemos nos interessar, de preferência, por
aquilo que nos concerne diretamente. "Conhece-te a ti mesmo". Esta
máxima gravada no frontão do templo de Delfos, é a palavra-chave do
humanismo socrático.
2.
Sócrates, todavia, não pretende ensinar coisa alguma sobre a natureza
humana; não quer nos comunicar um saber que não possuiríamos. Ajuda-nos
tão somente a refletir, isto é, a tomar consciência dos nossos próprios
pensamentos, dos problemas que eles colocam. Muitas vezes, ele se
comparava à sua mãe, que era parteira. Nada ensinava e limitava-se a
partejar os espíritos, ajudá-los a trazer à luz o que já trazem em si
mesmos. Tal é a maiêutica socrática.
3.
Ao mesmo tempo que convida o interlocutor a tomar consciência de seu
próprio pensamento, Sócrates fá-lo compreender que, na verdade, ignora o
que acreditava saber. Tal é a ironia, que, ao pé da letra, significa a
arte de interrogar. Sócrates, de fato, faz perguntas e sempre dá a
impressão de buscar uma lição no interlocutor. Aborda com humildade
fingida os sofistas inflados de falso-saber. E as perguntas feitas por
Sócrates levam o interlocutor a descobrir as contradições de seus
pensamentos e a profundidade de sua ignorância.
4.
Na realidade, se Sócrates é o primeiro a reconhecer sua própria
ignorância, ele funda todas as suas esperanças na verdade tão somente.
Seu método é, antes de tudo, um esforço de definição. Por exemplo:
partindo dos aspectos os mais diversos da justiça, ele procura
depreender o conceito de justiça, a ideia geral que contém os caracteres
constitutivos da justiça. Sócrates possui tal confiança no saber e na
verdade que está firmemente persuadido que os injustos e os maus não
passam de ignorantes. Se conhecessem verdadeiramente a justiça, eles a
praticariam, pois ninguém é "maus voluntariamente". Segundo sua
perspectiva racionalista, só há salvação pelo saber. O verdadeiro ponto
de partida da filosofia de Platão é a morte de Sócrates em 399 a.C.
Acontecimento político: é o partido popular, de novo no poder, que, por
iniciativa de um certo Anytos (filho de um rico empreiteiro e antigo
amigo dos Trinta, aos quais traiu para assumir a liderança do outro
partido), condena Sócrates a beber a cicuta como corruptor da juventude e
adversário dos deuses da cidade. Condenação injusta e escandalosa que
exprime uma incompatibilidade trágica entre o poder político e a
sabedoria do filósofo. Daí as resoluções que Platão nos apresenta na
sétima carta. "Reconheço que todos os Estados atuais, sem exceção, são
mal governados... É somente pela filosofia que se pode discernir todas
as formas de justiça política e individual". Talvez a solução seja a
evasão do filósofo que "foge daqui debaixo" para se refugiar na
meditação pura (tal é o filósofo cujo retrato nos é traçado no Teeteto;
filósofo puramente contemplativo que nem sabe onde se reúne o Conselho e
cujo corpo está apenas presente na Cidade). Mas uma outra solução seria
o próprio filósofo encarregar-se do governo da cidade (a Justiça
reinará, diz Platão, no dia em que os filósofos forem reis ou no dia em
que os reis forem filósofos).
Tal
é o sonho que Platão tentaria realizar em Siracusa. Encontrara aí um
discípulo estusiasta na pessoa de Dion, cunhado do novo tirano, Dionísio
I. Este último, todavia, não se revelou muito adequado para se tornar o
rei filósofo que Platão quisera fazer dele. Dionísio I prendeu Platão
e, na ilha de Egina, fê-lo expor no mercado de escravos para ser
vendido. Resgatado por Anikeris de Cítera por vinte minas, Platão
retornou a Atenas.
É
então que ele funda, aos quarenta anos, uma escola de filosofia à
portas da cidade, perto de Colona, nos jardins de Academos. Devemos
representar a Academia como uma espécie de Universidade onde se ensina
matemáticas (não entra aqui quem não for geômetra), filosofia e a arte
de governar as cidades segundo a justiça. O ensino esotérico (isto é,
secreto, reservado aos iniciados) dado por Platão a seus discípulos só
nos é conhecido atualmente pelas críticas de Aristóteles; restam-nos,
porém, a obra escrita de Platão, seus diálogos célebres tais como o
Górgias, o Fedro, o Fédon, o Banquete, a República, o Teeteto, o
Sofista, o Político, o Parmênides, o Timeu, as Leis. Esses trabalhos
esotéricos de Platão constituem a mais pura joia da filosofia de todos
os tempos. Platão morre em 348 a.C.
Se
quiséssemos resumir a filosofia de Platão em uma palavra, poderíamos
dizer que ela é fundamentalmente um dualismo. Platão, de certo modo,
reconcilia Parmênides e Heráclito ao admitir a existência de dois
mundos: o mundo das ideias imutáveis, eternas, e o mundo das aparências
sensíveis, perpetuamente mutáveis. Acrescenta-se que o mundo das Ideias
é, no fundo, o único mundo verdadeiro. Platão concede ao mundo sensível
uma certa realidade, mas ele só existe porque participa do mundo das
ideias do qual é uma cópia ou, mais exatamente, uma sombra. Um belo
efebo, por exemplo, só é belo porque participa da Beleza em si.
Podemos mostrar de duas maneiras que a intuição fundamental de Platão se prende ao ensinamento de Sócrates:
a)
Recordemos o ensinamento socrático sobre a definição, sobre o conceito;
para que haja, por exemplo, como Sócrates o estabeleceu, uma definição
do homem em geral, uma essência universal do homem, é preciso que exista
algo além dos homens particulares e diferentes entre si que nós
reconhecemos, um outro mundo onde exista o Homem em si, a Justiça em si,
isto é, as Ideias. Em suma, Platão dá realidade ao conceito socrático. A
ideia platônica é uma promoção ontológica do conceito socrático.
b)
Mas é sobretudo a vida e a morte de Sócrates que suscitam o idealismo
platônico. Como diz muito bem André Bonnard, a cidade que condena
Sócrates à morte, a cidade que vê triunfar a injustiça e a mentira é "um
mundo ao inverso, um mundo de pernas para o ar". Desse modo, o
idealismo platônico "traz a marca de um grave traumatismo. A morte de
Sócrates feriu-o mortalmente. É no mundo invisível que a justiça e a
verdade triunfam". E Sócrates, pela tranqüilidade quase contente de sua
morte, atesta a existência desse mundo invisível, mostra que, para ele,
as Ideias contam mais que a vida.
Os
temas principais do platonismo podem ligar-se à distinção entre o mundo
das Ideias eternas e o mundo das aparências mutáveis. A ascensão
dialética, por exemplo, é o itinerário pelo qual nos levamos do mundo
sensível ao mundo das Ideias: no mais baixo grau, as simples impressões
sensíveis (eikasia), um pouco mais acima, as opiniões estabelecidas
(pistis), em seguida, o pensamento discursivo (dianoia) que constrói o
raciocínio partindo de figuras, como fazem os geômetras, e, finalmente,
no mais alto grau, o pensamento intuitivo, a iluminação direta pela
Idéia (noesis).
A
teoria platônica da alma está ligada à doutrina das Ideias. As almas
outrora contemplaram às Ideias à vontade. Depois, por punição de alguma
falta, segundo a doutrina órfico-pitagórica, elas foram aprisionadas no
corpo. Todavia, elas continuam capazes de reminiscência, uma vez que
guardaram uma lembrança obscura que, no entanto, pode ser redespertada
de seu antigo contato com as Ideias. Assim, o jovem escravo que Sócrates
interroga no Mênon descobre propriedades geométricas quase sem ajuda.
Platão pensa igualmente que a emoção amorosa, a emoção que rebata a alma
diante da Beleza - de todas as ideias a mais fácil de reconhecer - é o
meio de uma conversão dialética: o amor por um belo corpo, em seguida
pelos belos corpos, depois pelas belas almas e pelas belas virtudes
conduz à redescoberta do Belo em si (leia-se o Banquete).
À
doutrina das Ideias também se correlaciona a esperança da imortalidade
da alma, "esse belo risco a ser corrido". Uma vez que a alma é feita
para as Ideias - visto que sua união com o corpo é acidental e
monstruosa - por que não seria eterna como as Ideias que ela tem por
vocação contemplar?
Do
mesmo modo, uma vez que as Ideias constituem absolutos referenciais -
não o homem, mas Deus é que é a medida de todas as coisas, objeta Platão
a Protágoras - é preciso renunciar do oportunismo e à imoralidade dos
sofistas. Platão sustenta contra Cálicles (no Górgias), contra Trasímaco
e Gláucon (na República) o valor absoluto da Ideia de justiça. A
justiça é a hierarquia harmônica das três partes da alma - a
sensibilidade, a vontade e o espírito. Ela também se encontra em cada
uma das virtudes particulares: a temperança nada mais é que uma
sensibilidade regulamentada segundo a justiça; a coragem é a justiça da
vontade e a sabedoria é a justiça do espírito.
A
justiça política é uma harmonia semelhante à justiça do indivíduo, mas
"escritas em caracteres mais fortes" na escala do Estado... A política
de Platão distingue, à imagem de todas as sociedades indo-européias
primitivas, três classes sociais: os artesãos dos quais a Justiça exige a
temperança, os militares nos quais a Justiça será coragem, os chefes
cuja Justiça é, antes de tudo, Sabedoria e que são filósofos longamente
instruídos. Entre todas as formas de governo, Platão prefere a
aristocracia e, nele, é preciso tomar a palavra em seu sentido
etimológico: governo dos melhores.
Finalmente, podemos ligar à distinção dos dois mundos algumas observações sobre o mito platônico:
a)
O mito, procedimento pedagógico paradoxal, traduz uma espécie de
narração poética legendária, isto é, numa linguagem de imagens uma
verdade filosófica estranha ao mundo sensível! É o mundo das Ideias
eternas transposto em imagens sensíveis, sugerido pelo mundo das
imagens!
b)
O mito é o único meio de exposição para os problemas de origem
(acontecimentos sem testemunhos) e dos fins últimos (que ainda não
existem!), pois a inteligência abstrata só compreende o eterno e não
pode bastar para evocar o que pertence à história.
c) O mito indica que o pensamento filosófico vem se abeberar nas fontes das crenças religiosas tradicionais.
d)
Finalmente, o mito ressalta as relações que, segundo Platão, existem
entre a poesia e a verdade. A poesia mítica é uma mensagem metafísica, o
belo não é senão o "esplendor do verdadeiro" e a arte está em segundo
lugar em relação à filosofia.
ARISTÓTELES
A Vida e as Obras
Este
grande filósofo grego, filho de Nicômaco, médico de Amintas, rei da
Macedônia, nasceu em Estagira, colônia grega da Trácia, no litoral
setentrional do mar Egeu, em 384 a.C. Aos dezoito anos, em 367, foi para
Atenas e ingressou na academia platônica, onde ficou por vinte anos,
até à morte do Mestre. Nesse período estudou também os filósofos
pré-platônicos, que lhe foram úteis na construção do seu grande sistema.
Em
343 foi convidado pelo Rei Filipe para a corte de Macedônia, como
preceptor do Príncipe Alexandre, então jovem de treze anos. Aí ficou
três anos, até à famosa expedição asiática, conseguindo um êxito na sua
missão educativo-política, que Platão não conseguiu, por certo, em
Siracusa. De volta a Atenas, em 335, treze anos depois da morte de
Platão, Aristóteles fundava, perto do templo de Apolo Lício, a sua
escola. Daí o nome de Liceu dado à sua escola, também chamada
peripatética devido ao costume de dar lições, em amena palestra,
passeando nos umbrosos caminhos do ginásio de Apolo. Esta escola seria a
grande rival e a verdadeira herdeira da velha e gloriosa academia
platônica. Morto Alexandre em 323, desfez-se politicamente o seu grande
império e despertaram-se em Atenas os desejos de independência,
estourando uma reação nacional, chefiada por Demóstenes. Aristóteles,
malvisto pelos atenienses, foi acusado de ateísmo. Preveniu ele a
condenação, retirando-se voluntariamente para Eubéia, Aristóteles
faleceu, após enfermidade, no ano seguinte, no verão de 322. Tinha pouco
mais de 60 anos de idade. A respeito docaráter de Aristóteles,
inteiramente recolhido na elaboração crítica do seu sistema filosófico,
sem se deixar distrair por motivos práticos ou sentimentais, temos
naturalmente muito menos a revelar do que em torno do caráter de Platão,
em que, ao contrário, os motivos políticos, éticos, estéticos e
místicos tiveram grande influência. Do diferente caráter dos dois
filósofos, dependem também as vicissitudes exteriores das duas vidas,
mais uniforme e linear a de Aristóteles, variada e romanesca a de
Platão. Aristóteles foi essencialmente um homem de cultura, de estudo,
de pesquisas, de pensamento, que se foi isolando da vida prática, social
e política, para se dedicar à investigação científica. A atividade
literária de Aristóteles foi vasta e intensa, como a sua cultura e seu
gênio universal. "Assimilou Aristóteles escreve magistralmente Leonel
Franca todos os conhecimentos anteriores e acrescentou-lhes o trabalho
próprio, fruto de muita observação e de profundas meditações. Escreveu
sobre todas as ciências, constituindo algumas desde os primeiros
fundamentos, organizando outras em corpo coerente de doutrinas e sobre
todas espalhando as luzes de sua admirável inteligência. Não lhe faltou
nenhum dos dotes e requisitos que constituem o verdadeiro filósofo:
profundidade e firmeza de inteligência, agudeza de penetração, vigor de
raciocínio, poder admirável de síntese, faculdade de criação e invenção
aliados a uma vasta erudição histórica e universalidade de conhecimentos
científicos. O grande estagirita explorou o mundo do pensamento em
todas as suas direções. Pelo elenco dos principais escritos que dele
ainda nos restam, poder-se-á avaliar a sua prodigiosa atividade
literária". A primeira edição completa das obras de Aristóteles é a de
Andronico de Rodes pela metade do último século a.C. substancialmente
autêntica, salvo uns apócrifos e umas interpolações. Aqui classificamos
as obras doutrinais de Aristóteles do modo seguinte, tendo presente a
edição de Andronico de Rodes.
I.
Escritos lógicos: cujo conjunto foi denominado Órganon mais tarde, não
por Aristóteles. O nome, entretanto, corresponde muito bem à intenção do
autor, que considerava a lógica instrumento da ciência.
II.
Escritos sobre a física: abrangendo a hodierna cosmologia e a
antropologia, e pertencentes à filosofia teorética, juntamente com a
metafísica.
III.
Escritos metafísicos: a Metafísica famosa, em catorze livros. É uma
compilação feita depois da morte de Aristóteles mediante seus
apontamentos manuscritos, referentes à metafísica geral e à teologia. O
nome de metafísica é devido ao lugar que ela ocupa na coleção de
Andrônico, que a colocou depois da física.
IV.
Escritos morais e políticos: a Ética a Nicômaco, em dez livros,
provavelmente publicada por Nicômaco, seu filho, ao qual é dedicada; a
Ética a Eudemo, inacabada, refazimento da ética de Aristóteles, devido a
Eudemo; a Grande Ética, compêndio das duas precedentes, em especial da
segunda; a Política, em oito livros, incompleta.
V.
Escritos retóricos e poéticos: a Retórica, em três livros; a Poética,
em dois livros, que, no seu estado atual, é apenas uma parte da obra de
Aristóteles. As obras de Aristóteles as doutrinas que nos restam -
manifestam um grande rigor científico, sem enfeites míticos ou poéticos,
exposição e expressão breve e aguda, clara e ordenada, perfeição
maravilhosa da terminologia filosófica, de que foi ele o criador.
O Pensamento: A Gnosiologia
Segundo
Aristóteles, a filosofia é essencialmente teorética: deve decifrar o
enigma do universo, em face do qual a atitude inicial do espírito é o
assombro do mistério. O seu problema fundamental é o problema do ser,
não o problema da vida. O objeto próprio da filosofia, em que está a
solução do seu problema, são as essências imutáveis e a razão última das
coisas, isto é, o universal e o necessário, as formas e suas relações.
Entretanto, as formas são imanentes na experiência, nos indivíduos, de
que constituem a essência. A filosofia aristotélica é, portanto,
conceptual como a de Platão mas parte da experiência; é dedutiva, mas o
ponto de partida da dedução é tirado - mediante o intelecto da
experiência. A filosofia, pois, segundo Aristóteles, dividir-se-ia em
teorética, prática e poética, abrangendo, destarte, todo o saber humano,
racional. A teorética, por sua vez, divide-se emfísica, matemática e
filosofia primeira(metafísica e teologia); a filosofia prática divide-se
eméticae política; a poética em estética e técnica. Aristóteles é o
criador da lógica, como ciência especial, sobre a base
socrático-platônica; é denominada por ele analítica e representa a
metodologia científica. Trata Aristóteles os problemas lógicos e
gnosiológicos no conjunto daqueles escritos que tomaram mais tarde o
nome de Órganon. Limitar-nos-emos mais especialmente aos problemas
gerais da lógica de Aristóteles, porque aí está a suagnosiologia. Foi
dito que, em geral, a ciência, a filosofia - conforme Aristóteles, bem
como segundo Platão - tem como objeto o universal e o necessário; pois
não pode haver ciência em torno do individual e do contingente,
conhecidos sensivelmente. Sob o ponto de vista metafísico, o objeto da
ciência aristotélica é aforma, como ideia era o objeto da ciência
platônica. A ciência platônica e aristotélica são, portanto, ambas
objetivas, realistas: tudo que se pode aprender precede a sensação e é
independente dela. No sentido estrito, a filosofia aristotélica é
dedução do particular pelo universal, explicação do condicionado
mediante a condição, porquanto o primeiro elemento depende do segundo.
Também aqui se segue a ordem da realidade, onde o fenômeno particular
depende da lei universal e o efeito da causa. Objeto essencial da lógica
aristotélica é precisamente este processo de derivação ideal, que
corresponde a uma derivação real. A lógica aristotélica, portanto, bem
como a platônica, é essencialmente dedutiva, demonstrativa, apodíctica. O
seu processo característico, clássico, é o silogismo. Os elementos
primeiros, os princípios supremos, as verdades evidentes, consoante
Platão, são fruto de uma visão imediata, intuição intelectual, em
relação com a sua doutrina do contato imediato da alma com as ideias -
reminiscência. Segundo Aristóteles, entretanto, de cujo sistema é banida
toda forma de inatismo, também os elementos primeiros do conhecimento -
conceito e juízos - devem ser, de um modo e de outro, tirados da
experiência, da representação sensível, cuja verdade imediata ele
defende, porquanto os sentidos por si nunca nos enganam. O erro começa
de uma falsa elaboração dos dados dos sentidos: a sensação, como o
conceito, é sempre verdadeira. Por certo, metafisicamente,
ontologicamente, o universal, o necessário, o inteligível, é anterior ao
particular, ao contigente, ao sensível: mas, gnosiologicamente,
psicologicamente existe primeiro o particular, o contingente, o sensível,
que constituem precisamente o objeto próprio do nosso conhecimento
sensível, que é o nosso primeiro conhecimento. Assim sendo,
compreende-se que Aristóteles, ao lado e em consequência da doutrina de
dedução, seja constrangido a elaborar, na lógica, uma doutrina da
indução. Por certo, ela não está efetivamente acabada, mas pode-se
integrar logicamente segundo o espírito profundo da sua filosofia.
Quanto aos elementos primeiros do conhecimento racional, a saber, os
conceitos, a coisa parece simples: a indução nada mais é que a abstração
do conceito, do inteligível, da representação sensível, isto é, a
"desindividualização" do universal do particular, em que o universal é
imanente. A formação do conceito é, a posteriori, tirada da experiência.
Quanto ao juízo, entretanto, em que unicamente temos ou não temos a
verdade, e que é o elemento constitutivo da ciência, a coisa parece mais
complicada. Como é que se formam os princípios da demonstração, os
juízos imediatamente evidentes, donde temos a ciência? Aristóteles
reconhece que é impossível uma indução completa, isto é, uma resenha de
todos os casos os fenômenos particulares para poder tirar com certeza
absoluta leis universais abrangendo todas as essências. Então só resta
possível uma indução incompleta, mas certíssima, no sentido de que os
elementos do juízo os conceitos são tirados da experiência, a
posteriori, seu nexo, porém, é a priori, analítico, colhido
imediatamente pelo intelecto humano mediante a sua evidência,
necessidade objetiva.
Filosofia de Aristóteles
Partindo
como Platão do mesmo problema acerca do valor objetivo dos conceitos,
mas abandonando a solução do mestre, Aristóteles constrói um sistema
inteiramente original. Os caracteres desta grande síntese são:
1.
Observação fiel da natureza - Platão, idealista, rejeitara a
experiência como fonte de conhecimento certo. Aristóteles, mais
positivo, toma sempre o fato como ponto de partida de suas teorias,
buscando na realidade um apoio sólido às suas mais elevadas especulações
metafísicas.
2.
Rigor no método - Depois de estudas as leis do pensamento, o processo
dedutivo e indutivo aplica-os, com rara habilidade, em todas as suas
obras, substituindo à linguagem imaginosa e figurada de Platão, em
estilo lapidar e conciso e criando uma terminologia filosófica de
precisão admirável. Pode considerar-se como o autor da metodologia e
tecnologia científicas. Geralmente, no estudo de uma questão,
Aristóteles procede por partes:
a) começa a definir-lhe o objeto;
b)passa a enumerar-lhes as soluções históricas;
c)propõe depois as dúvidas;
d) indica, em seguida, a própria solução;
e) refuta, por último, as sentenças contrárias.
a) começa a definir-lhe o objeto;
b)passa a enumerar-lhes as soluções históricas;
c)propõe depois as dúvidas;
d) indica, em seguida, a própria solução;
e) refuta, por último, as sentenças contrárias.
3.
Unidade do conjunto - Sua vasta obra filosófica constitui um verdadeiro
sistema, uma verdadeira síntese. Todas as partes se compõem, se
correspondem, se confirmam.
A Teologia
Objeto
próprio da teologia é o primeiro motor imóvel, ato puro, o pensamento
do pensamento, isto é, Deus, a quem Aristóteles chega através de uma
sólida demonstração, baseada sobre a imediata experiência, indiscutível,
realidade do vir-a-ser, da passagem da potência ao ato. Este vir-a-ser,
passagem da potência ao ato, requer finalmente um não-vir-a-ser, motor
imóvel, um motor já em ato, um ato puro enfim, pois, de outra forma
teria que ser movido por sua vez. A necessidade deste primeiro motor
imóvel não é absolutamente excluída pela eternidade do vir-a-ser, do
movimento, do mundo. Com efeito, mesmo admitindo que o mundo seja
eterno, isto é, que não tem princípio e fim no tempo, enquanto é
vir-a-ser, passagem da potência ao ato, fica eternamente inexplicável,
contraditório, sem um primeiro motor imóvel, origem extra-temporal,
causa absoluta, razão metafísica de todo devir. Deus, o real puro, é
aquilo que move sem ser movido; a matéria, o possível puro, é aquilo que
é movido, sem se mover a si mesmo.
Da
análise do conceito de Deus, concebido como primeiro motor imóvel,
conquistado através do precedente raciocínio, Aristóteles, pode deduzir
logicamente a natureza essencial de Deus, concebido, antes de tudo, como
ato puro, e, consequentemente, como pensamento de si mesmo. Deus é
unicamente pensamento, atividade teorética, no dizer de Aristóteles,
enquanto qualquer outra atividade teria fim extrínseco, incompatível com
o ser perfeito, auto-suficiente. Se o agir, o querer têm objeto diverso
do sujeito agente e "querente", Deus não pode agir e querer, mas
unicamente conhecer e pensar, conhecer a si próprio e pensar em si
mesmo. Deus é, portanto, pensamento de pensamento, pensamento de si, que
é pensamento puro. E nesta autocontemplação imutável e ativa, está a
beatitude divina.
Se
Deus é mera atividade teorética, tendo como objeto unicamente a própria
perfeição, não conhece o mundo imperfeito, e menos ainda opera sobre
ele. Deus não atua sobre o mundo, voltando-se para ele, com o pensamento
e a vontade; mas unicamente como o fim último, atraente, isto é, como
causa final, e, por consequência, e só assim, como causa eficiente e
formal (exemplar). De Deus depende a ordem, a vida, a racionalidade do
mundo; ele, porém, não é criador, nem providência do mundo. Em
Aristóteles o pensamento grego conquista logicamente a transcendência de
Deus; mas, no mesmo tempo, permanece o dualismo, que vem anular aquele
mesmo Absoluto a que logicamente chegara, para dar uma explicação
filosófica da relatividade do mundo pondo ao seu lado esta realidade
independente dele.
A Moral
Aristóteles
trata da moral em três Éticas, de que se falou quando das obras dele.
Consoante sua doutrina metafísica fundamental, todo ser tende
necessariamente à realização da sua natureza, à atualização plena da sua
forma: e nisto está o seu fim, o seu bem, a sua felicidade, e, por
consequência, a sua lei. Visto ser a razão a essência característica do
homem, realiza ele a sua natureza vivendo racionalmente e senso disto
consciente. E assim consegue ele a felicidade e a virtude, isto é,
consegue a felicidade mediante a virtude, que é precisamente uma
atividade conforme à razão, isto é, uma atividade que pressupõe o
conhecimento racional. Logo, o fim do homem é a felicidade, a que é
necessária à virtude, e a esta é necessária a razão. A característica
fundamental da moral aristotélica é, portanto, o racionalismo, visto ser
a virtude ação consciente segundo a razão, que exige o conhecimento
absoluto, metafísico, da natureza e do universo, natureza segundo a qual
e na qual o homem deve operar.
As
virtudes éticas, morais, não são mera atividade racional, como as
virtudes intelectuais, teoréticas; mas implicam, por natureza, um
elemento sentimental, afetivo, passional, que deve ser governado pela
razão, e não pode, todavia, ser completamente resolvido na razão. A
razão aristotélica governa, domina as paixões, não as aniquila e
destrói, como queria o ascetismo platônico. A virtude ética não é, pois,
razão pura, mas uma aplicação da razão; não é unicamente ciência, mas
uma ação com ciência.
Uma
doutrina aristotélica a respeito da virtude doutrina que teve muita
doutrina prática, popular, embora se apresente especulativamente assaz
discutível é aquela pela qual a virtude é precisamente concebida como um
justo meio entre dois extremos, isto é, entre duas paixões opostas:
porquanto o sentido poderia esmagar a razão ou não lhe dar forças
suficientes. Naturalmente, este justo meio, na ação de um homem, não é
abstrato, igual para todos e sempre; mas concreto, relativo a cada qual,
e variável conforme as circunstâncias, as diversas paixões
predominantes dos vários indivíduos.
Pelo
que diz respeito à virtude, tem, ao contrário, certamente, maior valor
uma outra doutrina aristotélica: precisamente a da virtude concebida
como hábito racional. Se a virtude é, fundamentalmente, uma atividade
segundo a razão, mais precisamente é ela um hábito segundo a razão, um
costume moral, uma disposição constante, reta, da vontade, isto é, a
virtude não é inata, como não é inata a ciência; mas adquiri-se mediante
a ação, a prática, o exercício e, uma vez adquirida, estabiliza-se,
mecaniza-se; torna-se quase uma segunda natureza e, logo, torna-se de
fácil execução - como o vício.
Como
já foi mencionado, Aristóteles distingue duas categorias fundamentais
de virtudes: as éticas, que constituem propriamente o objeto da moral, e
as dianoéticas, que a transcendem. É uma distinção e uma hierarquia,
que têm uma importância essencial em relação a toda a filosofia e
especialmente à moral. As virtudes intelectuais, teoréticas,
contemplativas, são superiores às virtudes éticas, práticas, ativas.
Noutras palavras, Aristóteles sustenta o primado do conhecimento, do
intelecto, da filosofia, sobre a ação, a vontade, a política.
A Política
A
política aristotélica é essencialmente unida à moral, porque o fim
último do estado é a virtude, isto é, a formação moral dos cidadãos e o
conjunto dos meios necessários para isso. O estado é um organismo moral,
condição e complemento da atividade moral individual, e fundamento
primeiro da suprema atividade contemplativa. A política, contudo, é
distinta da moral, porquanto esta tem como objetivo o indivíduo, aquela a
coletividade. A ética é a doutrina moral individual, a política é a
doutrina moral social. Desta ciência trata Aristóteles precisamente na
Política, de que acima se falou.
O
estado, então, é superior ao indivíduo, porquanto a coletividade é
superior ao indivíduo, o bem comum superior ao bem particular.
Unicamente no estado efetua-se a satisfação de todas as necessidades,
pois o homem, sendo naturalmente animal social, político, não pode
realizar a sua perfeição sem a sociedade do estado.
Visto
que o estado se compõe de uma comunidade de famílias, assim como estas
se compõem de muitos indivíduos, antes de tratar propriamente do estado
será mister falar da família, que precede cronologicamente o estado,
como as partes precedem o todo. Segundo Aristóteles, a família compõe-se
de quatro elementos: os filhos, a mulher, os bens, os escravos; além,
naturalmente, do chefe a que pertence a direção da família. Deve ele
guiar os filhos e as mulheres, em razão da imperfeição destes. Deve
fazer frutificar seus bens, porquanto a família, além de um fim
educativo, tem também um fim econômico. E, como ao estado, é-lhe
essencial a propriedade, pois os homens têm necessidades materiais. No
entanto, para que a propriedade seja produtora, são necessários
instrumentos inanimados e animados; estes últimos seriam os escravos.
Aristóteles
não nega a natureza humana ao escravo; mas constata que na sociedade
são necessários também os trabalhos materiais, que exigem indivíduos
particulares, a que fica assim tirada fatalmente a possibilidade de
providenciar a cultura da alma, visto ser necessário, para tanto, tempo e
liberdade, bem como aptas qualidades espirituais, excluídas pelas
próprias características qualidades materiais de tais indivíduos. Daí a
escravidão.
Vejamos,
agora, o estado em particular. O estado surge, pelo fato de ser o homem
um animal naturalmente social, político. O estado provê, inicialmente, a
satisfação daquelas necessidades materiais, negativas e positivas,
defesa e segurança, conservação e engrandecimento, de outro modo
irrealizáveis. Mas o seu fim essencial é espiritual, isto é, deve
promover a virtude e, consequentemente, a felicidade dos súditos
mediante a ciência.
Compreende-se,
então, como seja tarefa essencial do estado a educação, que deve
desenvolver harmônica e hierarquicamente todas as faculdades: antes de
tudo as espirituais, intelectuais e, subordinadamente, as materiais,
físicas. O fim da educação é formar homens mediante as artes liberais,
importantíssimas a poesia e a música, e não máquinas, mediante um
treinamento profissional. Eis porque Aristóteles, como Platão, condena o
estado que, ao invés de se preocupar com uma pacífica educação
científica e moral, visa a conquista e a guerra. E critica, dessa forma,
a educação militar de Esparta, que faz da guerra a tarefa precípua do
estado, e põe a conquista acima da virtude, enquanto a guerra, como o
trabalho, são apenas meios para a paz e o lazer sapiente.
Não
obstante a sua concepção ética do estado, Aristóteles, diversamente de
Platão, salva o direito privado, a propriedade particular e a família. O
comunismo como resolução total dos indivíduos e dos valores no estado é
fantástico e irrealizável. O estado não é uma unidade substancial, e
sim uma síntese de indivíduos substancialmente distintos. Se se quiser a
unidade absoluta, será mister reduzir o estado à família e a família ao
indivíduo; só este último possui aquela unidade substancial que falta
aos dois precedentes. Reconhece Aristóteles a divisão platônica das
castas, e, precisamente, duas classes reconhece: a dos homens livres,
possuidores, isto é, a dos cidadãos e a dos escravos, dos trabalhadores,
sem direitos políticos.
Quanto
à forma exterior do estado, Aristóteles distingue três principais: a
monarquia, que é o governo de um só, cujo caráter e valor estão na
unidade, e cuja degeneração é a tirania; a aristocracia, que é o governo
de poucos, cujo caráter e valor estão na qualidade, e cuja degeneração é
a oligarquia; a democracia, que é o governo de muitos, cujo caráter e
valor estão na liberdade, e cuja degeneração é a demagogia. As
preferências de Aristóteles vão para uma forma de república
democrático-intelectual, a forma de governo clássica da Grécia,
particularmente de Atenas. No entanto, com o seu profundo realismo,
reconhece Aristóteles que a melhor forma de governo não é abstrata, e
sim concreta: deve ser relativa, acomodada às situações históricas, às
circunstâncias de um determinado povo. De qualquer maneira a condição
indispensável para uma boa constituição, é que o fim da atividade
estatal deve ser o bem comum e não a vantagem de quem governa
despoticamente.
A Religião
Com
Aristóteles afirma-se o teísmo do ato puro. No entanto, este Deus, pelo
seu efetivo isolamento do mundo, que ele não conhece, não cria, não
governa, não está em condições de se tornar objeto de religião, mais do
que as transcendentes ideias platônicas. E não fica nenhum outro objeto
religioso. Também Aristóteles, como Platão, se exclui filosoficamente o
antropomorfismo, não exclui uma espécie de politeísmo, e admite, ao lado
do Ato Puro e a ele subordinado, os deuses astrais, isto é, admite que
os corpos celestes são animados por espíritos racionais. Entretanto,
esses seres divinos não parecem e não podem ter função religiosa e sem
física.
Não
obstante esta concepção filosófica da divindade, Aristóteles admite a
religião positiva do povo, até sem correção alguma. Explica e justifica a
religião positiva, tradicional, mítica, como obra política para
moralizar o povo, e como fruto da tendência humana para as
representações antropomórficas; e não diz que ela teria um fundamento
racional na verdade filosófica da existência da divindade, a que o homem
se teria facilmente elevado através do espetáculo da ordem celeste.
Aristóteles
como Platão considera a arte como imitação, de conformidade com o
fundamental realismo grego. Não, porém, imitação de uma imitação, como é
o fenômeno, o sensível, platônicos; e sim imitação direta da própria
ideia, do inteligível imanente no sensível, imitação da forma imanente
na matéria. Na arte, esse inteligível, universal é encarnado,
concretizado num sensível, num particular e, destarte, tornando
intuitivo, graças ao artista. Por isso, Aristóteles considera a arte a
poesia de Homero que tem por conteúdo o universal, o imutável, ainda que
encarnado fantasticamente num particular, como superior à história e
mais filosófica do que a história de Heródoto que tem como objeto o
particular, o mutável, seja embora real. O objeto da arte não é o que
aconteceu uma vez como é o caso da história , mas o que por natureza
deve, necessária e universalmente, acontecer. Deste seu conteúdo
inteligível, universal, depende a eficácia espiritual pedagógica,
purificadora da arte.
Se
bem que a arte seja imitação da realidade no seu elemento essencial, a
forma, o inteligível, este inteligível recebe como que uma nova vida
através da fantasia criadora do artista, isto precisamente porque o
inteligível, o universal, deve ser encarnado, concretizado pelo artista
num sensível, num particular. As leis da obra de arte serão, portanto,
além de imitação do universal verossimilhança e necessidade coerência
interior dos elementos da representação artística, íntimo sentimento do
conteúdo, evidência e vivacidade de expressão. A arte é, pois, produção
mediante a imitação; e a diferença entre as várias artes é estabelecida
com base no objeto ou no instrumento de tal imitação.
A Metafísica
A
metafísica aristotélica é "a ciência do ser como ser, ou dos princípios
e das causas do ser e de seus atributos essenciais". Ela abrange ainda o
ser imóvel e incorpóreo, princípio dos movimentos e das formas do
mundo, bem como o mundo mutável e material, mas em seus aspectos
universais e necessários. Exporemos portanto, antes de tudo, as questões
gerais da metafísica, para depois chegarmos àquela que foi chamada,
mais tarde, metafísica especial; tem esta como objeto o mundo que
vem-a-ser - natureza e homem - e culmina no que não pode vir-a-ser, isto
é, Deus. Podem-se reduzir fundamentalmente a quatro as questões gerais
da metafísica aristotélica: potência e ato, matéria e forma, particular e
universal, movido e motor. A primeira e a última abraçam todo o ser, a
segunda e a terceira todo o ser em que está presente a matéria.
I.
A doutrina da potência e do ato é fundamental na metafísica
aristotélica: potência significa possibilidade, capacidade de ser,
não-ser atual; e ato significa realidade, perfeição, ser efetivo. Todo
ser, que não seja o Ser perfeitíssimo, é portanto uma síntese - um
sínolo - de potência e de ato, em diversas proporções, conforme o grau
de perfeição, de realidade dos vários seres. Um ser desenvolve-se,
aperfeiçoa-se, passando da potência ao ato; esta passagem da potência ao
ato é atualização de uma possibilidade, de uma potencialidade anterior.
Esta doutrina fundamental da potência e do ato é aplicada - e
desenvolvida - por Aristóteles especialmente quando da doutrina da
matéria e da forma, que representam a potência e o ato no mundo, na
natureza em que vivemos. Desta doutrina da matéria e da forma, vamos
logo falar.
II.
Aristóteles não nega o vir-a-ser de Heráclito, nem o ser de Parmênides,
mas une-os em uma síntese conclusiva, já iniciada pelos últimos
pré-socráticos e grandemente aperfeiçoada por Demócrito e Platão.
Segundo Aristóteles, a mudança, que é intuitiva, pressupõe uma realidade
imutável, que é de duas espécies. Um substrato comum, elemento imutável
da mudança, em que a mudança se realiza; e as determinações que se
realizam neste substrato, a essência, a natureza que ele assume. O
primeiro elemento é chamado matéria (prima), o segundo forma
(substancial). O primeiro é potência, possibilidade de assumir várias
formas, imperfeição; o segundo é atualidade - realizadora,
especificadora da matéria - , perfeição. A síntese - o sinolo - da
matéria e da forma constitui a substância, e esta, por sua vez, é o
substrato imutável, em que se sucedem os acidentes, as qualidades
acidentais. A mudança, portanto, consiste ou na sucessão de várias
formas na mesma essência, forma concretizada da matéria, que constitui
precisamente a substância.
A
matéria sem forma, a pura matéria, chamada matéria-prima, é um mero
possível, não existe por si, é um absolutamente interminado, em que a
forma introduz as determinações. A matéria aristotélica, porém, não é o
puro não-ser de Platão, mero princípio de decadência, pois ela é também
condição indispensável para concretizar a forma, ingrediente necessário
para a existência da realidade material, causa concomitante de todos os
seres reais.
Então
não existe, propriamente, a forma sem a matéria, ainda que a forma seja
princípio de atuação e determinação da própria matéria. Com respeito à
matéria, a forma é, portanto, princípio de ordem e finalidade, racional,
inteligível. Diversamente da ideia platônica, a forma aristotélica não é
separada da matéria, e sim imanente e operante nela. Ao contrário, as
formas aristotélicas são universais, imutáveis, eternas, como as ideias
platônicas.
Os
elementos constitutivos da realidade são, portanto, a forma e a
matéria. A realidade, porém, é composta de indivíduos, substâncias, que
são uma síntese - umsínolo - de matéria e forma. Por consequência, estes
dois princípios não são suficientes para explicar o surgir dos
indivíduos e das substâncias que não podem ser atuados - bem como a
matéria não pode ser atuada - a não ser por um outro indivíduo, isto é,
por uma substância em ato. Daí a necessidade de um terceiro princípio, a
causa eficiente, para poder explicar a realidade efetiva das coisas. A
causa eficiente, por sua vez, deve operar para um fim, que é
precisamente a síntese da forma e da matéria, produzindo esta síntese o
indivíduo. Daí uma quarta causa, a causa final, que dirige a causa
eficiente para a atualização da matéria mediante a forma.
III.
Mediante a doutrina da matéria e da forma, Aristóteles explica o
indivíduo, a substância física, a única realidade efetiva no mundo, que é
precisamente síntese - sínolo - de matéria e de forma. A essência -
igual em todos os indivíduos de uma mesma espécie - deriva da forma; a
individualidade, pela qual toda substância é original e se diferencia de
todas as demais, depende da matéria. O indivíduo é, portanto, potência
realizada, matéria enformada, universal particularizado. Mediante esta
doutrina é explicado o problema do universal e do particular, que tanto
atormenta Platão; Aristóteles faz o primeiro - a ideia - imanente no
segundo - a matéria, depois de ter eficazmente criticado o dualismo
platônico, que fazia os dois elementos transcendentes e exteriores um ao
outro.
IV.
Da relação entre a potência e o ato, entre a matéria e a forma, surge o
movimento, a mudança, o vir-a-ser, a que é submetido tudo que tem
matéria, potência. A mudança é, portanto, a realização do possível. Esta
realização do possível, porém, pode ser levada a efeito unicamente por
um ser que já está em ato, que possui já o que a coisa movida deve
vir-a-ser, visto ser impossível que o menos produza o mais, o imperfeito
o perfeito, a potência o ato, mas vice-versa. Mesmo que um ser se mova a
si mesmo, aquilo que move deve ser diverso daquilo que é movido, deve
ser composto de um motor e de uma coisa movida. Por exemplo, a alma é
que move o corpo. O motor pode ser unicamente ato, forma; a coisa movida
- enquanto tal - pode ser unicamente potência, matéria. Eis a grande
doutrina aristotélica do motor e da coisa movida, doutrina que culmina
no motor primeiro, absolutamente imóvel, ato puro, isto é, Deus.
A Psicologia
Objeto
geral da psicologia aristotélica é o mundo animado, isto é, vivente,
que tem por princípio a alma e se distingue essencialmente do mundo
inorgânico, pois, o ser vivo diversamente do ser inorgânico possui
internamente o princípio da sua atividade, que é precisamente a alma,
forma do corpo. A característica essencial e diferencial da vida e da
planta, que tem por princípio a alma vegetativa, é a nutrição e a
reprodução. A característica da vida animal, que tem por princípio a
alma sensitiva, é precisamente a sensibilidade e a locomoção. Enfim, a
característica da vida do homem, que tem por princípio a alma racional, é
o pensamento. Todas estas três almas são objeto da psicologia
aristotélica. Aqui nos limitamos à psicologia racional, que tem por
objeto específico o homem, visto que a alma racional cumpre no homem
também as funções da vida sensitiva e vegetativa; e, em geral, o
princípio superior cumpre as funções do princípio inferior. De sorte
que, segundo Aristóteles diversamente de Platão todo ser vivo tem uma só
alma, ainda que haja nele funções diversas faculdades diversas
porquanto se dão atos diversos. E assim, conforme Aristóteles,
diversamente de Platão, o corpo humano não é obstáculo, mas instrumento
da alma racional, que é a forma do corpo.
O
homem é uma unidade substancial de alma e de corpo, em que a primeira
cumpre as funções de forma em relação à matéria, que é constituída pelo
segundo. O que caracteriza a alma humana é a racionalidade, a
inteligência, o pensamento, pelo que ela é espírito. Mas a alma humana
desempenha também as funções da alma sensitiva e vegetativa, sendo
superior a estas. Assim, a alma humana, sendo embora uma e única, tem
várias faculdades, funções, porquanto se manifesta efetivamente com atos
diversos. As faculdades fundamentais do espírito humano são duas:
teorética e prática, cognoscitiva e operativa, contemplativa e ativa.
Cada uma destas, pois, se desdobra em dois graus, sensitivo e
intelectivo, se se tiver presente que o homem é um animal racional, quer
dizer, não é um espírito puro, mas um espírito que anima um corpo
animal.
O
conhecimento sensível, a sensação, pressupões um fato físico, a saber, a
ação do objeto sensível sobre o órgão que sente, imediata ou à
distância, através do movimento de um meio. Mas o fato físico
transforma-se num fato psíquico, isto é, na sensação propriamente dita,
em virtude da específica faculdade e atividade sensitivas da alma. O
sentido recebe as qualidades materiais sem a matéria delas, como a cera
recebe a impressão do selo sem a sua matéria. A sensação embora limitada
é objetiva, sempre verdadeira com respeito ao próprio objeto; a
falsidade, ou a possibilidade da falsidade, começa com a síntese, com o
juízo. O sensível próprio é percebido por um só sentido, isto é, as
sensações específicas são percebidas, respectivamente, pelos vários
sentidos; o sensível comum, as qualidades gerais das coisas tamanho,
figura, repouso, movimento, etc. são percebidas por mais sentidos. O
senso comum é uma faculdade interna, tendo a função de coordenar,
unificar as várias sensações isoladas, que a ele confluem, e se tornam,
por isso, representações, percepções.
Acima
do conhecimento sensível está o conhecimento inteligível,
especificamente diverso do primeiro. Aristóteles aceita a essencial
distinção platônica entre sensação e pensamento, ainda que rejeite o
inatismo platônico, contrapondo-lhe a concepção do intelecto como tabula
rasa, sem ideias inatas. Objeto do sentido é o particular, o
contingente, o mutável, o material. Objeto do intelecto é o universal, o
necessário, o imutável, o imaterial, as essências, as formas das coisas
e os princípios primeiros do ser, o ser absoluto. Por consequência, a
alma humana, conhecendo o imaterial, deve ser espiritual e, quanto a
tal, deve ser imperecível.
Analogamente
às atividades teoréticas, duas são as atividades práticas da alma:
apetite e vontade. O apetite é a tendência guiada pelo conhecimento
sensível, e é próprio da alma animal. Esse apetite é concebido
precisamente como sendo um movimento finalista, dependente do
sentimento, que, por sua vez depende do conhecimento sensível. A vontade
é o impulso, o apetite guiado pela razão, e é própria da alma racional.
Como se vê, segundo Aristóteles, a atividade fundamental da alma é
teorética, cognoscitiva, e dessa depende a prática, ativa, no grau
sensível bem como no grau inteligível.
A Cosmologia
Uma
questão geral da física aristotélica, como filosofia da natureza, é a
análise dos vários tipos de movimento, mudança, que já sabemos ser
passagem da potência ao ato, realização de uma possibilidade.
Aristóteles distingue quatro espécies de movimentos:
1. Movimento substancial - mudança de forma, nascimento e morte;
2. Movimento qualitativo - mudança de propriedade;
3. Movimento quantitativo - acrescimento e diminuição;
4. Movimento espacial - mudança de lugar, condicionando todas as demais espécies de mudança.
Outra
especial e importantíssima questão da física aristotélica é a
concernente ao espaço e ao tempo, em torno dos quais fez ele
investigações profundas. O espaço é definido como sendo o limite do
corpo, isto é, o limite imóvel do corpo "circundante" com respeito ao
corpo circundado. O tempo é definido como sendo o número, isto é, a
medida do movimento segundo a razão, o aspecto, do "antes" e do
"depois". Admitidas as precedentes concepções de espaço e de tempo -
como sendo relações de substâncias, de fenômenos - é evidente que fora
do mundo não há espaço nem tempo: espaço e tempo vazios são impensáveis.
Uma
terceira questão fundamental da filosofia natural de Aristóteles é a
concernente ao teleologismo - finalismo - por ele propugnado com base na
finalidade, que ele descortina em a natureza. "A natureza faz, enquanto
possível, sempre o que é mais belo". Fim de todo devir é o
desenvolvimento da potência ao ato, a realização da forma na matéria.
Quanto
às ciências químicas, físicas e especialmente astronômicas, as
doutrinas aristotélicas têm apenas um valor histórico, e são logicamente
separáveis da sua filosofia, que tem um valor teorético. Especialmente
célebre é a sua doutrina astronômica geocêntrica, que prestará a
estrutura física à Divina Comédia de Dante Alighieri.
Juízo sobre Aristóteles
É
difícil aquilatar em sua justa medida o valor de Aristóteles. A
influência intelectual por ele até hoje exercida sobre o pensamento
humano e à qual se não pode comparar a de nenhum outro pensador dá-nos,
porém, uma ideia da envergadura de seu gênio excepcional. Criador da
lógica, autor do primeiro tratado de psicologia científica, primeiro
escritor da história da filosofia, patriarca das ciências naturais,
metafísico, moralista, político, ele é o verdadeiro fundador da ciência
moderna e "ainda hoje está presente com sua linguagem científica não
somente às nossas cogitações, senão também à expressão dos sentimentos e
das ideias na vida comum e habitual".
Nem
por isso podemos deixar de apontar as lacunas do seu sistema. Sua
moral, sem obrigação nem sanção, é defeituosa e mais gravemente
defeituosa ainda que a teodicéia, sobretudo na parte que trata das
relações de Deus com o mundo. O dualismo primitivo e irredutível entre
Deus, ato puro, e a matéria, princípio potencial, é, na própria teoria
aristotélica, uma verdadeira contradição e deixa subsistir, como enigma
insolúvel e inexplicável, a existência dos seres fora de Deus.
Vista Retrospectiva
Com
Sócrates entre a filosofia em seu caminho definitivo. O problema do
objeto e da possibilidade da ciência é posto em seus verdadeiros termos e
resolvido, nas suas linhas gerais, pela doutrina do conceito.Platão dá
um passo além, procurando determinar a relação entre o conceito e a
realidade, mas encalha, dum lado, nas dificuldades insolúveis de um
realismo exagerado; de outro, nas extravagâncias dum idealismo extremo.
Aristóteles, com o seu espírito positivo e observador, retoma o mesmo
problema no pé em que o pusera Platão e dá-lhe, pela teoria da abstração
e da inteligência ativa, uma solução satisfatória e definitiva nos
grandes lineamentos. Em torno desta questão fundamental, que entende com
a metafísica, a psicologia e a lógica, se vão desenvolvendo
harmoniosamente as outras partes da filosofia até constituírem em
Aristóteles esta grandiosa síntese do saber universal, o mais precioso
legado da civilização grega que declinava à civilização ocidental que
surgia.
O EPICURISMO – CETICISMO - ECLETISMO
Epicuro,
fundador da escola que tomou o seu nome, nasceu em Atenas,
provavelmente, em 341 a.C., do ateniense Néocles, e foi criado em Samos.
A mãe praticava a magia. Cedo dedicou-se à filosofia, sendo iniciado
por Nausífanes de Teo no sistema de Demócrito. Em 306 abriu a sua famosa
escola em Atenas, nos jardins da sua vila, que se tornaram centro das
reuniões aristocráticas dos seus admiradores, discípulos e amigos.
Epicuro expôs a sua doutrina num grande número de escritos, pela maior
parte perdidos. Faleceu em 270 a.C. com setenta anos de idade. O
epicurismo teve, desde logo, rápida e vasta difusão no mundo romano,
onde encontramos, sobretudo, Tito Lucrécio Caro - I século a.C. - o
poeta entusiasta, autor de De rerum natura, que venerava Epicuro como
uma divindade. A ele devemos as melhores notícias sobre o sistema
epicurista. A escola epicurista durou até o IV século d.C., mas teve
escasso desenvolvimento, conforme o desejo do mestre, que queria os
discípulos fiéis até a letra do sistema. A originalidade deveria
manifestar-se na vida.
Epicuro
foi pessoa fidalga e refinada, o ideal da fidalguia antiga: fazer da
formosura o princípio inspirador da vida, e fruir dessa formosura na
própria existência pessoal. E foi um mestre eficaz de sabedoria
aristocrática, feita de nobreza de sentimentos, senso refinado, gosto
para a formosura, para a cultura superior. Em seus jardins, num sereno
lazer, semelhante ao dos deuses, deu vida a uma sociedade genial, em que
dominava o vínculo da amizade. As amizades dos epicuristas ficaram
famosas como as dos pitagóricos. A associação espalhou-se depois, mas
conservou-se fortemente organizada, mediante uma estável constituição,
ajudas materiais, cartas, missões. O mestre pareceu aos discípulos como
que um redentor; a sua filosofia foi considerada como uma religião, a
sua doutrina, resumida em catecismos, a sua imagem, gravada nas jóias,
em sua honra celebravam-se festas comemorativas, mensais e anuais. Se
não houve pensadores epicuristas notáveis depois de Epicuro no mundo
clássico nem depois, houve todavia, em todos os tempos e lugares, homens
famosos, pertencentes a classes sociais elevadas, os quais aplicaram a
sua doutrina à vida e dela fizeram a substância de sua arte.
O Pensamento: Gnosiologia e Metafísica
Também
o epicurismo - como o estoicismo - divide a filosofia em lógica, física
e ética; também subordina a teoria à pratica, a ciência à moral, para
garantir ao homem o bem supremo, a serenidade, a paz, a apatia. A
filosofia é a arte da vida. Precisamente, é tarefa do conhecimento do
mundo, da física - diz Epicuro - libertar o homem dos grandes temores
que ele tem a respeito da sua vida, da morte, do além-túmulo, de Deus e
fazer com que ele atue de conformidade. Portanto, recorre Epicuro à
física atomista, mecanicista, democritiana, pela qual também os deuses
vêm a ser compostos de átomos, e - habitadores felizes de intermundos -
desinteressam-se por completo dos homens. Aliás, não é excluído o fato
de que a necessidade universal oprimiria o homem ainda mais do que o
arbítrio divino. Igualmente, a alma - formada de átomos sutis, mas
sempre materiais - perece com o corpo; daí, nenhuma preocupação com a
morte, nem com o além-túmulo: seria igualmente absurdo preocupar-se com
aquilo que se segue à morte, como com aquilo que precede o nascimento
A
gnosiologia (lógica, canônica) epicurista é rigorosamente sensista.
Todo o nosso conhecimento deriva da sensação, é uma complicação de
sensações. Estas nos dão o ser, indivíduo material, que constitui a
realidade originária. O processo cognoscitivo da sensação é explicado
mediante os assim chamados fantasmas, que seriam imagens em miniatura
das coisas, arrancar-se-iam destas e chegariam até à alma imediatamente,
ou mediatamente através dos sentidos. Dada tal gnosiologia
coerentemente sensista, é natural que o critério fundamental e único da
verdade seja a sensação, a percepção sensível, que é imediata,
intuitiva, evidente. Como a sensação, a evidência sensível é o único
critério de verdade no campo teorético, da mesma forma o sentimento
(prazer e dor) será o critério supremo de valor no campo prático.
Como
a gnosiologia epicurista é rigorosamente sensista, a metafísica
epicurista é rigorosamente materialista: quer dizer, resolve-se numa
física. Epicuro, seguindo as pegadas de Demócrito, concebe os elementos
últimos constitutivos da realidade como corpúsculos inúmeros, eternos,
imutáveis, invisíveis, homogêneos, indivisíveis (átomos), iguais
qualitativamente e diversos quantitativamente - no tamanho, na figura,
no peso. Também segundo Epicuro, os átomos estão no espaço vazio,
infinito, indispensável para que seja possível o movimento e,
consequentemente, a origem e a variedade das coisas. Os átomos são
animados de movimento necessário para baixo. Entretanto, no movimento
uniforme retilíneo para baixo introduz Epicuro desvios múltiplos, sem
causa, espontâneos (clinamen); daí derivam encontros e choques de átomos
e, por consequência, os vórtices e os mundos. Estes, de fato, não
teriam explicações se os átomos caíssem todos com movimentos uniforme e
retilíneos para baixo - como pensava Demócrito. Mediante o clinamen
Epicuro justifica ainda o livre arbítrio, que é uma simples combinação
da contingência, do indeterminismo universal. O universo não é concebido
como finito e uno, mas infinito e resultante de mundos inúmeros
divididos por intermundos, espalhado pelo espaço infindo, sujeitos ao
nascimento e à morte. Nesse mundo o homem, sem providência divina, sem
alma imortal, deve adaptar-se para viver como melhor puder. Nisto estão
toda a sabedoria, a virtude, a moral epicuristas.
A Moral e a Religião
A
moral epicurista é uma moral hedonista. O fim supremo da vida é o
prazer sensível; critério único de moralidade é o sentimento. O único
bem é o prazer, como o único mal é a dor; nenhum prazer deve ser
recusado, a não ser por causa de consequências dolorosas, e nenhum
sofrimento deve ser aceito, a não ser em vista de um prazer, ou de
nenhum sofrimento menor. No epicurismo não se trata, portanto, do prazer
imediato, como é desejado pelo homem vulgar; trata-se do prazer
imediato, refletido, avaliado pela razão, escolhido prudentemente,
sabiamente, filosoficamente. É mister dominar os prazeres, e não se
deixar por eles dominar; ter a faculdade de gozar e não a necessidade de
gozar. A filosofia toda está nesta função prática. Este prazer imediato
deveria ficar sempre essencialmente sensível, mesmo quando Epicuro fala
de prazeres espirituais, para os quais não há lugar no seu sistema, e
nada mais seriam que complicações de prazeres sensíveis. O prazer
espiritual diferenciar-se-ia do prazer sensível, porquanto o primeiro se
estenderia também ao passado e ao futuro e transcende o segundo, que é
unicamente presente. Verdade é que Epicuro mira os prazeres estéticos e
intelectuais, como os mais altos prazeres. Aqui, porém, se ele faz uma
afirmação profunda, está certamente em contradição com a sua metafísica
materialista.
Em
que consiste, afinal, esse prazer imediato, refletido, racionado? Na
satisfação de uma necessidade, na remoção do sofrimento, que nasce de
exigências não satisfeitas. O verdadeiro prazer não é positivo, mas
negativo, consistindo na ausência do sofrimento, na quietude, na apatia,
na insensibilidade, no sono, e na morte. Mas precisamente ainda,
Epicuro divide os desejos em naturais e necessários - por exemplo, o
instinto da reprodução; não naturais e não necessários - por exemplo, a
ambição. O sábio satisfaz os primeiros, quando for preciso, os quais
exigem muito pouco e cessam apenas satisfeito; renuncia os segundos,
porquanto acarretam fatalmente inquietação e agitação, perturbam a
serenidade e a paz; mas ainda renuncia os terceiros, pelos mesmos
motivos. Assim, a vida ideal do sábio, do filósofo, que aspira a
liberdade e à paz como bens supremos, consistiria na renúncia a todos os
desejos possíveis, aos prazeres positivos, físicos e espirituais; e,
por conseguinte, em vigiar-se, no precaver-se contra as surpresas
irracionais do sentimento, da emoção, da paixão. Não sofrer no corpo,
satisfazendo suas necessidades essenciais, para estar tranqüilo; não ser
perturbado no espírito, renunciando a todos os desejos possíveis, visto
ser o desejo inimigo do sossego: eis as condições fundamentais da
felicidade, que é precisamente liberdade e paz.
Em
realidade, Epicuro, se ensina a renúncia, não tem a coragem de ensinar a
renúncia aos prazeres positivos espirituais, estéticos e intelectuais, a
amizade genial, que representa o ideal supremo na concepção grega da
vida. E sustenta isto em contradição com a sua ascética radical, bem
como contradiz a sua metafísica materialista com a sua moral, que
encontra precisamente a mais perfeita realização nestes bens
espirituais. O mundo e a vida são um espetáculo: melhor é ser
espectadores e atores, melhor é conhecer do que agir. No entanto, o bem
espiritual não consiste unicamente na contemplação (cfr. a virtude
dianoética de Aristóteles), mas também na ação (cfr. a virtude ética de
Aristóteles), e precisamente em uma vida curta e refinada,
esteticamente, a maneira grega, no isolamento do mundo, do vulgo, na
unidade da amizade, na conversa arguta e delicada: numa palavra, vivendo
ocultamente. É de fato, nos jardins de Epicuro, a vida se inspirava nos
mais requintados costumes, preenchida com as mais nobres ocupações -
como na Academia e no Liceu. Almejava, no entanto, dar uma unidade
estética e racional à vida, mais do que ao mundo. O epicurismo,
portanto, considerado vulgarmente como propulsor de devassidão e
sensualidade, representa, inversamente, uma norma de vida ordinária e
espiritual, até um verdadeiro pessimismo e ascetismo, praticamente ateu.
A
serenidade do sábio não é perturbada pelo medo da morte, pois todo mal e
todo bem se acham na sensação, e a morte é a ausência de sensibilidade,
portanto, de sofrimento. Nunca nos encontraremos com a morte, porque
quando nós somos, ela não é, quando ela é nós não somos mais, Epicuro,
porém, não defende o suicídio que poderia justificar com maior razão do
que os estoicos.
Dado
este conceito da vida concebida como liberdade, paz e contemplação, é
natural que Epicuro seja hostil ao matrimônio e à família, aliás
geralmente desvalorizado no mundo grego. Epicuro é também hostil à
atividade pública, à política considerando a família e a pátria como
causas de agitações e inimigos da autarquia.
Não
obstante o seu materialismo teórico e o seu ateísmo prático, Epicuro
admite a divindade transcendente, diversamente do imanentismo estóico. A
prova da existência da divindade estaria no fato de que temos na mente
humana a sua ideia, que não pode ser senão cópia de realidade. Os
fantasmas dos deuses proviriam dos próprios deuses - como os fantasmas
de todas as outras coisas - desceriam até nós dos intermundos,
especialmente durante o sono. Os deuses de Epicuro são muitos,
constituídos de átomos etéreos, sutis e luzentes, dotados de corpos
luminosos, tendo forma humana belíssima, imortais - diversamente dos
deuses estoicos - beatos, contemplados - segundo ideal grego da vida -
sempre acordados e sentados em jovial convívio, sorvendo ambrósia,
conversando em grego! Mas - como as ideias transcendentes de Platão e
ato puro de Aristóteles - não atuam sobre o mundo e a humanidade, para
não serem contaminados, perturbados. Vivem, portanto, fora do mundo e
dos mundos, nos espaços entre mundo e mundo, na beata solidão dos
intermundos, escapando destarte a fatal destruição dos mundos. É uma
teologia refinada de ateniense e de artista, que vive no mundo de
estátuas divinas, encarnando na serenidade do mármore o ideal grego
contemplativo e estético da vida.
Epicuro
venera os deuses, não para receber auxílio, mas porque eles encarnam o
ideal estético grego da vida, ideal que tem uma expressão concreta
precisamente nas belas divindades do panteão helênico. Então, se os
deuses não proporcionam ao homem nenhuma vantagem prática,
proporcionam-lhe contudo o bem da elevação, que importa na contemplação
do ideal. É preciso venerá-los para imitá-los. Deste modo, Epicuro,
proclamado ateu, teria praticado - entre os limites impostos pelo
pensamento grego e pelo seu pensamento - o mal da religião, uma religião
desinteressada, uma espécie de puro amor de Deus dos ascetas e dos
místicos.
Ceticismo e Ecletismo
O
ceticismoapresenta-se mais coerente do que as escolas precedentes,
especialmente do que o estoicismo, com os fins práticos de uma filosofia
da renúncia, da indiferença, do sossego. É o ceticismo a última palavra
da sabedoria antiga, desesperada por não ter podido resolver o problema
da vida mediante a razão. O estoicismo procura realizar a apatia ainda
mediante uma metafísica positiva, embora imperfeita, incoerente. O
epicurismo tende a realizar o mesmo fim com uma metafísica negativa,
negando todo absoluto e transcendente. O ceticismo visa sempre um fim
último ético-ascético, sem qualquer metafísica, mesmo negativa.
Através
da mais absoluta indiferença, prática e teorética, procura-se realizar
finalmente tão almejada paz. A felicidade não é mais uma coisa positiva,
nem está no saber e não se pode alcançar mediante o saber, mas pode ser
alcançada unicamente negando o saber. Chega-se, destarte, à destruição
de todos os valores. Substancialmente, a grande metafísica
platônico-aristotélica é posta de lado, mas não é atacada pelo
ceticismo. Persiste nos céticos uma fé nostálgica e realista e o
conceito da objetividade da ciência: o ser, o objeto, existem, mas não
se podem conhecer por falta de meios. Diz Argesilau: "Deus unicamente
conhece a verdade, que é inacessível ao homem".
Pirro de Elis |
O
ecletismo apresenta-se como um sistema afim, embora imensamente
inferior ao ceticismo. Também o ecletismo, como o ceticismo, substitui
ao critério da verdade o da verossimilhança, embora acriticamente. O
nem-nem dos céticos é mudado em e-e pelos ecléticos; se nada é
verdadeiro, tudo vale igualmente. E isto basta aos fins ético-empíricos
dos ecléticos, semelhantes e diversos ao mesmo tempo dos fins
éticos-ascéticos dos céticos. É o ecletismo filosofia de espíritos
pragmáticos ou decadentes, não filosóficos, que concebem a filosofia
popularmente, moralisticamente, ou não têm a força da crítica, nem a da
afirmação, que implica sempre numa crítica, pois a filosofia é escolha,
construção, sistema, organismo especulativo, e não justaposição mecânica
de peças sem vida.
O
advento de uma semelhante filosofia foi favorecido pela permanência e
pela coexistência, no período helenista e depois ainda, de várias
escolas filosóficas, que surgiram em tempos diferentes, e por demais
despersonalizadas, esvaziadas do seu conteúdo original, característico -
como acontece nos períodos de decadência especulativa - de sorte que se
torna fácil a síntese eclética, feita de abstratas generalidades ou de
particularidades secundárias. O pragmatismo eclético foi, enfim,
favorecido pelo contato do pensamento grego com a romanidade dominante,
inteiramente voltada para a prática e para a ação, cuja grande obra,
portanto será não a filosofia, e sim o jus.
O
ecletismo apresenta-se como uma síntese prática ou, melhor ainda, como
uma suma de elementos estoicos, acadêmicos e também peripatéticos.
Contém muito menos elementos céticos e epicuristas, dada a natureza
crítica do ceticismo, e a coerência materialista do epicurismo. Temos
precisamente, em ordem cronológica, um ecletismo estóico, depois
acadêmico e, enfim, peripatético, segundo os elementos de uma ou de
outra escola na síntese prática do próprio ecletismo.
O Período Ético (ESTOICISMO)
Características Gerais
O
terceiro período do pensamento grego abrange os três séculos que
decorrem da morte de Aristóteles ao início da era vulgar. Na história da
civilização e da cultura, este período toma o nome de helenismo,
significando a expansão da cultura grega, helênica, no mundo civilizado;
na história da filosofia denomina-se período ético, porquanto o
interesse filosófico é voltado para os problemas morais. Primeiramente
(estoicismo e epicurismo), retorna-se à metafísica naturalista dos
pré-socráticos, bem como à moral das escolas socráticas menores, cínica e
cirenaica; depois (ceticismo e ecletismo), anula-se toda metafísica e,
consequentemente, toda moral, voltando-se para a sofística,
menosprezando o grande desenvolvimento filosófico
platônico-aristotélico.
Os
motivos desta filosofia pragmatista devem ser procurados na decadência
espiritual e moral da época, faltando ao homem interesse e a força para a
especulação pura, bem como na profunda tristeza dos tempos e na
profunda sensibilidade diante do mal. Tudo isto torna dolorosa a vida do
homem, que procura na filosofia um conforto, uma orientação moral,
encontrando-a na renúncia ao mundo e à própria vida. Do contingente e do
temporal, o homem volta-se para o transcendente e para o eterno; a
filosofia torna-se uma preparação para a morte, como julga Platão, e a
sabedoria é desapego da ação, como opina Aristóteles.
O
interesse teorético, o vigor especulativo, restringem-se ao particular,
à erudição e às ciências especiais que se desenvolvem, ao passo que a
metafísica esmorece. Não filosofia teorética, mas filologia, história,
literatura; ciências naturais, medicina, geografia, física, astronomia,
matemática. E, com relação às ciências especiais, desenvolve-se
naturalmente a técnica, como na idade moderna. A arte resolve-se no
virtuosismo e na imitação. Em conclusão, a cultura helenista reduz-se à
erudição e ao virtuosismo, ciência e técnica, filosofia moral e moral
prática. Nesta civilização cosmopolita encontram-se dois valores
universais: o pensamento e a arte dos gregos, isto é, o helenismo; o jus
e a política dos romanos. O primeiro valor dá o conteúdo, o segundo a
forma - Graecia capta ferum victorem cepit.
No
terceiro período do pensamento grego não se encontram mais alguns
poucos e grandes pensadores, como no precedente, mas vastas orientações e
escolas; não sistemas críticos, mas afirmações dogmáticas. Trataremos,
antes de tudo, da escola estoica, em que ainda há uma metafísica,
elementar, porém, e anacrônica, em contradição consigo mesma e com a
moral; em segundo lugar, da escola epicuréia, em que a metafísica tem
apenas uma função negativa, a saber, libertar o homem das preocupações
transcendentais, do temor de além-túmulo; em terceiro lugar, da escola
cética, em que não há mais metafísica alguma, e, portanto, nem moral,
como na escola eclética, em que a metafísica e moral são sincretistas,
e, por consequência, anuladas; enfim exporemos o pensamento latino, o
qual, pelo que diz respeito à filosofia, depende de cultura grega, e
precisamente desse terceiro período - ecletismo e estoicismo. A grandeza
verdadeira e original do pensamento latino é o jus, o direito romano,
valor universal como a filosofia grega.
O Estoicismo
Em
seu conjunto, o estoicismo pode-se dividir em três períodos: um período
antigo ou ético, um período médio ou eclético, um período recente ou
religioso. Os dois últimos, bastante divergentes do estoicismo clássico.
O
fundador da antiga escola estoica é Zenão de Citium (334-262 a.C., mais
ou menos). Seu pai, mercador, leva para ele, de Atenas, uns tratados
socráticos, que lhe despertam o entusiasmo para com os estudos
filosóficos. Aos vinte e dois anos vai para Atenas; aí - perdidos seus
bens - dedica-se à filosofia, frequentando por algum tempo várias
escolas e mestres, entre os quais o cínico Crates. Finalmente, pelo ano
300, funda a sua escola, que se chamou estoica, do lugar onde ele
costumava ensinar: pórtico em grego, stoá. Iniciou, juntamente com a
atividade didática, a de escritor. Em seus escritos já se encontram a
clássica divisão estoica da filosofia em lógica, física e ética, a
primazia da ética e a união de filosofia e vida.
A
escola estóica média ou eclética, surge pela influência de outras
escolas e para responder às objeções dessas escolas. Podem-se, pois,
agrupar na escola estóica nova ou religiosa os que entendiam
absolutamente a filosofia, o estoicismo, não como ciência, metafísica,
mas como uma missão e uma prática religiosa, sacerdotal.
O Pensamento: Gnosiologia e Metafísica
O
estoicismo não apresenta o fenômeno de um grande filósofo, seguido por
uma série de discípulos mais ou menos originais, mas sim uma turma
bastante uniforme de pensadores medíocres. No dizer dos estoicos, a
tarefa essencial da filosofia é a solução do problema da vida; em outras
palavras, a filosofia é cultivada exclusivamente em vista da moral,
para firmar a virtude e, logo, para assegurar ao homem a felicidade.
Entende-se, pois, como a filosofia estoica chega a ser substancialmente
pragmatista e, por conseguinte, no fundo, acaba não sendo mais
filosofia. E compreende-se o seu vasto êxito em todos os tempos, amiúde
apresentando-se como a filosofia dos não filósofos que têm pretensões
filosóficas, moralizadoras, rigoristas. Não obstante esse absorvente
moralismo, os estoicos distinguem na filosofia uma lógica, uma física,
uma ética. Na lógica trata-se da gnosiologia; a física iguala a
metafísica; a ética é o fim último e único de toda a filosofia,
inclusive da política e da religião.
Os
estoicos dividem a lógica em dialética e retórica, em correspondência
com o discurso interior e exterior. A mente humana é concebida como uma
tabula rasa. Como em Aristóteles, o conhecimento parte dos dados
imediatos do sentido; mas, diversamente de Aristóteles, o conhecimento é
limitado ao âmbito dos sentidos, não obstante as repetidas e múltiplas
declarações estoicas em louvor da razão. O conhecimento intelectual nada
mais pode ser que uma combinação, uma complicação quantitativa de
elementos sensíveis. O conceito, pois, é destruído, seguindo-se o
aniquilamento da ciência, da metafísica e, logo, também da moral.
A
metafísica estoica reduz-se à física, porquanto é radicalmente
materialista: se tudo é material, toda atividade é movimento, devem-se
conceber materialisticamente também Deus, a alma, as propriedades das
coisas. Esta matéria está em perpétuo vir-a-ser, conforme a concepção de
Heráclito; e a lei desse princípio material só pode ser, naturalmente,
uma necessidade mecânica, à maneira de Demócrito.
Devendo
os estoicos, todavia, fornecer alguma base à sua ética do dever, e dar
uma explicação à razão, que se manifesta no mundo, em especial no homem,
incoerentemente declaram racional o fogo - substância metafísica da
realidade -, atribuem-lhe arbitrariamente os atributos divinos da
sabedoria e da providência, imaginam-no como espírito ordenador, razão
da vida, fazendo emergir todas as qualidades da matéria, como o Sol faz
brotar da semente a planta, segundo uma ordem teológica. Deus,
providência, espírito, ordem são afirmados ao lado dos conceitos opostos
de fado, destino, necessidade, mecanicismo. Como se vê, a metafísica
dos estoicos é uma metafísica elementar, decadente, contraditória, e os
estóicos não são filósofos, metafísicos, mas pragmatistas, moralistas,
inteiramente absorvidos na prática, na ética.
A Moral e a Política
No
pensamento dos estoicos, o fim supremo, o único bem do homem, não é o
prazer, a felicidade, mas a virtude; não é concebida como necessária
condição para alcançar a felicidade, e sim como sendo ela própria um bem
imediato. Com o desenvolvimento do estoicismo, todavia, a virtude acaba
por se tornar meio para a felicidade da tranqüilidade, da serenidade,
que nasce da virtude negativa da apatia, da indiferença universal. A
felicidade do homem virtuoso é a libertação de toda perturbação, a
tranquilidade da alma, a independência interior, a autarquia.
Como
o bem absoluto e único é a virtude, assim o mal único e absoluto é o
vício. E não tanto pelo dano que pode acarretar ao vicioso, quanto pela
sua irracionalidade e desordem intrínseca, ainda que se acabe por
repudiá-lo como perturbador da indiferença, da serenidade, da autarquia
do sábio. Tudo aquilo que não é virtude nem vício, não é nem bem nem
mal, mas apenas indiferença; pode tornar-se bem se for unido com a
virtude, mal se for ligado ao vício; há o vício quando à indiferença se
ajunta a paixão, isto é, uma emoção, uma tendência irracional, como
geralmente acontece.
A
paixão, na filosofia estoica, é sempre e substancialmente má; pois é
movimento irracional, morbo e vício da alma - quer se trate de ódio,
quer se trate de piedade. De tal forma, a única atitude do sábio estóico
deve ser o aniquilamento da paixão, até a apatia. O ideal ético estoico
não é o domínio racional da paixão, mas a sua destruição total, para
dar lugar unicamente à razão: maravilhoso ideal de homem sem paixão, que
anda como um deus entre os homens. Daí a guerra justificada do
estoicismo contra o sentimento, a emoção, a paixão, donde derivam o
desejo, o vício, a dor, que devem ser aniquilados.
A virtude
estoica é, no fundo, a indiferença e a renúncia a todos os bens do
mundo que não dependem de nós, e cujo curso é fatalmente determinado.
Por conseguinte, indiferença e renúncia a tudo, salvo e pensamento, a
sabedoria, a virtude, que constituem os únicos bens verdadeiros:
indiferença e renúncia à vida e à morte, à saúde e à doença, ao repouso e
à fadiga, à riqueza e à pobreza, às honras e à obscuridade, numa
palavra, ao prazer e ao sofrimento - pois o prazer é julgado insana
vaidade da alma. Dada a indiferença estóica do suicídio como voluntário e
moral afastamento do mundo; isto não se concilia, porém, com a virtude
da fortaleza que o estoicismo reconhece e louva, e nem se pode explicar
racionalmente o suicídio, se a ordem do universo é racional, como
precisamente afirmam os estoicos.
O
estóico pratica esta indiferença e renúncia para não ser perturbado,
magoado pela possível e frequente carência dos bens terrenos, e para não
perder, de tal maneira, a serenidade, a paz, o sossego, que são o
verdadeiro, supremo, único bem da alma. O sábio é beato, porque,
inteiramente fechado na sua torre de marfim, nada lhe acontece que não
seja por ele querido, e se conforma com o demais, sem saudades e sem
esperanças; pois sabe que tudo é efeito de um determinismo universal. A
serenidade, a apatia dos estoicos seria, sem dúvida, fruto de uma
fatigosa conquista, de uma dura virtude. Mas é uma virtude absolutamente
negativa. Com efeito, quando o homem se torna indiferente a tudo, e a
tudo renuncia, salvo o seu pensamento - cujo conteúdo é, em definitivo,
esta mesma renúncia -, não lhe resta efetivamente mais nada. Não Deus,
pois no sistema estoico, é uma pura palavra; não a alma, destinada a
resolver-se na matéria. A sabedoria estoica é ação negadora da expansão
das forças espirituais, virtude corrosiva, morte moral.
Pelo
que diz respeito à política, manifesta-se na filosofia estoica um
racionalismo cosmopolita radical a propósito da sociedade estatal: o
homem, político por natureza, torna-se cosmopolita por natureza. Diz o
estoico Musônio: "O mundo é a pátria comum de todos os homens". Tal
cosmopolitismo foi fecundo em progresso, em civilização humana e moral.
Abre-se caminho a um sentimento de caridade, de perdão, até para os
infelizes e os escravos, os estrangeiros e os inimigos, em virtude da
doutrina que afirma a identidade da natureza humana, sentimento este
inteiramente desconhecido ao mundo antigo, clássico, onde campeia
solitária uma justiça, que existe, porém, apenas para os concidadãos,
livres e íntegros. E até começam a nascer instituições caritativas para
com os pobres e os doentes. Destarte, esse cosmopolitismo, a que os
estoicos não podem fornecer uma base racional e metafísica, promove
todavia os conceitos de sociedade universal, de direito natural, de lei
racional, conceitos que deveriam ser deduzidos da natureza racional do
homem.
FILOSOFIA – MEDIEVAL
Características Gerais do Neoplatonismo
O
neoplatonismo afirma certa transcendência de Deus, em que este é
imaginado como o supra inteligível. Por isso, é inefável e pode ser
atingido na sua plenitude unicamente mediante o êxtase, que é uma
fulguração divina, superior à filosofia. Com esta doutrina do êxtase, em
que é afirmada uma relação específica com a Divindade, parece abrir-se o
caminho para uma nova filosofia religiosa, para a valorização da
religião positiva. E outro caminho parece abrir-se na doutrina dos
intermediários, que estão entre Deus e o homem, e por Plotino distintos
em deuses invisíveis e visíveis, a que são assimiladas as divindades das
religiões tradicionais.
As Características Filosóficas do Cristianismo
Agostinho |
Pelo
que diz respeito ao teísmo, salientamos que o cristianismo o deve,
historicamente, a Israel. Mas entre os hebreus o teísmo não tem uma
justificação, uma demonstração racional, como, por exemplo, em
Aristóteles, de sorte que, em definitivo, o pensamento cristão tomará na
grande tradição especulativa grega esta justificação e a filosofia em
geral. Isto se realizará graças especialmente à Escolástica e,
sobretudo, a Tomás de Aquino. Pelo que diz respeito à solução do
problema do mal, solução que constitui a integração filosófica
proporcionada pelo cristianismo ao pensamento antigo - que sentiu
profundamente, dramaticamente, este problema sem o poder solucionar -
frisamos que essa representa a grande originalidade teórica e prática,
filosófica e moral, do cristianismo. Soluciona este o problema do mal
precisamente mediante os dogmas fundamentais do pecado original e da
redenção da cruz. Finalmente, a justificação da Revelação em geral, e a
determinação, dilucidação, sistematização racional do conteúdo da mesma,
têm uma importância indireta com respeito à filosofia, porquanto
implicam sempre numa intervenção da razão. Foi esta, especialmente, a
obra da Patrística e, sobretudo, de Agostinho.
Esta
parte, dedicada à história do pensamento cristão, será, portanto,
dividida do seguinte modo: o Cristianismo, isto é, o pensamento do Novo
Testamento, enquanto soluciona o problema filosófico do mal; a
Patrística, a saber, o pensamento cristão desde o II ao VIII século, a
que é devida particularmente a construção da teologia, da dogmática
católica; a Escolástica, a saber, o pensamento cristão desde o século IX
até o século XV, criadora da filosofia cristã verdadeira e própria.
Características Gerais do Pensamento Cristão
Foi
conquistada a cidade que conquistou o universo. Assim definiu São
Jerônimo o momento que marcaria a virada de uma época. Era a invasão de
Roma pelos germanos e a queda do Império Romano.
A avalancha dos bárbaros arrasou também grande parte das conquistas culturais do mundo antigo.
A
Idade Média inicia-se com a desorganização da vida política, econômica e
social do Ocidente, agora transformado num mosaico de reinos bárbaros.
Depois vieram as guerras, a fome e as grandes epidemias. O cristianismo
propaga-se por diversos povos. A diminuição da atividade cultural
transforma o homem comum num ser dominado por crenças e superstições.
O
período medieval não foi, porém, a "Idade das Trevas", como se
acreditava. A filosofia clássica sobrevive, confinada nos mosteiros
religiosos. O aristotelismo dissemina-se pelo Oriente bizantino, fazendo
florescer os estudos filosóficos e as realizações científicas. No
Ocidente, fundam-se as primeiras universidades, ocorre a fusão de
elementos culturais greco-romanos, cristãos e germânicos, e as obras de
Aristóteles são traduzidas para o latim.
Sob
a influência da Igreja, as especulações se concentram em questões
filosófico-teológicas, tentando conciliar a fé e a razão. E é nesse
esforço que Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino trazem à luz
reflexões fundamentais para a história do pensamento cristão.
A Filosofia Medieval e o Cristianismo
Ao
longo do século V d.C., o Império Romano do Ocidente sofreu ataques
constantes dos povos bárbaros. Do confronto desses povos invasores com a
civilização romana decadente desenvolveu-se uma nova estruturação
européia de vida social, política e econômica, que corresponde ao
período medieval.
Em
meio ao esfacelamento do Império Romano, decorrente, em grande parte,
das invasões germânicas, a Igreja católica conseguiu manter-se como
instituição social mais organizada. Ela consolidou sua estrutura
religiosa e difundiu o cristianismo entre os povos bárbaros, preservando
muitos elementos da cultura pagã greco-romana.
Apoiada
em sua crescente influência religiosa, a Igreja passou a exercer
importante papel político na sociedade medieval. Desempenhou, por
exemplo, a função de órgão supranacional, conciliador das elites
dominantes, contornando os problemas da fragmentação política e das
rivalidades internas da nobreza feudal. Conquistou, também, vasta
riqueza material: tornou-se dona de aproximadamente um terço das áreas
cultiváveis da Europa ocidental, numa época em que a terra era a
principal base de riqueza. Assim, pôde estender seu manto de poder
"universalista" sobre diferentes regiões européias.
Conflitos e Conciliação entre a Fé e Saber
No
plano cultural, a Igreja exerceu amplo domínio, trançando um quadro
intelectual em que a fé cristã era o pressuposto fundamental de toda
sabedoria humana.
Em que consistia essa fé?
Consistia
na crença irrestrita ou na adesão incondicional às verdades reveladas
por Deus aos homens. Verdades expressas nas Sagradas Escrituras (Bíblia)
e devidamente interpretadas segundo a autoridade da Igreja.
"A Bíblia era tão preciosa que recebia as mais ricas encadernações”.
De
acordo com a doutrina católica, a fé representava a fonte mais elevada
das verdades reveladas - especialmente aquelas verdades essenciais ao
homem e que dizem respeito à sua salvação. Neste sentido, afirmava Santo
Ambrósio (340-397, aproximadamente): Toda verdade, dita por quem quer
que seja, é do Espírito Santo.
Assim,
toda investigação filosófica ou científica não poderia, de modo algum,
contrariar as verdades estabelecidas pela fé católica. Segundo essa
orientação, os filósofos não precisavam se dedicar à busca da verdade,
pois ela já havia sido revelada por Deus aos homens. Restava-lhes,
apenas, demonstrar racionalmente as verdades da fé.
Não
foram poucos, porém, aqueles que dispensaram até mesmo essa comprovação
racional da fé. Eram os religiosos que desprezavam a filosofia grega,
sobretudo porque viam nessa forma pagã de pensamento uma porta aberta
para o pecado, a dúvida, o descaminho e a heresia (doutrina contrária ao
estabelecido pela Igreja, em termos de fé).
Por
outro lado, surgiram pensadores cristãos que defendiam o conhecimento
da filosofia grega, na medida em que sentiam a possibilidade de
utilizá-la como instrumento a serviço do cristianismo. Conciliado com a
fé cristã, o estudo da filosofia grega permitiria à Igreja enfrentar os
descrentes e demolir os hereges com as armas racionais da argumentação
lógica. O objetivo era convencer os descrentes, tento quanto possível,
pela razão, para depois fazê-los aceitar a imensidão dos mistérios
divinos, somente acessíveis à fé.
Entre
os grandes nomes da filosofia católica medieval destacam-se Agostinho e
Tomás de Aquino. Eles foram os responsáveis pelo resgate cristão das
filosofias de Platão e de Aristóteles, respectivamente.
"Tomai
cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganadoras
especulações da "filosofia", segundo a tradição dos homens, segundo os
elementos do mundo, e não segundo Cristo." (São Paulo).
Patrística
"A fé em busca de argumentos racionais a partir de uma matriz platônica"
Desde
que surgiu o cristianismo, tornou-se necessário explicar seus
ensinamentos às autoridades romanas e ao povo em geral. Mesmo com o
estabelecimento e a consolidação da doutrina cristã, a Igreja católica
sabia que esses preceitos não podiam simplesmente ser impostos pela
força. Eles tinham de ser apresentados de maneira convincente, mediante
um trabalho de conquista espiritual.
Foi
assim que os primeiros Padres da Igreja se empenharam na elaboração de
inúmeros textos sobre a fé e a revelação cristãs. O conjunto desses
textos ficou conhecido como patrística por terem sido escritos
principalmente pelos grandes Padres da Igreja.
Uma
das principais correntes da filosofia patrística, inspirada na
filosofia greco-romana, tentou munir a fé de argumentos racionais. Esse
projeto de conciliação entre o cristianismo e o pensamento pagão teve
como principal expoente o Padre Agostinho.
"Compreender para crer, crer para compreender". (Santo Agostinho)
Escolástica
"Os caminhos de inspiração aristotélica levam até Deus".
No
século VIII, Carlos Magno resolveu organizar o ensino por todo o seu
império e fundar escolas ligadas às instituições católicas. A cultura
greco-romana, guardada nos mosteiros até então, voltou a ser divulgada,
passando a Ter uma influência mais marcante nas reflexões da época. Era a
renascença carolíngia.
Tendo
a educação romana como modelo, começaram a ser ensinadas as seguintes
matérias: gramática, retórica e dialética (o trivium) e geometria,
aritmética, astronomia e música (o quadrivium). Todas elas estavam, no
entanto, submetidas à teologia.
A
fundação dessas escolas e das primeiras universidades do século XI fez
surgir uma produção filosófico-teológica denominada escolástica (de
escola).
A
partir do século XIII, o aristotelismo penetrou de forma profunda no
pensamento escolástico, marcando-o definitivamente. Isso se deveu à
descoberta de muitas obras de Aristóteles, descobertas até então, e à
tradução para o latim de algumas delas, diretamente do grego.
A
busca da harmonização entre a fé cristã e a razão manteve-se, no
entanto, como problema básico de especulação filosófica. Nesse sentido, o
período escolástico pode ser dividido em três fases:
Primeira fase - (do século IX ao fim do século XII): caracterizada pela confiança na perfeita harmonia entre fé e razão.
Segunda fase
- (do século XIII ao princípio do século XIV): caracterizada pela
elaboração de grandes sistemas filosóficos, merecendo destaques nas
obras de Tomás de Aquino. Nesta fase, considera-se que a harmonização
entre fé e razão pôde ser parcialmente obtida.
Terceira fase
- (do século XIV até o século XVI): decadência da escolástica,
caracterizada pela afirmação das diferenças fundamentais entre fé e
razão.
A Questão dos Universais:
O que há entre as palavras e as coisas
O
método escolástico de investigação, segundo o historiador francês
Jacques Le Goff, privilegiava o estudo da linguagem (o trivium) para
depois passar para o exame das coisas (o quadrivium). Desse modo surgiu a
seguinte pergunta: qual a relação entre as palavras e as coisas?
Rosa,
por exemplo, é o nome de uma flor. Quando a flor morre, a palavra rosa
continua existindo. Nesse caso, a palavra fala de uma coisa inexistente,
de uma ideia geral. Mas como isso acontece? O grande inspirador da
questão foi o inspirador neoplatônico Porfírio, em sua obra Isagoge :
"Não tentarei enunciar se os gêneros e as espécies existem por si mesmos
ou na pura inteligência, nem, no caso de subsistirem, se são corpóreos
ou incorpóreos, nem se existem separados dos objetos sensíveis ou nestes
objetos, formando parte dos mesmos".
Esse
problema filosófico gerou muitas disputas. Era a grande discussão sobre
a existência ou não das ideias gerais , isto é, os chamados universais
de Aristóteles.
Os Precedentes do Cristianismo
Os
fatores históricos do cristianismo são: em primeiro lugar, a religião
israelita; em segundo lugar, o pensamento grego e, enfim, o direito
romano. De Israel o cristianismo toma o teísmo. É o teísmo um privilégio
único deste povo pequeno, obscuro e desprezado; os outros povos e
civilizações, ainda que poderosos e ilustres, são, religiosamente,
politeístas, ou, no máximo dualistas ou panteístas. De Israel toma o
cristianismo, também, o conceito de uma revelação e assistência especial
de Deus. Daí a ideia de uma história, que é desenvolvimento
providencial da humanidade, ideia peculiar ao cristianismo e
desconhecida pelo mundo antigo, especialmente pelo mundo grego.
Na
revelação cristã é filosoficamente fundamental, básico, o conceito de
uma queda original do homem no começo da sua história, e também o
conceito de um Messias, um reparador, um redentor. Conceitos
indispensáveis para explicar o problema do mal, racionalmente premente e
racionalmente insolúvel. No entanto, o mundano e carnal Israel resistiu
tenaz e longamente a esta ideia de uma radical miséria humana -, e, por
consequência, à ideia de uma moral ascética. Idolatrou a vida longa e
próspera, as riquezas da natureza e a prosperidade dos negócios, as
satisfações conjugais e domésticas, o estado autônomo e privilegiado, o
poder e a glória - até esquecer-se de Deus. Perseguiu os Profetas, que o
chamavam ao temor de Deus e à penitência, e recalcitrou contra os
flagelos com que Jeová o castigava, até que Israel, ainda que contra a
sua vontade, foi submetido à sujeição e à renúncia, tendo adquirido,
através de dolorosas experiências, o triste sentido da vaidade do mundo.
A solução integral do problema do mal viria unicamente do mistério da
redenção pela cruz - necessário complemento do mistério do pecado
original.
Quanto
ao pensamento grego , deve-se dizer que entrará no cristianismo como
sistematizador das verdades reveladas, e como justificador dos
pressupostos metafísicos do cristianismo; não, porém, como elemento
constitutivo, essencial e característico, porquanto este é hebraico e
cristão. E quanto ao direito romano, deve-se dizer que entrará no
cristianismo como sistematizador do novo organismo social, a Igreja, e
não como constitutivo de seus elementos essenciais e característicos,
que são próprios e originais do cristianismo.
Jesus Cristo
Entretanto,
o verdadeiro criador do cristianismo, em sua novidade e originalidade, é
Jesus Cristo. Pode ele dar plena solução ao problema do mal - solução
que representa o maior valor filosófico no cristianismo - unicamente se é
Homem-Deus, o Verbo de Deus encarnado e redentor pela cruz.
Diferentemente, a solução - ascética - cristã do problema do mal seria
vã, como a estóica e todas as demais soluções filosóficas de tal
problema, que ficaria, portanto, sem solução alguma. E, em geral, a
pessoa de Cristo tornar-se-ia inteiramente ininteligível, se ele não
fosse Homem-Deus.
Não
é este o momento de fazer um exame crítico, filosófico e histórico,
para determinar a personalidade de Cristo. Basta lembrar que, uma vez
admitido e firmado o teísmo, logo se segue a possibilidade de uma
revelação divina e da divindade de Cristo, para tanto não precisando,
propriamente, senão de provas históricas. Os argumentos em contrário não
são positivos, históricos, mas apriorísticos, filosóficos; quer dizer,
dependem de uma filosofia racionalista e atéia em geral, humanista e
imanentista em especial.
Eis
o esquema lógico da demonstração da divindade de Jesus Cristo. Devem
ser examinados à luz da crítica histórica, antes de tudo, os documentos
fundamentais, relativos à revelação cristã - Novo Testamento. E
achamo-nos diante de uma personalidade extraordinária - Jesus Cristo -,
que ensina uma grande doutrina, leva uma vida santa, afirma-se a si
mesma como divina e comprova explicitamente com prodígios e sinais - os
milagres e as profecias - esta sua divindade. E como Jesus Cristo se
torna garantia de toda uma tradição que o precedeu - o Velho Testamento
-, também se responsabiliza por uma instituição que a ele se segue - a
Igreja católica. A esta, portanto, caberá interpretar infalivelmente a
revelação judaico-cristã e, evidentemente, também a parte que diz
respeito à queda original e à relativa reparação, a qual, por certo,
pode dar origem, humanamente, a várias interpretações.
O Novo Testamento
Como
é notório, Cristo não deixou nada escrito, de sorte que o nosso
conhecimento mais imediato em torno da sua personalidade se realiza
através dos escritos dos seus discípulos. Temos de Cristo testemunhas
também pagãs, além das testemunhas cristãs; estas são extracanônicas e
canônicas. Estas últimas, porém, são fundamentais e mais do que
suficientes para o nosso fim. Cronologicamente, são elas as seguintes:
Paulo de Tarso, os Evangelhos sinópticos e o Evangelho de São João.
Paulo
de Tarso, na Cilícia, fôra um inteligente e zeloso israelita. Não
conheceu Jesus Cristo durante sua vida terrena, mas, convertido ao
cristianismo e mudado o nome de Saulo para o de Paulo, tornou-se o maior
apóstolo do cristianismo entre os gentios ou pagãos, revelando-lhes em
Cristo crucificado o Deus padecente, vítima e Salvador, que eles
procuravam em suas religiões misteriosóficas - e não acharam. A vida de
Paulo é caracterizada por muitas e longas viagens, realizadas para
finalidades apostólicas. Para o mesmo fim escreveu Paulo as famosas
cartas às comunidades cristãs dos vários centros da Antigüidade,
relacionados com ele. As grandes viagens apostólicas de Paulo são três e
têm como ponto de irradiação Antioquia, tocando os centros mais
importantes do mundo antigo: Jerusalém, Atenas e Roma. Nesta cidade
encerra a sua vida mortal com o martírio. Destarte ele se pôs em contato
com todas as formas de civilização do Oriente helenista e do mundo
greco-romano. Quanto às Epístolas - escritas em grego - devemos dizer
que não são cartas logicamente orgânicas e ordenadas, nem literariamente
aprimoradas, tanto assim que podiam desagradar a um helenista refinado
como Porfírio; são porém, densas de conteúdo, de forma incisiva e
eficaz. O problema que, sobretudo, preocupa Paulo é o do mal, do
sofrimento, do pecado, de que acha a solução em Cristo redentor,
crucificado e ressuscitado. É este o aspecto do cristianismo que mais o
impressionou, de sorte que é ele, por excelência, o teólogo da Redenção.
No Velho Testamento Deus tinha dado aos homens a lei que, devido à
miséria do homem decaído, não tirava o pecado, embora fosse uma lei
moral; pelo contrário, até o agradava, tornando o homem consciente de
sua falta. No Novo Testamento, Deus, mediante a graça de Cristo, tira o
pecado do mundo, embora nos deixando na luta e no sofrimento, que Paulo
sentia tão profundamente.
Os
Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas - chamados evangelhos sinópticos -
formam um grupo à parte, por certa característica histórica e didática,
que os torna comuns e os distingue do quarto evangelho, o de João, de
caráter mais especulativo e teológico. O primeiro em ordem de tempo é o
Evangelho de Mateus , o publicano, tornando em seguida um dos doze
apóstolos. Escrito, originariamente, em armaico e destinado ao ambiente
palestino, foi em seguida traduzido para o grego e, nesta língua,
transmitido. É o mais amplos dos Evangelhos e relata amplamente os
ensinamentos de Cristo. O segundo é o Evangelho de Marcos, que não foi
discípulo direto de Cristo, mas nos transmitiu o ensinamento de Pedro.
Foi escrito em grego e destinado a um público não palestino. O terceiro
dos Evangelhos sinópticos é, enfim, o de Lucas, companheiro de Paulo,
que o chamava o caro médico. Também ele não foi discípulo imediato de
Cristo, e o seu evangelho foi também escrito em grego.
O
quarto evangelho, inversamente - como o primeiro - foi escrito por um
discípulo direto de Cristo, um dos doze apóstolos: João, o predileto do
Mestre, testemunha da sua vida e da sua morte. O quarto Evangelho,
juntamente com este valor histórico, tem um especial valor especulativo,
teológico. Como Paulo pode ser considerado o teólogo da Redenção, João
pode ser considerado o teólogo da Encarnação; Cristo é o Verbo de Deus
encarnado para a redenção do gênero humano. Também o Evangelho de João
foi escrito em grego; e, cronologicamente, é o último dos Evangelhos e
dos escritos do Novo Testamento, os quais - no seu conjunto - podem se
considerar compostos na Segunda metade do primeiro século, tomada com
certa amplidão.
A Solução do Problema do Mal
Não
há dúvida de que o problema do mal foi o escolho contra o qual debalde
se bateu a grande filosofia grega, como qualquer outra filosofia, visto
ser o mal um problema racionalmente insolúvel. Que coisa é, pois,
precisamente este mal, que tem o poder de tornar teoricamente
inexplicável a realidade, e praticamente dolorosa a vida? Não é, por
certo, o mal assim chamado metafísico, a saber, a necessária limitação
de todo ser criado: porquanto esta limitação nada tira à perfeição dos
vários seres a eles devida por natureza, mas apenas aquela plenitude do
ser, que pertence unicamente a Deus, rigorosamente, isto é,
teisticamente concebido como transcendente e criador, pois esse gênero
de mal, no teísmo, é plenamente explicável.
Não
resta, então, senão o mal, o chamado físico e moral, porquanto é
limitação da natureza, verdadeira imperfeição de um determinado ser. O
mal, físico e moral, é um problema, precisamente se se considerar a
natureza específica do homem, a qual é a natureza do animal racional, o
que não significa certamente lhe pertença a racionalidade pura, devida
ao puro espírito; mas certamente exige a subordinação do sensível ao
inteligível, do material ao espiritual. Isto significa exigir que os
sentidos sejam instrumentos do intelecto e o instinto seja instrumento
da vontade, naquele característico processo que é o conhecimento e a
operação humana; exige que o corpo humano e a natureza em geral sejam
submetidos às imposições do espírito, como deveria ser em uma hierarquia
racional dos valores.
Ora,
se se considerar, sem preconceitos, o indivíduo e a humanidade, a
psicologia e a história, as coisas serão bem diferentes. Com efeito,
demais vezes o sentido - do qual o conhecimento deve no entanto partir -
sobrepuja o intelecto. E bem poucos homens e só com muitas dificuldades
e não sem graves erros, chegam ao conhecimento daquelas verdades
racionais - Deus, a alma, etc. - que são, entretanto, indispensáveis
para uma solução humana do problema da vida. E, mais frequentemente
ainda, o instinto assenhoreia-se da vontade, e a maioria dos homens
viveu e vive cegamente, contra as exigências da própria natureza
racional, mesmo quando a verdade é conhecida pelo intelecto.
Este
é o mal moral, espiritual, que domina o mundo humano. Pelo que diz
respeito ao mal físico, a coisa é ainda mais patente: basta lembrar o
sofrimento e a morte. Com isto, naturalmente, não se quer dizer que a
impassibilidade e a imortalidade sejam uma exigência da natureza humana,
como tal, mas unicamente se quer frisar que a dor e a morte - bem como a
ignorância e a concupiscência - em sua atual intensidade, se evidenciam
como um estado inatural com respeito ao nosso ser espiritual e
racional.
Temos,
pois, uma natureza, a natureza humana, que nos parece desordenada. A
filosofia conhece a essência metafísica dessa natureza humana, deve
reconhecer-lhe também a desordem, mas ignora-lhe a causa. A filosofia é
certamente construtiva, metafísica; mas, chegada ao seu vértice, deve
tornar-se crítica, isto é, deve reconhecer os próprios limites,
porquanto não consegue resolver plenamente o seu problema, o problema da
vida, precisamente por causa do mal. Não pode, todavia, renunciar
absolutamente à solução deste problema, já que, desta maneira,
comprometeria também a sua maior conquista: Deus. É antiga e famosa a
objeção: de que modo concordar a absoluta sabedoria e poder de Deus com
todo o mal que há no mundo, por ele criado? Deve-se entender,
naturalmente, o mal físico e moral, e este propriamente em relação ao
homem.
O Pecado Original
Se
a filosofia é impotente para resolver plenamente o seu próprio
problema, há, porventura, outro meio a que pode o espírito humano
razoavelmente recorrer para a solução de um problema tão premente?
Apresenta-se a religião, e especialmente uma religião entre as
religiões, a qual nos fala de uma queda do homem no começo de sua
história, e afirma esta verdade - bem como todo o sistema dos seus
dogmas - como divinamente revelada.
Quanto
à possibilidade de uma queda do espírito, em geral, isto é, quanto à
possibilidade do mal moral, do pecado, basta lembrar que o ser criado
pode, por sua natureza, desviar-se da ordem: porquanto há nele algo de
não-ser, de potência , precisamente pelo fato de ser ele um ser criado. E
o livre arbítrio proporciona-lhe o modo de realizar essa possibilidade,
a saber, proporciona-lhe o modo de desviar-se efetivamente do ser, da
racionalidade, enveredando pelo não-ser, pela irracionalidade. Quanto à
realidade de uma queda original do homem, remetemos ao fato da Revelação
em que é contida.
Da
Escritura e da Tradição, garantidas pela interpretação da Igreja e
sistematizadas pela teologia, evidencia-se, fundamentalmente, como o
homem primigênio não só teria possuído aquela harmonia natural , de que
agora é privado, mas teria sido outrossim elevado, como que por nova
criação, à ordem sobrenatural , com um conveniente conjunto de dons
preternaturais . Noutras palavras, o homem teria participado - com uma
natureza extraordinariamente dotada - da vida de Deus, teria gozado de
uma espécie de deificação, não por direito, mas por graça. E
evidencia-se também que - devido a uma culpa de orgulho contra Deus,
cometida pelo primeiro homem, do qual, pela natureza humana, devia
descender toda a humanidade - teria o homem perdido aquela harmonia e a
dignidade sobrenatural, juntamente com os dons conexos.
Há,
portanto, uma enfermidade, uma debilitação espiritual e física na
natureza humana, essencial desde o nosso nascimento, e que deve, por
conseguinte, ser herdada. Basta, por exemplo, lembrar como, pela lei da
hereditariedade, se podem transmitir deficiências materiais e, por
consequência, também morais: deficiências que não dependem dos
indivíduos, visto que eles a sofrem. O pecado original, pois - que
importa na privação da ordem sobrenatural, isto é, na privação do único
fim humano efetivo, até ao sofrimento e à concupiscência, quer dizer,
até à vulneração da própria natureza - voluntário e culpado em Adão,
seria culpado em seus descendentes, enquanto não quiserem servir-se das
misérias provindas do pecado original como estímulo para a Redenção,
praticando o Cristianismo, ingressando na Igreja.
O
aspecto da condição primitiva do homem, concernente à elevação
sobrenatural, por mais supereminente e central que seja no cristianismo,
aqui não interessa. Com efeito, a elevação à ordem sobrenatural sendo,
por definição, gratuita, isto é, não devida à natureza humana, bem como a
nenhuma natureza criada, a privação da mesma, provinda do pecado, não
podia causar vulneração em a natureza humana, nem a perda dos dons
praternaturais. E, logo, não podia suscitar o problema do mal, que temos
considerado insolúvel pela filosofia.
A Redenção pela Cruz
Mas,
que sentido tem o mal no mundo? Conseguiu o homem, mediante o pecado,
frustar o plano divino da criação? Ou o próprio mal soube Deus tirar,
mediante uma divina dialética, o bem e até um bem maior? É o que explica
um segundo dogma da revelação cristã, o dogma da redenção operada por
Cristo. Segundo este dogma, Deus, isto é, o Verbo de Deus, a Segunda
pessoa da Trindade divina, assume natureza humana, precisamente para
reparar o pecado original e, por conseguinte, suas consequências
naturais também. Visto a ofensa feita a Deus pelo pecado ser infinita
com respeito ao Infinito ofendido, Deus precisava de uma reparação
infinita, que unicamente Deus podia dar. Sendo, porém, o homem que devia
pagar, entende-se como o verbo de Deus assuma em Cristo a natureza
humana. Para a Redenção, teria sido suficiente o mínimo ato expiatório
de Cristo, tendo todo ato seu um valor infinito, devido à dignidade do
operante. Ao contrário, ele se sacrifica até à morte de cruz. Fez isto
para dar toda a glória possível à infinita majestade de Deus no reino do
mal e da dor proveniente do pecado; é, pois, a glória de Deus o fim
último de toda atividade divina.
Consequente Praxe Ascética
Ascetismo e Teísmo
Das
precedentes considerações segue-se que o cristianismo importa sempre e
essencialmente numa praxe ascética com respeito ao mundo, e não pelo
fato de o sobrenatural oprimir a natureza, mas por causa da desordem
introduzida na ordem da natureza pelo pecado original.
Em
verdade, a raiz metafísica desta praxe ascética acha-se no próprio
teísmo, e, precisamente, no conceito de criação, tomando-se esta palavra
"ascética" não no sentido rigoroso de renúncia aos bens criados, mas no
sentido de que o homem, sendo criatura e, portanto dependendo
totalmente de Deus, deve reconhecer praticamente esta sua dependência
absoluta, este seu nada ser por si.
A
razão humana constata, nem pode deixar de constatar, que o mundo, de
que temos imediatamente experiência, não se pode explicar por si mesmo,
e, logo, exige absolutamente uma explicação. Entretanto, para que o
problema do mundo tenha verdadeiramente solução, é preciso chegar até
Deus. E Deus, para que seja verdadeiramente a explicação do mundo, não
pode certamente ser imanente, mas deve ser transcendente e criador, o
que equivale dizer, a relação entre Deus e o mundo deve ser concebida
segundo o conceito de criação, retamente definido como uma produção das
coisas do nada por parte de Deus.
Ora,
tal definição exclui que Deus organize uma pressuposta matéria
qualquer, com respeito à qual Deus seria passivo e, logo, não mais
ato-puro, não mais Deus, não mais explicação do mundo. Contrariamente a
quanto pensava o dualismo grego, Deus cria toda a realidade. Daí nada se
poder levantar contra ele e proclamar a sua autonomia. Além disso, é
excluído que o mundo seja, de qualquer modo, formado pela mesma natureza
de Deus, pois, neste caso, haveria a contradição de que Deus seria da
mesma natureza do mundo, que não tem em si a sua explicação e, por isso,
a procura em Deus. Contrariamente ao que pensa o panteísmo, Deus,
criando, dispõe uma realidade essencialmente distinta de si, de modo que
nenhum ser criado pode, de modo nenhum, exigir de participar da
natureza divina e enaltecer como tal a sua natureza.
A
este segundo princípio é conexa a absoluta liberdade da criação. Com
efeito, se ela fosse necessária, ter-se-ia uma contradição semelhante à
precedente, a saber: Deus teria necessidade do mundo que ele deve
explicar. Deus, portanto, pode ou não pode criar, pode criar este ou um
outro mundo, entre infinitos mundos possíveis, de modo que Deus,
querendo criar o mundo, pode única e absolutamente criá-lo para a sua
glória - embora esta já seja interiormente infinita, sendo Deus a
atualidade, a perfeição plena. Se se admitisse para a obra de Deus uma
finalidade diversa, extrínseca, seria também preciso admitir em Deus uma
indigência, com todas as consequências acima mencionadas. Deus,
portanto, cria o mundo do nada, e não o tira de sua substância, mas o
cria livremente e para a sua glória. E o homem faz parte dessa criação.
Compreende-se,
então, como a atitude prática, fundamental, da criatura racional deva
ser, em consequência do conceito de criação, uma atitude de
reconhecimento do próprio nada, não só na ordem do ser, mas também na
ordem de operar, porque nada de quanto é real pode escapar à absoluta
causalidade de Deus. Aqui falamos, evidentemente, do operar positivo,
isto é, do bem, porquanto o mal, sendo negação, privação, não tem causa
eficiente, mas deficiente, como diz Agostinho. Não Deus, por
consequência, mas o homem é o autor do mal. Então, a humildade será a
virtude essencial do sábio, como o orgulho será o pecado essencial do
estulto; nas relações práticas com Deus - que constituem o objeto da
religião em geral - e também nas relações com a remanente realidade, não
em si, mas enquanto querida por Deus.
Ascetismo e Cristianismo
Deus
quis remir o homem, exigindo ao mesmo tempo que a sua justiça fosse
dignamente satisfeita mediante uma expiação infinita por parte do Verbo
humanado. Esta expiação divina, porém, não dispensava, mas apenas
tornava possível a expiação por parte do homem, precisamente através dos
sofrimentos provenientes da desordem decorrida do pecado. Unicamente
deste modo o homem era redimido, unicamente através da justiça se
manifestava a misericórdia de Deus. Antes, quis Deus que fosse
juntamente realizada a sua maior glória e o maior bem do homem, através
do sacrifício mais completo por parte de Cristo, bem como por parte do
homem, dada sempre a desordem das coisas, proveniente do pecado.
Esta
- tão significativa - praxe ascética tem a sua primeira e perfeita
realização em Cristo, redentor pela cruz. Tornando-se ele, deste modo, o
modelo e o ideal da vida cristã. Mas, para o mundo, esta praxe ascética
será loucura e escândalo . Os Gentios julgavam naturalmente loucura a
renúncia cristã. Os próprios israelitas sonhavam o Redentor cercado de
grandeza e poder, e não de humildade e sofrimento. Cristo, ao contrário,
menosprezando a prudência e a fortaleza humanas, envereda pelo caminho
da cruz, que repugna à natureza, mas já é a única via de salvação e de
santificação. E, assim, Cristo - realizando a sua obra - foi julgado
justo, mas não lhe foi feita justiça pela majestade do direito; foi
condenado pelo povo que ele viera remir; foi abandonado pelos próprios e
mais chegados discípulos, um dos quais - o que devia ser seu vigário -
até o renegou, e um outro o traiu de morte. E morreu abandonado sobre a
cruz, assistido por algumas pobres mulheres. Humanamente e também
racionalmente falando, unicamente desta maneira se realizava a glória de
Deus e a redenção do homem em toda a sua plenitude.
Cristo
não apenas realizou na sua pessoa o sacrifício redentor, mas também
apontou aos homens este caminho como sendo o caminho único para a
salvação e a perfeição, e confirmou a doutrina com o exemplo,
propondo-se como modelo de todos os cristãos: Eu sou o caminho, a
verdade e a vida. A vida cristã será, portanto, a imitação de Cristo
crucificado - diversamente embora, segundo os graus de perfeição cristã e
as concretas diferenças individuais. Tal ensinamento ascético de Cristo
- que, em concreto, se acha em toda a sua vida e, em especial, na sua
morte - em abstrato se acha em toda a sua doutrina, mas especialmente no
sermão da montanha, o sermão das bem-aventuranças, que se pode
considerar o compêndio do espírito do Cristianismo. Aí são invertidos os
valores terrenos, e exaltados não os ricos, os gozadores, os poderosos,
que o mundo inveja, mas os pobres, os sofredores, os mesquinhos,
conforme a sabedoria cristã, o que à orgulhosa razão humana parece
estultícia. Deste modo Cristo dirá que o busquemos - isto é, que
procuremos a sua imagem, a sua imitação - não no homem feliz, para
gozarmos a vida em sua companhia, mas no homem sofredor, com o qual e
para o qual sofremos e, destarte, acharemos alimento ascético.
Este
ensinamento, Cristo dirige a todos os seus seguidores, como condição
necessária para a salvação - se alguém quer vir após mim, renuncia-se a
si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Entretanto, aos que aspiram à
santidade, à plenitude da vida cristã, à perfeita imitação dele, impõe
Cristo a renúncia total aos grandes bens do mundo: renúncia à riqueza, à
família, à liberdade, para abraçar a pobreza, a castidade, a
obediência. E esta a chamada via dos conselhos evangélicos, em
contraposição com a vida comum dos preceitos. E realiza-se na clássica
praxe cristã dos votos religiosos, sempre idêntica e imutável na
substância, embora variável nas aplicações concretas.
Ascetismo e Caridade
Esta
moral ascética cristã é racionalmente fundada sobre o teísmo e a
Revelação. Garante, pois, ao homem, a consecução da felicidade na vida
eterna, e de uma felicidade que transcende toda aspiração e capacidade
humana. Na vida temporal esta moral ascética apresenta-se também como a
mais sábia, porquanto torna conformada e voluntária a aceitação do
sofrimento, já que não se apresenta mais como inesperado e trágico, pois
não fica certamente dispensado da dor quem neste mundo entende de viver
apenas moralmente e não heroicamente, e nem sequer quem entende de
gozar livremente dos bens da terra. Provê igualmente esta moral ascética
o bem dos outros, ou não parece, ao contrário, - por causa da renúncia
ao mundo devastado pelo mal - isolar fatalmente os homens dos seus
semelhantes? E este isolamento não é ainda mais acentuado, quando a
perfeição se eleva dos preceitos aos conselhos?
Poderia
assim parecer, mas assim não é. Antes de tudo, tal egoísmo está em
franco contraste com o conceito de caridade, dominante na moral cristã,
em lugar do clássico conceito de justiça. A caridade cristã purificou a
civilização antiga da barbárie da exposição das crianças, da escravidão,
das lutas dos gladiadores, barbárie que se repete, mais ou menos
intensamente, no egoísmo de toda civilização puramente humana. A
caridade cristã favoreceu ainda obras numerosas e fecundas para os
infelizes, os velhos, os pobres, os doentes, mais ou menos desprezados e
negligenciados na civilização antiga, bem como em toda civilização
mundana em geral, apesar das aparências contrárias.
Em
segundo lugar, a convivência social, moral, racional, não é possível
nas atuais condições de egoísmo e malvadez humana, mas faz-se mister a
ascética cristã para vencer este egoísmo mediante a paciência, a
humildade, a caridade. Considere-se, por exemplo, a questão econômica e o
problema da autoridade, que preocupam tão profundamente a sociedade
humana. A questão econômica não se pode resolver naturalmente. Com
efeito - prescindindo do fato de que o trabalho, em seus termos atuais, é
uma pena, como claramente o prova a dura experiência, e a Revelação
disto dá explicação e justificação - não somente a justiça não consegue
abolir a pobreza, mas nem sequer a caridade, a própria caridade cristã,
consegue tirar a humilhação do receber. Menos ainda conseguem isto a
filantropia e os demais equivalentes humanistas. Resolve isto
verdadeiramente só a ascética cristã, valorizando a dor, exaltando o
sofrimento: bem-aventurados os pobres . E também não se pode resolver
naturalmente o problema árduo da sujeição à autoridade, no entanto
necessária para que a sociedade possa sustentar-se. O fato de a
autoridade ser necessária à existência da sociedade, não é argumento
suficiente para que todos obedeçam à autoridade; e isto é evidente se se
examinam as paixões humanas, especialmente o orgulho, a violência, a
fraude, frequentemente mais fortes em quem domina. E isto acontece não
apenas na sociedade civil, mas também na religiosa, porquanto formada de
homens. E, então, não fica senão a obediência no sentido cristão,
ascético, como renúncia à própria vontade. Tal renúncia não é imoral,
porque tem como objeto não a pessoa, mas o ofício, nem pode
objetivamente, de modo nenhum, transpor os confins da ética.
Finalmente,
a renúncia ascética não é estéril egoísmo, mas o contrário.
Precisamente pelo fato de que o homem, renunciando a si mesmo e dando-se
em holocausto a Deus, é disposto, até desejoso, imensamente capaz,
cheio de boa vontade para sacrificar-se inteiramente para com todos. Não
considera, todavia, a humanidade como fim último, como divina, mas
conforme à transcendente vontade de Deus, que criou o homem à sua
imagem, e o remiu com a Paixão do seu Verbo encarnado. A ética cristã da
renúncia perfeita ao mundo é a mais proveitosa para a sociedade -
familiar, nacional, universal. De fato, a prescindir dos demais, mesmo
razoáveis, motivos de altruísmo, unicamente quem é indiferente às
qualidades alheias, até solícito dos mais miseráveis, não encontra
limites no altruísmo, no heroísmo, mas uma oportunidade de
engrandecimento mediante o sacrifício.
Este
será o caminho percorrido - embora de modos diferentes - pelos santos,
os super-homens do cristianismo: o caminho dos conselhos evangélicos,
que é o caminho mais perfeito do que o dos preceitos . E os santos mais
facilmente florescem nas Ordens Religiosas, precisamente porque é
característica das Ordens Religiosas a via dos conselhos, da renúncia ao
mundo, cada qual realizando este ascetismo cristão com diversa
intensidade, de modos muito diferentes, conforme os tempos, os lugares,
os temperamentos pessoais e as necessidades sociais. E é mediante e
através desta renúncia ascética, que os santos se tornam os grandes
benfeitores da humanidade.
A Patrística Pré-agostiniana
Características Gerais
Com
o nome de patrística entende-se o período do pensamento cristão que se
seguiu à época neotestamentária, e chega até ao começo da Escolástica:
isto é, os séculos II-VIII da era vulgar. Este período da cultura cristã
é designado com o nome de Patrística, porquanto representa o pensamento
dos Padres da Igreja, que são os construtores da teologia católica,
guias, mestres da doutrina cristã. Portanto, se a Patrística interessa
sumamente à história do dogma, interessa assaz menos à história, em que
terá importância fundamental a Escolástica.
A
Patrística é contemporânea do último período do pensamento grego, o
período religioso, com o qual tem fecundo contato, entretanto dele
diferenciado-se profundamente, sobretudo como o teísmo se diferencia do
panteísmo. E é também contemporâneo do império romano, com o qual também
polemiza, e que terminará por se cristianizar depois de Constantino.
Dada a culminante grandeza de Agostinho, a Patrística será dividida em
três períodos: antes de Agostinho, período em que, filosoficamente,
interessam especialmente os chamados apologistas e os padres
alexandrinos; Agostinho, que merece um desenvolvimento à parte, visto
ser o maior dos Padres; depois de Agostinho vem o período que, logo após
a sistematização, representa a decadência da Patrística.
O II Século
Os Apologistas e os Controvertistas
A
Patrística do II século é caracterizada pela defesa que faz do
cristianismo contra o paganismo, o hebraísmo e as heresias. Os padres
deste período podem-se dividir em três grupos: os chamados padres
apostólicos, os apologistas e os controversistas. Interessam-nos
particularmente os segundos, pela defesa racional do cristianismo contra
o paganismo; ao passo que os primeiros e os últimos têm uma importância
religiosa, dogmática, no âmbito do próprio cristianismo.
Chamam-se
apostólicos os escritos não canônicos, que nos legaram as duas
primeiras gerações cristãs, desde o fim do primeiro século até a metade
do segundo. Seus autores, quando conhecidos, recebem o apelido de padres
apostólicos, porquanto floresceram no templo dos Apóstolos, ou os
conheceram diretamente, ou foram discípulos imediatos deles.
Costuma-se
designar como o nome de apologistas os escritores cristãos dos fins do
segundo século, que procuram de um lado demonstrar a inocência dos
cristãos para obter em favor deles a tolerância das autoridades
públicas; e provar do outro lado o valor da religião cristã para lhe
granjear discípulos. Seus escritos, portanto, são, por vezes, apologias
propriamente ditas, por vezes, obras de controvérsia, às vezes, teses. E
são dirigidas às vezes contra os pagãos, outras vezes contra os
hebreus. Os apologistas, mais cultos do que os padres apostólicos,
frequentemente são filósofos - por exemplo, São Justino Mártir - ainda
que não apresentem uma unidade sistemática; continuam filósofos também
depois da conversão, e se esforçam por defender a fé mediante a
filosofia. Para bem compreendê-lo, é mister lembrar que o escopo por
eles visado era, sobretudo, por em focos os pontos de contato existentes
entre o cristianismo e a razão, entre o cristianismo e a filosofia. E
apresentavam o cristianismo como uma sabedoria, aliás, como a sabedoria
mais perfeita, para levarem, gradualmente, até à conversão os pagãos.
O
maior dos apologistas é certamente São Justino. Flávio Justino Mártir
nasceu em Siquém na Palestina em princípios do segundo século, e morreu
mártir no ano 170. Depois de Ter peregrinado pelas mais diversas escolas
filosóficas - peripatética, estóica, pitagórica - em busca da verdade
para a solução do problema da vida, abandonando o platonismo, último
estádio da sua peregrinação filosófica, entrou no cristianismo, onde
encontrou a paz. Ufana-se ele de ser filósofo e cristão; leigo embora,
Justino dedicou sua vida à difusão e ao ensino do cristianismo. Imitando
os filósofos, abriu em Roma uma escola para o ensino da doutrina
cristã. Suas obras são duas Apologias - contra os pagãos - e um Diálogo
com o judeu Trifão - contra os hebreus. Escreveu suas obras nos meados
do segundo século.
Justino
procura a unidade, a conciliação entre paganismo e cristianismo, entre
filosofia e revelação. E julga achá-la, primeiro, na crença de que os
filósofos clássicos - especialmente Platão - dependem de Moisés e dos
profetas, depois da doutrina famosa dos germes do Verbo, encarnado
pessoalmente em Cristo, mas difundidos mais ou menos em todos os
filósofos antigos.
O III Século:
Os Alexandrinos e os Africanos
O
terceiro século apresenta um interesse particular pelo que diz respeito
ao pensamento cristão. Tentou-se um renovamento do paganismo com bases
no panteísmo neoplatônico e nos cultos orientais, fundidos numa
característica síntese filosófico-religiosa em oposição ao cristianismo,
que já ia afirmando mesmo culturalmente. Os Padres deste período
polemizam filosoficamente com os pensadores pagãos, levados a estimarem
seus adversários.
O
cristianismo, sem mudar a sua fisionomia original, está em condições de
desenvolver do seu seio um pensamento, uma filosofia, uma teologia, que
representarão a sua essência doutrinal. Daí a distinção que então se
afirmou entre os simples fiéis e os gnósticos - sábios - cristãos. Este
gnosticismo cristão se afirmou especialmente em Alexandria do Egito, o
grande centro cultural da época, mesmo do ponto de vista católico.
Naquele famoso didascaléion, naquela celebrizada escola catequética,
espécie de faculdade teológica, foram luminares Clemente e Orígenes.
O
cristianismo filosófico é próprio e característico dos padres
alexandrinos, que vivem na tradição cultural helenista, enaltecedora e
potenciadora dos valores intelectuais, teoréticos, especulativos,
metafísicos, dos quais teremos, em tempo oportuno, o primeiro sistema
orgânico de teologia cristã, graças a Orígenes. É, entretanto,
hostilizado pelos padres chamados africanos, pertencentes não à África
oriental, ao Egito, mas África ocidental, latina, que se ressentem, por
conseguinte, do espírito prático, pragmatista, jurídico, moralista
latino - que produziu os estóicos e os cínicos romanos - em oposição ao
gênio grego. Se bem que entres os padres africano-latinos apareçam vulto
notáveis, como por exemplo Tertuliano, os padres africanos - bem como
os padres latinos em geral - não apresentam interesse particular para a
história da filosofia.
Clemente
Alexandrino - Tito Flávio Clemente - nasceu no ano 150, provavelmente
em Atenas, de família pagã. Converteu-se ao cristianismo talvez levado
por exigências filosóficas; desejoso de um conhecimento mais profundo do
cristianismo, empreendeu uma série de viagens em busca de mestres
cristãos. Depois de ter visitado a Magna Grécia, a Síria e a Palestina,
foi, pelo ano 180, para Alexandria do Egito, onde o seu espírito achou
finalmente paz junto do eminente mestre Panteno. Falecido este no ano
200, Clemente foi chamado para dirigir a famosa escola catequética,
cabendo-lhe a glória de ter o grande Orígines entre seus discípulos.
Devido às perseguições anticristãs do imperador Setímio Severo, que
mandou fechar a escola, Clemente teve de suspender o seu ensino alguns
anos depois. Retirou-se para a Ásia Menor, junto de um seu antigo
discípulo, o bispo Alexandre de Capadócia, e morreu nessa cidade entre
211 e 216.
Embora
as preocupações de Clemente sejam, sobretudo, morais e pedagógicas, e
os meios empregados, satisfatoriamente, religiosos e cristãos,
sobretudo, valoriza ele também, e grandemente, a filosofia, à maneira de
Justino, sendo ademais dotado de uma erudição prodigiosa e de uma
cultura incomparável. As obras principais de Clemente são: o Protréptico
- isto é, o Verbo promotor da vida cristã - pequena apologia em doze
capítulos, perfeitamente acabada na forma e no conteúdo; o Pedagogo, em
três livros, apresentado no primeiro o Verbo como educador das almas, e
indicando nos demais dois livros os vícios mais graves, que os cristãos
devem evitar; os Strômata - tapetes - que é uma coleção de pensamentos,
considerações, dissertações filosóficas, morais e religiosas, de
interesse especialmente ético.
Filosoficamente
importante e característica é a distinção que faz Clemente dos cristãos
em simples fiéis e gnósticos, isto é, sábios, perfeitos. O gnóstico
cristão, diversamente do simples fiel ou crente, é consciente de sua fé,
justificando-a e organizando-a racionalmente, filosoficamente.
"Querendo harmonizar a doutrina cristã com a filosofia pagã, acentuava
demasiadamente a última, negligenciando um tanto a Sagrada Escritura e a
Tradição".
Discípulo
de Clemente, Orígenes, chamado adamantino por sua energia incomparável,
é o maior expoente filosófico da escola alexandrina. Nasceu em
Alexandria do Egito, pelo ano 185, de família cristã. O precoce menino
recebeu do pai, Leônidas, a primeira formação literária e, sobretudo,
religiosa. Durante a perseguição de Septímio Severo, Orígenes,
desprezando os mais graves perigos, foi encarregado pelo bispo de
Alexandria, Demétrio, da direção da famosa escola didascaléion, que o
seu mestre Clemente teve que abandonar. Tinha então Orígenes dezoito
anos. Aos vinte e cinco, sentindo a necessidade de conhecer
profundamente as doutrinas que desejava combater e querendo completar a
sua formação, escutou - como Plotino - as lições de Amônio Saca.
Empreendeu então longas viagens para se instruir, sobretudo,
religiosamente, e para atender aos desejos de grandes personagens que
queriam consultá-lo. Ordenado sacerdote no ano 230 pelos bispos de
Cesaréia e de Jerusalém, contra a vontade de seu bispo, de volta à
pátria, foi proibido por este de ensinar e foi condenado, devido também a
algumas opiniões heterodoxas contidas na sua grande obra Sobre os
Princípios, e também por ciúme, talvez, no dizer de São Jerônimo.
Retirou-se então Orígenes para a Palestina, abrindo em Cesaréia uma
escola teológica ( chamada depois neo-alexandrina - , que superou a de
Alexandria pelo seu caráter científico. Aí lecionou ainda durante vinte
anos, falecendo em Tiro pelo ano 254.
A
atividade literária de Orígenes não conhece igual, atribuindo-se-lhe
milhares de obras. Prescindindo dos escritos exegéticos e as céticos,
que não nos interessam, mencionamos a obra Sobre os Princípios e os oito
livros Contra Celso . Por princípios Orígenes entende os artigos
principais do ensino da Igreja, e as verdades primordiais deduzidas
mediante a razão teológica das premissas reveladas, por falta de
revelação formal. A obra Sobre os Princípios nos proporciona a ciência
baseada na Revelação, e representa uma suma teológica verdadeira e
própria. Representa, talvez, a primeira grande síntese doutrinal da
Igreja, segundo a tendência metafísica dos doutores orientais. Granjeou
ao autor grande nomeada e contém o origenismo, que depois suscitou a
grande polêmica origenista. A obra Contra Celso é a mais célebre de
Orígenes sob o aspecto apologético. É uma resposta à obra Sermão
Verdadeiro de Celso, filósofo pagão. Antes de tudo, declara Orígenes que
a melhor apologia do cristianismo é constituída pela vitalidade divina
da Igreja, isto é, pela sua força e virtude para a reforma moral dos
homens e pela sua difusão universal, apesar dos ataques dos adversários.
A maior parte do escrito é, todavia, dedicada ao exame atento e
pormenorizado das profecias, dos milagres e das afirmações solenes de
Cristo, visto que Celso, que tinha estudado as fontes do cristianismo, o
ataca em todos os pontos. Nesta obra, Orígenes ostenta uma erudição
extraordinária, uma serenidade nobre e inigualável, bem como uma fé
inabalável. Orígenes pode ser considerado o verdadeiro fundador da
teologia científica, bem como o primeiro sistematizador do pensamento
cristão em uma vasta síntese filosófica.
O IV Século:
Os Luminares de Capadócia
O
século quarto, especialmente a Segunda metade, representa a idade de
ouro da Patrística. Basta lembrar, para a igreja oriental, Atanásio, o
malho do arianismo, os luminares de Capadócia - Basílio, Gregório
Nazianzeno e Gregório de Nissa -, e João Crisóstomo, o mais celebrado
representante da escola de Antioquia; para a igreja ocidental, Ambrósio
de Milão e Jerônimo. Os padres dessa época se exprimem em aprimorada
forma clássica e possuem uma profunda cultura filosófica. Os maiores
dentre eles são solidamente formados na solidão monástica e ascética e
pertencem, geralmente, às altas classes sociais. A igreja católica,
declarada livre pelo Edito de Milão, protegida por Constantino, torna-se
religião do estado com Teodósio. Estas condições de paz e de
privilégio, eram certamente favoráveis à cultura cristã.
Entretanto,
a grandeza da Patrística, no quarto século, não é tanto científica,
quanto dogmática, teológica. A teologia, sobretudo graças aos luminares
de Capadócia, torna-se uma construção intelectual sistemática,
imponente, devido naturalmente à filosofia, à lógica aristotélica, que
proporcionam o instrumento, o método, para a precisão e a organização do
dogma. As grandes heresias da época obrigaram os padres a defender
racionalmente, filosoficamente, a doutrina católica, atacada
especialmente por Ário (256-336), padre alexandrino oriundo da Líbia,
negador da divindade do Verbo. A heresia ariana - arianismo - foi
condenada pelo concílio de Nicéia (325), sendo Atanásio o mais destacado
e forte opositor.
São
João Crisóstomo, de Antioquia, nasceu de família ilustre, pelo ano 344.
Recebeu uma educação clássica aprimorada, estudando retórica,
filosofia, direito, que, depois de batizado, valorizou cristãmente na
solidão e no ascetismo. Padre em Antioquia, e depois bispo de
Constantinopla, faleceu, degredado pela fé, em 407. É significativo
neste grande prelado o senso profundo da vaidade do mundo, e a grande
estima do cristianismo, concebido como ascética.
Também
os grandes representantes da escola neo-alexandrina, os luminares de
Capadócia, foram grandes testemunhas do caráter fundamentalmente
ascético do Cristianismo. São Basílio, nascido em Cesaréia de Capadócia
pelo ano de 330 de família rica e cristã, fez longos e aprofundados
estudos, aperfeiçoando-se em Atenas. Recebido o batismo, abandona o
mundo e se retira para a vida ascética, organizando a vida solitária dos
que o seguiram, e escrevendo uma Grande Regra e uma Pequena Regra ,
para a vida monástica, em que a atividade dos monges é distribuída entre
o trabalho, o estudo, a oração, pelo que será considerado o legislador
do monaquismo oriental. Trata-se, porém, de regras morais, e não
jurídicas, destinadas a um monaquismo culto, aristocrático. Grande
admirador de Orígenes, insigne promotor da beneficência cristã quando
bispo de Cesaréia, e organizador da vida monástica na Capadócia, faleceu
em 379. Também São Gregório, chamado Nizianzeno, nasceu pelo ano 330 em
Capadócia, de família cristã, fez estudos aprofundados, que aperfeiçoou
em Atenas. Também ele admirou e praticou a vida ascética com o amigo
Basílio, compartilhando com ele a admiração para com Orígenes. Bispo de
Sásima antes e, em seguida, de Constantinopla, inflamou os fiéis com a
sua pregação brilhante e comovedora. Aristocrático e delicado, pouco
afeito à vida prática, retirou-se depois para a solidão, em conformidade
com o seu ideal ascético e contemplativo, falecendo pelo ano 390.
São
Gregório de Nissa foi o maior dos luminares de Capadócia e, talvez, de
todos os padres gregos sob o aspecto especulativo e filosófico. Irmão de
Basílio, nasceu pelo ano 355 em Cesaréia e recebida uma informação
cultural aprimorada, foi destinado ao estado eclesiástico; entretanto,
deixou-se desviar da sua vocação, foi professor de retórica e casou-se.
As exortações do irmão e de Gregório Nazianzeno persuadiram-no da
vaidade do mundo, até que afinal, abandonando a cátedra de retórica,
retirou-se para a vida ascética contemplativa. Em seguida, foi feito
bispo de Nissa, cidadezinha da Capadócia, primando pela sua cultura
teológica e filosófica. Faleceu, provavelmente, em 395. Gregório de
Nissa é o maior filósofo dos padres gregos. Esforça-se para mostrar que
os dados da razão e os ensinamentos da fé não se hostilizam, mas se
harmonizam reciprocamente. Possui, como verdadeiro filósofo, o gosto das
definições claras e das classificações metódicas. Como em teologia é
origenista, em filosofia é neoplatônico.
SANTO AGOSTINHO
A Vida e as Obras
Aurélio
Agostinho destaca-se entre os Padres como Tomás de Aquino se destaca
entre os Escolásticos. E como Tomás de Aquino se inspira na filosofia de
Aristóteles, e será o maior vulto da filosofia metafísica cristã,
Agostinho inspira-se em Platão, ou melhor, no neoplatonismo. Agostinho,
pela profundidade do seu sentir e pelo seu gênio compreensivo, fundiu em
si mesmo o caráter especulativo da patrística grega com o caráter
prático da patrística latina, ainda que os problemas que
fundamentalmente o preocupam sejam sempre os problemas práticos e
morais: o mal, a liberdade, a graça, a predestinação.
Aurélio
Agostinho nasceu em Tagasta, cidade da Numídia, de uma família
burguesa, a 13 de novembro do ano 354. Seu pai, Patrício, era pagão,
recebido o batismo pouco antes de morrer; sua mãe, Mônica, pelo
contrário, era uma cristã fervorosa, e exercia sobre o filho uma notável
influência religiosa. Indo para Cartago, a fim de aperfeiçoar seus
estudos, começados na pátria, desviou-se moralmente. Caiu em uma
profunda sensualidade, que, segundo ele, é uma das maiores consequências
do pecado original; dominou-o longamente, moral e intelectualmente,
fazendo com que aderisse ao maniqueísmo, que atribuía realidade
substancial tanto ao bem como ao mal, julgando achar neste dualismo
maniqueu a solução do problema do mal e, por consequência, uma
justificação da sua vida. Tendo terminado os estudos, abriu uma escola
em Cartago, donde partiu para Roma e, em seguida, para Milão. Afastou-se
definitivamente do ensino em 386, aos trinta e dois anos, por razões de
saúde e, mais ainda, por razões de ordem espiritual.
Entrementes
- depois de maduro exame crítico - abandonara o maniqueísmo, abraçando a
filosofia neoplatônica que lhe ensinou a espiritualidade de Deus e a
negatividade do mal. Destarte chegara a uma concepção cristã da vida -
no começo do ano 386. Entretanto a conversão moral demorou ainda, por
razões de luxúria. Finalmente, como por uma fulguração do céu, sobreveio
a conversão moral e absoluta, no mês de setembro do ano 386. Agostinho
renuncia inteiramente ao mundo, à carreira, ao matrimônio; retira-se,
durante alguns meses, para a solidão e o recolhimento, em companhia da
mãe, do filho e dalguns discípulos, perto de Milão. Aí escreveu seus
diálogos filosóficos, e, na Páscoa do ano 387, juntamente com o filho
Adeodato e o amigo Alípio, recebeu o batismo em Milão das mãos de Santo
Ambrósio, cuja doutrina e eloquência muito contribuíram para a sua
conversão. Tinha trinta e três anos de idade.
Depois
da conversão, Agostinho abandona Milão, e, falecida a mãe em Óstia,
volta para Tagasta. Aí vendeu todos os haveres e, distribuído o dinheiro
entre os pobres, funda um mosteiro numa das suas propriedades
alienadas. Ordenado padre em 391, e consagrado bispo em 395, governou a
igreja de Hipona até à morte, que se deu durante o assédio da cidade
pelos vândalos, a 28 de agosto do ano 430. Tinha setenta e cinco anos de
idade.
Após
a sua conversão, Agostinho dedicou-se inteiramente ao estudo da Sagrada
Escritura, da teologia revelada, e à redação de suas obras, entre as
quais têm lugar de destaque as filosóficas. As obras de Agostinho que
apresentam interesse filosófico são, sobretudo, os diálogos filosóficos:
Contra os acadêmicos, Da vida beata, Os solilóquios, Sobre a
imortalidade da alma, Sobre a quantidade da alma, Sobre o mestre, Sobre a
música. Interessam também à filosofia os escritos contra os maniqueus:
Sobre os costumes, Do livre arbítrio, Sobre as duas almas, Da natureza
do bem.
Dada,
porém, a mentalidade agostiniana, em que a filosofia e a teologia andam
juntas, compreende-se que interessam à filosofia também as obras
teológicas e religiosas, especialmente: Da Verdadeira Religião, As
Confissões, A Cidade de Deus, Da Trindade, Da Mentira.
O Pensamento: A Gnosiologia
Agostinho
considera a filosofia praticamente, platonicamente, como solucionadora
do problema da vida, ao qual só o cristianismo pode dar uma solução
integral. Todo o seu interesse central está, portanto, circunscrito aos
problemas de Deus e da alma, visto serem os mais importantes e os mais
imediatos para a solução integral do problema da vida.
O
problema gnosiológico é profundamente sentido por Agostinho, que o
resolve, superando o ceticismo acadêmico mediante o iluminismo
platônico. Inicialmente, ele conquista uma certeza: a certeza da própria
existência espiritual; daí tira uma verdade superior, imutável,
condição e origem de toda verdade particular. Embora desvalorizando,
platonicamente, o conhecimento sensível em relação ao conhecimento
intelectual, admite Agostinho que os sentidos, como o intelecto, são
fontes de conhecimento. E como para a visão sensível além do olho e da
coisa, é necessária a luz física, do mesmo modo, para o conhecimento
intelectual, seria necessária uma luz espiritual. Esta vem de Deus, é a
Verdade de Deus, o Verbo de Deus, para o qual são transferidas as ideias
platônicas. No Verbo de Deus existem as verdades eternas, as ideias, as
espécies, os princípios formais das coisas, e são os modelos dos seres
criados; e conhecemos as verdades eternas e as ideias das coisas reais
por meio da luz intelectual a nós participada pelo Verbo de Deus. Como
se vê, é a transformação do inatismo, da reminiscência platônica, em
sentido teísta e cristão. Permanece, porém, a característica
fundamental, que distingue a gnosiologia platônica da aristotélica e
tomista, pois, segundo a gnosiologia platônica-agostiniana, não bastam,
para que se realize o conhecimento intelectual humano, as forças
naturais do espírito, mas é mister uma particular e direta iluminação de
Deus.
A Metafísica
Em
relação com esta gnosiologia, e dependente dela, a existência de Deus é
provada, fundamentalmente, a priori, enquanto no espírito humano
haveria uma presença particular de Deus. Ao lado desta prova a priori,
não nega Agostinho as provas a posteriori da existência de Deus, em
especial a que se afirma sobre a mudança e a imperfeição de todas as
coisas. Quanto à natureza de Deus, Agostinho possui uma noção exata,
ortodoxa, cristã: Deus é poder racional infinito, eterno, imutável,
simples, espírito, pessoa, consciência, o que era excluído pelo
platonismo. Deus é ainda ser, saber, amor. Quanto, enfim, às relações
com o mundo, Deus é concebido exatamente como livre criador. No
pensamento clássico grego, tínhamos um dualismo metafísico; no
pensamento cristão - agostiniano - temos ainda um dualismo, porém moral,
pelo pecado dos espíritos livres, insurgidos orgulhosamente contra Deus
e, portanto, preferindo o mundo a Deus. No cristianismo, o mal é,
metafisicamente, negação, privação; moralmente, porém, tem uma realidade
na vontade má, aberrante de Deus. O problema que Agostinho tratou, em
especial, é o das relações entre Deus e o tempo. Deus não é no tempo, o
qual é uma criatura de Deus: o tempo começa com a criação. Antes da
criação não há tempo, dependendo o tempo da existência de coisas que
vem-a-ser e são, portanto, criadas.
Também
a psicologia agostiniana harmonizou-se com o seu platonismo cristão.
Por certo, o corpo não é mau por natureza, porquanto a matéria não pode
ser essencialmente má, sendo criada por Deus, que fez boas todas as
coisas. Mas a união do corpo com a alma é, de certo modo, extrínseca,
acidental: alma e corpo não formam aquela unidade metafísica,
substancial, como na concepção aristotélico-tomista, em virtude da
doutrina da forma e da matéria. A alma nasce com o indivíduo humano e,
absolutamente, é uma específica criatura divina, como todas as demais.
Entretanto, Agostinho fica indeciso entre o criacionismo e o
traducionismo, isto é, se a alma é criada diretamente por Deus, ou
provém da alma dos pais. Certo é que a alma é imortal, pela sua
simplicidade. Agostinho, pois, distingue, platonicamente, a alma em
vegetativa, sensitiva e intelectiva, mas afirma que elas são fundidas em
uma substância humana. A inteligência é divina em intelecto intuitivo e
razão discursiva; e é atribuída a primazia à vontade. No homem a
vontade é amor, no animal é instinto, nos seres inferiores cego apetite.
Quanto
à cosmologia, pouco temos a dizer. Como já mais acima se salientou, a
natureza não entra nos interesses filosóficos de Agostinho, preso pelos
problemas éticos, religiosos, Deus e a alma. Mencionaremos a sua famosa
doutrina dos germes específicos dos seres - rationes seminales. Deus, a
princípio, criou alguns seres já completamente realizados; de outros
criou as causas que, mais tarde, desenvolvendo-se, deram origem às
existências dos seres específicos. Esta concepção nada tem que ver com o
moderno evolucionismo , como alguns erroneamente pensaram, porquanto
Agostinho admite a imutabilidade das espécies, negada pelo moderno
evolucionismo.
A Moral
Evidentemente,
a moral agostiniana é teísta e cristã e, logo, transcendente e
ascética. Nota característica da sua moral é o voluntarismo, a saber, a
primazia do prático, da ação - própria do pensamento latino -,
contrariamente ao primado do teorético, do conhecimento - próprio do
pensamento grego. A vontade não é determinada pelo intelecto, mas
precede-o. Não obstante, Agostinho tem também atitudes teoréticas como,
por exemplo, quando afirma que Deus, fim último das criaturas, é
possuído por um ato de inteligência. A virtude não é uma ordem de razão,
hábito conforme à razão, como dizia Aristóteles, mas uma ordem do amor.
Entretanto
a vontade é livre, e pode querer o mal, pois é um ser limitado, podendo
agir desordenadamente, imoralmente, contra a vontade de Deus. E deve-se
considerar não causa eficiente, mas deficiente da sua ação viciosa,
porquanto o mal não tem realidade metafísica. O pecado, pois, tem em si
mesmo imanente a pena da sua desordem, porquanto a criatura, não podendo
lesar a Deus, prejudica a si mesma, determinando a dilaceração da sua
natureza. A fórmula agostiniana em torno da liberdade em Adão - antes do
pecado original - é: poder não pecar; depois do pecado original é: não
poder não pecar; nos bem-aventurados será: não poder pecar . A vontade
humana, portanto, já é impotente sem a graça. O problema da graça - que
tanto preocupa Agostinho - tem, além de um interesse teológico, também
um interesse filosófico, porquanto se trata de conciliar a causalidade
absoluta de Deus com o livre arbítrio do homem. Como é sabido,
Agostinho, para salvar o primeiro elemento, tende a descurar o segundo.
Quanto
à família , Agostinho, como Paulo apóstolo, considera o celibato
superior ao matrimônio; se o mundo terminasse por causa do celibato, ele
alegrar-se-ia, como da passagem do tempo para a eternidade. Quanto à
política, ele tem uma concepção negativa da função estatal; se não
houvesse pecado e os homens fossem todos justos, o Estado seria inútil.
Consoante Agostinho, a propriedade seria de direito positivo, e não
natural. Nem a escravidão é de direito natural, mas consequência do
pecado original, que perturbou a natureza humana, individual e social.
Ela não pode ser superada naturalmente, racionalmente, porquanto a
natureza humana já é corrompida; pode ser superada sobrenaturalmente,
asceticamente, mediante a conformação cristã de quem é escravo e a
caridade de quem é amo.
O Mal
Agostinho
foi profundamente impressionado pelo problema do mal - de que dá uma
vasta e viva fenomenologia. Foi também longamente desviado pela solução
dualista dos maniqueus, que lhe impediu o conhecimento do justo conceito
de Deus e da possibilidade da vida moral. A solução deste problema por
ele achada foi a sua libertação e a sua grande descoberta
filosófico-teológica, e marca uma diferença fundamental entre o
pensamento grego e o pensamento cristão. Antes de tudo, nega a realidade
metafísica do mal. O mal não é ser, mas privação de ser, como a
obscuridade é ausência de luz. Tal privação é imprescindível em todo ser
que não seja Deus, enquanto criado, limitado. Destarte é explicado o
assim chamado mal metafísico, que não é verdadeiro mal, porquanto não
tira aos seres o lhes é devido por natureza. Quanto ao mal físico, que
atinge também a perfeição natural dos seres, Agostinho procura
justificá-lo mediante um velho argumento, digamos assim, estético: o
contraste dos seres contribuiria para a harmonia do conjunto. Mas é esta
a parte menos afortunada da doutrina agostiniana do mal.
Quanto
ao mal moral, finalmente existe realmente a má vontade que livremente
faz o mal; ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o
mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do homem, livre e
limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. O mal
moral entrou no mundo humano pelo pecado original e atual; por isso, a
humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral, além de o ter
sido com a perda dos dons gratuitos de Deus. Como se vê, o mal físico
tem, deste modo, uma outra explicação mais profunda. Remediou este mal
moral a redenção de Cristo, Homem-Deus, que restituiu à humanidade os
dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral; mas deixou permanecer
o sofrimento, consequência do pecado, como meio de purificação e
expiação. E a explicação última de tudo isso - do mal moral e de suas
consequências - estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o
bem do mal, do que não permitir o mal. Resumindo a doutrina agostiniana
a respeito do mal, diremos: o mal é, fundamentalmente, privação de bem
(de ser); este bem pode ser não devido (mal metafísico) ou devido (mal
físico e moral) a uma determinada natureza; se o bem é devido nasce o
verdadeiro problema do mal; a solução deste problema é estética para o
mal físico, moral (pecado original e Redenção) para o mal moral (e
físico).
A História
Como
é notório, Agostinho trata do problema da história na Cidade de Deus, e
resolve-o ainda com os conceitos de criação, de pecado original e de
Redenção. A Cidade de Deus representa, talvez, o maior monumento da
antigüidade cristã e, certamente, a obra prima de Agostinho. Nesta obra é
contida a metafísica original do cristianismo, que é uma visão orgânica
e inteligível da história humana. O conceito de criação é indispensável
para o conceito de providência, que é o governo divino do mundo; este
conceito de providência é, por sua vez, necessário, a fim de que a
história seja suscetível de racionalidade. O conceito de providência era
impossível no pensamento clássico, por causa do basilar dualismo
metafísico. Entretanto, para entender realmente, plenamente, o plano da
história, é mister a Redenção, graças aos quais é explicado o enigma da
existência do mal no mundo e a sua função. Cristo tornara-se o centro
sobrenatural da história: o seu reino, a cidade de Deus , é representada
pelo povo de Israel antes da sua vinda sobre a terra, e pela Igreja
depois de seu advento. Contra este cidade se ergue a cidade terrena,
mundana, satânica, que será absolutamente separada e eternamente punida
nos fins dos tempos.
Agostinho
distingue em três grandes seções a história antes de Cristo. A primeira
concerne à história das duas cidades, após o pecado original, até que
ficaram confundidas em um único caos humano, e chega até a Abraão, época
em que começou a separação. Na Segunda descreve Agostinho a história da
cidade de Deus , recolhida e configurada em Israel, de Abraão até
Cristo. A terceira retoma, em separado, a narrativa do ponto em que
começa a história da Cidade de Deus separada, isto é, desde Abraão, para
tratar paralela e separadamente da Cidade do mundo, que culmina no
império romano. Esta história, pois, fragmentária e dividida, onde
parece que Satanás e o mal têm o seu reino, representa, no fundo, uma
unidade e um progresso. É o progresso para Cristo, sempre mais
claramente, conscientemente e divinamente esperado e profetizado em
Israel; e profetizado também, a seu modo, pelos povos pagãos, que,
consciente ou inconscientemente, lhe preparavam diretamente o caminho.
Depois de Cristo cessa a divisão política entre as duas cidades; elas se
confundem como nos primeiros tempos da humanidade, com a diferença,
porém, de que já não é mais união caótica, mas configurada na unidade da
Igreja. Esta não é limitada por nenhuma divisão política, mas supera
todas as sociedades políticas na universal unidade dos homens e na
unidade dos homens com Deus. A Igreja, pois, é acessível,
invisivelmente, também às almas de boa vontade que, exteriormente, dela
não podem participar. A Igreja transcende, ainda, os confins do mundo
terreno, além do qual está a pátria verdadeira. Entretanto, visto que
todos, predestinados e ímpios, se encontram empiricamente confundidos na
Igreja - ainda que só na unidade dialética das duas cidades, para o
triunfo da Cidade de Deus - a divisão definitiva, eterna, absoluta,
justíssima, realizar-se-á nos fins dos tempos, depois da morte, depois
do juízo universal, no paraíso e no inferno. É uma grande visão unitária
da história, não é uma visão filosófica, mas teológica: é uma teologia,
não uma filosofia da história.
ESCOLÁSTICA PRÉ- TOMISTA
Características Gerais
A
Escolástica representa o último período do pensamento cristão, que vai
do começo do século IX até o fim do século XVI, isto é, da constituição
do sacro romano império bárbaro, ao fim da Idade Média, que se assinala
geralmente com a descoberta da América (1492). Este período do
pensamento cristão se designa com o nome de escolástica, porquanto era a
filosofia ensinada nas escolas da época, pelos mestres, chamados, por
isso, escolásticos. As matérias ensinadas nas escolas medievais eram
representadas pelas chamadas artes liberais, divididas em trívio -
gramática, retórica, dialética - e quadrívio - aritmética, geometria,
astronomia, música. A escolástica surge, historicamente, do especial
desenvolvimento da dialética.
A
falta dessa distinção - específica do pensamento agostiniano -
manifesta-se não apenas na corrente chamada mística, mas também na
orientação denominada dialética do pensamento medieval pré-tomista.
Misticismo e dialeticismo, todavia, se diferenciam profundamente entre
si. O segundo, com efeito, embora parta da revelação e do sobrenatural,
toma-os como dados e pretende penetrá-los mediante a filosofia, até
procurar as razões necessárias dos mistérios, finalizando uma espécie de
racionalismo (Anselmo de Aosta e Pedro Abelardo). É, porém, um
racionalismo inconsciente, proveniente da ignorância da verdadeira
natureza e dos verdadeiros limites da razão. E, mesmo que os resultados
lógicos pudessem ser os mesmos do racionalismo verdadeiro e próprio, o
escopo não era reduzir a religião aos limites da razão humana, mas
levantar esta à compreensão do supra-inteligível, a uma espécie de
intuição mística.
A
tendência mística, pelo contrário, (São Pedro Damião e São Bernardo de
Claraval) põe, acima e contra a razão e o intelecto, uma outra forma de
conhecimento, de experiência do Divino: o sentimento, a fé, a vontade, o
amor, culminando na união mística, no êxtase.
Depois
destas premissas, podemos dividir a escolástica em três períodos,
colocando o período central da escolástica a figura soberana de Tomás de
Aquino. Teremos, assim, um período pré-tomista em que persiste a
tendência teológica-agostiniana. Este primeiro período da escolástica
vai do começo do século IX (Carlos Magno) até à metade do século XIII
(Tomás de Aquino), e pode ser assim dividido: séculos IX e X (Scoto
Erígena e a questão dos universais ); séculos XI e XII (místicos e
dialéticos); século XIII (o triunfo do aristotelismo).
O
segundo período da escolástica é dominado pela figura soberana de Tomás
de Aquino, o Aristóteles do pensamento filosófico cristão; este período
coincide com a Segunda metade do século XIII.
Depois
de Tomás de Aquino, a escolástica declina como metafísica (séculos XIV e
XV), devido a um anacrônico e ilógico retorno ao agostinianismo.
Afirmam-se, entretanto, ao mesmo tempo, tendências novas para a
experiência e a concretidade, representando como que o prelúdio do
pensamento moderno. Tal desenvolvimento da escolástica no sentido da
experiência e da concretidade, é devido em especial aos franciscanos
ingleses de Osford - Rogério Bacon, Duns Scoto, Guilherme de Occam -, em
conformidade com as tendências positivas e práticas do espírito
anglo-saxônio.
Educação e Cultura na Idade Média
Carlos
Magno pretendia dar uma unidade interior, espiritual, ao seu vasto e
vário império e, portanto, educar intelectual, moral e religiosamente os
povos bárbaros que o constituíam. Deste modo restauraria a civilização e
a religião, a cultura clássica e o catolicismo e lhes daria incremento.
Para tanto, o meio natural eram as escolas, e o clero se apresentava
como o mais apto e preparado docente, quer pelo seu imanente caráter de
mestre do povo, quer pela cultura de que era dotado. Na intenção de
Carlos Magno, complexo devia ser o papel das escolas, que ele ia
fundando e desenvolvendo: formar, antes de tudo, mestres adequados para
as escolas, isto é, um clero culto; educar, em seguida, a massa popular,
seu escopo final; preparar uma classe dirigente em geral e, em
especial, os funcionários do império.
Havia
nos mosteiros beneditinos escolas monásticas, surgidas da própria
exigência de uma observância adequada da Regra de São Bento.
Paulatinamente espalharam-se também as escolas episcopais, imitações
atualizadas das escolas catequéticas do cristianismo primitivo. As
escolas monásticas dos mosteiros visavam, antes de tudo, a formação dos
monges futuros (escolas internas), e, depois, a formação dos leigos
cultos (escolas externas), proporcionando, ao mesmo tempo, o ensino
religioso e os rudimentos das ciências profanas. O programa de ensino
era, inicialmente, bastante elementar: leitura, aprender a escrever,
canto orfeônico e um tanto de aritmética. As escolas episcopais - que
surgem nas cidades, ao passo que as escolas monásticas surgem nos
mosteiros afastados das cidades - visavam, em especial, a formação do
clero secular e também de leigos instruídos, para a vida civil. Presidia
a estas escolas um eclesiástico chamado scholasticus, dependente
diretamente do bispo, donde o nome de escolástica à doutrina e, por
conseguinte, à filosofia ensinadas. Os docentes eram também
eclesiásticos e denominados também scholastici. Carlos Magno dará muito
incremento a ambas as escolas e, ademais, fundará junto da corte
imperial a assim chamada escola palatina, que pode ser considerada como a
primeira universidade medieval. Mencionamos também como, com o correr
do tempo, no âmbito das paróquias, as escolas paroquiais, destinadas a
ensinar ao povo os primeiros elementos do saber.
Para
elaborar o seu vasto plano de política escolar, Carlos Magno chamou à
corte Alcuíno (735-804, mais ou menos), que veio da Inglaterra, o
viveiro da cultura naquela época. E sob a sua inspiração, a partir do
ano 787, foram emanados os decretos capitulares para a organização das
escolas, enquanto o douto inglês ditava-lhes o programa relativo, que se
espalhou pelo vasto império e perdurou invariado, podemos dizer,
durante toda a Idade Média.
O
programa de Alcuíno abraçava as sete artes liberais, de que acima
falamos, repartidas no trívio e no quadrívio. O trívio abraçava as
disciplinas formais: gramática, retórica, dialética, esta última
desenvolvendo-se, mais tarde, na filosofia; o quadrívio abraçava as
disciplinas reais: aritmética, geometria, astronomia, música, e, mais
tarde, a medicina.
Sob
a direção de Alcuíno, foi constituída junto da corte de Carlos Magno a
famosa escola palatina . Nela ensinaram os homens mais famosos da época,
como, por exemplo, o historiador Paulo Diácono, o gramático Pedro de
Pisa, o teólogo Paulino de Aquiléia. Frequentavam esta escolas o próprio
imperador, os príncipes e os jovens da nobreza. Outras escolas
surgiram, em seguida, especialmente na França, modeladas na escola
palatina.
Ao
lado desta instrução e educação eclesiásticas, ministradas por
eclesiásticos e, sobretudo, a eclesiásticos, temos na Idade Média uma
educação militar, ministrada por militares e a militares; a Igreja, bem
cedo, imprimiu também a esta educação uma orientação ética, religiosa,
católica. Como é sabido, o feudalismo é uma organização social,
política, econômica, militar, inicialmente baseada na força, segundo o
espírito dos bárbaros dominadores.
A Escolástica Pré-Tomista
Os Séculos IX e X:
Scoto Erígena e o Problema dos Universais
A
história da filosofia escolástica começa propriamente com o nome de
Scoto Erígena. João Scoto Erígena nasceu na Irlanda, dita Scotia maior ,
Eriu em língua céltica, donde o nome de Scoto Erígena. Pelo ano de 874 é
chamado à corte culta e brilhante de Carlos o Calvo, para presidir e
lecionar na escola palatina. Parece Ter falecido em França pelo ano 877.
A sua obra principal é Da Divisão da Natureza (847), em cinco livros; é
um diálogo entre mestre e discípulo e se inspira no neoplatonismo do
pseudo Dionísio Areopagita, que Erígena traduziu do grego para o latim.
Foi condenada pela Igreja (1225), e pode-se dizer que representa a
falência definitiva das tentativas de síntese entre neoplatonismo
emanatista e criacionismo cristão.
Erígena
parte da revelação divina para, depois, penetrar os mistérios mediante a
razão iluminada por Deus. Tal pretensão de penetrar racionalmente os
mistérios revelados devia acabar logicamente no racionalismo e, por
consequência, na supressão do sobrenatural, por mais ortodoxa que fosse a
intenção do autor.
Eminentemente
neoplatônico é o esquema especulativo de Da Divisão da Natureza: a
descida da Unidade à multiplicidade, e retorno da multiplicidade à
Unidade. De Deus desce-se às ideias supremas, aos gêneros, às espécies,
aos indivíduos, e vice-versa. Deste modo, a divisão da natureza, da
realidade, fica assim configurada:
1°. - A natureza que não é criada e cria (Deus Padre);
2°. - A natureza que é criada e cria (o Verbo de Deus, em que são contidas as ideias eternas, exemplares e causas das coisas);
3°. - A natureza que é criada e não cria (as coisas, realizadas mediante o Espírito de Deus);
4°.
- A natureza que não é criada e não cria (isto é, Deus, concebido,
porém, como ômega, termo, fim da realidade, e não como alfa, princípio).
Como se vê, as fases primeira e quarta coincidem (Deus = não criado),
bem como coincidem as fases segunda e terceira (mundo = criado).
O
problema dos universais, isto é, do valor dos conceitos, das ideias,
problema que tão cedo e tão longamente interessou a escolástica, teve
uma solução radical no pensamento escotista. Que valor têm os conceitos,
que são universais, em relação e enquanto representativos das coisas,
que são, ao contrário, particulares? O problema tem uma importância
fundamental filosófica, não apenas lógica e dialética, mas também
gnosiológica e metafísica.
As
soluções desse problema oferecidas pela escolástica são
substancialmente, três: a solução chamada do realismo transcendente
(platônica); a solução do realismo moderado, imanente (aristotélica); a
solução nominalista.
Segundo
a solução do realismo transcendente, o universal, a ideia de uma
realidade em si, não existe apenas fora da mente, mas também fora do
objeto (universal ante rem ): - é a solução platônica, geralmente
adotada pela escolástica incipiente. Segundo a solução do realismo
moderado , imanente, o universal tem em si uma realidade objetiva, fora
da mente, mas é imanente nos objetos singulares de que é essência,
forma, princípio ativo (universal in re): - corresponde à posição
aristotélica, com a doutrina da forma que determina a matéria. A solução
conceptualista-nominalista sustenta que o universal não tem nenhuma
existência objetiva, mas apenas mental (universal post rem), ou até
puramente nominal (nominalismo) - no mundo clássico esta posição é
defendida pelos sofistas, estóicos, epicuristas, céticos, isto é, pelas
gnosiologias empirista e sensitista.
Os Séculos XI e XII:
Místicos e Dialéticos
Depois
da decadência cultural que se seguiu à renascença carolíngia, começa e
se manifesta nos séculos XI e XII um renascimento especulativo. E isto
não obstante a luta dos teólogos, dos místicos, contra a ciência (a
filosofia) por eles considerada um resíduo pagão, uma distração mundana,
vaidade e orgulho; e, portanto, contra os filósofos, e os dialéticos
que a cultivavam. Os maiores representantes da corrente mística são: São
Pedro Damião no século XI, São Bernardo de Claraval no século XII; da
corrente dialética os maiores expoentes são: Santo Anselmo de Aosta no
século XI e Pedro Abelardo no século XII.
São
Pedro Damião, cardeal e arcebispo ostiense, conselheiro do monge
Hildebrando, mais tarde Papa Gregório VII, escreveu Da Divina
Onipotência. Nesta obra enaltece a onipotência de Deus, até colocá-la
acima de toda lei racional, inclusive o princípio de contradição; daí a
vaidade da ciência, da filosofia para entender Deus e as suas obras. São
Bernardo de Claraval rejeita, asceticamente, o saber profano como um
perigo e um luxo. A verdadeira sabedoria consiste no conhecimento da
própria miséria, na compaixão para com a miséria do próximo, na
contemplação de Deus, dos divinos mistérios, de Cristo crucificado, e
culmina no êxtase. O caminho da sabedoria é a humildade.
Santo
Anselmo (1033-1109) nasceu em Aosta; foi monge prior e abade do
mosteiro beneditino de Bec na Normandia e, depois, arcebispo de
Canterbury na Inglaterra. As suas obras principais são: O Monologium,
onde se propõe demonstrar a existência de Deus com um argumento simples e
evidente, capaz de convencer imediatamente o ateu. Anselmo de Aosta é o
primeiro grande filósofo medieval, após Scoto Erígena. Também ele é um
platônico-agostiniano. O seu lema é: creio para compreender, o que
significa partir da revelação divina, da fé e não da razão; mas é
preciso penetrar depois a fé mediante a razão.
O
nome de Anselmo de Aosta é ligado ao famoso argumento ontológico , a
priori , para demonstrar a existência de Deus; este argumento é contido
no Proslogium . Pretende ele demonstrar a existência de Deus, partindo
do mero conceito de Deus. O conceito que temos de Deus é o de um ser
perfeitíssimo e, logo, Deus deve também existir realmente, do contrário
não mais seria perfeitíssimo, faltando-lhe a existência. Em realidade, o
argumento ontológico não vale: porquanto não podemos, no nosso
conhecimento, passar da ordem lógica para a ordem ontológica, das ideias
aos fatos, mas deve-se passar das coisas às ideias, da ordem real à
ordem ideal.
Pedro
Abelardo (1097-1142), natural de Bretanha, estudante e, mais tarde,
professor famoso em Paris, centro cultural do mundo católico, tornou-se
religioso e foi peregrinando por muitos mosteiros e cátedras, após uma
aventura amorosa com Heloísa, que lhe acarretou trágicas consequências.
Acusado de heresia, foi condenado por dois concílios. Abelardo é uma das
mais originais figuras do mundo medieval, mesmo faltando-lhe a
profundidade e a capacidade sistemática de Santo Anselmo. Em conclusão,
Abelardo é, ao mesmo tempo, filósofo e teólogo, grego e cristão, cético e
sistemático, com um grande pendor para a crítica e a dialética.
Escreveu
as obras seguintes: História das Calamidades, conto biográfico da sua
aventura com Heloísa; Dialética; Conhece-te a ti mesmo; Sic et non. No
ensaio ético Conhece-te a ti mesmo valoriza, na vida moral, o elemento
subjetivo, intencional, - elemento descurado na Idade Média - em
confronto com o elemento objetivo, legal. Reconhecendo embora que são
necessários os dois elementos, a fim de que haja ação plenamente moral,
Abelardo sustenta ser mais moral um ato executado com reta intenção,
ainda que objetivamente mau, do que um ato executado conforme a lei, mas
com intenção má. Também interessante é a sua posição crítica na
pesquisa filosófica: a dúvida nos leva para a investigação, a
investigação nos leva à ciência. Na obra Sic et non - coleção de
sentenças contrastantes dos padres sobre assuntos da Escritura e da
teologia - Abelardo se integra nas fileiras dos sentenciários, isto é,
dos autores dos libri sententiarum entre os quais o mais famoso é Pedro
Lombardo, (século XII), chamado precisamente magister sententiarum. Os
livros das sentenças eram coleções sistemáticas - mais ou menos críticas
- das doutrinas das Padres, ordenadas segundo o esquema: Deus, criação,
queda, redenção, meios de salvação. Preparam as grandes sumas
medievais, especialmente as tomistas, que são construções sistemáticas
elaboradas criticamente.
Encerra-se
assim o século XII e está nos albores o século XIII, o século de ouro
da escolástica e do pensamento filosófico cristão.
ESCOLÁSTICA PÓS-TOMISTA
O Século XIII: O Triunfo de Aristóteles
A
atividade filosófica da escolástica pré-tomista foi essencialmente
lógico-dialética e, logo, formal. Esta atividade formal, intensa e
penetrante, esperava um conteúdo adequado, racional, filosófico. E tal
conteúdo lhe foi proporcionado pela descoberta do sistema aristotélico
integral, que representa o ápice do pensamento helênico. O mundo
latino-cristão, escolástico, depois de conhecido Aristóteles através da
cultura árabe, apaixonou-se pela filosofia aristotélica, que estudou
intensamente. Este movimento cultural e filosófico se desenvolveu
especialmente no âmbito das universidades, então surgidas e organizadas
eficientemente, graças aos pensadores pertencentes às ordens religiosas,
os quais a tudo renunciaram, salvo à ciência e à caridade.
A
atitude do mundo latino-cristão perante Aristóteles foi tríplice: uma
decidida aversão à filosofia que queria constituir-se unicamente com
meios racionais, e um retorno ao agostianismo (São Boaventura); um culto
idolátrico para com o Estagirita, que foi identificado com a própria
razão humana e preferido, no fundo, à revelação cristã, quando não
concordava com a razão (averroísmo latino); uma aceitação e valorização
do sistema aristotélico, mas crítica e racional, pelo qual se chegou à
construção de uma filosofia distinta e autônoma, mas em harmonia
hierárquica com a fé (Tomás de Aquino).
Como
dissemos, foram os árabes - e secundariamente os hebreus - que levaram
ao conhecimento do mundo latino-cristão a filosofia de Aristóteles. Os
árabes, após terem conquistado o oriente helenista, entraram em contato
com a cultura grega, especialmente na Síria. Em seguida, estendendo suas
conquistas até o ocidente europeu, trouxeram-lhe a própria cultura
impregnada de aristotelismo. Os árabes foram admiradores de Aristóteles e
da sua filosofia, que salvaram das invasões bárbaras durante as trevas
medievais do Ocidente latino. E assim, originariamente bárbaros eles
mesmos, os árabes, por sua vez, foram civilizados pelo pensamento grego,
aristotélico. Os maiores filósofos árabes conhecedores de Aristóteles e
que influíram profundamente sobre o Ocidente latino-cristão, foram
Avicena e Averroés. Avicena tentou harmonizar a filosofia aristotélica
com a religião islâmica. Averroés, - o famoso comentador de Aristóteles -
afirmava ao invés a subordinação da religião a filosofia quando as
argumentações delas fossem contrastantes, e considerava a religião como
uma filosofia simbólica para o vulgo.
Era
preciso traduzir do árabe para o latim as obras de Aristóteles e os
comentários árabes. Foi o que fez, nos meados do século XII, uma
sociedade de homens cultos surgida em Toledo, na Espanha. Mais tarde
sentiu-se a necessidade de traduzir diretamente do grego as obras de
Aristóteles, e, por conselho de Tomás de Aquino, Guilherme de Maerbeke
(falecido em 1286) fez essa tradução, que proporcionou aos latinos o
conhecimento do genuíno pensamento do Estagirita.
Ao
mesmo tempo se desenvolveram as universidades, as grandes universidades
medievais, surgidas geralmente das escolas episcopais; famosas mais que
todas as outras, foram as universidades de Paris e de Oxford. A
universidade de Paris, a mais ilustre universidade da Idade Média,
desenvolveu especialmente a filosofia e a teologia, inspirando-se na
mentalidade aristotélica, ao passo que a universidade de Oxford
dedicou-se especialmente às ciências naturais, inspirando-se na
mentalidade agostiniana. O conjunto dos professores e dos alunos da
universidade de Paris, em princípios do século XII, constituiu um corpo
único, uma universitas única, e obteve das autoridades civis e
religiosas reconhecimento jurídico e grandes privilégios. Especialmente
os papas protegeram a universidade de Paris, devido à importância que
tinha naquele estabelecimento do ensino superior universitário a
teologia. Desta sorte, tal universidade se tornou como que a cidadela
cultural da ortodoxia católica, o seminário dos filósofos e dos teólogos
de todo mundo.
Nessas
universidades recém-organizadas, bem cedo, contra a vontade dos leigos e
por desejo dos papas, entraram e tiveram preponderância professores
pertencentes as duas ordens religiosas surgidas no século XIII: os
Dominicanos , fundados por São Domingos de Gusmão, espanhol, e os
Franciscanos , fundados por São Francisco de Assis, italiano. A
característica nova e comum destas duas ordens religiosas foi a pobreza
individual e coletiva, donde o nome de mendicantes a elas atribuído, e
também certa liberdade a respeito das obrigações conventuais, para
melhor facultar o cultivo do estudo e a pregação apostólica entre o
povo. Os dominicanos dedicaram-se mais ao estudo, à ciência,
inspirando-se no pensamento aristotélico, exercendo, destarte, sua maior
influência entre as classes sociais elevadas; os franciscanos, ao
contrário, propuseram-se como finalidade principal a caridade ativa e
tiveram uma enorme influência sobre o povo, inspirando-se na mentalidade
agostiniana.
Os Filósofos Franciscanos
Os
filósofos franciscanos julgaram fosse mister dar uma forma teórica à
atitude prática, afetiva, sentimental do Pobrezinho de Assis que
entrevia Deus e Jesus Cristo em todas as coisas. E julgaram os filósofos
franciscanos que, para tanto, se prestasse o agostinianismo, com o seu
misticismo e voluntarismo - julgando inapto para esse fim o
racionalismo, o empirismo e o intelectualismo aristotélicos.
O
maior representante do agostinianismo antiaristotélico foi São
Boaventura (1221-1274); nasceu na Itália, estudou em Paris e, mais
tarde, foi geral da sua ordem e depois cardeal de Albano. Suas obras
principais são: os Comentários a Pedro Lombardo, o Itinerário da Mente
para Deus, sobre a Redução das Artes à Teologia.
Segundo
São Boaventura, a tarefa da filosofia não é teórica e racional, mas
prática e religiosa, isto é, a filosofia deve levar a Deus, que se
atinge imediatamente em todas as coisas e se possui pela união mística,
como ele descreve no Itinerário. A gnosiologia de Boaventura inspira-se
no iluminismo agostiniano, que lhe sugeriu a prova intuitiva da
existência de Deus, enquanto ele é imediatamente presente ao espírito
humano. A metafísica de Boaventura, pois, afirma três princípios
diretamente opostos ao aristotelismo tomista: a existência de uma
matéria geral sem as formas específicas; a pluralidade das formas em um
mesmo ser, tantas quantas são as suas propriedades essenciais; a
universalidade da matéria fora de Deus, porque todos os seres são
compostos de matéria e de forma, inclusive as essências angélicas e as
almas humanas. A psicologia de Boaventura, pois, sustenta que a alma
humana é uma substância completa independentemente do corpo, composta de
forma e matéria, auto-suficiente.
Diametralmente
oposto a este aristotelismo agostiniano, é o aristotelismo exagerado
averroísta, que aceita o sistema aristotélico sem crítica nenhuma, e,
por consequência, será inteiramente infecundo. Esta orientação
filosófica é chamada averroísta, porquanto admite - como admitia
Averroés - que haja teses filosóficas em contraste com o teísmo da
religião, ainda que pareça limitar-se a sustentar a existência de duas
verdades paralelas e contrastantes, e não chegar até subordinar a
religião à filosofia. O maior representante do averroísmo latino é Siger
de Brabante (falecido pelo ano de 1284), professor na universidade
parisiense, condenado mais tarde pela Igreja. A sua obra principal é Da
Alma Intelectiva. As teses mais notáveis de Siger em contraste com o
cristianismo são: a negação da providência divina; a afirmação da
eternidade do mundo; a afirmação da unidade do intelecto na espécie
humana e a consequente negação da imortalidade pessoal do homem. Entre
estas duas posições extremadas - de idolatria ou de irredutível
hostilidade - a respeito de Aristóteles, medeia Tomás de Aquino, que
realizará a justificação da filosofia e da teologia.
A Escolástica Pós-Tomista
O
tomismo era, talvez, um movimento excessivamente novo e arrojado, para
poder súbita e definitivamente impor-se no âmbito do pensamento cristão
medieval. Houve, portanto, no mesmo século XIII, logo depois de uma
reação violenta contra o tomismo, um retorno especulativo ao
agostinianismo, que julgou encobrir o seu anacronismo, tentando uma
superação do racionalismo tomista. Entretanto esse movimento terminará
nas posições fideístas do pré-tomismo, acentuadas e tornadas piores após
a poderosa construção crítica e racional do Aquinate; e terminará,
consequentemente, na ruína da metafísica, da filosofia, da ciência. A
escolástica pós-tomista, contudo, sentiu profundamente o problema da
concretidade e da experiência, indubitavelmente negligenciado pela
escolástica clássica, donde surgirão a história e a ciência modernas -
com suas técnicas - que constituem o valor do pensamento moderno.
O
centro desta escolástica pós-tomista é a universidade de Oxford, na
Inglaterra, cujas características tendências empiristas, experimentais,
positivas, práticas, são conhecidas.
Rogério Bacon
Rogério
Bacon (1210-1294), nascido na Inglaterra, entrou na ordem franciscana e
estudou nas universidades de Oxford e de Paris. Após Ter lecionado
algum tempo em Oxford, foi obrigado a deixar a cátedra. Estabeleceu-se
então em Paris, onde levou uma vida agitada e foi condenado à prisão
pelos próprios superiores da sua ordem. Crítico agressivo das maiores
autoridades da sua época, foi um temperamento genial e original,
enciclopédico e místico, cientista e supersticioso. A sua obra mais
importante é a chamada Obra Maior; publicou ainda a Obra Menor e a
Terceira Obra .
Segundo
Bacon, três são as fontes do saber: a autoridade, a razão, a
experiência. A autoridade dá-nos a crença, a fé não, porém, a ciência,
porquanto não nos fornece a compreensão das coisas que formam o objeto
da crença. A razão proporciona essa compreensão, quer dizer, a ciência;
no entanto, não consegue distinguir o sofisma da demonstração
verdadeira, se não achar fundamento e confirmação na experiência. A
ciência experimental constitui a fonte mais sólida da certeza. Conforme
Bacon, todavia, deve-se entender por experiência não apenas a que se
alcança pelos sentidos externos e nos oferece o mundo corpóreo, mas
também a experiência proporcionada pela iluminação interior de Deus. É,
como se vê, um vestígio do agostinianismo tradicional. Do
agostinianismo, Bacon aceita também a unidade entre filosofia e
teologia, que Tomás tinha distinguido.
João Duns Scoto
O
maior expoente da escolástica pós-tomista é, sem dúvida, João Duns
Scoto, o doutor sutil. Também ele, inglês e franciscano, foi aluno e
professor nas universidades de Oxford e de Paris. Faleceu em 1308. Suas
obras principais são: a Obra Oxoniense, isto é, o tradicional comentário
das sentenças de Pedro Lombardo; os Teoremas Sutilíssimos , as Questões
Várias , a Obra Parisiense. Nestas obras revela-se um crítico e um
pensador de muito superior a São Boaventura.
O
agostinianismo de Scoto manifesta-se, antes de tudo, no conceito de
filosofia, entendida como instrumento para entender a fé e não como obra
autônoma do espírito, como julga Tomás de Aquino. E, por sua vez, a
teologia não é - segundo Scoto - disciplina essencialmente especulativa -
como julga Aquinate - mas unicamente prática, em conformidade com o
espírito do voluntarismo agostiniano.
A
gnosiologia iluminista-intuicionista agostiniana firma-se no escotismo
não tanto como participação da inteligência humana na luz divina, quanto
como sendo a espontaneidade e a independência do intelecto com respeito
ao sentido. Em todo caso, está contra o chamado empirismo
aristotélico-tomista, conforme o qual o nosso conhecimento começa pela
sensibilidade. Scoto concede, em linha de fato, o empirismo do nosso
conhecimento; não o admite em linha de direito, como exige o tomismo. E
isso seria devido - segundo o doutor sutil - à escravidão da alma com
respeito ao corpo, decorrente do pecado. Pelo contrário, deveria a alma,
por sua natureza, conhecer diretamente as essências, não só as
materiais mas também as espirituais.
Na
teodicéia, Scoto (contra a corrente agostiniana e em harmonia com o
tomismo) ensina que Deus não é conhecido por intuição; a existência de
Deus é demonstrável apenas com argumentos a posteriori , embora procure
também combinar esta demonstração com o argumento ontológico, a priori .
Quanto à natureza divina, o atributo essencial de Deus seria a
infinidade.
Na
psicologia escotista aparece ainda uma doutrina inspirada no
agostinianismo. É a doutrina do conhecimento intuitivo da essência da
alma, princípio de todos os demais conhecimentos. E também inspira-se no
agostinianismo a doutrina de certa independência da alma com respeito
ao corpo; seria a alma, por natureza, uma substância completa.
Com
efeito, segundo Scoto, todos os seres, mesmos os espirituais, são
compostos de matéria e de forma. A matéria não é mera potência,
inexistente sem a forma, mas tem uma realidade sua própria; a forma não é
única, mas há multiplicidade de formas em cada indivíduo. A
individuação não depende da matéria (pelo que o indivíduo fica
incognoscível intelectualmente), mas de um elemento formal individual,
chamado haecceitas (que se sobrepõe à matéria por si subsistente e à
hierarquia das formas); destarte, o indivíduo se tornaria
intelectualmente cognoscível.
Contra
o intelectualismo tomista, Scoto sustenta a primazia da vontade: a
vontade não depende do intelecto, mas o intelecto depende da vontade. A
tarefa do homem é conhecer para querer e amar; na vida eterna, Deus
seria atingido, na visão beatífica, pela vontade, pelo amor e não pelo
intelecto. Scoto põe também em Deus esse primado de vontade sobre o
intelecto. Desse modo, as coisas criadas por Deus não dependem
fundamentalmente da razão divina, e sim da vontade divina. E a própria
ordem ética não é intrinsecamente boa por motivo racional, mas
unicamente porquanto é querida por Deus, que poderia impor uma ordem
moral oposta, em que, por exemplo, a mentira, o adultério, o furto, o
homicídio, etc., seriam ações morais, e imorais as ações opostas.
Guilherme de Occam
Guilherme
de Occam é, ao mesmo tempo, um opositor e um discípulo de Scoto:
discípulo, no sentido de que desenvolve o individualismo de haecceitas
escotista no nominalismo, que ele fez reviver no ambiente experimental
da universidade de Oxford, depois do realismo imanente
aristotélico-tomista. Guilherme nasceu em Occam na Inglaterra pouco
antes do ano de 1300; fez-se franciscano, estudou e lecionou na
Universidade de Oxford. Processado por heresia pela Santa Sé,
refugiou-se junto do Imperador, então em luta contra o Papa, e escreveu
várias obras para defender o imperador contra a Santa Sé. Faleceu pelo
ano 1350. Suas obras especulativas são, além do Comentário às Sentenças
de Pedro Lombardo: Sete Várias Questões , Suma de Toda a Lógica ,
Centilóquio Teológico.
Segundo
Occam, o conhecimento sensível é superior ao conhecimento intelectual,
porquanto o primeiro é intuitivo, ao passo que o segundo é abstrato; o
primeiro dá-nos a realidade, concreta e individual, ao passo que o
segundo nos dá apenas as semelhanças entre seres reais (as ideias
gerais), e, por conseguinte, um conhecimento vago e confuso deles, que
não nos permite distingui-los um do outro. O conhecimento sensível
dá-nos as relações reais entre as coisas reais (o nexo causal, que se
conhece só pela experiência), ao passo que o conhecimento intelectual
nos proporciona conhecer as relações lógicas entre conceitos abstratos,
sem nada nos dizer em torno da realidade das coisas. Em conclusão, a
sensação é o sinal de um objeto na alma; o conceito é sinal de mais
objetos percebidos como semelhantes. O conceito, pois, é um sinal
natural, representado pelo nome que é, porém, um sinal artificial,
variável segundo as diversas línguas.
Estamos
na linha do experimentalismo inglês da Universidade de Oxford; desse
experimentalismo deriva o empirismo, e deste deriva logicamente a ruína
do conceito e, consequentemente, da ciência, da filosofia, da moral,
etc. E deriva também a ruína das próprias noções de substância e causa,
indispensáveis à própria ciência natural, porquanto essas noções de
substância e causa não são experimentáveis. Pelo fato de a alma e Deus
não serem sensíveis, segue-se que não são cognoscíveis. Deus não se pode
provar a posteriori mediante o princípio de causalidade, válido
empiricamente; e também não se pode provar - pela via de causalidade - a
alma, de que é impossível demonstrar cientificamente a imortalidade.
Dado
que em torno de Deus nada conhecemos filosoficamente, e dado outrossim o
voluntarismo divino escotista, a vontade de Deus é absolutamente livre
para criar uma moral mesmo oposta à presente, e para estabelecer uma
outra ordem sobrenatural (por exemplo, se Deus quisesse, o Verbo poderia
Ter-se encarnado num burro). Destarte, a ciência humana reduz-se à
física, que nos faz conhecer os seres materiais, sensíveis, a lógica que
nos ilustra as relações entre os conceitos. Portanto, nenhuma
metafísica: o conhecimento de Deus, da alma, da moral, etc., é
abandonado inteiramente à Revelação, à fé (fideísmo). Esta absoluta
divisão entre a razão e a fé, coloca o ocamismo em uma posição afim à do
averroísmo da dupla verdade. Com o diminuir da fé medieval e com o
firmar-se do humanismo moderno, bem cedo a razão se porá contra a fé e a
substituirá. O ocamismo tem um êxito vasto e imediato nos séculos XIV e
XV; mas logo declina, degenerando num formalismo lógico. Com ele
declina e, historicamente, termina a escolástica medieval.
SÃO TOMAZ DE AQUINO
A Vida e as Obras
Após
uma longa preparação e um desenvolvimento promissor, a escolástica
chega ao seu ápice com Tomás de Aquino. Adquire plena consciência dos
poderes da razão, e proporciona finalmente ao pensamento cristão uma
filosofia. Assim, converge para Tomás de Aquino não apenas o pensamento
escolástico, mas também o pensamento patrístico, que culminou com
Agostinho, rico de elementos helenistas e neoplatônicos, além do
patrimônio de revelação judaico-cristã, bem mais importante.
Para
Tomás de Aquino, porém, converge diretamente o pensamento helênico, na
sistematização imponente de Aristóteles. O pensamento de Aristóteles,
pois, chega a Tomás de Aquino enriquecido com os comentários
pormenorizados, especialmente árabes.
Nasceu
Tomás em 1225, no castelo de Roccasecca, na Campânia, da família feudal
dos condes de Aquino. Era unido pelos laços de sangue à família
imperial e às famílias reais de França, Sicília e Aragão. Recebeu a
primeira educação no grande mosteiro de Montecassino, passando a
mocidade em Nápoles como aluno daquela universidade. Depois de ter
estudado as artes liberais, entrou na ordem dominicana, renunciando a
tudo, salvo à ciência. Tal acontecimento determinou uma forte reação por
parte de sua família; entretanto, Tomás triunfou da oposição e se
dedicou ao estudo assíduo da teologia, tendo como mestre Alberto Magno,
primeiro na universidade de Paris (1245-1248) e depois em Colônia.
Também
Alberto, filho da nobre família de duques de Bollstädt (1207-1280),
abandonou o mundo e entrou na ordem dominicana. Ensinou em Colônia,
Friburgo, Estrasburgo, lecionou teologia na universidade de Paris, onde
teve entre os seus discípulos também Tomás de Aquino, que o acompanhou a
Colônia, aonde Alberto foi chamado para lecionar no estudo geral de sua
ordem. A atividade científica de Alberto Magno é vastíssima: trinta e
oito volumes tratando dos assuntos mais variados - ciências naturais,
filosofia, teologia, exegese, ascética.
Em
1252 Tomás voltou para a universidade de Paris, onde ensinou até 1269,
quando regressou à Itália, chamado à corte papal. Em 1269 foi de novo à
universidade de Paris, onde lutou contra o averroísmo de Siger de
Brabante; em 1272, voltou a Nápoles, onde lecionou teologia. Dois anos
depois, em 1274, viajando para tomar parte no Concílio de Lião, por
ordem de Gregório X, faleceu no mosteiro de Fossanova, entre Nápoles e
Roma. Tinha apenas quarenta e nove anos de idade.
As obras do Aquinate podem-se dividir em quatro grupos:
1.
Comentários: à lógica, à física, à metafísica, à ética de Aristóteles; à
Sagrada Escritura; a Dionísio pseudo-areopagita; aos quatro livros das
sentenças de Pedro Lombardo.
2.
Sumas: Suma Contra os Gentios, baseada substancialmente em
demonstrações racionais; Suma Teológica, começada em 1265, ficando
inacabada devido à morte prematura do autor.
3. Questões: Questões Disputadas (Da verdade, Da alma, Do mal, etc.); Questões várias.
4. Opúsculos: Da Unidade do Intelecto Contra os Averroístas; Da Eternidade do Mundo, etc.
O Pensamento: A Gnosiologia
Diversamente
do agostinianismo, e em harmonia com o pensamento aristotélico, Tomás
considera a filosofia como uma disciplina essencialmente teorética, para
resolver o problema do mundo. Considera também a filosofia como
absolutamente distinta da teologia, - não oposta - visto ser o conteúdo
da teologia arcano e revelado, o da filosofia evidente e racional.
A
gnosiologia tomista - diversamente da agostiniana e em harmonia com a
aristotélica - é empírica e racional, sem inatismos e iluminações
divinas. O conhecimento humano tem dois momentos, sensível e
intelectual, e o segundo pressupõe o primeiro. O conhecimento sensível
do objeto, que está fora de nós, realiza-se mediante a assim chamada
espécie sensível . Esta é a impressão, a imagem, a forma do objeto
material na alma, isto é, o objeto sem a matéria: como a impressão do
sinete na cera, sem a materialidade do sinete; a cor do ouro percebido
pelo olho, sem a materialidade do ouro.
O
conhecimento intelectual depende do conhecimento sensível, mas
transcende-o. O intelecto vê em a natureza das coisas - intus legit -
mais profundamente do que os sentidos, sobre os quais exerce a sua
atividade. Na espécie sensível - que representa o objeto material na sua
individualidade, temporalidade, espacialidade, etc., mas sem a matéria -
o inteligível, o universal, a essência das coisas é contida apenas
implicitamente, potencialmente. Para que tal inteligível se torne
explícito, atual, é preciso extraí-lo, abstraí-lo, isto é,
desindividualizá-lo das condições materiais. Tem-se, deste modo, a
espécie inteligível , representando precisamente o elemento essencial, a
forma universal das coisas.
Pelo
fato de que o inteligível é contido apenas potencialmente no sensível, é
mister um intelecto agente que abstraia, desmaterialize,
desindividualize o inteligível do fantasma ou representação sensível.
Este intelecto agente é como que uma luz espiritual da alma, mediante a
qual ilumina ela o mundo sensível para conhecê-lo; no entanto, é
absolutamente desprovido de conteúdo ideal, sem conceitos diferentemente
de quanto pretendia o inatismo agostiniano. E, ademais, é uma faculdade
da alma individual, e não noa advém de fora, como pretendiam ainda i
iluminismo agostiniano e o panteísmo averroísta. O intelecto que
propriamente entende o inteligível, a essência, a ideia, feita
explícita, desindividualizada pelo intelecto agente, é o intelecto
passivo , a que pertencem as operações racionais humanas: conceber,
julgar, raciocinar, elaborar as ciências até à filosofia.
Como
no conhecimento sensível, a coisa sentida e o sujeito que sente, formam
uma unidade mediante a espécie sensível, do mesmo modo e ainda mais
perfeitamente, acontece no conhecimento intelectual, mediante a espécie
inteligível, entre o objeto conhecido e o sujeito que conhece.
Compreendendo as coisas, o espírito se torna todas as coisas, possui em
si, tem em si mesmo imanentes todas as coisas, compreendendo-lhes as
essências, as formas.
É
preciso claramente salientar que, na filosofia de Tomás de Aquino, a
espécie inteligível não é a coisa entendida, quer dizer, a representação
da coisa (id quod intelligitur), pois, neste caso, conheceríamos não as
coisas, mas os conhecimentos das coisas, acabando, destarte, no
fenomenismo. Mas, a espécie inteligível é o meio pelo qual a mente
entende as coisas extramentais (é, logo, id quo intelligitur). E isto
corresponde perfeitamente aos dados do conhecimento, que nos garante
conhecermos coisas e não idéias; mas as coisas podem ser conhecidas
apenas através das espécies e das imagens, e não podem entrar
fisicamente no nosso cérebro.
O
conceito tomista de verdade é perfeitamente harmonizado com esta
concepção realista do mundo, e é justificado experimentalmente e
racionalmente. A verdade lógica não está nas coisas e nem sequer no mero
intelecto, mas na adequação entre a coisa e o intelecto: veritas est
adaequatio speculativa mentis et rei. E tal adequação é possível pela
semelhança entre o intelecto e as coisas, que contêm um elemento
inteligível, a essência, a forma, a ideia. O sinal pelo qual a verdade
se manifesta à nossa mente, é a evidência; e, visto que muitos
conhecimentos nossos não são evidentes, intuitivos, tornam-se
verdadeiros quando levados à evidência mediante a demonstração.
Todos
os conhecimentos sensíveis são evidentes, intuitivos, e, por
consequência, todos os conhecimentos sensíveis são, por si, verdadeiros.
Os chamados erros dos sentidos nada mais são que falsas interpretações
dos dados sensíveis, devidas ao intelecto. Pelo contrário, no campo
intelectual, poucos são os nossos conhecimentos evidentes. São
certamente evidentes os princípios primeiros (identidade, contradição,
etc.). Os conhecimentos não evidentes são reconduzidos à evidência
mediante a demonstração, como já dissemos. É neste processo
demonstrativo que se pode insinuar o erro, consistindo em uma falsa
passagem na demonstração, e levando, destarte, à discrepância entre o
intelecto e as coisas.
A
demonstração é um processo dedutivo, isto é, uma passagem necessária do
universal para o particular. No entanto, os universais, os conceitos,
as ideias, não são inatas na mente humana, como pretendia o
agostinianismo, e nem sequer são inatas suas relações lógicas, mas se
tiram fundamentalmente da experiência, mediante a indução, que colhe a
essência das coisas. A ciência tem como objeto esta essência das coisas,
universal e necessária.
A Metafísica
A
metafísica tomista pode-se dividir em geral e especial. A metafísica
geral - ou ontologia - tem como objeto o ser em geral e as atribuições e
leis relativas. A metafísica especial estuda o ser em suas grandes
especificações: Deus, o espírito, o mundo. Daí temos a teologia racional
- assim chamada, para distingui-la da teologia revelada; a psicologia
racional (racional, porquanto é filosofia e se deve distinguir da
moderna psicologia empírica, que é ciência experimental); a cosmologia
ou filosofia da natureza (que estuda a natureza em suas causas
primeiras, ao passo que a ciência experimental estuda a natureza em suas
causas segundas).
O
princípio básico da ontologia tomista é a especificação do ser em
potência e ato. Ato significa realidade, perfeição; potência quer dizer
não-realidade, imperfeição. Não significa, porém, irrealidade absoluta,
mas imperfeição relativa de mente e capacidade de conseguir uma
determinada perfeição, capacidade de concretizar-se. Tal passagem da
potência ao ato é o vir-a-ser , que depende do ser que é ato puro; este
não muda e faz com que tudo exista e venha-a-ser. Opõe-se ao ato puro a
potência pura que, de per si, naturalmente é irreal, é nada, mas pode
tornar-se todas as coisas, e chama-se matéria.
A Natureza
Uma
determinação, especificação do princípio de potência e ato, válida para
toda a realidade, é o princípio da matéria e de forma. Este princípio
vale unicamente para a realidade material, para o mundo físico, e
interessa, portanto, especialmente à cosmologia tomista. A matéria não é
absoluto, não-ente; é, porém, irreal sem a forma, pela qual é
determinada, como a potência é determinada, como a potência é
determinada pelo ato. É necessária para a forma, a fim de que possa
existir um ser completo e real (substância). A forma é a essência das
coisas (água, ouro, vidro) e é universal. A individuação, a
concretização da forma, essência, em vários indivíduos, que só realmente
existem (esta água, este ouro, este vidro), depende da matéria, que
portanto representa o princípio de individuação no mundo físico. Resume
claramente Maritain esta doutrina com as palavras seguintes: "Na
filosofia de Aristóteles e Tomás de Aquino, toda substância corpórea é
um composto de duas partes substanciais complementares, uma passiva e em
si mesma absolutamente indeterminada (a matéria), outra ativa e
determinante (a forma)”.
Além
destas duas causas constitutivas (matéria e forma), os seres materiais
têm outras duas causas: a causa eficiente e a causa final. A causa
eficiente é a que faz surgir um determinado ser na realidade, é a que
realiza o sínolo, a saber, a síntese daquela determinada matéria com a
forma que a especifica. A causa final é o fim para que opera a causa
eficiente; é esta causa final que determina a ordem observada no
universo. Em conclusão: todo ser material existe pelo concurso de quatro
causas - material , formal , eficiente , final; estas causas constituem
todo ser na realidade e na ordem com os demais seres do universo
físico.
O Espírito
Quando
a forma é princípio da vida, que é uma atividade cuja origem está
dentro do ser, chama-se alma. Portanto, têm uma alma as plantas (alma
vegetativa: que se alimenta, cresce e se reproduz), e os animais (alma
sensitiva: que, a mais da alma vegetativa, sente e se move). Entretanto,
a psicologia racional, que diz respeito ao homem, interessa apenas a
alma racional. Além de desempenhar as funções da alma vegetativa e
sensitiva, a alma racional entende e quer, pois segundo Tomás de Aquino,
existe uma forma só e, por conseguinte, uma alma só em cada indivíduo; e
a alma superior cumpre as funções da alma inferior, como a mais contém o
menos.
No
homem existe uma alma espiritual - unida com o corpo, mas
transcendendo-o - porquanto além das atividades vegetativa e sensitiva,
que são materiais, se manifestam nele também atividades espirituais,
como o ato do intelecto e o ato da vontade. A atividade intelectiva é
orientada para entidades imateriais, como os conceitos; e, por
consequência, esta atividade tem que depender de um princípio imaterial,
espiritual, que é precisamente a alma racional. Assim, a vontade humana
é livre, indeterminada - ao passo que o mundo material é regido por
leis necessárias. E, portanto, a vontade não pode ser senão a faculdade
de um princípio imaterial, espiritual, ou seja, da alma racional, que
pelo fato de ser imaterial, isto é, espiritual, não é composta de partes
e, por conseguinte, é imortal.
Como
a alma espiritual transcende a vida do corpo depois da morte deste,
isto é, é imortal, assim transcende a origem material do corpo e é
criada imediatamente por Deus, com relação ao respectivo corpo já
formado, que a individualiza. Mas, diversamente do dualismo
platônico-agostiniano, Tomás sustenta que a alma, espiritual embora, é
unida substancialmente ao corpo material, de que é a forma. Desse modo o
corpo não pode existir sem a alma, nem viver, e também a alma, por sua
vez, ainda que imortal, não tem uma vida plena sem o corpo, que é o seu
instrumento indispensável.
Deus
Como
a cosmologia e a psicologia tomistas dependem da doutrina fundamental
da potência e do ato, mediante a doutrina da matéria e da forma, assim a
teologia racional tomista depende - e mais intimamente ainda - da
doutrina da potência e do ato. Contrariamente à doutrina agostiniana que
pretendia ser Deus conhecido imediatamente por intuição, Tomás sustenta
que Deus não é conhecido por intuição, mas é cognoscível unicamente por
demonstração; entretanto esta demonstração é sólida e racional, não
recorre a argumentações a priori, mas unicamente a posteriori , partindo
da experiência, que sem Deus seria contraditória.
As
provas tomistas da experiência de Deus são cinco: mas todas têm em
comum a característica de se firmar em evidência (sensível e racional),
para proceder à demonstração, como a lógica exige. E a primeira dessas
provas - que é fundamental e como que norma para as outras - baseia-se
diretamente na doutrina da potência e do ato. "Cada uma delas se firma
em dois elementos, cuja solidez e evidência são igualmente
incontestáveis: uma experiência sensível, que pode ser a constatação do
movimento, das causas, do contingente, dos graus de perfeição das coisas
ou da ordem que entre elas reina; e uma aplicação do princípio de
causalidade, que suspende o movimento ao imóvel, as causas segundas à
causa primeira, o contingente ao necessário, o imperfeito ao perfeito, a
ordem à inteligência ordenadora".
Se
conhecermos apenas indiretamente, pelas provas, a existência de Deus,
ainda mais limitado é o conhecimento que temos da essência divina, como
sendo a que transcende infinitamente o intelecto humano. Segundo o
Aquinate, antes de tudo sabemos o que Deus não é (teologia negativa),
entretanto conhecemos também algo de positivo em torno da natureza de
Deus, graças precisamente à famosa doutrina da analogia. Esta doutrina é
solidamente baseada no fato de que o conhecimento certo de Deus se deve
realizar partindo das criaturas, porquanto o efeito deve Ter semelhança
com a causa. A doutrina da analogia consiste precisamente em atribuir a
Deus as perfeições criadas positivas, tirando, porém, as imperfeições,
isto é, toda limitação e toda potencialidade. O que conhecemos a
respeito de Deus é, portanto, um conjunto de negações e de analogias; e
não é falso, mas apenas incompleto.
Quanto
aos problemas das relações entre Deus e o mundo, é resolvido com base
no conceito de criação, que consiste numa produção do mundo por parte de
Deus, total, livre e do nada.
A Moral
Também
no campo da moral, Tomás se distingue do agostinianismo, pois a moral
tomista é essencialmente intelectualista, ao passo que a moral
agostiniana é voluntarista, quer dizer, a vontade não é condição de
conhecimento, mas tem como fim o conhecimento. A ordem moral, pois, não
depende da vontade arbitrária de Deus, e sim da necessidade racional da
divina essência, isto é, a ordem moral é imanente, essencial,
inseparável da natureza humana, que é uma determinada imagem da essência
divina, que Deus quis realizar no mundo. Desta sorte, agir moralmente
significa agir racionalmente, em harmonia com a natureza racional do
homem.
Entretanto,
se a vontade não determina a ordem moral, é a vontade todavia que
executa livremente esta ordem moral. Tomás afirma e demonstra a
liberdade da vontade, recorrendo a um argumento metafísico fundamental. A
vontade tende necessariamente para o bem em geral. Se o intelecto
tivesse a intuição do bem absoluto, isto é, de Deus, a vontade seria
determinada por este bem infinito, conhecido intuitivamente pelo
intelecto. Ao invés, no mundo a vontade está em relação imediata apenas
com seres e bens finitos que, portanto, não podem determinar a sua
infinita capacidade de bem; logo, é livre. Não é mister acrescentar que,
para a integridade do ato moral, são necessários dois elementos: o
elemento objetivo, a lei, que se atinge mediante a razão; e o elemento
subjetivo, a intenção, que depende da vontade.
Analisando
a natureza humana, resulta que o homem é um animal social (político) e
portanto forçado a viver em sociedade com os outros homens. A primeira
forma da sociedade humana é a família, de que depende a conservação do
gênero humano; a Segunda forma é o estado, de que depende o bem comum
dos indivíduos. Sendo que apenas o indivíduo tem realidade substancial e
transcendente, se compreende como o indivíduo não é um meio para o
estado, mas o estado um meio para o indivíduo. Segundo Tomás de Aquino, o
estado não tem apenas função negativa (repressiva) e material
(econômica), mas também positiva (organizadora) e espiritual (moral).
Embora o estado seja completo em seu gênero, fica, porém, subordinado,
em tudo quanto diz respeito à religião e à moral, à Igreja, que tem como
escopo o bem eterno das almas, ao passo que o estado tem apenas como
escopo o bem temporal dos indivíduos.
Filosofia e Teologia
Em
torno do problema das relações entre filosofia e teologia, ciência e
fé, razão e revelação, e mais precisamente em torno do problema da
função da razão no âmbito da fé, Tomás de Aquino dá uma solução precisa e
definitiva mediante uma distinção clara entre as duas ordens. Com base
no sólido sistema aristotélico, é eliminada a doutrina da iluminação,
agostiniana, que levava inevitavelmente a uma confusão da teologia com a
filosofia. Destarte, é finalmente conquistada a consciência do que é
conhecimento racional e demonstração racional, ciência e filosofia: é um
lógico procedimento de princípios evidentes para conclusões
inteligíveis. E compreende-se, portanto, que não é possível demonstração
racional em matéria de fé, onde os princípios são, para nós, não
evidentes, transcendentes à razão, mistérios, e igualmente
ininteligíveis suas condições lógicas.
Em
todo caso, segundo o sistema tomista, a razão não é estranha à fé,
porquanto procede da mesma Verdade eterna. E, com relação à fé, deve a
razão desempenhar os papéis seguintes:
1.
A demonstração da fé, não com argumentos intrínsecos, de evidência, o
que é impossível, mas com argumentos extrínsecos, de credibilidade
(profecias, milagres, etc.), que garantem a autenticidade divina da
Revelação.
2. A demonstração da não irracionalidade do mistério e da sua conveniência, mediante argumentos prováveis.
3.
A determinação, enucleação e sistematização das verdades de fé, pelo
que a sacra teologia é ciência, e ciência em grau eminente, porquanto
essencialmente especulativa, ao passo que, para os agostinianos, é
essencialmente prática.
Tomás,
portanto, não confunde - como faz o agostinianismo - nem opõe - como
faz o averroísmo - razão e fé, mas distingue-as e as harmoniza. De modo
que nasce uma unidade dialética profunda entre a razão e a fé; tal
unidade dialética nasce da determinação tomista do conceito metafísico
de natureza humana; esta determinação tomista do conceito metafísico de
natureza humana tornou possível a averiguação das reais, efetivas
vulnerações da natureza humana; estas vulnerações são filosoficamente,
racionalmente, inexplicáveis. E demandam, por conseguinte, a Revelação
e, precisamente, os dogmas do pecado original e da redenção pela cruz.
O Tomismo
O
tomismo afirma-se e caracteriza-se como uma crítica que valoriza a
orientação do pensamento platônico-agostiniano em nome do racionalismo
aristotélico, que pareceu um escândalo, no campo católico, ao misticismo
agostiniano. Ademais, o tomismo se afirma e se caracteriza como o
início da filosofia no pensamento cristão e, por conseguinte, como o
início do pensamento moderno, enquanto a filosofia é concebida qual
construção autônoma e crítica da razão humana.
Sabemos
que, segundo a concepção platônico-agostiniana, o conhecimento humano
depende de uma particular iluminação divina; segundo esta doutrina,
portanto, o espírito humano está em relação imediata com o inteligível, e
tem, de certo modo, intuição do inteligível. A esta gnosiologia
inatista, Tomás opõe francamente a gnosiologia empírica aristotélica, em
virtude da qual o campo do conhecimento humano verdadeiro e próprio é
limitado ao mundo sensível. Acima do sentido há, sim, no homem, um
intelecto; este intelecto atinge, sim, um inteligível; mas é um
intelecto concebido como uma faculdade vazia, sem ideias inatas - é uma
tabula rasa, segundo a famosa expressão - ; e o inteligível nada mais é
que a forma imanente às coisas materiais. Essa forma é enucleada,
abstraída pelo intelecto das coisas materiais sensíveis.
Essa
gnosiologia é naturalmente conexa a uma metafísica e, em especial, a
uma antropologia, assim como a gnosiologia platônico-agostiniana era
conexa a uma correspondente metafísica e antropologia. Por isso a alma
era concebida quase como um ser autônomo, uma espécie de natureza
angélica, unida extrinsecamente a um corpo, e a materialidade do corpo
era-lhe mais de obstáculo do que instrumento. Por conseguinte, o
conhecimento humano se realizava não através dos sentidos, mas ao lado e
acima dos sentidos, mediante contato direto com o mundo inteligível;
precisamente como as inteligências angélicas, que conhecem mediante as
espécies impressas , ideias inatas. Vice-versa, segundo a antropologia
aristotélico-tomista, sobre a base metafísica geral da grande doutrina
da forma, a alma é concebida como a forma substancial do corpo. A alma
é, portanto, incompleta sem o corpo, ainda que destinada a
sobreviver-lhe pela sua natureza racional; logo, o corpo é um
instrumento indispensável ao conhecimento humano, que, por consequência,
tem o seu ponto de partida nos sentidos.
Terceira
característica do agostinianismo é o assim chamado voluntarismo, com
todas as consequências de correntes da primazia da vontade sobre o
intelecto. A característica do tomismo, ao contrário, é o
intelectualismo, com a primazia do intelecto sobre a vontade, com todas
as relativas consequências. O conhecimento, pois, é mais perfeito do que
a ação, porquanto o intelecto possui o próprio objeto, ao passo que a
vontade o persegue sem conquistá-lo. Esta doutrina é aplicada tanto na
ordem natural como na ordem sobrenatural, de sorte que a bem-aventurança
não consiste no gozo afetivo de Deus, mas na visão beatífica da
Essência divina.
A Existência de Deus é Evidente?
Sobre a existência de Deus, três questões se colocam:
1. A existência de Deus é uma verdade evidente?
2. Ela pode ser demonstrada?
3. Deus existe?
1.
- Parece que a existência de Deus é evidente. Com efeito, chamamos
verdades evidentes aquelas cujo conhecimento está em nós naturalmente,
como é o caso dos primeiros princípios. Ora, de acordo com o que diz
Damasceno: "O conhecimento da existência de Deus é inato em todos". Por
conseguinte, a existência de Deus é evidente.
2.
- Por outro lado, são ditas evidentes as verdades que conhecemos desde
que compreendamos os termos que as exprimem. É o que o Filósofo (Últimos
Analíticos, I, 3) atribui aos primeiros princípios da demonstração. De
fato, quando sabemos o significado de todo o significado da parte,
sabemos, de imediato, que o todo é maior que a parte. Ora, desde que
tenhamos compreendido o sentido da palavra "Deus", estabelece-se, de
imediato, que Deus existe. De fato, essa palavra designa uma coisa de
tal ordem que não podemos conceber algo que lhe seja maior. Ora, o que
existe na realidade e no pensamento é maior do que o que existe apenas
no pensamento. Daí resulta que o objeto designado pela palavra Deus, que
existe no pensamento, desde que se compreenda a palavra, também existe
na realidade. Por conseguinte, a existência de Deus é evidente.
3.
- Além disso, a existência da verdade é evidente. Pois, aquele que nega
a existência da verdade, concorda que a verdade não existe. Mas se a
verdade não existe, a não-existência da verdade é uma afirmação
verdadeira. E se alguma coisa há de verdadeira, a verdade existe. Ora,
Deus é a própria verdade, segundo o que diz São João, 14, 6: "Eu sou o
caminho, a verdade e a vida". Por conseguinte, a existência de Deus é
evidente.
Mas,
em compensação, ninguém pode pensar o oposto do que é evidente,
conforme nos mostra o Filósofo (Metafísica, 4 e Últimos Analíticos, I,
10), a propósito dos primeiros princípios da demonstração. Ora, o oposto
da existência de Deus pode ser pensado, conforme diz o salmo 52, 1: "O
insensato diz em seu coração que não há Deus". Logo, a existência de
Deus não é evidente.
Resposta
- Temos duas maneiras para dizer que uma coisa é evidente. Ela o pode
ser em si mesma e não por nós; ela o pode ser em si mesma e por nós. De
fato, uma proposição é evidente quanto o atributo está incluído no
sujeito, por exemplo: o homem é um animal. Animal, de fato, pertence à
noção de homem. Se, portanto, todos sabem o que são o sujeito e o
atributo de uma proposição, essa proposição será conhecida de todos. É
verdadeiro, pelos princípios das demonstrações, que os termos são coisas
gerais que todos conhecem, como o ser e o não-ser, o todo e a parte,
etc. Mas, se alguns não sabem o que são o atributo e o sujeito de uma
proposição, é certo que a proposição será evidente em si mesma, mas não
para aqueles que ignoram o que são sujeito e atributo. É por isso que
Boécio diz: "Certos juízos só são conhecidos pelos sábios, por exemplo,
aquele segundo o qual os seres incorpóreos não estão num mesmo lugar".
Por conseguinte, eu afirmo que a proposição "Deus é", considerada em si
mesma, é evidente por si mesma, uma vez que o atributo é idêntico ao
sujeito. Deus, de fato, é seu ser. Mas como não sabemos o que é Deus,
ela não é evidente para nós; tem necessidade de ser demonstrada pelas
coisas que, menos conhecidas na realidade, o são mais para nós, isto é,
pelos efeitos.
A primeira
objeção devemos responder que, em estado vago e confuso, o conhecimento
da existência é naturalmente inato em nós, uma vez que Deus é a
felicidade do homem. De fato, o homem deseja naturalmente a felicidade
e, aquilo que ele deseja naturalmente, ele conhece naturalmente. Mas
isto não é, propriamente falando, conhecer a existência de Deus;
exatamente como se pudéssemos saber que alguém chega, sem conhecer
Pedro, quando é o próprio Pedro que chega. Muitos, de fato, colocam o
supremo bem do homem nas riquezas, outros o colocam nos prazeres, outros
alhures.
À
segunda, podemos responder que aquele que ouve pronunciar a palavra
Deus pode ignorar que essa palavra designa uma coisa tal que não se
possa conceber algo que lhe seja maior. Alguns, com efeito, acreditaram
que Deus fosse um corpo. Mesmo que sustentemos que todos entendem a
palavra Deus nesse sentido, isto é, no sentido de uma coisa tal que não
se possa conceber algo que lhe seja maior, isto não significa que todos
representam a existência dessa coisa como real e não como representação
da inteligência. E não se pode concluir sua existência real salvo se se
admite que essa coisa existe realmente. Ora, isso não é admitido por
aqueles que rejeitam a existência de Deus.
À
terceira, devemos responder que a existência da verdade indeterminada é
evidente por si mesma, mas que a existência da primeira verdade não é
evidente em si mesma para nós.
A Vontade Quer Necessariamente Tudo o Que Deseja?
Dificuldades:
Isso parece exato; de fato Dionísio diz que o mal está fora do objeto
da vontade. Por conseguinte, ela tende necessariamente para o bem que
lhe é proposto.
O
objeto está para a vontade assim como o motor está para o móvel. Ora, o
movimento do móvel segue, necessariamente, o impulso do motor. Por
conseguinte, o objeto da vontade move-a necessariamente. Assim como o
que é conhecido pelos sentidos é objeto da afetividade sensível, assim o
que é conhecido pela inteligência é objeto do apetite intelectual ou
vontade. Mas o objeto dos sentidos move, necessariamente, a afetividade
sensível; segundo Santo Agostinho, os animais são arrastados pelo que
vêem. Por conseguinte, parece que o objeto conhecido pela inteligência
move a vontade necessariamente.
Entretanto:
Santo Agostinho diz que a vontade é a faculdade pela qual pecamos ou
vivemos segundo a justiça. Desse modo, ela é capaz de desejar coisas
contrárias. Por conseguinte, ela não quer, por necessidade, tudo o que
deseja.
Conclusão:
Eis como podemos prová-lo. Assim como a inteligência adere, necessária e
naturalmente, aos primeiros princípios, assim a vontade adere ao fim
último. Ora, existem verdades que não possuem relação necessária com os
primeiros princípios; tais são as proposições contingentes cuja negação
não implica na negação desses princípios. A inteligência não concede,
necessariamente, seu assentimento a tais verdades. Mas existem
proposições necessárias que possuem esta relação necessária; tais são as
conclusões demonstrativas cuja negação significa a negação dos
princípios. A estas últimas a inteligência concede seu assentimento
necessariamente, na medida em que reconhece a conexão das conclusões com
os princípios por meio de uma demonstração. Faltando isto, o
assentimento não é necessário.
O
mesmo acontece com relação à vontade. Existem bens particulares que não
possuem relação necessária com a felicidade, visto que se pode ser
feliz sem eles. A tais bens, a vontade não adere necessariamente. Mas
existem outros bens que implicam nessa relação; são aqueles pelos quais o
homem adere a Deus, pois é só nele que se acha a verdadeira felicidade.
Todavia, antes que essa conexão seja demonstrada como necessária pela
certeza da visão divina, a vontade não adere necessariamente a Deus nem
aos bens que a ele se relacionam. Mas a vontade daquele que vê Deus em
sua essência adere necessariamente a Ele, do mesmo modo como agora nós
queremos, necessariamente, ser felizes. Por conseguinte, é evidente que a
vontade não quer, por necessidade, tudo o que deseja.
Solução:
A vontade não pode tender para nenhum objeto, se este não se lhe
apresenta como um bem. Mas como existe uma infinidade de bens, ela não é
necessariamente determinada por um só.
A
causa motora produz, necessariamente, o movimento do móvel, no caso em
que a força dessa causa ultrapassa de tal maneira o móvel que toda
capacidade que este tem de agir fica submetida à causa. Mas a capacidade
da vontade, na medida em que se dirige para o bem universal e perfeito,
não pode estar inteiramente subordinada a qualquer bem particular.
Desse modo, ela não é, necessariamente, acionada por ele.
FILOSOFIA – PERÍODO MODERNO
Transcendência Cristã e Imanência Moderna
Achamos
a característica específica do pensamento clássico na solução dualista
do problema metafísico. Existem o mundo e Deus, mas são separados entre
si: Deus não conhece, não cria, não governa o mundo. Tal dualismo não
será negado, mas desenvolvido no pensamento cristão mediante o conceito
de criação, em virtude da qual é ainda afirmada a realidade e a
distinção entre o mundo e Deus, mas Deus é feito criador e regedor do
mundo: o mundo não pode ter explicação a não ser em um Deus que
transcende o mundo. O pensamento moderno, ao contrário, finaliza em uma
concepção monista-imanentista do mundo e da vida: não somente Deus e o
mundo são a mesma coisa, mas Deus é resolvido num mundo natural e
humano. Consequentemente, não se pode mais falar em transcendência de
valores teoréticos e morais, religiosos e políticos, pois "ser" e "dever
ser" são a mesma coisa, o "dever ser" coincide com o "ser".
É
evidente que a passagem da concepção dualista (clássica) à concepção
teísta (cristã) é um desenvolvimento lógico, que se manifesta
especulativamente no desenvolvimento tomista de Aristóteles. Pelo
contrário, a passagem da concepção tradicional, teísta, à concepção
moderna, imanentista, representa teoricamente uma ruptura. O pensamento
moderno, todavia, especialmente o pensamento da Renascença, tem seu
precedente lógico no panteísmo neoplatônico, que - após ter-se afirmado
como extrema expressão do pensamento clássico - permanece através de
todo o pensamento cristão em tentativas mais ou menos ortodoxas de
síntese entre cristianismo e neoplatonismo (Pseudo Dionísio, Scoto
Erígena, Mestre Eckart, etc.). E, por outra parte, o pensamento
tradicional, helênico-escolástico, aristotélico-tomista, encontrará nos
grandes valores da civilização moderna (a ciência natural, a técnica, a
história, a política) sua integração lógica.
Não
se julgue demolir a filosofia medieval, a metafísica tomista, opondo à
sua elementar e fantástica ciência da natureza a ciência moderna com
suas grandes aplicações técnicas, pois não é a ciência natural - capaz
apenas de resolver os problemas da vida material, mas incapaz de
resolver os problemas máximos da vida, espirituais, morais, religiosos -
que pode decidir do valor de uma civilização. E a ciência natural da
Idade Média não está absolutamente em conexão com o pensamento
filosófico medieval; o próprio Tomás de Aquino julgava logicamente que a
filosofia podia ser uma só, em adequação à realidade, ao passo que
admitia a possibilidade de uma ciência natural diversa daquela do seu
tempo. Além disso, se, de fato, a escolástica pós-tomista, decadente,
alimentou suspeitas e combateu longamente contra a nascente ciência
moderna, a favor da velha ciência natural aristotélica, a nova
escolástica, isto é, o novo tomismo, não teve dificuldade alguma em
aceitar toda a ciência natural moderna, e, como tal, porquanto esta
representa uma valor infra-filosófico, e, como tal, indiferente à
filosofia, à metafísica.
O
valor da ciência moderna não é teorético, especulativo, metafísico, mas
empírico e técnico. Tal era também o pensamento do grande fundador da
ciência moderna, Galileu Galilei, que afirmava ser o objeto da ciência
não as essências metafísicas das coisas, e sim os fenômenos naturais,
experimentalmente provados e matematicamente conexos. E destes
conhecimentos experimentais e matemáticos de fenômenos naturais derivava
ele as primeiras grandes aplicações técnicas da ciência moderna.
Aplicações técnicas que possuem também um valor espiritual, o do domínio
natural do homem sobre a natureza: contanto que o homem reconheça,
naturalmente, acima de si e de tudo, Deus.
O
que dissemos da ciência, podemos dizê-lo analogamente da história. A
historiografia medieval é, sem dúvida, insuficiente, ingênua,
descuidada, pois, era escasso na mentalidade medieval o senso da
concretidade e da individualidade, sem o qual não é possível a história
verdadeira e própria. Mas a concepção medieval da história, que é a
cristã e já teve a sua expressão clássica na Cidade de Deus de Agostinho
é perfeitamente conciliável com a indagação histórica moderna, devendo
esta última fornecer à primeira a sua rica contribuição de fatos, o seu
profundo senso histórico, o seu interesse pela concretidade.
Costuma-se
inculpar a civilização medieval por ter aniquilado o estado nacional
concreto, orgânico, para construir uma unidade política grandiosa, mas
abstrata, uma utopia universalista, como o Sacro Império Romano. No
entanto, isto não foi senão uma expressão exterior daquela estrutura
profunda que se chama a cristandade: equivalente civil da igreja
católica, capaz de abraçar os mais diversos organismos políticos. Nem se
deve esquecer que precisamente na comuna medieval se encontra a
primeira origem do estado moderno, interiormente organizado e
politicamente soberano. E é na Idade Média que se formam as grandes
nações modernas. Noutras palavras, é na Idade Média que se formou o
Estado distinto da Igreja, mas não leigo, imanentista, ateu, bem como o
laicado distinto do clero e organizado civilmente em graus de
corporações, mas cristão, católico, romano.
Poder-se-ia
fazer notar que tal efetiva distinção e relativa autonomia do Estado (e
do laicado) com respeito à Igreja (e ao clero) foram alcançadas através
de uma longa luta contra o predomínio e a invasão destes últimos. Mas
cumpre ter presente que, na alta Idade Média, no período bárbaro, nos
séculos de ferro, a igreja romana e o clero católico desempenharam
funções também leigas e profanas, como, por exemplo, a instrução
cultural, a assistência hospitalar, e até a agricultura, a indústria, o
comércio, as comunicações, etc., pelo fato de que ninguém estava em
condições de fazê-lo. E é devido a isso que a civilização não pereceu, e
foi conservada para a idade moderna. Aliás, a Igreja católica estava
apta e disposta - a prescindir-se das intenções dos homens e de suas
fraquezas fatais - a livrar-se desses cuidados estranhos gravosos e
perigosos para o seu ministério transcendente e sobrenatural, quando os
homens e os tempos estivessem maduros. Basta lembrar, a este respeito, a
atitude da Igreja, praticamente liberal, compreensiva e ativa com
respeito ao Estado, desde os comunas medievais até às grandes monarquias
européias do século XVII e ainda além.
Os Precedentes do Pensamento Moderno
Dada
a ruptura lógica entre o pensamento tradicional, teísta, e o pensamento
moderno, imanentista, não se podem achar causas racionais dessa
mudança, mas apenas práticas e morais. Em seguida virá a justificação
teórica da nova atitude espiritual, que será constituída por todo o
pensamento moderno em seu desenvolvimento lógico.
O
grandioso edifício ideal da Idade Média, em que a religião e
civilização, teologia e filosofia, Igreja e Estado, clero e laicado,
estavam harmonizados na transcendente unidade cristã, foi, de fato,
destruído pelo humanismo imanentista, que constitui o espírito
característico do pensamento moderno. Este pensamento começa com a
prevalência dada aos interesses e aos ideais materiais e terrenos, com o
consequente esquecimento dos interesses e ideais espirituais e
religiosos; e torna-se completo com a justificação dos primeiros e a
exclusão dos segundos. É precisamente o que acontece com os homens
inteiramente entregues aos cuidados mundanos: primeiro se esquecem das
coisas transcendentes, e, em seguida, querendo ser coerentes, negam-nas.
Entretanto,
se não há causas lógicas do pensamento moderno, há, porém, precedentes
especulativos, que, valorizados pela nova atitude espiritual, se
tornarão fontes especulativas do próprio pensamento moderno. Tais
precedentes especulativos podem ser resumidos desta forma: o panteísmo
neoplatônico, o aristotelismo averroísta e o nominalismo ocamista, os
quais foram-se afirmando contemporaneamente a uma gradual decadência do
genuíno pensamento escolástico (racional, teísta, cristão),
especialmente tomista, com que se acham em oposição. E tal decadência
cultural é acompanhada, por sua vez, pela decadência da Igreja e do
Papado - o exílio avinhonês e o cisma do ocidente.
O
panteísmo neoplatônico teve a sua primeira grande manifestação, no
âmbito do cristianismo, com Scoto Erígena. Tentará afirmar-se de novo na
própria época de Tomás de Aquino com Mestre Eckart, o iniciador da
mística alemã. E receberá uma nova original elaboração do Humanismo com
Nicolau de Cusa, que não pouco deve aos precedentes; e, sobretudo, com
Giordano Bruno, o maior pensador da Renascença, o qual depende, por sua
vez, de Nicolau de Cusa. O averroísmo latino afirmara na Idade Média a
sua famosa doutrina das duas verdades: o que não é verdadeiro em
filosofia pode ser verdadeiro em religião e vice-versa. Em uma idade
cristã, como a Idade Média, a afirmação religiosa podia Ter a
prevalência sobre a negação filosófica; obscurecendo-se a fé, como na
Renascença, devia prevalecer uma concepção anti-cristã, aristotélica ou
não. O occamismo marca a conclusão lógica da decadente escolástica
pós-tomista, apesar de seus partidários se comprazerem em denominá-la
via modernorum. E, ao mesmo tempo, apresenta um elemento fundamental da
filosofia moderna com o seu empirismo e nominalismo. Nicolau de Cusa,
Telésio, Bruno, Campanella serão também herdeiros do nominalismo
empirista de Occam, que se combina, nos sistemas deles, com uma
metafísica aventurosa de cunho particularmente neoplatônico.
Como
é sabido, segundo Occam, o conhecimento humano é reduzido ao
conhecimento sensível do singular e, portanto, ao nominalismo.
Consequência lógica e consciente é a destruição da metafísica, que
transcende o mundo empírico, sensível, bem como da ciência, que é
entretecida de conceitos, impossíveis de nominalismo, de sorte que se
esvai da teodicéia, porquanto não se pode provar racionalmente a
existência de Deus, nem conhecer a sua natureza; e a psicologia
racional, pelo mesmo motivo. E, consequentemente, torna-se impossível a
ética racional, porque - sendo desconhecida a essência de Deus e
destruída a do homem - a moral fica reduzida a um conjunto de preceitos
arbitrários de Deus, que o homem tem que observar por fé. Occam
procurará salvar-se do ceticismo - conclusão do seu sistema, com todas
as consequências práticas - mediante a fé. Entretanto é uma posição
insustentável, porquanto a fé - não podendo mais ser um racional
obséquio - torna-se uma adesão cega. Em época de religiosidade ainda
viva, esse fideísmo ocamista pôde praticamente ficar de pé. Mas ruirá
quando a fé vier a faltar, deixando o terreno livre ao empirismo, ao
naturalismo, ao nominalismo, ao ceticismo, imanentes ao ocamismo, e que
constituirão tão grande parte do pensamento da Renascença, da Reforma e
também do pensamento posterior.
Os Períodos do Pensamento Moderno
Este
grande movimento especulativo, que é o pensamento moderno, naturalmente
não se manifesta na sua significação imanentista senão na plenitude do
seu desenvolvimento. Portanto, manifesta-se através de uma série de
períodos, que se podem historicamente (e dialeticamente) indicar assim:
1.
- Antes de tudo a Renascença, em que a concepção imanentista, humanista
ou naturalista, é potentemente afirmada e vivida. Trata-se, porém, de
uma afirmação ainda não plenamente consciente e sistemática, em que o
novo é misturado com o velho. Este, muitas vezes, prevalece, ao menos na
exterioridade da forma lógica e literária. A Renascença é preparada
pelo Humanismo, e tem como seu equivalente religioso a reforma
protestante.
2.
- A este primeiro período do pensamento moderno, que, substancialmente,
abrange os séculos XV e XVI, se seguem o racionalismo e o empirismo,
que abrangem os séculos XVII e XVIII. Após a revolução renascentista e
protestante, sente-se a necessidade de uma séria indagação crítica, não
para demolir aquelas intuições revolucionárias, mas, ao contrário, para
dar-lhes uma sistematização lógica. É o que fará especialmente o
racionalismo em relação ao conhecimento racional.
3.
- E outro tanto fará e empirismo em relação ao conhecimento sensível.
Empirismo e racionalismo são tendências especulativas, gnosiológicas,
opostas entre si, como a gnosiologia sensista está certamente em
oposição à gnosiologia intelectualista. Entretanto, concordam em um
comum fenomenismo, pois, em ambos, o sujeito é isolado do ser e fechado
no mundo das suas representações. Não se conhecem as coisas e sim o
nosso conhecimento das coisas.
4.
- Empirismo e racionalismo, após uma lenta, gradual e silenciosa
maturação, encontrarão uma saída prática, social, política, moral,
religiosa no iluminismo e, portanto, na revolução francesa (Segunda
metade do século XVIII); esta representa a concreta realização do
pensamento moderno na civilização moderna. Esse movimento começa na
Inglaterra, triunfa na França e se espalha, em seguida, na Alemanha e na
Itália.
Características Gerais
A
Renascença é uma poderosa afirmação, particularmente no campo da
prática, de humanismo e de imanentismo, o que é manifestado pelo seu
individualismo, pelo seu estetismo, pelo seu ardente interesse pelo
mundo a conquistar, dominar, gozar com meios humanos; pelo seu
naturalismo que diviniza o homem material - como já aconteceu no
paganismo antigo, para o qual o Humanismo, de fato, apela, e de que
parece um retorno. Entretanto, falta ao Humanismo moderno a
espontaneidade e a serenidade do paganismo antigo: o Humanismo moderno
não descansará em um tranqüilo gozo da vida, mas procurará alimento no
ativismo agitado e sem meta, característico da idade moderna.
O
Humanismo pode, com razão, definir-se pela palavra: o homem potenciado,
celebrado, exaltado até à divindade, livre de si mesmo, dominador da
natureza, senhor do mundo. É, logo, um paganismo ainda mais radical que o
antigo, porquanto espiritual e interior. Dar uma documentação formal
desse caráter pagão, imanentista, do Humanismo e da Renascença não é
coisa fácil, pois trata-se de um período inicial, em que se entretecem
motivos multíplices, e, sobretudo, o velho persiste ao lado do novo,
dando origem àquela duplicidade especulativa e prática, tão
característica dos homens da época.
Mas
o início do Humanismo e da Renascença é rico de todos os germes que se
desenvolverão no sucessivo período moderno, imanentista, em que se
poderá claramente conhecer a árvore pelos frutos. É uma multiplicidade
de motivos indiscutivelmente dominada pelo espírito panteísta do
neoplatonismo, que atravessou toda a Idade Média; entretanto, na Idade
Média, tal espírito era corrigido, religiosamente, pela teologia
católica e, racionalmente, pela escolástica tomista. É uma dualidade
composta de velho e de novo, em que não será difícil separar o elemento
interior do elemento exterior: se se considerar, em geral, o ideal da
vida daquela época, que chamava virtude a força, e enaltecia não o
Pobrezinho de Assis e sim o Príncipe Valentino; se se tiver presente
Nicolau Machiavelli, que - sem possuir uma metafísica consciente - está
persuadido de que o Estado, mera obra do homem, é o vértice da
humanidade, estando acima da religião e da moral transcendente, e
prefere o paganismo ao cristianismo; se se pensar em Giordano Bruno, o
maior filósofo da época, o qual parece reconhecer a obscuridade e a
incoerência do seu pensamento, mas tem consciência de que a sua doutrina
- racionalista, monista e humanista - é um crepúsculo preludiando o dia
e não a noite.
Essa
é a alma, o significado, não o valor, do Humanismo e da Renascença: uma
alma pagã. Não há, ao lado do humanismo pagão, um humanismo cristão,
que seria uma contradição em termos. Esses elementos são essencialmente
formais e estéticos porque a grande valorização cristã da civilização
clássica - do pensamento grego e do jus romano - era já um fato
consumado. E os elementos novos do humanismo - a ciência, a técnica, a
história, a política - não se podem dizer imanentistas antes que
cristãos, pois, em si mesmos, são infrafilosóficos, e, portanto,
indiferentes a qualquer concepção da realidade.
O
renascimento cristão, a unidade real e potencial dos grandes valores da
civilização no valor sumo da religião, não é obra dos séculos XV e XVI,
mas do século que se abre com Inocêncio III e se encerra com Dante, e
viu Francisco de Assis e Antonio de Lisboa, Domingos de Gusmão e Tomás
de Aquino.
O Renovamento das Antigas Escolas Filosóficas
Uma
das manifestações características da Renascença é o renovamento das
antigas escolas filosóficas, clássicas, gregas. Na Idade Média o
pensamento clássico foi bem conhecido e valorizado. No entanto, tal
conhecimento e valorização diziam respeito aos maiores filósofos gregos,
em especial a Aristóteles.
Na
Renascença, ao contrário, volta-se à sancta antiquitas, em oposição ao
espírito cristão. E valorizam-se as antigas escolas filosóficas,
realçando-lhes o conteúdo de humanidade, presente em todas elas, não
obstante a variedade de suas orientações. Naturalmente não são, nem
podiam ser, as escolas filosóficas clássicas em sua espontaneidade
original, pois, entre a classicidade e a Renascença, medeiam quinze
séculos, profundamente influenciados pela mensagem cristã. E, após o
aparecimento da Cruz, já não é mais possível o retorno à serenidade
clássica de Aristóteles ou ao ascetismo imanentista dos estóicos.
Na
Renascença são representadas, mais ou menos, todas as escolas
filosóficas antigas: o platonismo, o aristotelismo, o estoicismo, o
epicurismo, o ceticismo e o ecletismo. Especialmente as duas primeiras
e, entre estas, precipuamente a primeira. O aristotelismo da Renascença
exclui, naturalmente, a interpretação de Aristóteles dada por Tomás de
Aquino, e sustenta ou a interpretação naturalista de Alexandre de
Afrodísia, ou a panteísta de Averroés. O platonismo é, mais
propriamente, neoplatonismo: já porque assim se tinha fixado na
antigüidade e neste sentido influenciara toda a Idade Média (pseudo
Dionísio Areopagita, Scoto Erígena, Mestre Eckart); já porque a sua
fundamental concepção panteísta e o seu potenciamento do espírito humano
podiam melhor corresponder ao imanentismo e humanismo da Renascença.
O Platonismo
O
ídolo da Renascença é Platão: artista e dialético, teórico do amor e da
beleza, iniciador da ciência matemática da natureza. Em 1404 Leonardo
Bruni aretino (1369-1440) publicava a primeira tradução parcial de
Platão, iniciando, destarte, a renascença platônica. Em 1429 o
camaldulense frei Ambrósio Traversari, de volta de Constantinopla,
levava para a Itália o conjunto completo dos escritos platônicos.
Entretanto
foi o Concílio de Florença (1439) que deu um impulso decisivo aos
estudos platônicos na Itália ¾ bem como aos estudos aristotélicos e dos
filósofos clássicos, em geral. Esse Concílio foi convocado para a união
da igreja grega com a igreja latina, e chamou para a Itália vários
doutores orientais, conhecedores profundos de Platão. Outros vieram
pouco depois, devido à queda de Constantinopla (1453) em mãos dos
turcos. Famoso é Jorge Gemistos Pleton (1355-1450), autor da obra Sobre a
Diferença da Filosofia Platônica e Aristotélica, que, realmente, é uma
polêmica antiaristotélica.
Esse
escrito provocou uma resposta violenta ao aristotélico Jorge de
Trebizonda (Comparatio Platonis et Aristotelis). Este filósofo -
apelando também para Tomás de Aquino - sustenta a superioridade de
Aristóteles sobre Platão pelo seu espírito científico, pela sua doutrina
em torno de Deus e da alma, e pela consequente possibilidade de
concordar a sua filosofia com o cristianismo.
Da
parte platônica, replicou contra Jorge de Trebizonda o seu concidadão
Basílio Bessarione (1403-1472) com o escrito In calumniatorem Platonis.
Bessarione, eminente prelado da igreja oriental, veio para a Itália com o
séqüito do imperador João VII Paleólogo, para tratar da unificação da
igreja grega com a igreja latina. Foi feito cardeal pelo Papa Eugênio IV
e permaneceu na Itália, cooperando eficazmente para o incremento do
ressuscitado helenismo.
Depois
desse platonismo de importação oriental, na Segunda metade do século XV
surge e firma-se um platonismo italiano. O centro foi precisamente
Florença, onde foi celebrado o famoso Concílio. Seu principal
representante foi Marsílio Ficino, animador da célebre academia
platônica florentina. Esta academia nasceu graças a um cenáculo de
literatos, artistas e pensadores, amigos da casa De Médicis. Fizeram
parte deste cenáculo Poliziano, Pulci, João Pico della Mirandola e o
próprio Lourenço, o Magnífico.
Marcílio
Ficino nasceu em 1433 em Figline Valdarno. Protegido por Cosme De
Médices, que o presenteou com uma Quinta, onde teve sua sede a academia
platônica, pode consagrar toda a sua vida aos prediletos estudos
filosóficos. Em 1473 foi ordenado padre e a sua vida foi muito austera
no meio de Florença do século XV. Faleceu em 1499.
Sua
atividade principal foi traduzir. Traduziu elegantemente, para o latim,
Platão (1477) e Plotino (1485), além de outros neoplatônicos. Expôs o
seu pensamento em uma grande obra (Theologia platonica de immortalitate
animorum - 1491), em que procura concordar o platonismo, de que era
entusiasta, com o cristianismo, em que acreditava seriamente. Entretanto
não foi um metafísico, mas um eclético e suas finalidades eram morais.
Sua ideia animadora é a exaltação do homem como microcosmo, síntese do
universo: conceito antigo, neoplatônico, mas que teve no humanismo do
Renascimento um valor e um significado particulares. Outra ideia sua
inspiradora é o conceito de uma continuidade do desenvolvimento
religioso, que vai desde os antigos sábios e filósofos - Zoroastro,
Orfeu, Pitágoras, Platão - até o cristianismo: expressão do
universalismo religioso da Renascença.
Depois
de Marsílio Ficino, o mais famoso platônico pode ser considerado João
Pico della Mirandolla (1463-1494), autor de De dignitate hominis, que
professa verdadeiramente um ecletismo baseado no platonismo e no
cabalismo. Dotado da mais vasta e heterogênea cultura, após várias
peregrinações, estabeleceu-se em Florença junto de Lourenço, o
Magnífico. Aí entrou em contato com Marsílio Ficino, que influiu no seu
temperamento exuberante e passional, equilibrando-o filosófica e
religiosamente. "Blasonava de poder disputar de omni rescibili - escreve
Franca - e foi tido por seus contemporâneos como um prodígio de
memória. Aos 18 anos sabia 22 línguas"!
O Aristotelismo
Não
é sempre fácil distinguir o aristotelismo do platonismo da Renascença,
porquanto, frequentemente, aparecem confusos no sincretismo
neoplatônico, que é a tendência especulativa dominante na época. Também o
aristotelismo, como o platonismo, teve impulso, graças aos sábios
gregos vindos para a Itália, tradutores de Aristóteles e dos seus
comentadores, entre os quais lembramos, no século XV, Teodoro de Gaza e o
já mencionado Jorge de Trebizonda.
Como
já foi dito, o aristotelismo da Renascença se distingue em duas
correntes principais: a naturalista inspirando-se em Alexandre
Afrodísio, e a panteísta-neoplatônica, inspirando-se em Averroés, ambas
contrárias à interpretação tomista-cristã. Prevalece a escola
alexandrina, cujo imanentismo naturalista é mais conforme ao espírito do
Renascimento. A escola averroísta, entretanto, considerando o intelecto
humano como sendo a atividade de uma essência transcendente e divina,
contrasta o humanismo imanentista da mesma Renascença.
O
mais famoso entre esses novos aristotélicos é Pedro Pomponazzi ,
alexandrista, nascido em Mântua em 1462, professor de filosofia nas
universidades de Pádua, Ferrara e Bolonha, onde faleceu em 1525. É
célebre o seu opúsculo Sobre a Imortalidade da Alma, publicado em
Bolonha em 1516. Neste opúsculo conclui em favor da mortalidade da alma,
sustentando que esta realiza o seu fim último na vida terrena. Para
conciliar, pois, esse seu racionalismo com a religião cristã, recorre a
certas distinções que relembram a velha teoria averroísta das duas
verdades: a religião é, no fundo, justificada como sendo a filosofia do
vulgo, para finalidade prática e pedagógica.
Respondiam
a Pomponazzi, Nifo (averroísta) e Contarini (tomista) com dois ensaios
tendo o mesmo título (Sobre a Imortalidade da Alma); e Pomponazzi
replica como uma Apologia (contra Contarini) e com um Defensorium
(contra Nifo). Nem a morte pôs termo àquela polêmica.
O
aristotelismo teve, na Renascença, uma fortuna especial no campo da
estética, da poética, em torno de que se disputou longa e fervidamente,
em especial por parte dos literatos. Parte-se da Poética de Aristóteles,
cuja primeira tradução remonta ao ano de 1498, por obra de Jorge Valla.
Aristóteles sustentara ser a arte - bem como a história - uma imitação
da realidade. Entretanto, a arte é superior à história, porquanto tem
como objeto o universal, o necessário, a essência das coisas; ao passo
que a história tem como objeto o particular, o contingente, o acidental.
Em torno deste tema se travam as disputas mais variadas.
O Estoicismo
O
espírito autônomo da Renascença devia provar viva simpatia para o sábio
estóico, impassível, dominador das coisas e dos eventos. O estoicismo
não foi apenas objeto de admiração cultural, literária, mas tornou-se
ideal de vida moral em lugar do cristianismo, escola de energia e de
conforto.
O
estoicismo da Renascença, porém, é preso pela ação, diversamente do
estoicismo clássico, negador da ação, considerada causa de perturbação. O
estoicismo renascentista enaltece o homem, a vida, o mundo, contra a
concepção transcendente e ascética cristã. Seja como for, a moral
estóica, mais ou menos ajustada ao cristianismo, desfrutou de grande
favor junto dos filósofos das mais diferentes tendências nos séculos XVI
e XVII. O estóico mais notável da Renascença foi o belga Justo Lípsio
(1547-1606), professor em Lovaina, autor de De Constantia, e de
Manuductio ad stoicam philosophiam.
O Epicurismo
O
epicurismo, melhor do que o estoicismo, condizia com o espírito
humanista, imanentista e mundano da Renascença, em especial na vida
gozadora e requintada, voluptuosa e artística da cortes esplêndidas da
época, e também na literatura e no pensamento. João Boccaccio, autor do
Decamerone, em o século XIV, e Lourenço, o Magnífico, no século XV, são
duas expressões práticas desse espírito epicurista.
O
expoente mais notável dessa tendência epicurista é Lourenço Valla
(1407-1459), autor do famoso livro De voluptate ac de vero bono, onde o
autor compara a moral estóica e a epicurista, simpatizando,
naturalmente, com esta última. Quanto à vida futura, Valla oscila entre a
sua negação e uma representação no sentido hedonista, e tente, uma
certa conciliação entre epicurismo e cristianismo; mas fica
decididamente hostil ao ascetismo, quer cristão, quer estóico.
O Ceticismo
Também
o ceticismo da Renascença foi inspirado pelo ceticismo clássico. E
também este novo ceticismo renascentista surgiu mais por fins práticos
do que por motivos teoréticos. Os motivos mais específicos que deram
origem ao ceticismo da Renascença foram: a sede do individual, da
concretidade; a paixão pela observação detalhada própria do pensamento
moderno em geral, em oposição ao pensamento antigo e medieval, voltados
para o universo e o abstrato; a variedade e o contraste das diversas
escolas e tradições (filosóficas e religiosas); a mentalidade literária
da época, apaixonada pela estética, e incapaz de levantar grandes
construções sistemáticas; a religiosidade persistente, que julgava
salvar a fé deprimindo a razão, tendo esta atacado, frequente e
violentamente, a religião; o contraste entre a exigência religiosa e o
paganismo da vida que surgia de novo. O ceticismo da Renascença tem seus
maiores expoentes fora da Itália, e o maior é Montaigne.
Miguel
de Montaigne (1533-1592), francês, é o autor dos famosos Essais: "Que
sais-je"? O seu interesse é voltado para o estudo do eu, não como
substância espiritual, e sim como caráter, centro unitário das mais
variadas experiências humanas. Tudo o mais lhe parece incerto: os
sentidos enganam-nos, a razão perde-se num labirinto infindo, a moral
varia conforme os tempos e os lugares. Daí a necessidade da fé, mas de
uma fé em que Deus serve ao homem. Este - como já pensavam os céticos
antigos - atinge a paz abandonando-se à diretriz da natureza. O que
especialmente emerge em Montaigne é o individualismo da Renascença.
Quando
Esparta bloqueou e derrotou Atenas em fins do século V a.C., a
supremacia política saiu das mãos da mãe da filosofia e da arte gregas, e
o vigor e a independência da inteligência ateniense decaíram. Quando,
em 399 a.C., Sócrates foi executado, a alma de Atenas morreu com ele,
sobrevivendo apenas em seu orgulhoso discípulo, Platão. E quando Felipe
da Macedônia derrotou os atenienses em Queronéia em 388 a.C. e Alexandre
incendiou a grande cidade de Tebas por completo três anos depois, nem
mesmo o fato de a casa de Píndaro ter sido ostensivamente poupada
conseguiu encobrir a realidade de que a independência ateniense, no que
se referia a governo e pensamento, estava destruída de maneira
irrevogável. O domínio da filosofia grega pelo macedônio Aristóteles
refletia a sujeição política da Grécia pelos povos viris e mais jovens
do norte.
A
morte de Alexandre (323 a.C.) acelerou esse processo de decadência. O
menino-imperador, ainda que continuasse bárbaro depois de toda educação
recebida de Aristóteles, havia aprendido a reverenciar a rica cultura da
Grécia e sonhara em divulgar essa cultura pelo Oriente, na onda de seus
exércitos vitoriosos. O desenvolvimento do comércio grego e a
multiplicação dos postos de comercialização gregos por toda a Ásia Menor
haviam proporcionado uma base econômica para a unificação daquela
região como parte de um império helênico; e Alexandre tinha a esperança
de que, a partir daqueles movimentados postos, tanto o pensamento grego
como os produtos gregos fossem irradiar-se e conquistar o mundo. Mas ele
subestimara a inércia e a resistência da mentalidade oriental, e a
massa e a profundidade da cultura oriental. Não passava de um sonho
juvenil, afinal, supor que uma civilização tão imatura e instável quanto
a da Grécia pudesse ser imposta a uma civilização incomensuravelmente
mais dufundida e enraizada nas mais veneráveis tradições. A quantidade
da Ásia mostrou-se demasiada para a qualidade da Grécia. O próprio
Alexandre, na hora de seu triunfo, foi conquistado pela alma do Oriente;
casou-se (dentre várias damas) com a filha de Dario; adotou o diadema e
o manto de gala persas; introduziu na Europa a ideia oriental do divino
direito dos reis; e por fim assombrou uma Grécia cética ao anunciar,
num magnífico estilo oriental, que ele era um deus. A Grécia caiu na
gargalhada; e Alexandre bebeu até morrer.
Essa
sultil infusão de uma alma asiática no corpo fatigado do senhor dos
gregos foi seguida rapidamente da abundante entrada de cultos e fés
orientais na Grécia, pelas mesmas linhas de comunicação que o jovem
conquistador havia aberto; os diques rompidos deixaram o oceano do
pensamento ocidental inundar as terras baixas da ainda adolescente mente
européia. As crenças místicas e supersticiosas que haviam adquirido
raízes entre os povos mais pobres de Hélade foram reforçadas e
divulgadas; e o espírito oriental de apatia e resignação encontrou um
solo pronto na Grécia decadente e abatida. A introdução da filosofia
estóica em Atenas, pelo mercador fenício Zenon (cerca de 310 a.C.), foi
apenas uma das inúmeras infiltrações orientais. Tanto o estoicismo como o
epicurismo - a apática aceitação da derrota e o esforço para esquecer a
derrota nos braços do prazer - eram teorias sobre como o indivíduo
ainda poderia ser feliz, embora subjugado ou escravizado; precisamente
como o pessimista estoicismo oriental de Schopenhauer e o desalentado
epicurismo de Renan foram, no século XIX, os símbolos de uma Revolução
despedaçada e uma França quebrada.
Não
que essas antíteses naturais da teoria ética fossem de todo novas para a
Grécia. Nós a encontramos no sombrio Heráclito e no "filósofo que ri",
Demócrito; e vemos os discípulos de Sócrates dividindo-se em cínicos e
cirenaicos sob a chefia de Antístenes e Aristipo e exaltando, uma
escola, a apatia, e a outra, a felicidade. No entanto, mesmo naquela
época tratava-se de modos quase exóticos de pensamento: a Atenas
imperial não aderiu a eles. Mas quando a Grécia havia visto Queronéia em
sangue e Tebas em cinzas, passou a ouvir Diógenes; e quando a glória
havia partido de Atenas, ela estava no ponto para Zenon e Epicuro.
Zenon
ergueu sua filosofia da apatheia sobre um determinismo que um estóico
posterior, Crisipo, achou difícil distinguir do fatalismo oriental.
Quando Zenon, que não acreditava na escravidão, estava batendo num
escravo seu por causa de algum delito, o escravo alegou como atenuante
que, segundo a filosofia de seu senhor, ele tinha sido destinado, por
toda a aternidade, a cometer aquela falta; ao que Zenon replicou, com a
calma de um sábio, que, de acordo com a mesma filosofia, ele, Zenon,
tinha sido destinado a bater nele por causa dela. Assim como
Schopenhauer achava inútil a vontade individual lutar contra a vontade
universal, os estóicos alegavam que a indiferença filosófica era a única
atitude razoável para com uma vida na qual a luta pela existência está
tão injustamente condenada a uma derrota inevitável. Se a vitória for
inteiramente impossível, deve ser desdenhada. O segredo da paz não é
tornar nossas realizações iguais aos nossos desejos, mas baixar nossos
desejos ao nível de nossas realizações. "Se o que você possui lhe parece
insuficiente, então, mesmo que você possua o mundo, ainda irá sentir-se
infeliz", disse o estóico romano Sêneca (m. 65 d.C.).
Um
princípio desses bradava aos céus pelo seu oposto, e Epicuro, embora
tão estóico em vida quanto Zenon, forneceu-o. Epicuro, diz Fenelon,
"comprou um belo jardim, que ele mesmo cultivava. Foi lá que instalou
sua escola, e ali vivia uma vida tranqüila e agradável com seus
discípulos, aos quais ensinava enquanto andava e trabalhava. (...) Era
delicado e afável para com todos os homens... Afirmava que nada havia de
mais nobre do que uma pessoa dedicar-se à filosofia". Seu ponto de
partida é uma convicção de que a apatia é impossível, e que o prazer -
embora não necessariamente o prazer sensual - é a única finalidade
concebível, e perfeitamente legítima, da vida e da atividade. "A
natureza faz com que cada organismo prefira o seu próprio bem a qualquer
outro"; até mesmo o estóico sente um prazer sutil na renúncia. "Não
devemos evitar os prazeres, mas selecioná-los." Epicuro, então, não é
epicurista; ele exalta os prazeres do intelecto, mais do que os dos
sentidos; previne contra os prazeres que excitem e disturbem a alma, à
qual, ao contrário, deveriam acalmar e tranqülizar. No fim, propõe que
se procure não o prazer no seu sentido usual, mas a ataraxia -
tranqülidade, equanimidade, a paz do espírito; todos os quais oscilam à
beira da "apatia" de Zenon.
Os
romanos, quando foram saquear Heléia em 146 a.C., encontraram essas
escolas rivais dividindo o campo filosófico; e, sem terem tempo nem
sutileza para especulações, levaram de volta para Roma essas filosofias,
juntamente com outros produtos do seu saque. Os grandes organizadores,
tanto quanto os escravos inevitáveis, tendem a estados de espírito
estóicos: é difícil ser senhor ou servo se a pessoa for sensível. Por
isso, a filosofia que Roma adotava era, em sua maioria, da escola de
Zenon, seja em Marco Aurélio, o imperador, ou em Epíteto, o escravo; e
até Lucrécio difundia estoicamente o epicurismo (como o inglês de Heine,
divertindo-se melancolicamente), e concluiu sua vigorosa pregação do
prazer cometendo suicídio. Sua nobre epopéia, Sobre a Natureza das
Coisas, acompanha Epicuro em condenar o prazer ao elogiá-lo sem
entusiasmo. Quase contemporâneo de César e Pompéia, ele viveu em meio a
torverlinhos e alarmes; sua pena nervosa está eternamente compondo
orações à tranqülidade e à paz. Nós o imaginamos como uma alma tímida
cuja juventude havia sido obscurecida por temores religiosos; porque ele
nunca se cansa de dizer a seus leitores que não existe inferno, exceto
aqui, e que não existem deuses, exceto deuses cavalheirescos, que vivem
em um jardim de Epicuro nas nuvens e nunca se intrometem nos negócios
dos homens. Ao crescente culto do céu e do inferno entre o povo de Roma,
ele opõe um materialismo implacável. Alma e mente desenvolvem-se com o
corpo, crescem com o seu crescimento, sofrem com seus sofrimentos, e
morrem com a sua morte. Nada existe a não ser átomos, espaço e lei, e a
lei das leis é a da evolução e da dissolução em toda parte
Coisa alguma perdura, mas todas as coisas fluem.
Fragmento se agarra a fragmento; as coisas crescem assim,
Até que ficamos conhecendo-as e lhes damos nomes. Aos poucos
Elas se dissolvem e já não são mais as coisas que conhecemos.
Englobados por átomos, caindo devagar ou depressa,
Vejo os sóis, vejo os sistemas erguerem
Suas formas; e até os sistemas e seus sóis
Irão voltar lentamente à eterna deriva.
Tu também, ó Terra - teus impérios, terras e mares -
A menor, com tuas estrelas, de todas as galáxias,
Englobada da deriva como aquelas, como aquelas também tu
Irás. Estás indo, a cada hora, como aquelas.
Nada perdura. Teus mares, em suave neblina,
Desaparecem; aquelas areias lunares abandonam seu lugar,
E onde estão, outros mares irão, por sua vez,
Cortar com suas alvas foices outras baías.
À evolução e à dissolução astronômicas, acrescentem a origem e a eliminação das espécies.
Muitos
monstros também a Terra de antigamente tentou produzir, coisas de
estranhas caras e membros; (...) alguns sem pés, alguns sem mãos, outros
sem bocas, outros mais sem olhos. (...) Mais e mais monstros (...)
desse tipo a Terra tentou produzir, mas em vão; porque a natureza
proibiu o aumento do número deles, eles não podiam alcançar a cobiçada
flor da idade, nem procurar comida, nem ser unidos em casamento; (...) e
muitas raças de coisas vivas devem ter se extinguido, ficado
impossibilitadas de procriar e continuar e continuar a linhagem. Porque
no caso de todas as coisas que vós vedes respirando o sopro da vida, a
astúcia, a coragem ou a velocidade vêm desde o início protegendo e
preservando cada raça. (...) Aqueles aos quais a natureza não concedeu
nenhuma dessas qualidades ficavam expostos para servirem de vítima e
presa de outros, até que a natureza extinguisse a sua espécie.
Também
as nações, como os indivíduos, crescem lentamente e, com toda certeza,
morrem: "algumas nações prosperam, outras decaem, e em pouco tempo as
raças das coisas vivas são alteradas e, como corredores, passam adiante a
lâmpada da vida". Diante da guerra e da morte inevitável, não há
sabedoria a não ser a ataraxia - "encarar todas as coisas com serenidade
de espírito". Aqui, evidentemente, toda a velha alegria pagã de viver
desapareceu, e um espírito quase exótico toca uma lira quebrada. A
história, que nada é a não ser humorista, nunca foi tão brincalhona como
quando deu a esse abstêmio e épico pessimista o nome de epicurista.
E se
for esse o espírito do adepto de Epicuro, imaginem o inebriante
otimismo de estóicos declarados como Aurélio ou Epíteto. Nada, em toda a
literatura, é tão deprimente quanto as Dissertações do escravo, a menos
que se trate das Meditações do imperador. "Não procure fazer com que as
coisas aconteçam segundo a sua preferência, mas prefira que elas
aconteçam como têm de acontecer, e assim viverá com prosperidade." Não
há dúvida de que é possível assim, ditar o futuro e fingir que dominamos
o universo. Segundo consta o senhor de Epíteto, que o tratava com uma
crueldade inalterável, certo dia decidiu torcer-lhe a perna para passar o
tempo. "Se continuar", disse Epíteto com calma, "vai quebrar a minha
perna." O senhor continuou, e a perna se quebrou. "Eu não lhe disse",
observou Epíteto mansamente, "que o senhor iria quebrar minha perna?" No
entanto, há uma certa nobilidade mística nessa filosofia, como na
tranqülia coragem de um pacifista dostoievskiano. "Nunca diga, de
qualquer modo, 'perdi isso assim, assim'; e sim, 'eu restituí tal
coisa'. Tua filha morreu? Foi restituída. Tua mulher morreu? Foi
restituída. Perdeste os teus bens? Também não foram restituídos?" Em
trechos assim, sentimos a proximidade do cristianismo e seus intrépidos
mártires; de fato, não eram a ética cristã da abnegação, o ideal
político cristão de uma fraternidade quase comunista do homem, e a
escatologia cristã da conflagração final do mundo inteiro, fragmentos da
doutrina estóica flutuando na corrente do pensamento? Em Epíteto, a
alma greco-romana perdeu o seu paganismo e está pronta para uma nova fé.
Seu livro teve a distinção de ser adotado como manual religioso pela
primitiva Igrja Cristã. Dessas Dissertações e das Meditações de Aurélio
há apenas um passo para A Imitação de Cristo.
Enquanto
isso, o ambiente histórico derretia-se para formar cenas mais novas. Há
um notável trecho em Lucrécio que descreve a decadência da agricultura
no Estado romano e a atribui à exaustão do solo. Seja qual for a causa, a
riqueza de Roma transformou-se em pobreza, a organização em
desintegração, o poder e o orgulho em decadência e apatia. Cidades
voltaram a fundir-se com o interior sem distinção; as estradas ficaram
sem manutenção e já não ecoavam a agitação do comércio; as pequenas
famílias dos romanos de instrução eram ultrapassadas, em número, pelos
vigorosos alemães sem instrução que cruzavam, ano após ano, a fronteira;
a cultura pagã cedeu aos cultos orientais; e, quase que
imperceptivelmente, o império se transformou em papado.
A
Igreja, apoiada nos primeiros séculos pelos imperadores cujos poderes
ela absorveu aos poucos, teve um aumento rápido no número de adeptos, na
riqueza e no raio de influência. No século XIII, já possuía um terço do
solo da Europa, e seus cofres estavam inchados com donativos de ricos e
pobres. Durante mil anos, ela uniu, com a magia de uma crença
invariável, a maior parte dos povos de um continente; nunca houve, antes
ou depois, uma organização tão difundida e tão pacífica. Mas essa
unidade exigia, como pensava a Igreja, uma fé comum exaltada por sanções
sobrenaturais acima das mudanças e das corrosões do tempo; portanto, o
dogma, definitivo e definido, foi colocado como uma concha sobre a
mentalidade adolescente da Europa medieval. Era dentro dessa concha que a
filosofia escolástica se deslocava acanhadamente entre fé e razão e
vice-versa, num desconcertante circuito de pressupostos não criticados e
conclusões pré-ordenadas. No século XIII, toda a cristandade ficou
assustada e estimulada por traduções árabes e judaicas de Aristóteles;
mas o poder da Igreja ainda era suficiente para garantir, através de
Tomás de Aquino e outros, a transformação de Aristóteles em um teólogo
medieval. O resultado foi a sutileza, mas não a sabedoria. "A
inteligência e a mentalidade do homem", como disse Bacon, "se
trabalharem com a matéria, trabalham segundo a substância desta e por
ela ficarão limitados; mas se trabalharem consigo mesmo, serão
intermináveis e produzirão realmente teias de saber, admiráveis pela
delicadeza do fio e do trabalho, mas sem substância ou proveito." Mais
cedo ou mais tarde, o intelecto da Europa iria irromper de dentro dessa
concha.
Depois
de mil anos de cultivo, o solo voltou a florescer; os bens se
multiplicaram, criando excedentes que levaram ao comércio; e o comércio
em suas encruzilhadas voltou a construir grandes cidades nas quais os
homens podiam cooperar para estimular a cultura e reconstruir a
civilização. As Cruzadas abriram os caminhos para o Oriente e permitiram
a entrada de uma torrente de artigos de luxo e heresias que condenaram à
morte e ascetismo e o dogma. O papel, agora, chegava barato do Egito,
substituindo o caro pergaminho que tornara o saber um monopólio dos
sacerdotes; a imprensa, que durante muito tempo esperava por um meio
barato, estourou como um explosivo libertado e espalhou sua influência
destruidora e esclarecedora por toda parte. Bravos navegantes, armados
agora de bússolas, aventuraram-se na imensidão dos mares e conquistaram a
ignorância do homem a respeito da Terra; observadores pacientes,
armados de telescópios, aventuraram-se para além dos confins do dogma e
conquistaram a ignorância do homem quanto ao céu. Aqui e ali, em
universidades, mosteiros e retiros escondidos, homens deixaram de
disputar e começaram a investigar; por via indireta, graças aos esforços
no sentido de transformar metais inferiores em ouro, a alquimia foi
transformada em química; da astrologia, os homens foram tateando com
tímida ousadia para a astronomia; e das fábulas dos animais que falavam
veio a ciência da zoologia. O despertar começou com Roger Bacon (m.
1294); aumentou com o ilimitado Leonardo (1452-1519); alcançou sua
plenitude na astronomia de Copérnico (1473-1543) e Galileu (1564-1642),
nas pesquisas de Gilbert (1544-1603) sobre magnetismo e eletricidade, de
Vesálio (1514-1564) em anatomia, e de Harvey (1578-1657) sobre a
circulação do sangue. À medida que aumentava o conhecimento, diminuía o
medo; os homens pensavam menos em adorar o desconhecido, e mais em
dominá-lo. Todo espírito vital foi estimulado por uma nova confiança;
barreiras foram derrubadas; não havia limites, agora, para o que o homem
poderia fazer. "O fato de pequenos navios, como os corpos celestes,
navegarem à volta do mundo inteiro, é a felicidade da nossa era. Esta
época pode usar, com toda justiça, plus ultra" (mais além) "onde os
antigos usavam non plus ultra." Foi uma era de realizações, esperança e
vigor; de novos começos e empreendimentos em todos os campos; era uma
era que esperava por uma voz, uma alma sintética para resumir o seu
espírito e decidir. Foi Francis Bacon, "a mais poderosa inteligência dos
tempos modernos, que tocou a sineta que reuniu as inteligências" e
anunciou que a Europa havia atingido a maioridade.
OS PENSADORES
Do
fundo eclético-neoplatônico do pensamento da Renascença se destacavam
algumas figuras de maior vulto, cuja série começa com Nicolau de Cusa e
termina com Giordano Bruno. É uma nova concepção filosófica do mundo e
da vida, ainda não bem claramente esboçada, de que seus próprios
autores, às vezes, não têm clara consciência. É uma época de transição,
em que novo e velho se entretecem mutuamente.
Os
sistemas filosóficos da época conservam a linguagem (latim) e a
estrutura (silogística) da idade precedente. As intuições e afirmações
naturalistas, humanistas e imanentistas estão ao lado das profissões de
fé católica, feitas por motivos práticos, éticos e utilitários.
Entretanto, debaixo dessas aparências, germina o pensamento moderno. É o
crepúsculo que prenuncia a alvorada de um novo dia.
Nicolau de Cusa
Nicolau
Krebs nasceu em 1401 em Cusa, de família modesta. Foi educado junto dos
Irmãos da vida comum em Deventer, onde sofreu a influência do
misticismo alemão; em seguida estudou na Universidade de Heidelberg,
foco de nominalismo, e na de Pádua, onde aprendeu a matemática, o
direito, a astronomia. Ordenado padre, teve parte notável no concílio de
Basiléia (1432); foi, a seguir, legado pontifício, cardeal, bispo.
Viveu seus últimos anos na Itália, onde faleceu em 1464.
As
obras fundamentais de Nicolau de Cusa são três: De docta ignorantia, De
conjecturis, Apologia doctae ignorantiae. As fontes prediletas e
principais são o misticismo alemão (Mestre Eckart), o platonismo e o
neoplatonismo cristão (Santo Agostinho, Pseudo Dionísio, Scoto Erígena,
São Boaventura), e os autores de tendência neoplatônica, em geral.
Nicolau
de Cusa admite, acima dos sentidos, dois graus do saber humano; a ratio
e o intellectus. A ratio - ou intelecto discursivo - é a faculdade que
abstrai das noções particulares os conceitos universais, e forma, em
seguida, os juízos e os raciocínios. O seu objeto próprio é o
conhecimento da multíplice e do finito. No entanto, também a coisas
finitas são imperfeitamente representadas pela ratio, cujo conhecimento
se realiza mediante conceitos universais, ao passo que a realidade é
constituída por seres individuais. Deus, uno e infinito, não pode
certamente ser conhecido pela ratio, cujo objeto é o multíplice e o
finito.
Acima
da ratio está o intellectus, atividade supra-racional iluminada pela fé
ou pela mística, cujo objeto próprio é o Uno e o infinito, Deus. O
agnosticismo de Nicolau de Cusa é, portanto, corrigido pelo fideísmo e
pelo misticismo. A docta ignorantia consiste precisamente na consciência
dos limites e da relatividade da ratio, cujas deficiências são supridas
pelo intellectus. Entretanto, esta iluminação é sobrenatural e nada tem
que ver com a filosofia, nem é de modo nenhum fundamentada por Cusano.
Admitindo, pois, ele, que a razão não nos dá a realidade, segue-se
logicamente que a sua filosofia deve finalizar no agnosticismo
gnosiológico, e no panteísmo metafísico.
Por
certo, o piedoso cardeal foi, na intenção, ortodoxo, teísta, católico.
Entretanto, o seu sistema encerra fatalmente uma tendência para o
panteísmo. De fato, foi ele acusado de panteísmo emanatista, quando
ainda vivia.
Bernardino Telésio
Mais
claramente manifesta-se o imanentismo da Renascença - em seu aspecto
naturalista - em Bernardino Telésio . Nasceu em 1509 em Cosenza, estudou
especialmente em Pádua e faleceu em 1588. A sua obra fundamental é De
rerum natura iuxta propria principia. O pensamento de Telésio representa
uma sistematização do naturalismo da Renascença: a saber, uma tentativa
para explicar a natureza mediante os princípios universais imanentes à
mesma natureza.
O
mundo natural é constituído de matéria e de força. A matéria é
homogênea, preenche o espaço (que existe antes da matéria) e é por si
mesma inerte. A força anima, penetra, move, transforma continuamente
toda a matéria.
O
intelecto é reduzido aos sentidos, bem como o conceito universal é
reduzido à sensação. Como é naturalizado o pensamento, é também
naturalizada a vontade, no sentido materialista e hedonista.
Entretanto,
haveria no homem também uma alma que transcende a natureza e o mundo
material, criada e infundida por Deus. Por conseguinte, o homem pode
pensar e querer o supra-sensível, o eterno, e dominar com a vontade
livre as tendências naturais. Desse modo, acima da ciência é posta e
justificada a fé e a revelação.
Giordano Bruno
Giordano
Bruno é a maior expressão do imanentismo renascentista. Nasceu em Nola
em 1548, entrou na Ordem dos Dominicanos aos 15 anos. Acusado de heresia
e afastado de sua ordem, iniciou uma vida giróvaga através da Europa.
De volta a Veneza, foi processado pelo tribunal da Inquisição e
reconheceu os seus erros. Entregue à Inquisição romana, foi de novo
processado; mas, desta vez, recusou qualquer retratação e foi condenado à
morte, que lhe foi infligida em 1600.
As
obras principais de Bruno são: De la causa principio e uno; De
l'infinito, universo e mondi; Eroici furori; De immenso et
innumerabilibus. As fontes de Bruno são: o monismo eleático e
heraclíteo; o atomismo democríteo; o panteísmo estóico; o emanatismo
neoplatônico; o naturalismo telesiano.
A
metafísica de Bruno é decididamente monista, pampsiquista e
pan-materialista. A realidade é una e infinita, constituída por dois
princípios fundamentais, ativo um - a alma do mundo -, passivo o outro -
a matéria. São dois aspectos da mesma substância. A alma do mundo é
concebida como sendo inteligente, ordenadora do mundo; mas não é
transcendente, como o motor primeiro de Aristóteles e o Deus do
cristianismo, e sim imanente ao mundo, de que é precisamente a alma. O
Deus de Bruno é, pois, esta alma do mundo, concebida como imutável e
infinita, gerando eternamente o mundo finito e que se acha em perpétuo
vir-a-ser. As almas particulares não passam de individuações passageiras
dessa alma cósmica. Acima desse Deus imanente, também Bruno afirma a
existência de um Deus transcendente, apreendido só por fé, trata-se,
porém, de uma fé imanente naturalista, bem diversa da fé cristã.
Com
a metafísica de Bruno estão em conexão a sua gnosiologia e a sua moral.
Na sua teoria do conhecimento Bruno distingue - neoplatonicamente -
quatro graus, em ordem hierárquica ascendente. São eles:
• os sentidos, cujo objeto é o sensível, e a verdade que manifesta é mera aparência;
• a razão, mediante a qual a verdade é atingida por processo dialético, discursivo, sucessivo;
• o intelecto, que tem a intuição imediata da verdade;
• a mente, que atinge a verdade na sua unidade e simplicidade absoluta.
Quanto
à moral deve-se dizer o seguinte: na moral de Bruno aparece de um modo
característico o imanentismo e o humanismo do pensador. Bruno, em
oposição à moral ascética e transcendente do cristianismo, sustenta que o
homem realiza a sua natureza, atinge a sua perfeição no furor heróico, a
saber, na sua imanente e jubilosa participação racional na vida do
Todo-um. É, pois, natural, que Bruno considere toda religião histórica,
positiva (inclusive o cristianismo), como um saber infra-racional,
mítico, simbólico, útil para dirigir moralmente o vulgo ignorante, e não
como uma revelação supra-racional de um Deus transcendente. Pois não é
isto possível no seu sistema imanentista.
Tomás Campanella
Tomás
Campanella nasceu em Stilo, na Calábria, em 1568, e também ele entrou
ainda moço na ordem dos Dominicanos. É o maior continuador de Telésio.
Várias vezes processado por heresia, foi, porém, absolvido; entretanto,
condenaram-no por motivos políticos e passou no cárcere 27 anos, sendo,
enfim, libertado. Suas obras principais são: Civitas solis; Universalis
philosophia seu metaphisicarum rerum iuxta propria dogmata partes tres;
De sensu rerum et magia libri X.
As
fontes principais do seu pensamento são: o naturalismo telesiano e o
idealismo neoplatônico. Mais do que os pensadores precedentes,
Campanella parece oscilar entre imanentismo e catolicismo, devido ao
fato de que se acha ele já no clima espiritual da contra reforma
católica. E como Giordano Bruno prenuncia a Spinoza, assim Campanella
prenuncia a Descartes, Malenbranche e Leibniz, marcando destarte a
passagem da Renascença à Idade Moderna.
Quanto
à gnosiologia, Campanella diz o seguinte: Admite ele um sensus inditus e
um sensus additus. O primeiro oferece um conhecimento imediato de si
mesmo; é um conhecimento fundamental, certíssimo, visto que o objeto
coincide com o sujeito. Entretanto, o conhecimento do eu, a consciência,
revela imediatamente as limitações do eu e, logo, a existência as
coisas que limitam o eu. Estas coisas são conhecidas pela percepção
externa, isto é, pelo sensus additus que nos dá um conhecimento mediato
das coisas. Este, porém, não nos revela a natureza das coisas, e sim o
sujeito modificado pelas coisas.
Ainda
inferiores ao sensus additus, pela certeza, são o intelecto e a razão,
porque ainda mais se afastam do sensus inditus, da imediata intuição de
si mesmo. A razão, a saber, o poder de inferir o semelhante do
semelhante, é um sentido imperfeito; o intelecto, a saber, o
conhecimento do universal é um sentido elanguescido, pois o universal é
uma noção genérica e confusa, cujo valor é unicamente prático, cômodo
para resumir vários particulares. Campanella, como Telésio, desvaloriza a
razão e o intelecto e admite, ao lado e acima deles, um princípio
divino, uma mente, o pensamento, que desempenha a função de garantir o
nosso conhecimento e libertar-nos do ceticismo.
Quanto
à metafísica, salientamos que Campanella afirma de novo e acentua a
animação universal, o pampsiquismo telesiano. Propriamente, a metafísica
de Campanella é a doutrina dos primeiros princípios do ser; são eles o
poder, a sabedoria, o amor. Tais princípios são absolutos e puros em
Deus, relativos e imperfeitos nas criaturas. Daí as coisas e o espírito
serem uma mistura de ser e de não-ser (ser limitado), ao passo que Deus é
puro ser (ser infinito).
Sobre
essa nossa limitação ontológica, Campanella alicerça a religião, que é
aspiração do ser limitado para o ser infinito. Para Campanella, a
religião fundamental é a religião natural, racional; as religiões
positivas, históricas, seriam expressões empíricas da religião natural. A
característica essencial da própria revelação cristã e da igreja
católica seria a restauração da religião natural, racional, universal,
obscurecida pela ignorância e pela concupiscência. Portanto, o
cristianismo seria reduzido à religião natural, a que a Renascença em
geral aspira.
Tal
concepção filosófico-religiosa de Campanella teve uma expressão
prática, política e pedagógica, na Cidade do Sol (Civitas solis), em que
é exposta a sua utopia teocrático-comunista. Imagina ele uma república
ideal, professando uma religião natural, governada por leis universais,
em que, à maneira de Platão, o sábio é, ao mesmo tempo, monarca e
sacerdote. Mais tarde, essa sua utopia teocrático-filosófica tomará uma
forma teocrático-católica, com o papa à frente. Entretanto, o papa é
concebido mais como chefe concreto de uma religião natural, do que como
chefe de uma religião positiva e sobrenatural, como o cristianismo.
Campanella viveu longamente na prisão, afastado da vida real; suas
obras, escritas no cárcere, manifestam uma mentalidade fantástica,
idealista, utópica, em que falta a experiência de uma vida
social-concreta. "Tumultuária e aventurosa em muitos pontos - escreve
Leonel Franca - a obra de Campanella encerra não poucas ideias
aproveitáveis. Cabe-lhe a prioridade de várias teorias, atribuídas
depois a Descartes e Bacon".
RENÉ DESCARTES
Sua Vida
René
Descartes, nascido em 1596 em La Haye - não a cidade dos Países-Baixos,
mas um povoado da Touraine, numa família nobre - terá o título de
senhor de Perron, pequeno domínio do Poitou, daí o aposto "fidalgo
poitevino".
De
1604 a 1614, estuda no colégio jesuíta de La Flèche. Aí gozará de um
regime de privilégio, pois levanta-se quando quer, o que o leva a
adquirir um hábito que o acompanhará por toda sua vida: meditar no
próprio leito. Apesar de apreciado por seus professores, ele se declara,
no "Discurso sobre o Método", decepcionado com o ensino que lhe foi
ministrado: a filosofia escolástica não conduz a nenhuma verdade
indiscutível, "Não encontramos aí nenhuma coisa sobre a qual não se
dispute". Só as matemáticas demonstram o que afirmam: "As matemáticas
agradavam-me sobretudo por causa da certeza e da evidência de seus
raciocínios". Mas as matemáticas são uma exceção, uma vez que ainda não
se tentou aplicar seu rigoroso método a outros domínios. Eis por que o
jovem Descartes, decepcionado com a escola, parte à procura de novas
fontes de conhecimento, a saber, longe dos livros e dos regentes de
colégio, a experiência da vida e a reflexão pessoal: "Assim que a idade
me permitiu sair da sujeição a meus preceptores, abandonei inteiramente o
estudo das letras; e resolvendo não procurar outra ciência que aquela
que poderia ser encontrada em mim mesmo ou no grande livro do mundo,
empreguei o resto de minha juventude em viajar, em ver cortes e
exércitos, conviver com pessoas de diversos temperamentos e condições".
Após
alguns meses de elegante lazer com sua família em Rennes, onde se ocupa
com equitação e esgrima (chega mesmo a redigir um tratado de esgrima,
hoje perdido), vamos encontrá-lo na Holanda engajado no exército do
príncipe Maurício de Nassau. Mas é um estranho oficial que recusa
qualquer soldo, que mantém seus equipamentos e suas despesas e que se
declara menos um "ator" do que um "espectador": antes ouvinte numa
escola de guerra do que verdadeiro militar. Na Holanda, ocupa-se
sobretudo com matemática, ao lado de Isaac Beeckman. É dessa época (tem
cerca de 23 anos) que data sua misteriosa divisa "Larvatus prodeo". Eu
caminho mascarado. Segundo Pierre Frederix, Descartes quer apenas
significar que é um jovem sábio disfarçado de soldado.
Em
1619, ei-lo a serviço do Duque de Baviera. Em virtude do inverno,
aquartela-se às margens do Danúbio. Podemos facilmente imaginá-lo
alojado "numa estufa", isto é, num quarto bem aquecido por um desses
fogareiros de porcelana cujo uso começa a se difundir, servido por um
criado e inteiramente entregue à meditação. A 10 de novembro de 1619,
sonhos maravilhosos advertem que está destinado a unificar todos os
conhecimentos humanos por meio de uma "ciência admirável" da qual será o
inventor. Mas ele aguardará até 1628 para escrever um pequeno livro em
latim, as "Regras para a direção do espírito" (Regulae ad directionem
ingenii). A ideéia fundamental que aí se encontra é a de que a unidade do
espírito humano (qualquer que seja a diversidade dos objetos da
pesquisa) deve permitir a invenção de um método universal. Em seguida,
Descartes prepara uma obra de física, o Tratado do Mundo, a cuja
publicação ele renuncia visto que em 1633 toma conhecimento da
condenação de Galileu. É certo que ele nada tem a temer da Inquisição.
Entre 1629 e 1649, ele vive na Holanda, país protestante. Mas Descartes,
de um lado é católico sincero (embora pouco devoto), de outro, ele
antes de tudo quer fugir às querelas e preservar a própria paz.
Finalmente,
em 1637, ele se decide a publicar três pequenos resumos de sua obra
científica: A Dióptrica, Os Meteoros e A Geometria. Esses resumos, que
quase não são lidos atualmente, são acompanhados por um prefácio e esse
prefácio foi que se tornou famoso: é o Discurso sobre o Método. Ele faz
ver que o seu método, inspirado nas matemáticas, é capaz de provar
rigorosamente a existência de Deus e o primado da alma sobre o corpo.
Desse modo, ele quer preparar os espíritos para, um dia, aceitarem todas
as consequências do método - inclusive o movimento da Terra em torno do
Sol! Isto não quer dizer que a metafísica seja, para Descartes, um
simples acessório. Muito pelo contrário! Em 1641, aparecem as Meditações
Metafísicas, sua obra-prima, acompanhadas de respostas às objeções. Em
1644, ele publica uma espécie de manual cartesiano. Os Princípios de
Filosofia, dedicado à princesa palatina Elisabeth, de quem ele é, em
certo sentido, o diretor de consciência e com quem troca importante
correspondência. Em 1644, por ocasião da rápida viagem a Paris,
Descartes encontra o embaixador da frança junto à corte sueca, Chanut,
que o põe em contato com a rainha Cristina.
Esta
última chama Descartes para junto de si. Após muitas tergiversações, o
filósofo, não antes de encarregar seu editor de imprimir, para antes do
outono, seu Tratado das Paixões - embarca para Amsterdã e chega a
Estocolmo em outubro de 1649. É ao surgir da aurora (5 da manhã!) que
ele dá lições de filosofia cartesiana à sua real discípula. Descartes,
que sofre atrozmente com o frio, logo se arrepende, ele que "nasceu nos
jardins da Touraine", de ter vindo "viver no país dos ursos, entre
rochedos e geleiras". Mas é demasiado tarde. Contrai uma pneumonia e se
recusa a ingerir as drogas dos charlatões e a sofrer sangrias
sistemáticas ("Poupai o sangue francês, senhores"), morrendo a 9 de
fevereiro de 1650. Seu ataúde, alguns anos mais tarde, será transportado
para a França. Luís XIV proibirá os funerais solenes e o elogio público
do defunto: desde 1662 a Igreja Católica Romana, à qual ele parece
Ter-se submetido sempre e com humildade, colocará todas as suas obras no
Index.
O Método
Descartes quer estabelecer um método universal, inspirado no rigor matemático e em suas "longas cadeias de razão".
1.
- A primeira regra é a evidência: não admitir "nenhuma coisa como
verdadeira se não a reconheço evidentemente como tal". Em outras
palavras, evitar toda "precipitação" e toda "prevenção" (preconceitos) e
só ter por verdadeiro o que for claro e distinto, isto é, o que "eu não
tenho a menor oportunidade de duvidar". Por conseguinte, a evidência é o
que salta aos olhos, é aquilo de que não posso duvidar, apesar de todos
os meus esforços, é o que resiste a todos os assaltos da dúvida, apesar
de todos os resíduos, o produto do espírito crítico. Não, como diz bem
Jankélévitch, "uma evidência juvenil, mas quadragenária".
2. - A segunda, é a regra da análise: "dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quantas forem possíveis".
3.
- A terceira, é a regra da síntese: "concluir por ordem meus
pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de
conhecer para, aos poucos, ascender, como que por meio de degraus, aos
mais complexos".
4. - A última á a dos "desmembramentos tão complexos... a ponto de estar certo de nada ter omitido".
Se
esse método tornou-se muito célebre, foi porque os séculos posteriores
viram nele uma manifestação do livre exame e do racionalismo.
a)
Ele não afirma a independência da razão e a rejeição de qualquer
autoridade? "Aristóteles disse" não é mais um argumento sem réplica! Só
contam a clareza e a distinção das ideias. Os filósofos do século XVIII
estenderão esse método a dois domínios de que Descartes, é importante
ressaltar, o excluiu expressamente: o político e o religioso (Descartes é
conservador em política e coloca as "verdades da fé" ao abrigo de seu
método).
b)
O método é racionalista porque a evidência de que Descartes parte não
é, de modo algum, a evidência sensível e empírica. Os sentidos nos
enganam, suas indicações são confusas e obscuras, só as ideias da razão
são claras e distintas. O ato da razão que percebe diretamente os
primeiros princípios é a intuição. A dedução limita-se a veicular, ao
longo das belas cadeias da razão, a evidência intuitiva das "naturezas
simples". A dedução nada mais é do que uma intuição continuada.
A Metafísica
No
Discurso sobre o Método, Descartes pensa sobretudo na ciência. Para bem
compreender sua metafísica, é necessário ler as Meditações.
1.
- Todos sabem que Descartes inicia seu itinerário espiritual com a
dúvida. Mas é necessário compreender que essa dúvida tem um outro
alcance que a dúvida metódica do cientista. Descartes duvida voluntária e
sistematicamente de tudo, desde que possa encontrar um argumento, por
mais frágil que seja. Por conseguinte, os instrumentos da dúvida nada
mais são do que os auxiliares psicológicos, de uma ascese, os
instrumentos de um verdadeiro "exército espiritual". Duvidemos dos
sentidos, uma vez que eles frequentemente nos enganam, pois, diz
Descartes, nunca tenho certeza de estar sonhando ou de estar desperto!
(Quantas vezes acreditei-me vestido com o "robe de chambre", ocupado em
escrever algo junto à lareira; na verdade, "estava despido em meu
leito").
Duvidemos
também das próprias evidências científicas e das verdades matemáticas!
Mas quê? Não é verdade - quer eu sonhe ou esteja desperto - que 2 + 2 =
4? Mas se um gênio maligno me enganasse, se Deus fosse mau e me iludisse
quanto às minhas evidências matemáticas e físicas? Tanto quanto duvido
do Ser, sempre posso duvidar do objeto (permitam-me retomar os termos do
mais lúcido intérprete de Descartes, Ferdinand Alquié).
2.
- Existe, porém, uma coisa de que não posso duvidar, mesmo que o
demônio queira sempre me enganar. Mesmo que tudo o que penso seja falso,
resta a certeza de que eu penso. Nenhum objeto de pensamento resiste à
dúvida, mas o próprio ato de duvidar é indubitável. "Penso, cogito, logo
existo, ergo sum" . Não é um raciocínio (apesar do logo, do ergo), mas
uma intuição, e mais sólida que a do matemático, pois é uma intuição
metafísica, metamatemática. Ela trata não de um objeto, mas de um ser.
Eu penso, Ego cogito (e o ego, sem aborrecer Brunschvicg, é muito mais
que um simples acidente gramatical do verbo cogitare). O cogito de
Descartes, portanto, não é, como já se disse, o ato de nascimento do
que, em filosofia, chamamos de idealismo (o sujeito pensante e suas
ideias como o fundamento de todo conhecimento), mas a descoberta do
domínio ontológico (estes objetos que são as evidências matemáticas
remetem a este ser que é meu pensamento).
3.
- Nesse nível, entretanto, nesse momento de seu itinerário espiritual,
Descartes é solipsista. Ele só tem certeza de seu ser, isto é, de seu
ser pensante (pois, sempre duvido desse objeto que é meu corpo; a alma,
diz Descartes nesse sentido, "é mais fácil de ser conhecida que o
corpo").
É
pelo aprofundamento de sua solidão que Descartes escapará dessa
solidão. Dentre as ideias do meu cogito existe uma inteiramente
extraordinária. É a ideia de perfeição, de infinito. Não posso tê-la
tirado de mim mesmo, visto que sou finito e imperfeito. Eu, tão
imperfeito, que tenho a ideia de Perfeição, só posso tê-la recebido de
um Ser perfeito que me ultrapassa e que é o autor do meu ser. Por
conseguinte, eis demonstrada a existência de Deus. E nota-se que se
trata de um Deus perfeito, que, por conseguinte, é todo bondade. Eis o
fantasma do gênio maligno exorcizado. Se Deus é perfeito, ele não pode
ter querido enganar-me e todas as minhas ideias claras e distintas são
garantidas pela veracidade divina. Uma vez que Deus existe, eu então
posso crer na existência do mundo. O caminho é exatamente o inverso do
seguido por São Tomás. Compreenda-se que, para tanto, não tenho o
direito de guiar-me pelos sentidos (cujas mensagens permanecem confusas e
que só têm um valor de sinal para os instintos do ser vivo). Só posso
crer no que me é claro e distinto (por exemplo: na matéria, o que existe
verdadeiramente é o que é claramente pensável, isto é, a extensão e o
movimento). Alguns acham que Descartes fazia um circulo vicioso: a
evidência me conduz a Deus e Deus me garante a evidência! Mas não se
trata da mesma evidência. A evidência ontológica que, pelo cogito, me
conduz a Deus fundamenta a evidência dos objetos matemáticos. Por
conseguinte, a metafísica tem, para Descartes, uma evidência mais
profunda que a ciência. É ela que fundamenta a ciência (um ateu, dirá
Descartes, não pode ser geômetra!).
4.
- A Quinta meditação apresenta uma outra maneira de provar a existência
de Deus. Não mais se trata de partir de mim, que tenho a ideia de Deus,
mas antes da ideia de Deus que há em mim. Apreender a ideia de
perfeição e afirmar a existência do ser perfeito é a mesma coisa. Pois
uma perfeição não-existente não seria uma perfeição. É o argumento
ontológico, o argumento de Santo Anselmo que Descartes (que não leu
Santo Anselmo) reencontra: trata-se, ainda aqui, mais de uma intuição,
de uma experiência espiritual (a de um infinito que me ultrapassa) do
que de um raciocínio.
FRANCIS BACON
O
iniciador do empirismo é Francis Bacon. Enalteceu ele a experiência e o
método dedutivo de tal modo, que o transcendente e a razão acabam por
desaparecer na sombra. Falta-lhe, no entanto, a consciência crítica do
empirismo, que foram aos poucos conquistando os seus sucessores e
discípulos até Hume. Ademais, Bacon continua afirmando - mais ou menos
logicamente - o mundo transcendente e cristão; antes, continua a
considerar a filosofia como esclarecedora da essência da realidade, das
formas, sustentáculo e causa dos fenômenos sensíveis. É uma posição
filosófica que apela para a metafísica tradicional, grega e escolástica,
aristotélica e tomista. Entretanto, acontece em Bacon o que aconteceu a
muitos pensadores da Renascença, e o que acontecerá a muitos outros
pensadores do empirismo e do racionalismo: isto é, a metafísica
tradicional persiste neles todos histórica e praticamente ao lado da
nova filosofia, tanto mais quanto esta é menos elaborada, acabada e
consciente de si mesma.
Vida e Obras
Francis
Bacon nasceu no dia 22 de janeiro de 1561 na York House, Londres,
residência de seu pai sir Nicholas Bacon, que nos primeiros vinte anos
do reinado de Elizabeth tinha sido o Guardião do Sinete. "A fama do
pai", diz Maucaulay, "foi ofuscada pela do filh". Mas sir Nicholas não
era um homem comum." A mãe de Bacon foi lady Anne Cooke, cunhada de sir
William Cecil, lorde Burghley, que foi tesoureiro-mor de Elizabeth e um
dos homens mais poderosos da Inglaterra. O pai dela tinha sido o
tutor-chefe do rei Eduardo VI; ela mesma era lingüista e teóloga, e não
tinha dificuldade em se corresponder em grego com bispos. Tornou-se
instrutora do filho e não poupou esforços para que ele tivesse
instrução. Bacon frequentou a Universidade de Cambridge, e viveu também
em Paris. Começou a sua carreira de homem político e jurista, antes sob a
rainha Isabel, e, depois, sob Jaime I, subindo até aos mais altos
cargos: advogado geral em 1613, membro do Conselho particular em 1616,
chanceler do reino em 1618. Foi agraciado por Jaime I com os títulos de
Barão de Verulamo e Visconde de S. Albano. Entretanto foi acusado de
concussão e condenado pelo Parlamento a uma multa avultuada. Perdoado
pelo rei, retirou-se para as suas terras, dedicando-se inteiramente aos
estudos. Faleceu em 1626. Teve uma inteligência muito esclarecida,
convencido da sua missão de cientista, segundo o espírito positivo e
prático da mentalidade anglo-saxônia.
A
obra principal de Bacon é a Instauratio magna scientiarum, vasta
síntese que deveria ter compreendido seis grandes partes. Mas terminou
apenas duas, deixando sobre o resto esboços e fragmentos. As duas partes
acabadas são precisamente: I - De dignitate et argumentis scientiarum;
II - Novum organum scientiarum. Como se vê pelos títulos, e mais ainda
pelo conteúdo, trata-se de pesquisas gnosiológicas, críticas e
metodológicas, para lançar as bases lógicas da nova ciência, da nova
filosofia, que deveria dar ao homem o domínio da realidade.
Os Ensaios
Sua
ascensão parecia tornar realidade os sonhos de Platão de um
rei-filósofo. Porque, passo a passo com a sua subida para o poder
político, Bacon estivera escalando os píncaros da filosofia. É quase
inacreditável que o imenso saber e as realizações literárias desse homem
fossem apenas os incidentes e as digressões de uma turbulenta carreira
política. Era seu lema que se vivia melhor na vida oculta - bene vixit
qui bene latuit. Não conseguia chegar a uma conclusão sobre se gostava
mais da vida contemplativa ou da ativa. Sua esperança era de ser
filósofo e estadista, também, como Sêneca; embora desconfiasse de que
essa dupla direção de sua vida fosse encurtar o seu alcance e reduzir
suas realizações. "É difícil dizer", escreve ele, e "se a mistura de
contemplações com uma vida ativa ou o retiro inteiramente dedicado a
contemplações é o que mais incapacita ou prejudica a ment." Achava que
os estudos não podiam ser um fim ou a sabedoria por si sós, e que o
conhecimento não aplicado em ação era uma pálida vaidade acadêmica.
"Dedicar-se em demasia aos estudos é indolência; usá-los em demasia como
ornamento é afetação; fazer julgamentos seguindo inteiramente suas
regras é o capricho de um scholar. (...) Os homens astutos condenam os
estudos, os homens simples os admiram, e os homens sábios se utilizam
deles, obtida graças à observação." Eis uma nova nota que marca o fim da
escolástica - isto é, o divórcio entre o conhecimento e o uso e a
observação - e coloca aquela ênfase na experiência e nos resultados que
distingue a filosofia inglesa, e culmina no pragmatismo. Não que Bacon
tivesse, por um instante, deixado de amar os livros e a meditação; em
palavras que lembram Sócrates, ele escreve: "sem filosofia, não quero
viver", e descreve a si mesmo como, afinal de contas, "um homem
naturalmente mais propenso à literatura do que a qualquer outra coisa, e
levado por algum destino, contra a inclinação de seu gênio" (isto é
caráter), "a vida ativa". Quase que a sua primeira publicação recebeu o
título de O Elogio do Conhecimento (1592); o entusiasmo do trabalho pela
filosofia nos obriga a uma citação.
"Meu
elogio será dedicado à própria mente. A mente é o homem, e o
conhecimento é a mente; um homem é apenas aquilo que ele sabe. (...) Não
são os prazeres das afeições maiores do que os prazeres dos sentidos, e
não são os prazeres do intelecto maiores do que os prazeres das
afeições? Não se trata, apenas, de um verdadeiro e natural prazer do
qual não há saciedade? Não é só esse conhecimento que livra a mente de
todas as perturbações? Quantas coisas existem que imaginamos não
existirem? Quantas coisas estimamos e valorizamos mais do que são? Essas
vãs imaginações, essas avaliações desproporcionadas, são as nuvens do
erro que se transformam nas tempestades das perturbações. Existirá,
então, felicidade igual à possibilidade da mente do homem elevar-se
acima da confusão das coisas de onde ele possa ter uma atenção especial
para com a ordem da natureza e o erro dos homens? De contentamento e não
de benefício? Será que não devemos perceber tanto a riqueza do armazém
da natureza quanto a beleza de sua loja? Será estéril a verdade? Não
poderemos, através dela, produzir efeitos dignos e dotar a vida do homem
com uma infinidade de coisas úteis?"
Sua
mais bela produção literária, os Ensaios (1597-1623), mostram-no ainda
indeciso entre dois amores, a política e a filosofia. No Ensaio sobre a
Honra e a Reputação, ele dá todos os graus de honra a realizações
políticas e militares, nenhum a literárias e filosóficas. Mas no ensaio
Da Verdade, ele escreve: "A indagação da verdade, que é namorá-la ou
cortejá-la; o conhecimento da verdade, que é o elogio a ela; e a crença
na verdade, que é gozá-la, são o bem soberano das naturezas humanas."
Nos livros, "conversamos com os sábios, como na ação conversamos com
tolos". Isto é, se soubermos escolher os nossos livros. "Certos livros
são para serem provados", outros para serem engolidos, e alguns poucos
para serem mastigados e digeridos"; todos esses grupos formam, sem
dúvida, uma porção infinitesimal dos oceanos e cataratas de tinta nos
quais o mundo é diariamente banhado, envenenado e afogado.
Não
há dúvida de que os >Ensaios devem ser incluídos entre os poucos
livros que merecem ser mastigados e digeridos. Raramente se encontrará
uma refeição tão substanciosa, tão admiravelmente preparada e temperada,
em um prato tão pequeno. Bacon abomina os recheios e detesta
desperdiçar uma palavra; ele nos oferece uma infinita riqueza numa
pequena frase; cada um desses ensaios fornece, em uma ou duas páginas, a
destilada sutileza de uma mente de mestre sobre um importante aspecto
da vida. É difícil dizer o que é mais excelente, se a matéria ou o
estilo; porque ali se acha uma linguagem de tão alta qualidade na prosa
quanto é a de Shakespeare em verso. É um estilo como o do vigoroso
Tácito, compacto mas refinado; e na verdade uma parte de sua concisão se
deve a uma habilidosa adaptação do idioma e do frasear latinos. Mas a
sua riqueza no que se refere a metáforas é caracteristicamente
elizabetana e reflete a exuberância da Renascença; nenhum homem, na
literatura inglesa, é tão fértil em comparações significativas e
substanciosas. A excessiva sucessão dessas comparações constitui o único
defeito do estilo de Bacon: as intermináveis metáforas, alegorias e
alusões caem como chicotes sobre os nossos nervos e acabam por nos
exaurir. Os Ensaios são como um alimento rico e pesado, que não pode ser
digerido em grandes quantidades de uma só vez; mas tomados quatro ou
cinco de cada vez, constituem o melhor alimento intelectual.
No
ensaio"Da Juventude e da Idade"ele condensa um livro em um parágrafo.
"Os jovens são mais aptos para inventar do que para julgar, mais aptos
para a execução do que para o assessoramento, e mais aptos para novos
projetos do que para atividades já estabelecidas; porque a experiência
da idade em coisas que estejam ao alcance dessa idade os dirige; mas em
coisas novas, os maltrata. (...) Os jovens, na conduta e na
administração dos atos, abraçam mais do que podem segurar, agitam mais
do que podem acalmar; voam para o fim sem consideração para com os meios
e os graus; perseguem absurdamente alguns princípios com que toparam
por acaso; não se importam em "(isto é, em como)" inovar, o que provoca
transtornos desconhecidos. (...) Os homens maduros fazem objeções
demais, demoram-se demais em consultas, arriscam-se muito pouco,
arrependem-se cedo demais e raramente levam o empreendimento até o fim,
mas se contentam com uma mediocridade de sucesso. Não há dúvida de que é
bom forçar o emprego de ambos (...), porque as virtudes de qualquer um
deles poderão corrigir os defeitos dos dois." Bacon acha, apesar de
tudo, que a juventude e a infância podem ter uma liberdade demasiada e,
assim, crescer desordenadas e relaxadas. "Que os pais escolhem cedo as
vocações e os cursos que pretendem que seus filhos sigam, pois é nessa
fase que eles são mais flexíveis; e que não se concentrem demais no
pensor dos filhos, pensando que estes irão dedicar-se melhor àquilo para
que estejam mais inclinados. É verdade que se os pendores ou a aptidão
dos filhos forem extraordinários, é bom não contrariá-los; mas em geral,
é bom o preceito" dos pitagóricos: "Optimum lege, suave et facile illud
faciet consuetudo" - escolha o melhor; o hábito irá torná-lo agradável e
fácil. Porque "o hábito é o principal magistrado da vida do homem."
A
política dos Ensaios prega um conservantismo natural em que aspira ao
governo. Bacon quer um forte poder central. A monarquia é a melhor forma
de governo; e em geral, a eficiência de um Estado varia com a
concentração do poder. "Deve haver três pontos essenciais nas
atividades" do governo: "a preparação; o debate, ou exame; e a
conclusão" (ou execução). "Se quiserdes presteza, que só o do meio fique
a cargo de muitos, com o primeiro e o último ficando a cargo de uns
poucos." Ele é um militarista confesso; deplora o crescimento da
indústria por considerar que isso deixa os homens despreparados para a
guerra, e lamenta uma paz prolongada, por aplacar o guerreiro que existe
no homem. Apesar disso, reconhece a importância das matérias-primas:
"Sólon disse a Creso (quando, por ostentação, Creso lhe mostrou o seu
ouro): "Senhor, se chegar qualquer outro que tenha melhor ferro do que
vós, ele será dono de todo esse ouro."
Tal
como Aristóteles, Bacon dá alguns conselhos para se evitarem
revoluções. "O meio mais seguro de evitar sedições (...) é afastar a
causa; porque se o combustível estiver preparado, é difícil dizer de
onde virá a fagulha que irá atear-lhe fogo. (...) Tampouco se segue que a
supressão dos rumores" (isto é, da discussão) "com demasiada severidade
deva ser o remédio para os problemas; porque muitas vezes o desprezo é a
melhor forma de contê-los, e as providências para reprimi-los só fazem
dar vida longa à especulação. (...) A substância da sedição é de dois
tipos: muita pobreza e muito descontentamento. (...) As causas e motivos
das sedições são as inovações na religião; os impostos; as modificações
de leis e costumes; o cancelamento de privilégios; a opressão
generalizada; o progresso de pessoas indignas, estranhas, as privações;
soldados desmobilizados; facções desesperadas; e tudo aquilo que, ao
ofender um povo, faz com que ele se una em uma casa comum." A sugestão
de todos os líderes, claro, é dividir seus inimigos e unir os amigos.
"De modo geral, é dividir e enfraquecer todas as facções (...)
contrárias ao Estado, e colocá-las longe uma das outras, ou pelo menos
semear a desconfiança entre elas, não é um dos piores remédios; porque é
desesperador o caso em que aqueles que apóiam o governo estão cheios de
discórdia e cisões, e os que estão contra ele estão inteiros e unidos."
Uma receita melhor para evitar as revoluções é uma distribuição
eqüitativa da riqueza: "O dinheiro é como o esterco, só é bom se for
espalhado."Mas isso não significa socialismo ou, mesmo, democracia;
Bacon não confia no povo, que na sua época praticamente não tinha acesso
à educação; "a mais baixa das lisonjas é a lisonja do homem do povo", e
"Fócion compreendeu bem quando, ao ser aplaudido pela multidão,
perguntou o que tinha feito de errado." O que Bacon quer é, primeiro,
uma pequena burguesia de proprietários rurais; depois, uma aristocracia
para a administração; e acima de todos, um rei-filósofo. "Quando não há
exemplos de que um governo não tenha prosperado com governos cultos."
Ele cita Sêneca, Antonio Pio e Aurélio; tinha a esperança de que aos
nomes deles a posteridade acrescentasse o seu.
O Pensamento: A "Instauratio Magna"
A
Instauratio magna scientiarum deveria ter precisamente representado a
reforma do saber, deveria ter constituído a summa philosophica dos
tempos novos, e lançado o fundamento do regnum hominis, tão audazmente
iniciado pela ciência e pela política da Renascença. Essa obra deveria
ter abraçado a enciclopédia das ciências e compreendido também as
técnicas, segundo o novo ideal humano e prático e imanentista.
Começa-se, portanto, com a classificação geral das disciplinas humanas,
baseada no respectivo predomínio das três faculdades que presidem à
organização do saber: memória, fantasia, razão. Essa classificação é
baseada não no objeto do conhecimento, e sim no sujeito que conhece. 1)
História tanto civil quanto natural, que registra (memória) os dados de
fato; 2) Poesia, elaboração imaginativa desses dados; 3) Ciência ou
filosofia, isto é, conhecimento racional de Deus, do homem e da
natureza.
A
teologia natural de Bacon não exclui, mas prescinde da revelação cristã
e da religião positiva. A ciência do homem divide-se em ciência do
homem individual (philosophia humanitatis), e em ciência da sociedade
humana (philosophia civilis). A primeira diz respeito ao homem todo,
espírito e matéria. A segunda diz respeito à arte de governar e às
relações sociais e aos negócios. A filosofia natural ou física,
divide-se em especulativa e operativa. A primeira, por sua vez, se
divide emfísica especial ("que procura a causa eficiente e material"), e
em metafísica ("que procura a causa final e a forma"). Pertencem pois à
física operativa as artes mecânicas. Acima das ciências filosóficas
particulares, Bacon põe uma ciência filosófica comum, denominando-a
philosophia prima. Esta não é a ontologia tradicional, a ciência do ser
em geral, mas a ciência dos princípios comuns às várias ciências.
O "Novum Organum"
Entretanto,
o que interessa mais a Bacon não é esta ciência dos princípios comuns, e
sim a ciência da natureza, e, portanto, o Novum organum, que deveria
conter precisamente as regras para a construção da ciência da natureza.
Como é sabido, Bacon reivindica, contra Aristóteles e a Escolática, o
método indutivo. Aristóteles e Tomás de Aquino afirmaram claramente este
método, e até o reconheceram como único procedimento inicial do
conhecimento humano; entretanto a eles interessavam muito mais as causas
do que a experiência, o que transcende a experiência do que a
experiência; muito mais a metafísica do que a ciência.
Segundo
Bacon, o verdadeiro método da indução científica compreende uma parte
negativa ou crítica, e uma parte positiva ou construtiva. A parte
negativa consiste, antes de tudo, em alertar a mente contra os erros
comuns, quando procura a conquista da ciência verdadeira. Na sua
linguagem imaginosa Bacon chama as causas destes erros comuns, fantasmas
- idola - e os divide em quatro grupos fundamentais.
1)
Idola tribus, a saber, os erroa da raça humana "fundamentados em a
natureza como tal" (não se sabe, pois, o verdadeiro porquê);
2) Idola specus (por alusão à caverna de Platão) determinados pelas disposições subjetivas de cada um;
3) Idola fori, erros da praça, provenientes do comércio social ou da linguagem imperfeita;
4)
Idola theatri, isto é, os erros provenientes das escolas filosóficas,
que substituem o mundo real por um mundo fantástico, por um jogo cênico.
Desembaraçado
o terreno destes erros, Bacon passa a tratar da natureza positiva,
construtiva, da genuína interpretação da natureza para dominá-la. Mas,
para tanto, é mister conhecer as que Bacon chama de >formas, isto
é, os princípios imanentes, causa e lei da ação e da ordem das
naturezas. As naturezas são precisamente os fenômenos experimentais,
objeto da física especial (luz, calor, pêso, etc.); as formas são leis
genéticas e organizadoras das naturezas, as essências ou causas formais,
objeto da metafísica de Bacon.
Esta
pesquisa, esta passagem das naturezas às formas, dos fenômenos às
essências - bem conhecida pela filosofia tradicional - é determinada por
Bacon, segundo um método preciso, desconhecido dos predecessores, nas
famosas tabulae baconianas. Para determinar de um modo certo as causas e
as leis dos fenômenos - isto é, as formas das naturezas - Bacon
recolhe, antes de tudo, o maior número possível de exemplos, em que um
determinado fenômeno aparece; depois enumera os casos que mais se
assemelham às primeiras, em que, porém, o mesmo fenômeno não aparece.
Enfim registra o aumentar ou o diminuir do fenômeno em questão, quer no
mesmo objeto, quer em objetos diferentes. Têm-se, desta maneira, três
espécies de registros ou tabelas: 1) tabelas de presença; 2) tabelas de
ausência; 3) tabelas de gradações. É evidente que nos casos onde uma
determinada natureza ou fenômeno aparecem, aí se encontrará também a sua
causa e lei; nos casos em que o fenômeno não se manifesta, aí faltará
também a sua causa e lei; e nos casos onde o fenômeno aumenta ou
diminui, aí aumentará ou diminuirá também a sua causa e lei. A causa
(forma) dos fenômenos (naturezas) será procurada, portanto, com base nos
fenômenos presentes na primeira tabela; não sendo fácil, a princípio,
ter-se tabelas completas e isolar as naturezas simples, e desta maneira
pôr em evidência a causa, é mister estabelecê-la por hipótese, que será,
em seguida, averiguada pelas experimentações.
Essa
gnosiologia, metodologia (empírica) é baseada em uma metafísica, uma
física materialista e, mais precisamente, atomista, bastante semelhante à
de Demócrito. O mundo material é constituído de corpúsculos,
qualitativamente idênticos, diversos apenas por grandeza, forma e
posição. Estes corpúsculos são animados por uma força, em virtude da
qual se agrupam em determinados complexos, que constituem as formas
baconianas.
FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
Immanuel Kant
Immanuel
Kant nasceu, estudou, lecionou e morreu em Koenigsberg. Jamais deixou
essa grande cidade da Prússia Oriental, cidade universitária e também
centro comercial muito ativo para onde afluíam homens de nacionalidade
diversa: poloneses, ingleses, holandeses. A vida de Kant foi austera (e
regular como um relógio). Levantava-se às 5 horas da manhã, fosse
inverno ou verão, deitava-se todas as noites às dez horas e seguia o
mesmo itinerário para ir de sua casa à Universidade. Duas circunstâncias
fizeram-no perder a hora: a publicação do Contrato Social de Rosseau,
em 1762, e a notícia da vitória francesa em Valmy, em 1792. Segundo
Fichte, Kant foi "a razão pura encarnada".
Kant
sofreu duas influências contraditórias: a influência do pietismo,
protestantismo luterano de tendência mística e pessimista (que põe em
relevo o poder do pecado e a necessidade de regeneração), que foi a
religião da mãe de Kant e de vários de seus mestres, e a influência do
racionalismo: o de Leibnitz, que Wolf ensinara brilhantemente, e o da
Aufklärung (a Universidade de Koenigsberg mantinha relações com a
Academia Real de Berlim, tomada pelas novas ideias). Acrescentemos a
literatura de Hume que "despertou Kant de seu sono dogmático" e a
literatura de Russeau, que o sensibilizou em relação do poder interior
da consciência moral.
A
primeira obra importante de Immanuel Kant - assim como uma das últimas,
o Ensaio sobre o mal radical - consagra-o ao problema do mal: o Ensaio
para introduzir em filosofia a noção de grandeza negativa (1763) opõe-se
ao otimismo de Leibnitz, herdeiro do otimismo dos escoláticos, assim
como do da Aufklärung. O mal não é a simples "privatio bone", mas o
objeto muito positivo de uma liberdade malfazeja. Após uma obra em que
Kant critica as ilusões de "visionário" de Swedenborg (que pretende tudo
saber sobre o além), segue-se a Dissertação de 1770, que vale a seu
autor a nomeação para o cargo de professor titular (professor
"ordinário", como se diz nas universidades alemãs).
Nela,
Kant distingue o conhecimento sensível (que abrange as instituições
sensíveis) e o conhecimento inteligível (que trata das ideias
metafísicas). Em seguida, surgem as grandes obras da maturidade, onde o
criticismo kantiano é exposto. Em 1781, temos a Crítica da Razão Pura,
cuja segunda edição, em 1787, explicará suas intenções "críticas" (um
estudo sobre os limites do conhecimento). Os prolegômenos a toda
metafísica futura (1783) estão para a Crítica da Razão Pura assim como a
Investigação sobre o entendimento de Hume está para o Tratado da
Natureza Humana: uma simplificação brilhante para o uso de um público
mais amplo. A Crítica da Razão Pura explica essencialmente porque as
metafísicas são voltadas ao fracasso e porque a razão humana é impotente
para conhecer o fundo das coisas. A moral de Kant é exposta nas obras
que se seguem: o Fundamento da Metafísica dos Costumes (1785) e a
Crítica da Razão Prática (1788). Finalmente, a Crítica do Juízo (1790)
trata das noções de beleza (e da arte) e de finalidade, buscando, desse
modo, uma passagem que una o mundo da natureza, submetido à necessidade,
ao mundo moral onde reina a liberdade.
Kant
encontrara proteção e admiração em Frederico II. Seu sucessor,
Frederico-Guilherme II, menos independente dos meios devotos,
inquietou-se com a obra publicada por Kant em 1793 e que, apesar do
título, era profundamente espiritualista e anti-Aufklärung: A religião
nos limites da simples razão. Ele fez com que Kant se obrigasse a nunca
mais escrever sobre religião, "como súdito fiel de Sua Majestade". Kant,
por mais inimigo que fosse da restrição mental, achou que essa promessa
só o obrigaria durante o reinado desse príncipe! E, após o advento de
Frederico-Guilherme III, não hesitou em tratar, no Conflito das
Faculdades (1798), do problema das relações entre a religião natural e a
religião revelada! Dentre suas últimas obras citamos A doutrina do
direito, A doutrina da virtude e seu Ensaio filosófico sobre a paz
perpétua (1795).
A Ciência e a Metafísica
O
método de Immanuel Kant é a "crítica", isto é, a análise reflexiva.
Consiste em remontar do conhecimento às condições que o tornam
eventualmente legítimo. Em nenhum momento Kant duvida da verdade da
física de Newton, assim como do valor das regras morais que sua mãe e
seus mestres lhe haviam ensinado. Não estão, todos os bons espíritos, de
acordo quanto à verdade das leis de Newton? Do mesmo modo todos
concordam que é preciso ser justo, que a coragem vale mais do que do que
a covardia, que não se deve mentir, etc... As verdades da ciência
newtoniana, assim como as verdades morais, são necessárias (não podem
não ser) e universais (valem para todos os homens e em todos os tempos).
Mas, sobre que se fundam tais verdades? Em que condições são elas
racionalmente justificadas? Em compensação, as verdades da metafísica
são objeto de incessantes discussões. Os maiores pensadores estão em
desacordo quanto às proposições da metafísica. Por que esse fracasso?
Os
juízos rigorosamente verdadeiros, isto é, necessários e universais, são
a priori, isto é independentes dos azares da experiência, sempre
particular e contigente. À primeira vista, parece evidente que esses
juízos a priori são juízos analíticos. Juízo analítico é aquele cujo
predicado está contido no sujeito. Um triângulo é uma figura de três
ângulos: basta-me analisar a própria definição desse termo para dizê-lo.
Em compensação, os juízos sintéticos, aqueles cujo atributo enriquece o
sujeito (por exemplo: esta régua é verde), são naturalmente a
posteriori; só sei que a régua é verde porque a vi. Eis um conhecimento
sintético a posteirori que nada tem de necessário (pois sei que a régua
poderia não ser verde) nem de universal (pois todas as réguas não são
verdes).
Entretanto,
também existem (este enigma é o ponto de partida de Kant) juízos que
são, ao mesmo tempo, sintéticos e a priori! Por exemplo:a soma dos
ângulos de um triângulo equivale a dois retos. Eis um juízo sintético (o
valor dessa soma de ângulos acrescenta algo à ideia de triângulo) que,
no entanto, é a priori. De fato eu não tenho necessidade de uma
constatação experimental para conhecer essa propriedade. Tomo
conhecimento dela sem ter necessidade de medir os ângulos com um
transferidor. Faço-o por intermédio de uma demonstração rigorosa. Também
em física, eu digo que o aquecimento da água é a causa necessária de
sua ebulição (se não houvesse aí senão uma constatação empírica, como
acreditou Hume, toda ciência, enquanto verdade necessária e universal,
estaria anulada). Como se explica que tais juízos sintéticos e a priori
sejam possíveis?
Eu
demonstro o valor da soma dos ângulos do triângulo fazendo uma
construção no espaço. Mas por que a demonstração se opera tão bem em
minha folha de papel quanto no quadro negro... ou quanto no solo em que
Sócrates traçava figuras geométricas para um escravo? É porque o espaço,
assim como o tempo, é um quadro que faz parte da própria estrutura de
meu espírito. O espaço e o tempo são quadros a priori, necessários e
universais de minha percepção (o que Kant mostra na primeira parte da
Crítica da Razão Pura, denominada Estética transcendental. Estética
significa teoria da percepção, enquanto transcendental significa a
priori, isto é, simultaneamente anterior à experiência e condição da
experiência). O espaço e o tempo não são, para mim, aquisições da
experiência. São quadros a priori de meu espírito, nos quais a
experiência vem se depositar. Eis por que as construções espaciais do
geômetra, por mais sintéticas que sejam, são a priori, necessárias e
universais. Mas o caso da física é mais complexo. Aqui, eu falo não só
do quadro a priori da experiência, mas, ainda, dos próprios fenômenos
que nela ocorrem. Para dizer que o calor faz ferver a água, é preciso
que eu constate. Como, então, os juízos do físico podem ser a priori,
necessários e universais?
É
porque, responde Kant, as regras, as categorias, pelas quais unificamos
os fenômenos esparsos na experiência, são exigências a priori do nosso
espírito. Os fenômenos, eles próprios, são dados a posteriori, mas o
espírito possui, antes de toda experiência concreta, uma exigência de
unificação dos fenômenos entre si, uma exigência de explicação por meio
de causas e efeitos. Essas categorias são necessárias e universais. O
próprio Hume, ao pretender que o hábito é a causa de nossa crença na
causalidade, não emprega necessariamente a categoria a priori de causa
na crítica que nos oferece? "Todas as intuições sensíveis estão
submetidas às categorias como às únicas condições sob as quais a
diversidade da intuição pode unificar-se em uma consciência". Assim
sendo, a experiência nos fornece a matéria de nosso conhecimento, mas é
nosso espírito que, por um lado, dispõe a experiência em seu quadro
espacio-temporal (o que Kant mostrará na Estética transcendental) e, por
outro, imprime-lhe ordem e coerência por intermédio de suas categorias
(o que Kant mostra na Analítica transcendental). Aquilo a que
denominamos experiência não é algo que o espírito, tal como cera mole,
receberia passivamente. É o próprio espírito que, graças às suas
estruturas a priori, constrói a ordem do universo. Tudo o que nos
aparece bem relacionado na natureza, foi relacionado pelo espírito
humano. É a isto que Kant chama de sua revolução copernicana. Não é o
Sol, dissera Copérnico, que gira em torno da Terra, mas é esta que gira
em torno daquele. O conhecimento, diz Kant, não é o reflexo do objeto
exterior. É o próprio espírito humano que constrói - com os dados do
conhecimento sensível - o objeto do seu saber.
Na
terceira parte de sua Crítica da Razão Pura, na dialética
transcendental, Kant se interroga sobre o valor do conhecimento
metafísico. As análises precedentes, ao fundamentar solidamente o
conhecimento, limitam o seu alcance. O que é fundamentado é o
conhecimento científico, que se limita a por em ordem, graças às
categorias, os materiais que lhe são fornecidos pela intuição sensível.
No
entanto, diz Immanuel Kant, é por isso que não conhecemos o fundo das
coisas. Só conhecemos o mundo refratado através dos quadros subjetivos
do espaço e do tempo. Só conhecemos os fenômenos e não as coisas em si
ou noumenos. As únicas intuições de que dispomos são as intuições
sensíveis. Sem as categorias, as intuições sensíveis seriam "cegas",
isto é, desordenadas e confusas, mas sem as intuições sensíveis
concretas as categorias seriam "vazias", isto é, não teriam nada para
unificar. Pretender como Platão, Descartes ou Spinoza que a razão humana
tem intuições fora e acima do mundo sensível, é passar por "visionário"
e se iludir com quimeras: "A pomba ligeira, que em seu vôo livre fende
os ares de cuja resistência se ressente, poderia imaginar que voaria
ainda melhor no vácuo. Foi assim que Platão se aventurou nas asas das
ideias, nos espaços vazios da razão pura. Não se apercebia que, apesar
de todos os seus esforços, não abria nenhum caminho, uma vez que não
tinha ponto de apoio em que pudesse aplicar suas forças".
Entretanto,
a razão não deixa de construir sistemas metafísicos porque sua vocação
própria é buscar unificar incessantemente, mesmo além de toda
experiência possível. Ela inventa o mito de uma "alma-substância" porque
supõe realizada a unificação completa dos meus estados d'alma no tempo e
o mito de um Deus criador porque busca um fundamento do mundo que seja a
unificação total do que se passa neste mundo... Mas privada de qualquer
ponto de apoio na experiência, a razão, como louca, perde-se nas
antinomias, demonstrando, contrária e favoravelmente, tanto a tese
quanto a antítese (por exemplo: o universo tem um começo? Sim pois o
infinito para trás é impossível, daí a necessidade de um ponto de
partida. Não, pois eu sempre posso me perguntar: que havia antes do
começo do universo?). Enquanto o cientista faz um uso legítimo da
causalidade, que ele emprega para unificar fenômenos dados na
experiência (aquecimento e ebulição), o metafísico abusa da causalidade
na medida em que se afasta deliberadamente da experiência concreta
(quando imagino um Deus como causa do mundo, afasto-me da experiência,
pois so o mundo é objeto de minha experiência). O princípio da
causalidade, convite à descoberta, não deve servir de permissão para
inventar.
Thomás Hobbes
Thomás Hobbes nasceu em Westport, em 1588. Filho de clérigo, Hobbes, em 1608, sai da Universidade de Oxford e se torna preceptor do filho de Lord Cavendish. Durante toda sua vida, ele será o amigo devotado dos Stuarts. Antes mesmo da revolução de 1648, que vai suprimir o poder real, ele foge da Inglaterra, onde se sente ameaçado por causa de suas convicções monarquistas. Viajará por diversos países da Europa, notadamente pela Itália (encontrará Galileu em Florença) e sobretudo pela França (encontrará o padre Mersenne em Paris). Retornará à Inglaterra por ocasião da restauração de Carlos II em 1660.
Em 1642, ele publica em Paris o De Cive e, em 1651, faz publicar em Londres o Leviatã ou matéria, forma e autoridade de uma comunidade eclesiástica e civil. O Leviatã será traduzido para o latim em 1688, em Amsterdam, mas nunca foi integralmente traduzido para o francês.
Hobbes é um empirista inglês e nele encontramos os temas fundamentais que serão sempre os da escola. A origem de todo conhecimento é a sensação, princípio original do conhecimento dos próprios princípios: a imaginação é um agrupamento inédito de fragmentos de sensação e a memória nada mais é do que o reflexo de antigas sensações.
Todavia, Hobbes crê na possibilidade de uma lógica pura, de um raciocínio demonstrativo muito rigoroso. Ao lado de uma indução empírica aproximativa, que da experiência passada conclui, sem prova decisiva, o que se passará amanhã (e que não tem outro fundamento além da associação de ideias, the trayan of imagination), Hobbes admite a existência de uma lógica pura, perfeitamente racional. Mas a essa lógica só concernem símbolos, palavras (Hobbes é nominalista). Se definirmos rigorosamente as palavras e as regras do emprego dos signos, podemos chegar a conclusões rigorosas, isto é, idênticas aos princípios de que partimos. Mas trata-se de um jogo do pensamento, estranho às realidades concretas.
A filosofia de Hobbes é materialista e mecanicista. Assim como a percepção é explicada mecanicamente a partir das excitações transmitidas pelo cérebro, assim a moral se reduz ao interesse e à paixão. Na fonte de todos os nossos valores, há o que Hobbes denomina endeavour, em inglês, e conatus, em latim, isto é, o instinto de conservação ou, mais exatamente, de afirmação e de crescimento de si próprio; esforço próprio a todos os seres para unir-se ao que lhes agrada e fugir do que lhes desagrada (esse tema do conatus será reencontrado no spinozismo).
É partindo de tais fundamentos psicológicos que Hobbes elabora sua justificação do despotismo. O absolutismo da época de Hobbes geralmente se apóia na teologia (Deus teria investido os reis de seu poder absoluto). Hobbes, ao justificar o poder absoluto do soberano, descobre-lhe uma origem natural.
Para ele, o direito, em todos os casos, reduz-se à força; mas distingue dois momentos na história da humanidade: o estado natural e o estado político. No estado natural, o poder de cada um é medido por seu poder real; cada um tem exatamente tanto de direito quanto de força e todos só pensam na própria conservação e nos interesses pessoais. Para Hobbes, o homem se distingue dos insetos sociais, como as abelhas e as formigas; por isso, o homem não possui instinto social. Ele não é sociável por natureza e só o será por acidente.
Para compreender como o homem se resolve a criar a instituição artificial do governo, basta descrever o que se passa no estado natural; o homem, por natureza, procura ultrapassar todos os seus semelhantes: ele não busca apenas a satisfação de suas necessidades naturais, mas sobretudo as alegrias da vaidade (pride). O maior sofrimento é ser desprezado. Assim sendo, o ofendido procura vingar-se, mas - observa Hobbes, antecipando aqui os temas hegelianos - comumente não deseja a morte de seu adversário e deseja seu cativeiro a fim de poder ler, em seu olhar atemorizado e submisso, o reconhecimento de sua própria superioridade.
É claro que esse estado, em que cada um procura senão a morte, ao menos a sujeição do outro, é um estado extremamente infeliz. As expressões pelas quais Hobbes o descreve são célebres: "Homo homini lupus", o homem é o lobo do homem; "Bellum omnium contra omnes", é a guerra de todos contra todos. Não pensemos que mesmo os homens mais robustos desfrutem tranqüilamente as vitórias que sua força lhe assegura. Aquele que possui grande força muscular não está ao abrigo da astúcia do mais fraco. Este último - por maquinação secreta ou a partir de hábeis alianças - sempre é o suficientemente forte para vencer o mais forte. Por conseguinte, ao invés de uma desigualdade, é uma espécie de igualdade dos homens no estado natural que faz sua infelicidade. Pois, em definitivo, ninguém está protegido; o estado natural é, para todos, um estado de insegurança e de angústia.
Assim sendo, o homem sempre tem medo de ser morto ou escravizado e esse temor, em última instância mais poderoso do que o orgulho, é a paixão que vai dar a palavra à razão. (Essa psicologia da vaidade e do medo é, em Hobbes, uma espécie de laicização da oposição teológica entre o orgulho espiritual e o temor a Deus ou humildade.) É o medo, portanto, que vai obrigar os homens a fundarem um estado social e a autoridade política.
Os homens, portanto, vão se encarregar de estabelecer a paz e a segurança. Só haverá paz concretizável se cada um renunciar ao direito absoluto que tem sobre todas as coisas. Isto só será possível se cada um abdicar de seus direitos absolutos em favor de um soberano que, ao herdar os direitos de todos, terá um poder absoluto. Não existe aí a intervenção de uma exigência moral. Simplesmente o medo é maior do que a vaidade e os homens concordam em transmitir todos os seus poderes a um soberano. Quanto a este último, notemo-lo bem, ele é o senhor absoluto desde então, mas não possui o menor compromisso em relação a seus súditos.
Seu direito não tem outro limite que seu poder e sua vontade. No estado de sociedade, como no de natureza, a força é a única medida do direito. No estado social, o monopólio da força pertence ao soberano. Houve, da parte de cada indivíduo, uma atemorizada renúncia do seu próprio poder. Mas não houve pacto nem contrato, o que houve, como diz Halbwachs, foi "uma alienação e não uma delegação de poderes". O efeito comum do poder consistirá, para todos, na segurança, uma vez que o soberano terá, de fato, o maior interesse em fazer reinar a ordem se quiser permanecer no poder. Apesar de tudo, esse poder absoluto permanece um poder de fato que encontrará seus limites no dia em que os súditos preferirem morrer do que obedecer. Em todo caso, esta á a origem psicológica que Hobbes atribui ao poder despótico. Ele chama de Leviatã ao seu estado totalitário em lembrança de uma passagem da Bíblia (Jó XLI) em que tal palavra designa um animal monstruoso, cruel e invencível que é o rei dos orgulhosos.
Finalmente, o totalitarismo de Hobbes submete - apesar de prudentes reservas - o poder religioso ao poder político. Assim é que ele exclui o "papismo" e o "presbiterianismo" por causa "dessa autoridade que alguns concedem ao papa em reinos que não lhe pertencem ou que alguns bispos, em suas dioceses, querem usurpar".
O Estado Natural e o Pacto Social
Leviatã, 1.ª parte: Do Homem
Cap. XIII
... O Estado de natureza, essa guerra de todos contra todos tem por consequência o fato de nada ser injusto. As noções de certo e errado, de justiça e de injustiça não têm lugar nessa situação. Onde não há Poder comum, não há lei; onde não há lei, não há injustiça: força e astúcia são virtudes cardeais na guerra. Justiça e injustiça não pertencem à lista das faculdades naturais do Espírito ou do Corpo; pois, nesse caso, elas poderiam ser encontradas num homem que estivesse sozinho no mundo (como acontece com seus sentidos ou suas paixões). Na realidade, justiça e injustiça são qualidades relativas aos homens em sociedade, não ao homem solitário. A mesma situação de guerra não implica na existência da propriedade... nem na distinção entre o Meu e o Teu, mas apenas no fato de que a cada um pertence aquilo que for capaz de o guardar. Eis então, e por muito tempo, a triste condição em que o homem é colocado pela natureza com a possibilidade, é bem verdade, de sair dela, possibilidade que, por um lado, se apóia na Paixões e, por outro, em sua Razão. As paixões que inclinam o homem para a paz são o temor à morte violenta e o desejo de tudo o que é necessário a uma vida confortável... E a Razão sugere artigos de paz convenientes sobre os quais os homens podem ser levados a concordar.
Cap. XIV
... O direito natural que os escritores comumente chamam de Jus naturale é a Liberdade que tem cada um de se servir da própria força segundo sua vontade, para salvaguardar sua própria natureza, isto é, sua própria vida. E porque a condição humana é uma condição de guerra de cada um contra cada um... daí resulta que, nessa situação, cada um tem direito sobre todas as coisas, mesmo até o corpo dos outros... Enquanto dura esse direito natural de cada um sobre tudo e todos, não pode existir para nenhum homem (por mais forte ou astucioso que seja) a menor segurança...
Cap. XV
... Antes que se possa utilizar das palavras justo e injusto, é preciso que haja um Poder constrangedor; inicialmente, para forçar os homens a executar seus pactos pelo temor de uma punição maior do que o benefício que poderiam esperar se os violassem, em seguida, para garantir-lhes a propriedade do que adquirem por Contrato mútuo em substituição e no lugar do Direito universal que perdem. E não existe tal poder constrangedor antes da instituição de um Estado. É o que também resulta da definição que as Escolas dão geralmente da justiça, a saber, que a justiça é a vontade de atribuir a cada um o que lhe cabe pertencer; pois, quando nada é próprio, ou seja, quando não há propriedade, não há injustiça; e onde não há Poder Constrangedor estabelecido, em outras palavras, onde não há Estado, não há Propriedade e cada homem tem direito a todas as coisas. Por conseguinte, enquanto não há Estado, nada há que seja Injusto.
JEAN-JAQUE ROUSSEAU
Filósofo e romancista suíço de língua francesa (28/6/1712-2/7/1778). Considerado o representante mais radical do iluminismo e um dos ideólogos da Revolução Francesa. Nasce em Genebra. Órfão de mãe, é abandonado pelo pai aos 10 anos e entregue aos cuidados de um pastor. Em 1728 vai para Annecy, na França. Muda-se para Paris 13 anos depois, onde se torna amigo do filósofo Denis Diderot e escreve para a Enciclopédia. Em Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens (1755), afirma que o homem nasce bom e sem vícios – o bom selvagem –, mas é pervertido pela sociedade civilizada. Em sua obra mais conhecida, O Contrato Social (1762), defende um Estado baseado na democracia e voltado para o bem comum e para a vontade geral. É o primeiro a atribuir soberania ao povo. Prega liberdade, igualdade e fraternidade, lema assumido pela Revolução Francesa. Escreve também romances, como Júlia ou a Nova Heloísa, que obtêm grande sucesso, tratados sobre música e uma ópera, O Adivinho da Aldeia. Suas ideias causam polêmica com outros pensadores e com as autoridades francesas. Obrigado a sair do país, exila-se na Inglaterra, mas volta para Paris em 1770. Mais tarde se muda para o castelo do marquês de Girardin, em Ermenonville, onde morre.
John Locke
Sobre a linha do desenvolvimento do empirismo, Locke representa um progresso em confronto com os precedentes: no sentido de que a sua gnosiologia fenomenista-empirista não é dogmaticamente acompanhada de uma metafísica mais ou menos materialista. Limita-se a nos oferecer, filosoficamente, uma teoria do conhecimento, mesmo aceitando a metafísica tradicional, e do senso comum pelo que concerne a Deus, à alma, à moral e à religião. Com relação à religião natural, não muito diferente do deísmo abstrato da época; o poder político tem o direito de impor essa religião, porquanto é baseada na razão. Locke professa a tolerância e o respeito às religiões particulares, históricas, positivas.
Locke viajou fora da Inglaterra, especialmente em França, onde ampliou o seu horizonte cultural, entrou em contato com movimentos filosóficos diversos, em especial com o racionalismo. Tornou-se mais consciente do seu empirismo, que procurou completar com elementos racionalistas (o que, entretanto, representa um desvio na linha do desenvolvimento do empirismo, procedente de Bacon até Hume).
Vida e Obras
João Locke nasceu em Wrington, em 1632. Estudou na Universidade de Oxford filosofia, ciências naturais e medicina. Em 1665 foi enviado para Brandenburgo como secretário de legação. Passou, em seguida, ao serviço de Loed Ashley, futuro conde de Shaftesbury, a quem ficou fiel também nas desgraças políticas. Foi, portanto, para a França, onde conheceu as personalidades mais destacadas da cultura francesa do "grand siècle". Em 1683 refugiou-se na Holanda, aí participando no movimento político que levou ao trono da Inglaterra Guilherme de Orange. De volta à pátria, recusou o cargo de embaixador e dedicou-se inteiramente aos estudos filosóficos, morais, políticos. Passou seus últimos anos de vida no castelo de Oates (Essex), junto de Sir Francisco Masham. Faleceu em 1704.
As suas obras filosóficas mais notáveis são: o Tratado do Governo Civil (1689); o Ensaio sobre o Intelecto Humano (1690); os Pensamentos sobre a Educação (1693). As dontes principais do pensamento de Locke são: o nominalismo escolástico, cujo centro famoso era Oxford; o empirismo inglês da época; o racionalismo cartesiano e a filosofia de Malebranche.
O Pensamento: A Gnosiologia
Locke julga, como Bacon, que o fim da filosofia é prático. Entretanto - diversamente de Bacon, que julgava fim da filosofia o conhecimento da natureza para dominá-la (fim econômico) - Locke pensa que o fim da filosofia é essencialmente moral; quer dizer: a filosofia deve proporcionar uma norma racional para a vida do homem. E, como os seus predecessores empiristas, ele sente, antes de mais nada, a necessidade de instituir uma investigação sobre o conhecimento humano, elaborar uma gnosiologia, para achar um critério de verdade. Podemos dizer que a sua filosofia se limita a este problema gnosiológico, para logo passar a uma filosofia moral (e política, pedagógica, religiosa), sem uma adequada e intermédia metafísica.
Locke não parte, realisticamente, do ser, e sim, fenomenisticamente, do pensamento. No nosso pensamento acham-se apenas idéias (no sentido genérico das representações): qual é a sua origem e o seu valor? Locke exclui absolutamente as idéias e os princípios que deles se formam, derivam da experiência; antes da experiência o espírito é como uma folha em branco, uma tabula rasa.
No entanto, a experiência é dúplice: externa e interna. A primeira realiza-se através da sensação, e nos proporciona a representação dos objetos (chamados) externos: cores, sons, odores, sabores, extensão, forma, movimento, etc. A segunda realiza-se através da reflexão, que nos proporciona a representação das próprias operações exercidas pelo espírito sobre os objetos da sensação, como: conhecer, crer, lembrar, duvidar, querer, etc. Nas idéias proporcionadas pela sensibilidade externa, Locke distingue as qualidades primárias, absolutamente objetivas, e as qualidades secundárias, subjetivas (objetivas apenas em sua causa).
As idéias ou representações dividem-se em idéias simples e idéias complexas, que são uma combinação das primeiras. Perante as idéias simples - que constituem o material primitivo e fundamental do conhecimento - o espírito é puramente passivo; pelo contrário, é ele ativo na formação das idéias complexas. Entre estas últimas, a mais importante é a substância: que nada mais seria que uma coleção constante de idéias simples, referida pelo espírito a um misterioso substrato unificador. O espírito é também ativo nas sínteses que são as idéias de relação, e nas análises que são as idéias gerais. Às idéias de ralação pertencem as relações temporais e espaciais e de idéias simples dos complexos a que pertencem e da universalização da idéia assim isolada, obtendo-se, desse modo, a idéia abstrata (por exemplo, a brancura). Locke é, mais ou menos, nominalista: existem, propriamente, só indivíduos com uma essência individual, e as idéias gerais não passam de nomes, que designam caracteres comuns a muitos indivíduos. Entretanto, os nomes que designam uma idéia abstrata, isto é, uma propriedade semelhante em muitas coisas, têm um valor e um escopo práticos: auxiliar os homens a se conduzirem na vida.
Dado o nominalismo de Locke, compreende-se como, para ele, é impossível a ciência verdadeira da natureza, considerada como conhecimento das leis universais e necessárias. Locke julga também inaplicável à natureza a matemática - reconhecendo-lhe embora o caráter de verdadeira ciência - isto é, não acredita na físico-matemática, à maneira de Galileu. Entretanto, mesmo que a ciência da natureza não nos desse senão a probabilidade, a opinião, seria útil enquanto prática.
Até aqui foram analisados e descritos os conteúdos de consciência. É mister agora propor a questão do seu valor lógico. Costuma-se dizer que as idéias são "verdadeiras ou falsas"; melhor seria chamá-las "justas ou erradas", porque, propriamente, "a verdade e a falsidade pertencem às proposições", em que se afirma ou se nega uma relação entre duas idéias. E esta relação, afirmada ou negada, pode ser precisamente falsa ou verdadeira. O conhecimento da relação positiva ou negativa entre as ideias é, segundo Locke, de dois tipos: intuitivo e demonstrativo. No primeiro caso a relação é colhida intuitiva, imediata e evidentemente. Por exemplo: 3 = 2 + 1. No segundo caso a relação é colhida mediatamente, recorrendo às ideias intermediárias, ao raciocínio. Por exemplo: a existência de Deus demonstrada pela nossa existência e pelo princípio de causalidade. Naturalmente, a demonstração é inferior à intuição.
Ideias Metafísicas
Estamos, porém, ainda fechados no mundo subjetivo, fenomênico; de fato, tratou-se, até agora, de relações positivas ou negativas, concordes ou desacordes com as ideias. Podemos nós sair desse mundo subjetivo e atingir o mundo objetivo, isto é, podemos conhecê-lo imediatamente ou mediatamente na sua existência e na sua natureza? Locke afirma-o, sem mostrar, entretanto, como este conhecimento do mundo externo possa concordar com a sua geral (fenomenista) concepção e definição do conhecimento. É a sólita posição de um fenomenismo ainda não plenamente consciente de si mesmo. Corta as relações com o ser e vai para o fenomenismo absoluto, mas tem ainda saudade desse ser do qual se isolou.
Em todo caso, Locke acredita poder atingir, antes de tudo, o nosso ser, depois o de Deus, e, finalmente, o das coisas. O nosso ser seria intuitivamente percebido através da reflexão. A existência de Deus seria racionalmente demonstrada mediante o princípio de causa, partindo do conhecimento imediato de uma outra existência (a nossa). A existência das coisas, alfim, seria sentida invencivelmente, porque nos sentimos passivos em nossas sensações, que deveriam ser causadas por seres externos a nós.
Entretanto, pelo que diz respeito ao nosso ser, é mister ter presente que nós não conhecemos intuitivamente a substância da alma, e sim as suas atividades. Pelo que diz respeito a Deus, a prova da sua existência vale, se vale absolutamente o princípio de causa - o que Locke não demonstrou. Enfim, pelo que diz respeito às coisas externas, mesmo admitida a prova aduzida por Locke - segundo a confissão do próprio filósofo - tal prova vale apenas pelo que concerne à existência das coisas, e não pelo que concerne à natureza delas. De fato, segundo a filosofia de Locke, não sabemos se as ideias da natureza das coisas correspondem à realidade das coisas.
Moral e Política
Locke não admite, naturalmente, ideias e princípios inatos nem sequer no campo da moral. A sua moral, todavia, é muito mais intelectualista do que empirista, pois ele lhe reconhece o caráter de verdadeira ciência, universal e necessária.
Entretanto, não basta ter construído uma moral em abstrato, embora racional. É preciso torná-la praticamente eficaz, isto é, faz-se mister uma obrigação moral, que se imponha à nossa vontade. Ora, visto que é natural, no homem, a tendência para o próprio bem-estar, é natural que ele seja atingido pelas penas, pelas sanções, que precisamente lhe impedem tal realização. Que parte tem a liberdade da vontade em tudo isto? Locke nega, propriamente, o livre arbítrio, porquanto nós nos inclinamos necessariamente para um bem determinado e devemos desejar o bem maior.
Quanto à política, Locke deriva a lei civil da lei natural, racional, moral, em virtude da qual todos os homens - como seres racionais - são livre iguais, têm direito à vida e à propriedade; e, entretanto na vida política, não podem renunciar a estes direitos, sem renunciar à própria dignidade, à natureza humana. Locke admite um originário estado de natureza antes do estado civilizado. Não, porém, no sentido brutal e egoísta de inimizade universal, como dizia Hobbes; mas em um sentido moral, em virtude do qual cada um sente o dever racional de respeitar nos outros a mesma personalidade que nele se encontra.
Também Locke admite a passagem do estado de natureza ao estado civilizado, porquanto, no primeiro, falta a certeza e a regularidade da defesa e da punição, que existe no segundo, graças à autoridade do superior. Entretanto, estipulando este contrato social, os indivíduos não renunciam a todos os direitos, porquanto os direitos que constituem a natureza humana (vida, liberdade, bens), são inalienáveis; mas renunciam unicamente ao direito de defesa e de fazer justiça, para conseguir que os direitos inalienáveis sejam melhor garantidos. Antes, se o estado violasse esses direitos inalienáveis, os indivíduos teriam o direito e o dever de a ele resistir e de se revoltar contra o poder usurpador. A doutrina política de Locke, contida no seu Tratado sobre o Governo Civil, é a expressão teórica do constitucionalismo liberal inglês, em contraste com a doutrina do absolutismo naturalista de Hobbes.
Ideias pedagógicas
Com respeito à religião, Locke toma uma atitude racionalista moderada. Admite uma religião natural, exigível também politicamente, porquanto fundamentada na razão. E professa a tolerância a respeito das religiões particulares, históricas, positivas.
Locke interessou-se especialmente pelos problemas pedagógicos, escrevendo os Pensamentos sobre a Educação. Aí afirma a nossa passividade, pois nascemos todos ignorantes e recebemos tudo da experiência; mas, ao mesmo tempo, afirma a nossa parte ativa, enquanto o intelecto constrói a experiência, elaborando as ideias simples.
Afirma-se que todos nascemos iguais, dotados de razão; mas, ao mesmo tempo, todos temos temperamentos diferentes, que devem ser desenvolvidos de conformidade com o temperamento de cada um. Esta educação individual não exclui, mas implica a educação, a formação social, para ampliar, enriquecer a própria personalidade. Tem muita importância a obra do educador, mas é fundamental a colaboração do discípulo, pois trata-se da formação do intelecto, da razão, que é, necessariamente, autônoma. A formação educacional consiste, portanto, fundamentalmente, no desenvolvimento do intelecto mediante a moral, precisamente pelo fato de que se trata de formar seres conscientes, livres, senhores de si mesmos. Por conseguinte, a educação deve ser formativa, desenvolvendo o intelecto, e não informativa, erudita, mnemônica. Igualmente Locke é fautor de educação física, mas como o meio para o domínio de si mesmo.
O Idealismo Lógico: Hegel
Thomás Hobbes nasceu em Westport, em 1588. Filho de clérigo, Hobbes, em 1608, sai da Universidade de Oxford e se torna preceptor do filho de Lord Cavendish. Durante toda sua vida, ele será o amigo devotado dos Stuarts. Antes mesmo da revolução de 1648, que vai suprimir o poder real, ele foge da Inglaterra, onde se sente ameaçado por causa de suas convicções monarquistas. Viajará por diversos países da Europa, notadamente pela Itália (encontrará Galileu em Florença) e sobretudo pela França (encontrará o padre Mersenne em Paris). Retornará à Inglaterra por ocasião da restauração de Carlos II em 1660.
Em 1642, ele publica em Paris o De Cive e, em 1651, faz publicar em Londres o Leviatã ou matéria, forma e autoridade de uma comunidade eclesiástica e civil. O Leviatã será traduzido para o latim em 1688, em Amsterdam, mas nunca foi integralmente traduzido para o francês.
Hobbes é um empirista inglês e nele encontramos os temas fundamentais que serão sempre os da escola. A origem de todo conhecimento é a sensação, princípio original do conhecimento dos próprios princípios: a imaginação é um agrupamento inédito de fragmentos de sensação e a memória nada mais é do que o reflexo de antigas sensações.
Todavia, Hobbes crê na possibilidade de uma lógica pura, de um raciocínio demonstrativo muito rigoroso. Ao lado de uma indução empírica aproximativa, que da experiência passada conclui, sem prova decisiva, o que se passará amanhã (e que não tem outro fundamento além da associação de ideias, the trayan of imagination), Hobbes admite a existência de uma lógica pura, perfeitamente racional. Mas a essa lógica só concernem símbolos, palavras (Hobbes é nominalista). Se definirmos rigorosamente as palavras e as regras do emprego dos signos, podemos chegar a conclusões rigorosas, isto é, idênticas aos princípios de que partimos. Mas trata-se de um jogo do pensamento, estranho às realidades concretas.
A filosofia de Hobbes é materialista e mecanicista. Assim como a percepção é explicada mecanicamente a partir das excitações transmitidas pelo cérebro, assim a moral se reduz ao interesse e à paixão. Na fonte de todos os nossos valores, há o que Hobbes denomina endeavour, em inglês, e conatus, em latim, isto é, o instinto de conservação ou, mais exatamente, de afirmação e de crescimento de si próprio; esforço próprio a todos os seres para unir-se ao que lhes agrada e fugir do que lhes desagrada (esse tema do conatus será reencontrado no spinozismo).
É partindo de tais fundamentos psicológicos que Hobbes elabora sua justificação do despotismo. O absolutismo da época de Hobbes geralmente se apóia na teologia (Deus teria investido os reis de seu poder absoluto). Hobbes, ao justificar o poder absoluto do soberano, descobre-lhe uma origem natural.
Para ele, o direito, em todos os casos, reduz-se à força; mas distingue dois momentos na história da humanidade: o estado natural e o estado político. No estado natural, o poder de cada um é medido por seu poder real; cada um tem exatamente tanto de direito quanto de força e todos só pensam na própria conservação e nos interesses pessoais. Para Hobbes, o homem se distingue dos insetos sociais, como as abelhas e as formigas; por isso, o homem não possui instinto social. Ele não é sociável por natureza e só o será por acidente.
Para compreender como o homem se resolve a criar a instituição artificial do governo, basta descrever o que se passa no estado natural; o homem, por natureza, procura ultrapassar todos os seus semelhantes: ele não busca apenas a satisfação de suas necessidades naturais, mas sobretudo as alegrias da vaidade (pride). O maior sofrimento é ser desprezado. Assim sendo, o ofendido procura vingar-se, mas - observa Hobbes, antecipando aqui os temas hegelianos - comumente não deseja a morte de seu adversário e deseja seu cativeiro a fim de poder ler, em seu olhar atemorizado e submisso, o reconhecimento de sua própria superioridade.
É claro que esse estado, em que cada um procura senão a morte, ao menos a sujeição do outro, é um estado extremamente infeliz. As expressões pelas quais Hobbes o descreve são célebres: "Homo homini lupus", o homem é o lobo do homem; "Bellum omnium contra omnes", é a guerra de todos contra todos. Não pensemos que mesmo os homens mais robustos desfrutem tranqüilamente as vitórias que sua força lhe assegura. Aquele que possui grande força muscular não está ao abrigo da astúcia do mais fraco. Este último - por maquinação secreta ou a partir de hábeis alianças - sempre é o suficientemente forte para vencer o mais forte. Por conseguinte, ao invés de uma desigualdade, é uma espécie de igualdade dos homens no estado natural que faz sua infelicidade. Pois, em definitivo, ninguém está protegido; o estado natural é, para todos, um estado de insegurança e de angústia.
Assim sendo, o homem sempre tem medo de ser morto ou escravizado e esse temor, em última instância mais poderoso do que o orgulho, é a paixão que vai dar a palavra à razão. (Essa psicologia da vaidade e do medo é, em Hobbes, uma espécie de laicização da oposição teológica entre o orgulho espiritual e o temor a Deus ou humildade.) É o medo, portanto, que vai obrigar os homens a fundarem um estado social e a autoridade política.
Os homens, portanto, vão se encarregar de estabelecer a paz e a segurança. Só haverá paz concretizável se cada um renunciar ao direito absoluto que tem sobre todas as coisas. Isto só será possível se cada um abdicar de seus direitos absolutos em favor de um soberano que, ao herdar os direitos de todos, terá um poder absoluto. Não existe aí a intervenção de uma exigência moral. Simplesmente o medo é maior do que a vaidade e os homens concordam em transmitir todos os seus poderes a um soberano. Quanto a este último, notemo-lo bem, ele é o senhor absoluto desde então, mas não possui o menor compromisso em relação a seus súditos.
Seu direito não tem outro limite que seu poder e sua vontade. No estado de sociedade, como no de natureza, a força é a única medida do direito. No estado social, o monopólio da força pertence ao soberano. Houve, da parte de cada indivíduo, uma atemorizada renúncia do seu próprio poder. Mas não houve pacto nem contrato, o que houve, como diz Halbwachs, foi "uma alienação e não uma delegação de poderes". O efeito comum do poder consistirá, para todos, na segurança, uma vez que o soberano terá, de fato, o maior interesse em fazer reinar a ordem se quiser permanecer no poder. Apesar de tudo, esse poder absoluto permanece um poder de fato que encontrará seus limites no dia em que os súditos preferirem morrer do que obedecer. Em todo caso, esta á a origem psicológica que Hobbes atribui ao poder despótico. Ele chama de Leviatã ao seu estado totalitário em lembrança de uma passagem da Bíblia (Jó XLI) em que tal palavra designa um animal monstruoso, cruel e invencível que é o rei dos orgulhosos.
Finalmente, o totalitarismo de Hobbes submete - apesar de prudentes reservas - o poder religioso ao poder político. Assim é que ele exclui o "papismo" e o "presbiterianismo" por causa "dessa autoridade que alguns concedem ao papa em reinos que não lhe pertencem ou que alguns bispos, em suas dioceses, querem usurpar".
O Estado Natural e o Pacto Social
Leviatã, 1.ª parte: Do Homem
Cap. XIII
... O Estado de natureza, essa guerra de todos contra todos tem por consequência o fato de nada ser injusto. As noções de certo e errado, de justiça e de injustiça não têm lugar nessa situação. Onde não há Poder comum, não há lei; onde não há lei, não há injustiça: força e astúcia são virtudes cardeais na guerra. Justiça e injustiça não pertencem à lista das faculdades naturais do Espírito ou do Corpo; pois, nesse caso, elas poderiam ser encontradas num homem que estivesse sozinho no mundo (como acontece com seus sentidos ou suas paixões). Na realidade, justiça e injustiça são qualidades relativas aos homens em sociedade, não ao homem solitário. A mesma situação de guerra não implica na existência da propriedade... nem na distinção entre o Meu e o Teu, mas apenas no fato de que a cada um pertence aquilo que for capaz de o guardar. Eis então, e por muito tempo, a triste condição em que o homem é colocado pela natureza com a possibilidade, é bem verdade, de sair dela, possibilidade que, por um lado, se apóia na Paixões e, por outro, em sua Razão. As paixões que inclinam o homem para a paz são o temor à morte violenta e o desejo de tudo o que é necessário a uma vida confortável... E a Razão sugere artigos de paz convenientes sobre os quais os homens podem ser levados a concordar.
Cap. XIV
... O direito natural que os escritores comumente chamam de Jus naturale é a Liberdade que tem cada um de se servir da própria força segundo sua vontade, para salvaguardar sua própria natureza, isto é, sua própria vida. E porque a condição humana é uma condição de guerra de cada um contra cada um... daí resulta que, nessa situação, cada um tem direito sobre todas as coisas, mesmo até o corpo dos outros... Enquanto dura esse direito natural de cada um sobre tudo e todos, não pode existir para nenhum homem (por mais forte ou astucioso que seja) a menor segurança...
Cap. XV
... Antes que se possa utilizar das palavras justo e injusto, é preciso que haja um Poder constrangedor; inicialmente, para forçar os homens a executar seus pactos pelo temor de uma punição maior do que o benefício que poderiam esperar se os violassem, em seguida, para garantir-lhes a propriedade do que adquirem por Contrato mútuo em substituição e no lugar do Direito universal que perdem. E não existe tal poder constrangedor antes da instituição de um Estado. É o que também resulta da definição que as Escolas dão geralmente da justiça, a saber, que a justiça é a vontade de atribuir a cada um o que lhe cabe pertencer; pois, quando nada é próprio, ou seja, quando não há propriedade, não há injustiça; e onde não há Poder Constrangedor estabelecido, em outras palavras, onde não há Estado, não há Propriedade e cada homem tem direito a todas as coisas. Por conseguinte, enquanto não há Estado, nada há que seja Injusto.
JEAN-JAQUE ROUSSEAU
Filósofo e romancista suíço de língua francesa (28/6/1712-2/7/1778). Considerado o representante mais radical do iluminismo e um dos ideólogos da Revolução Francesa. Nasce em Genebra. Órfão de mãe, é abandonado pelo pai aos 10 anos e entregue aos cuidados de um pastor. Em 1728 vai para Annecy, na França. Muda-se para Paris 13 anos depois, onde se torna amigo do filósofo Denis Diderot e escreve para a Enciclopédia. Em Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens (1755), afirma que o homem nasce bom e sem vícios – o bom selvagem –, mas é pervertido pela sociedade civilizada. Em sua obra mais conhecida, O Contrato Social (1762), defende um Estado baseado na democracia e voltado para o bem comum e para a vontade geral. É o primeiro a atribuir soberania ao povo. Prega liberdade, igualdade e fraternidade, lema assumido pela Revolução Francesa. Escreve também romances, como Júlia ou a Nova Heloísa, que obtêm grande sucesso, tratados sobre música e uma ópera, O Adivinho da Aldeia. Suas ideias causam polêmica com outros pensadores e com as autoridades francesas. Obrigado a sair do país, exila-se na Inglaterra, mas volta para Paris em 1770. Mais tarde se muda para o castelo do marquês de Girardin, em Ermenonville, onde morre.
John Locke
Sobre a linha do desenvolvimento do empirismo, Locke representa um progresso em confronto com os precedentes: no sentido de que a sua gnosiologia fenomenista-empirista não é dogmaticamente acompanhada de uma metafísica mais ou menos materialista. Limita-se a nos oferecer, filosoficamente, uma teoria do conhecimento, mesmo aceitando a metafísica tradicional, e do senso comum pelo que concerne a Deus, à alma, à moral e à religião. Com relação à religião natural, não muito diferente do deísmo abstrato da época; o poder político tem o direito de impor essa religião, porquanto é baseada na razão. Locke professa a tolerância e o respeito às religiões particulares, históricas, positivas.
Locke viajou fora da Inglaterra, especialmente em França, onde ampliou o seu horizonte cultural, entrou em contato com movimentos filosóficos diversos, em especial com o racionalismo. Tornou-se mais consciente do seu empirismo, que procurou completar com elementos racionalistas (o que, entretanto, representa um desvio na linha do desenvolvimento do empirismo, procedente de Bacon até Hume).
Vida e Obras
João Locke nasceu em Wrington, em 1632. Estudou na Universidade de Oxford filosofia, ciências naturais e medicina. Em 1665 foi enviado para Brandenburgo como secretário de legação. Passou, em seguida, ao serviço de Loed Ashley, futuro conde de Shaftesbury, a quem ficou fiel também nas desgraças políticas. Foi, portanto, para a França, onde conheceu as personalidades mais destacadas da cultura francesa do "grand siècle". Em 1683 refugiou-se na Holanda, aí participando no movimento político que levou ao trono da Inglaterra Guilherme de Orange. De volta à pátria, recusou o cargo de embaixador e dedicou-se inteiramente aos estudos filosóficos, morais, políticos. Passou seus últimos anos de vida no castelo de Oates (Essex), junto de Sir Francisco Masham. Faleceu em 1704.
As suas obras filosóficas mais notáveis são: o Tratado do Governo Civil (1689); o Ensaio sobre o Intelecto Humano (1690); os Pensamentos sobre a Educação (1693). As dontes principais do pensamento de Locke são: o nominalismo escolástico, cujo centro famoso era Oxford; o empirismo inglês da época; o racionalismo cartesiano e a filosofia de Malebranche.
O Pensamento: A Gnosiologia
Locke julga, como Bacon, que o fim da filosofia é prático. Entretanto - diversamente de Bacon, que julgava fim da filosofia o conhecimento da natureza para dominá-la (fim econômico) - Locke pensa que o fim da filosofia é essencialmente moral; quer dizer: a filosofia deve proporcionar uma norma racional para a vida do homem. E, como os seus predecessores empiristas, ele sente, antes de mais nada, a necessidade de instituir uma investigação sobre o conhecimento humano, elaborar uma gnosiologia, para achar um critério de verdade. Podemos dizer que a sua filosofia se limita a este problema gnosiológico, para logo passar a uma filosofia moral (e política, pedagógica, religiosa), sem uma adequada e intermédia metafísica.
Locke não parte, realisticamente, do ser, e sim, fenomenisticamente, do pensamento. No nosso pensamento acham-se apenas idéias (no sentido genérico das representações): qual é a sua origem e o seu valor? Locke exclui absolutamente as idéias e os princípios que deles se formam, derivam da experiência; antes da experiência o espírito é como uma folha em branco, uma tabula rasa.
No entanto, a experiência é dúplice: externa e interna. A primeira realiza-se através da sensação, e nos proporciona a representação dos objetos (chamados) externos: cores, sons, odores, sabores, extensão, forma, movimento, etc. A segunda realiza-se através da reflexão, que nos proporciona a representação das próprias operações exercidas pelo espírito sobre os objetos da sensação, como: conhecer, crer, lembrar, duvidar, querer, etc. Nas idéias proporcionadas pela sensibilidade externa, Locke distingue as qualidades primárias, absolutamente objetivas, e as qualidades secundárias, subjetivas (objetivas apenas em sua causa).
As idéias ou representações dividem-se em idéias simples e idéias complexas, que são uma combinação das primeiras. Perante as idéias simples - que constituem o material primitivo e fundamental do conhecimento - o espírito é puramente passivo; pelo contrário, é ele ativo na formação das idéias complexas. Entre estas últimas, a mais importante é a substância: que nada mais seria que uma coleção constante de idéias simples, referida pelo espírito a um misterioso substrato unificador. O espírito é também ativo nas sínteses que são as idéias de relação, e nas análises que são as idéias gerais. Às idéias de ralação pertencem as relações temporais e espaciais e de idéias simples dos complexos a que pertencem e da universalização da idéia assim isolada, obtendo-se, desse modo, a idéia abstrata (por exemplo, a brancura). Locke é, mais ou menos, nominalista: existem, propriamente, só indivíduos com uma essência individual, e as idéias gerais não passam de nomes, que designam caracteres comuns a muitos indivíduos. Entretanto, os nomes que designam uma idéia abstrata, isto é, uma propriedade semelhante em muitas coisas, têm um valor e um escopo práticos: auxiliar os homens a se conduzirem na vida.
Dado o nominalismo de Locke, compreende-se como, para ele, é impossível a ciência verdadeira da natureza, considerada como conhecimento das leis universais e necessárias. Locke julga também inaplicável à natureza a matemática - reconhecendo-lhe embora o caráter de verdadeira ciência - isto é, não acredita na físico-matemática, à maneira de Galileu. Entretanto, mesmo que a ciência da natureza não nos desse senão a probabilidade, a opinião, seria útil enquanto prática.
Até aqui foram analisados e descritos os conteúdos de consciência. É mister agora propor a questão do seu valor lógico. Costuma-se dizer que as idéias são "verdadeiras ou falsas"; melhor seria chamá-las "justas ou erradas", porque, propriamente, "a verdade e a falsidade pertencem às proposições", em que se afirma ou se nega uma relação entre duas idéias. E esta relação, afirmada ou negada, pode ser precisamente falsa ou verdadeira. O conhecimento da relação positiva ou negativa entre as ideias é, segundo Locke, de dois tipos: intuitivo e demonstrativo. No primeiro caso a relação é colhida intuitiva, imediata e evidentemente. Por exemplo: 3 = 2 + 1. No segundo caso a relação é colhida mediatamente, recorrendo às ideias intermediárias, ao raciocínio. Por exemplo: a existência de Deus demonstrada pela nossa existência e pelo princípio de causalidade. Naturalmente, a demonstração é inferior à intuição.
Ideias Metafísicas
Estamos, porém, ainda fechados no mundo subjetivo, fenomênico; de fato, tratou-se, até agora, de relações positivas ou negativas, concordes ou desacordes com as ideias. Podemos nós sair desse mundo subjetivo e atingir o mundo objetivo, isto é, podemos conhecê-lo imediatamente ou mediatamente na sua existência e na sua natureza? Locke afirma-o, sem mostrar, entretanto, como este conhecimento do mundo externo possa concordar com a sua geral (fenomenista) concepção e definição do conhecimento. É a sólita posição de um fenomenismo ainda não plenamente consciente de si mesmo. Corta as relações com o ser e vai para o fenomenismo absoluto, mas tem ainda saudade desse ser do qual se isolou.
Em todo caso, Locke acredita poder atingir, antes de tudo, o nosso ser, depois o de Deus, e, finalmente, o das coisas. O nosso ser seria intuitivamente percebido através da reflexão. A existência de Deus seria racionalmente demonstrada mediante o princípio de causa, partindo do conhecimento imediato de uma outra existência (a nossa). A existência das coisas, alfim, seria sentida invencivelmente, porque nos sentimos passivos em nossas sensações, que deveriam ser causadas por seres externos a nós.
Entretanto, pelo que diz respeito ao nosso ser, é mister ter presente que nós não conhecemos intuitivamente a substância da alma, e sim as suas atividades. Pelo que diz respeito a Deus, a prova da sua existência vale, se vale absolutamente o princípio de causa - o que Locke não demonstrou. Enfim, pelo que diz respeito às coisas externas, mesmo admitida a prova aduzida por Locke - segundo a confissão do próprio filósofo - tal prova vale apenas pelo que concerne à existência das coisas, e não pelo que concerne à natureza delas. De fato, segundo a filosofia de Locke, não sabemos se as ideias da natureza das coisas correspondem à realidade das coisas.
Moral e Política
Locke não admite, naturalmente, ideias e princípios inatos nem sequer no campo da moral. A sua moral, todavia, é muito mais intelectualista do que empirista, pois ele lhe reconhece o caráter de verdadeira ciência, universal e necessária.
Entretanto, não basta ter construído uma moral em abstrato, embora racional. É preciso torná-la praticamente eficaz, isto é, faz-se mister uma obrigação moral, que se imponha à nossa vontade. Ora, visto que é natural, no homem, a tendência para o próprio bem-estar, é natural que ele seja atingido pelas penas, pelas sanções, que precisamente lhe impedem tal realização. Que parte tem a liberdade da vontade em tudo isto? Locke nega, propriamente, o livre arbítrio, porquanto nós nos inclinamos necessariamente para um bem determinado e devemos desejar o bem maior.
Quanto à política, Locke deriva a lei civil da lei natural, racional, moral, em virtude da qual todos os homens - como seres racionais - são livre iguais, têm direito à vida e à propriedade; e, entretanto na vida política, não podem renunciar a estes direitos, sem renunciar à própria dignidade, à natureza humana. Locke admite um originário estado de natureza antes do estado civilizado. Não, porém, no sentido brutal e egoísta de inimizade universal, como dizia Hobbes; mas em um sentido moral, em virtude do qual cada um sente o dever racional de respeitar nos outros a mesma personalidade que nele se encontra.
Também Locke admite a passagem do estado de natureza ao estado civilizado, porquanto, no primeiro, falta a certeza e a regularidade da defesa e da punição, que existe no segundo, graças à autoridade do superior. Entretanto, estipulando este contrato social, os indivíduos não renunciam a todos os direitos, porquanto os direitos que constituem a natureza humana (vida, liberdade, bens), são inalienáveis; mas renunciam unicamente ao direito de defesa e de fazer justiça, para conseguir que os direitos inalienáveis sejam melhor garantidos. Antes, se o estado violasse esses direitos inalienáveis, os indivíduos teriam o direito e o dever de a ele resistir e de se revoltar contra o poder usurpador. A doutrina política de Locke, contida no seu Tratado sobre o Governo Civil, é a expressão teórica do constitucionalismo liberal inglês, em contraste com a doutrina do absolutismo naturalista de Hobbes.
Ideias pedagógicas
Com respeito à religião, Locke toma uma atitude racionalista moderada. Admite uma religião natural, exigível também politicamente, porquanto fundamentada na razão. E professa a tolerância a respeito das religiões particulares, históricas, positivas.
Locke interessou-se especialmente pelos problemas pedagógicos, escrevendo os Pensamentos sobre a Educação. Aí afirma a nossa passividade, pois nascemos todos ignorantes e recebemos tudo da experiência; mas, ao mesmo tempo, afirma a nossa parte ativa, enquanto o intelecto constrói a experiência, elaborando as ideias simples.
Afirma-se que todos nascemos iguais, dotados de razão; mas, ao mesmo tempo, todos temos temperamentos diferentes, que devem ser desenvolvidos de conformidade com o temperamento de cada um. Esta educação individual não exclui, mas implica a educação, a formação social, para ampliar, enriquecer a própria personalidade. Tem muita importância a obra do educador, mas é fundamental a colaboração do discípulo, pois trata-se da formação do intelecto, da razão, que é, necessariamente, autônoma. A formação educacional consiste, portanto, fundamentalmente, no desenvolvimento do intelecto mediante a moral, precisamente pelo fato de que se trata de formar seres conscientes, livres, senhores de si mesmos. Por conseguinte, a educação deve ser formativa, desenvolvendo o intelecto, e não informativa, erudita, mnemônica. Igualmente Locke é fautor de educação física, mas como o meio para o domínio de si mesmo.
O Idealismo Lógico: Hegel
Com
o idealismo absoluto de Hegel, o idealismo fenomênico kantiano alcança
logicamente o seu vértice metafísico. Hegel fica fiel ao historicismo
romântico, concebendo a realidade como vir-a-ser, desenvolvimento. Este
vir-a-ser, porém, é racionalizado por Hegel, elevado a processo
dialético; e este processo dialético não é um movimento a quo adi quod, e
sim um processo circular, emanentista.
Jorge
Guilherme Frederico Hegel nasceu em Stutgart, em 1770. Estudou teologia
e filosofia. Interessou-se pelos problemas religiosos e políticos,
simpatizando-se pelo criticismo e pelo iluminismo; em seguida se dedicou
ao historicismo romântico. Aproximou-se dos sistemas de Fichte e de
Schelling, afastando-se deles em seguida até combatê-los quando
professor nas universidades de Jena, Heidelberg e Berlim. Nessa última
universidade lecionou até há morte, adquirindo grande renome e exercendo
vasta influência. Faleceu em 1831 vítima de cólera. Renunciara,
entrementes, aos ideais revolucionários e críticos, para favorecer as
tendências absolutistas e intransigentes do estado prussiano.
Em
seus últimos anos, torna-se suspeito de panteísmo; alguns o
ridicularizaram (apelidando-o de Absolutus von Hegelingen); corre o
boato de que ele duvida da imortalidade da alma. Na realidade, Hegel era
ao mesmo tempo suficientemente prudente e sufucientemente hermético
para que se tornasse muito difícil fazer-lhe acusações precisas dessa
ordem! O poeta Heinrich Heine, que seguiu seus cursos de 1821 a 1823,
conta, no entanto, que ele, um dia, respondeu bruscamente a um estudante
que lhe falava do Paraíso: "O senhor então precisa de uma gorjeta
porque cuidou de sua mãe enferma e porque não envenenou ninguém!" Em
todo caso, o futuro mostraria amplamente que a filosofia do pensador
oficial da monarquia escondia um grande poder explosivo!
Como
a filosofia de Spinoza, a de Hegel é uma filosofia da inteligibilidade
total, da imanência absoluta. A razão aqui não é apenas, como em Kant, o
entendimento humano, o conjunto dos princípios e das regras segundo as
quais pensamos o mundo. Ela é igualmente a realidade profunda das
coisas, a essência do próprio Ser. Ela é não só um modo de pensar as
coisas, mas o próprio modo de ser das coisas: "O racional é real e o
real é racional". Podemos, portanto, considerar Hegel como o filósofo
idealista por excelência, uma vez que, para ele, o fundo do Ser (longe
de ser uma coisa em si inacessível) é, em definitivo, Ideia, Espírito.
Sua filosofia representa, ao mesmo tempo, com relação à crítica kantiana
do conhecimento, um retorno à ontologia. É o ser em sua totalidade que é
significativo e cada acontecimento particular no mundo só tem sentido
finalmente em função do Absoluto do qual não é mais do que um aspecto ou
um momento.
Hegel
porém se distingue de Spinoza e surge para nós como um filósofo
essencialmente moderno, pois, para ele, o mundo que manifesta a Idéia
não é uma natureza semelhante a si mesma em todos os tempos, que dizia
que a leitura dos jornais era "sua prece matinal cotidiana", como todos
os seus contemporâneos, muito meditou sobre a Revolução Francesa, e esta
lhe mostra que as estruturas sociais, assim como os pensamentos dos
homens, podem ser modificadas, subvertidas no decurso da história. O que
há de original em seu idealismo é que, para Hegel, a idéia se manifesta
como processo histórico: "A história universal nada mais é do que a
manifestação da razão".
As
principais obras de Hegel são: A Fenomenologia do Espírito; A Lógica; A
Enciclopédia das Ciências Filosóficas; A Filosofia do Direito. Foi um
gênio poderoso; sua cultura foi vastíssima, bem como a sua capacidade
sistemática, tanto assim que se pode considerar o Aristóteles e o Tomás
de Aquino do pensamento contemporâneo. No entanto, frequentemente
deforma os fatos para enquadrá-los no esquema lógico do seu sistema
racionalista-dialético, bem como altera este por interesses práticos e
políticos.
É
preciso compreender também que a história é um progresso. O vir-a-ser
de muitas peripécias não é senão a história do Espírito universal que se
desenvolve e se realiza por etapas sucessivas para atingir, no final, a
plena posse, a plena consciência de si mesmo. "O absoluto, diz Hegel,
só no final será o que ele é na realidade". O panteísmo de Spinoza
identificava Deus com a natureza: Deus sive natura. O panteísmo
hegeliano identifica Deus com a História. Deus não é o que é - ao menos
só é parcial e muito provisoriamente o que atualmente é - Deus é o que
se realizará na História. (Neste sentido, ainda há algo de hegeliano na
filosofia de Teilhard de Chardin). Por conseguinte, a história, para
Hegel, é uma odisséia do Espírito Universal", em suma, se nos permitem o
jogo de palavras, uma "teodisséia". Consideremos a história da terra.
De início só existem minerais, depois, vegetais e, em seguida, animais.
Não temos a impressão de que seres cada vez mais complexos, cada vez
mais organizados, cada vez mais autônomos surgem no Universo? O
Espírito, de início adormecido, dissimulado e como que estranho a si
mesmo, "alienado" no universo, surge cada vez mais manifestamente como
ordem, como liberdade, logo como consciência. Esse progresso do Espírito
continua e se concluirá através da história dos homens. Cada povo cada
civilização, de certo modo, tem por missão realizar uma etapa desse
progresso do Espírito. O Espírito humano é de início uma consciência
confusa, um espírito puramente subjetivo, é a sensação imediata. Depois,
ele consegue encarnar-se, objetivar-se sob a forma de civilizações, de
instituições organizadas. Tal é o espírito objetivo que se realiza
naquilo que Hegel chama de "o mundo da cultura". Enfim, o Espírito se
descobre mais claramente na consciência artística e na consciência
religiosa para finalmente apreender-se na Filosofia (notadamente na
filosofia de Hegel, que pretende totalizar sob sua alçada todas as
outras filosofias) como Saber Absoluto. Desse modo, a filosofia é o
saber de todos os saberes: a sabedoria suprema que, no final, totaliza
todas as obras da cultura (é só no crepúsculo, diz Hegel, que o pássaro
de Minerva levanta vôo). Compreendemos bem, em todo caso, que, nessa
filosofia puramente imanentista, Deus só se realiza na história. Em
outras palavras, a forma de civilização que triunfa a cada etapa da
história é aquela que, naquele momento, melhor exprime o Espírito. Após
ter saudado em Napoleão "o espírito universal a cavalo", Hegel verá no
estado prussiano de seu tempo a expressão mais perfeita do Espírito
Absoluto. Por conseguinte, Hegel é daqueles que acham que a força não
"oprime" o direito (essa fórmula, abusivamente atribuída a Bismarck,
nada significa), mas que o exprime, que aquele que é vitorioso na
História é, simultaneamente, o mais dotado de valor e que a virtude,
como ele diz, "exprime o curso do mundo".
Segundo
as normas da lógica clássica, essa identificação da Razão com o Devir
histórico é absolutamente paradoxal. De fato, a lógica clássica
considera que uma proposição fica demonstrada quando é reduzida,
identificada a uma proposição já admitida. A lógica vai do idêntico ao
idêntico. A história, ao contrário, é o domínio do mutável. O
acontecimento de hoje é diferente do de ontem. Ele o contradiz. Aplicar a
razão à história, por conseguinte, seria mostrar que a mudança é
aparente, que no fundo tudo permanece idêntico. Aplicar a razão à
história seria negar a história, recusar o tempo. Ora, contrariando tudo
isso, o racionalismo de Hegel coloca o devir, a história, em primeiro
plano. Como isso é possível?
É
possível porque Hegel concebe um processo racional original - o
processo dialético - no qual a contradição não mais é o que deve ser
evitado a qualquer preço, mas, ao contrário, se transforma no próprio
motor do pensamento, ao mesmo tempo em que é o motor da história, já que
esta última não é senão o Pensamento que se realiza. Repudiando o
princípio da contradição de Aristóteles e de Leibnitz, em virtude do
qual uma coisa não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser, Hegel põe a
contradição no próprio núcleo do pensamento e das coisas
simultaneamente. O pensamento não é mais estático, ele procede por meio
de contradições superadas, da tese à antítese e, daí, à sintese, como
num diálogo em que a verdade surge a partir da discussão e das
contradições. Uma proposição (tese) não pode se pôr sem se opor a outra
(antítese) em que a primeira é negada, transformada em outra que não ela
mesma ("alienada"). A primeira proposição encontrar-se-á finalmente
transformada e enriquecida numa nova fórmula que era, entre as duas
precedentes, uma ligação, uma "mediação" (síntese).
A Dialética
A
dialética para Hegel é o procedimento superior do pensamento é, ao
mesmo tempo, repetimo-la, "a marcha e o ritmo das próprias coisas".
Vejamos, por exemplo, como o conceito fundamental de ser se enriquece
dialeticamente. Como é que o ser, essa noção simultaneamente a mais
abstrata e a mais real, a mais vazia e a mais compreensiva (essa noção
em que o velho Parmênides se fechava: o ser é, nada mais podemos dizer),
transforma-se em outra coisa? É em virtude da contradição que esse
conceito envolve. O conceito de ser é o mais geral, mas também o mais
pobre. Ser, sem qualquer qualidade ou determinação - é, em última
análise, não ser absolutamente nada, é não ser! O ser, puro e simples,
equivale ao não-ser (eis a antítese). É fácil ver que essa contradição
se resolve no vir-a-ser (posto que vir-a-ser é não mais ser o que se
era). Os dois contrários que engendram o devir (síntese), aí se
reencontram fundidos, reconciliados.
Vejamos
um exemplo muito célebre da dialética hegeliana que será um dos pontos
de partida da reflexão de Karl Marx. Trata-se de um episódio dialético
tirado da Fenomenologia do Espírito, o do senhor e o escravo. Dois
homens lutam entre si. Um deles é pleno de coragem. Aceita arriscar sua
vida no combate, mostrando assim que é um homem livre, superior à sua
vida. O outro, que não ousa arriscar a vida, é vencido. O vencedor não
mata o prisioneiro, ao contrário, conserva-o cuidadosamente como
testemunha e espelho de sua vitória. Tal é o escravo, o "servus", aquele
que, ao pé da letra, foi conservado.
a)
O senhor obriga o escravo, ao passo que ele próprio goza os prazeres da
vida. O senhor não cultiva seu jardim, não faz cozer seus alimentos,
não acende seu fogo: ele tem o escravo para isso. O senhor não conhece
mais os rigores do mundo material, uma vez que interpôs um escravo entre
ele e o mundo. O senhor, porque lê o reconhecimento de sua
superioridade no olhar submisso de seu escravo, é livre, ao passo que
este último se vê despojado dos frutos de seu trabalho, numa situação de
submissão absoluta.
b)
Entretanto, essa situação vai se transformar dialeticamente porque a
posição do senhor abriga uma contradição interna: o senhor só o é em
função da existência do escravo, que condiciona a sua. O senhor só o é
porque é reconhecido como tal pela consciência do escravo e também
porque vive do trabalho desse escravo. Nesse sentido, ele é uma espécie
de escravo de seu escravo.
c)
De fato, o escravo, que era mais ainda o escravo da vida do que o
escravo de seu senhor (foi por medo de morrer que se submeteu), vai
encontrar uma nova forma de liberdade. Colocado numa situação infeliz em
que só conhece provações, aprende a se afastar de todos os eventos
exteriores, a libertar-se de tudo o que o oprime, desenvolvendo uma
consciência pessoal. Mas, sobretudo, o escravo incessantemente ocupado
com o trabalho, aprende a vencer a natureza ao utilizar as leis da
matéria e recupera uma certa forma de liberdade (o domínio da natureza)
por intermédio de seu trabalho. Por uma conversão dialética exemplar, o
trabalho servil devolve-lhe a liberdade. Desse modo, o escravo,
transformado pelas provações e pelo próprio trabalho, ensina a seu
senhor a verdadeira liberdade que é o domínio de si mesmo. Assim, a
liberdade estóica se apresenta a Hegel como a reconciliação entre o
domínio e a servidão.
Hegel
parte, fundamentalmente, da síntese a priori de Kant, em que o espírito
é constituído substancialmente como sendo o construtor da realidade e
toda a sua atividade é reduzida ao âmbito da experiência, porquanto é da
íntima natureza da síntese a priori não poder, de modo nenhum,
transcender a experiência, de sorte que Hegel se achava fatalmente
impelido a um monismo imanentista, que devia necessariamente tornar-se
panlogista, dialético. Assim, deviam se achar na realidade única da
experiência as características divinas do antigo Deus transcendente,
destruído por Kant. Hegel devia, portanto, chegar ao panteísmo
imanentista, que Schopenhauer, o grande crítico do idealismo
racionalista e otimista, declarará nada mais ser que ateísmo
imanentista.
No
entanto, para poder elevar a realidade da experiência à ordem da
realidade absoluta, divina, Hegel se achava obrigado a mostrar a
racionalidade absoluta da realidade da experiência, a qual, sendo o
mundo da experiência limitado e deficiente, por causa do assim chamado
mal metafísico, físico e moral, não podia, por certo, ser concebida
mediante o ser (da filosofia aristotélica), idêntico a si mesmo e
excluindo o seu oposto, e onde a limitação, a negação, o mal, não podem,
de modo nenhum, gerar naturalmente valores positivos de bem verdadeiro.
Mas essa racionalidade absoluta da realidade da experiência devia ser
concebida mediante o vir-a-ser absoluto (de Heráclito), onde um elemento
gera o seu oposto, e a negação e o mal são condições de positividade e
de bem.
Apresentava-se,
portanto, a necessidade da invenção de uma nova lógica, para poder
racionalizar o elemento potencial e negativo da experiência, isto é,
tudo que há no mundo de arracional e de irracional. E por isso Hegel
inventou a dialética dos opostos, cuja característica fundamental é a
negação, em que a positividade se realiza através da negatividade, do
ritmo famoso de tese, antítese e síntese. Essa dialética dos opostos
resolve e compõe em si mesma o elemento positivo da tese e da antítese.
Isto é, todo elemento da realidade, estabelecendo-se a si mesmo
absolutamente (tese) e não esgotando o Absoluto de que é um momento,
demanda o seu oposto (antítese), que nega e o qual integra, em uma
realidade mais rica (síntese), para daqui começar de novo o processo
dialético. A nova lógica hegeliana difere da antiga, não somente pela
negação do princípio de identidade e de contradição - como eram
concebidos na lógica antiga - mas também porquanto a nova lógica é
considerada como sendo a própria lei do ser. Quer dizer, coincide com a
ontologia, em que o próprio objeto já não é mais o ser, mas o devir
absoluto.
Dispensa-se
acrescentar como, a experiência sendo a realidade absoluta, e sendo
também vir-a-ser, a história em geral se valoriza na filosofia;
igualmente não é preciso salientar como o conceito concreto, isto é, o
particular conexo historicamente com o todo, toma o lugar do conceito
abstrato, que representa o elemento universal e comum dos particulares.
Estamos, logo, perante um panlogismo, não estático, como o de Spinoza, e
sim dinâmico, em que - através do idealismo absoluto - o monismo, que
Hegel considerava panteísmo, é levado às suas extremas consequências
metafísicas imanentistas.
Podemos resumir assim:
1.°
- A lógica tradicional afirma que o ser é idêntico a si mesmo e exclui o
seu oposto (princípio de identidade e de contradição); ao passo que a
lógica hegeliana sustenta que a realidade é essencialmente mudança,
devir, passagem de um elemento ao seu oposto;
2.°
- A lógica tradicional afirma que o conceito é universal abstrato,
enquanto apreende o ser imutável, realmente, ainda que não totalmente;
ao passo que a lógica hegeliana sustenta que o conceito é universal
concreto, isto é, conexão histórica do particular com a totalidade do
real, onde tudo é essencialmente conexo com tudo;
3.°
- A lógica tradicional distingue substancialmente a filosofia, cujo
objeto é o universal e o imutável, da história, cujo objeto é o
particular e o mutável; ao passo que a lógica hegeliana assimila a
filosofia com a história, enquanto o ser é vir-a-ser;
4.°
- A lógica tradicional distingue-se da ontologia, enquanto o nosso
pensamento, se apreende o ser, não o esgota totalmente - como faz o
pensamento de Deus; ao passo que a lógica hegeliana coincide com a
ontologia, porquanto a realidade é o desenvolvimento dialético do
próprio "logos" divino, que no espírito humano adquire plena consciência
de si mesmo.
Visto
que a realidade é o vir-a-ser dialético da Idéia, a autoconsciência
racional de Deus, Hegel julgou dever deduzir a priori o desenvolvimento
lógico da idéia, e demonstrar a necessidade racional da história natural
e humana, segundo a conhecida tríade de tese, antítese e síntese, não
só nos aspectos gerais, nos momentos essenciais, mas em toda
particularidade da história. E, com efeito, a realidade deveria
transformar-se rigorosamente na racionalidade em um sistema coerente de
pensamento idealista e imanentista.
Não
é mister dizer que essa história dialética nada mais é que a história
empírica, arbitrariamente potenciada segundo a não menos arbitrária
lógica hegeliana, em uma possível assimilação do devir empírico do
desenvolvimento lógico - ainda que entendido dialeticamente,
dinamicamente. Tal história dialética deveria, enfim, terminar com o
advento da filosofia hegeliana, em que a Idéia teria acabado a sua
odisséia, adquirindo consciência de si mesma, isto é, da sua divindade,
no espírito humano, como absoluto. Mas, desse modo, viria a ser negada a
própria essência da filosofia hegeliana, para a qual o ser, isto é, o
pensamento, nada mais é que o infinito vir-a-ser dialético.
A Idéia, A Natureza, O Espírito
Os
três grandes momentos hegelianos no devir dialético da realidade são a
idéia, a natureza, o espírito. A idéia constitui o princípio inteligível
da realidade; a natureza é a exteriorização da idéia no espaço e no
tempo; o espírito é o retorno da idéia para si mesma. A primeira grande
fase no absoluto devir do espírito é representada pela idéia, que, por
sua vez, se desenvolve interiormente em um processo dialético, segundo o
sólito esquema triádico (tese, antítese, síntese), cujo complexo é
objeto da Lógica; a saber, a idéia é o sistema dos conceitos puros, que
representam os esquemas do mundo natural e do espiritual. É, portanto,
anterior a estes, mas apenas logicamente.
NIETZSCHE
Vida e Obra
Friedrich
Wilhelm Nietzsche nasceu a 15 de outubro de 1844 em Röcken, localidade
próxima a Leipzig. Karl Ludwig, seu pai, pessoa culta e delicada, e seus
dois avós eram pastores protestantes; o próprio Nietzsche pensou em
seguir a mesma carreira.
Em
1849, seu pai e seu irmão faleceram; por causa disso a mãe mudou-se com
a família para Naumburg, pequena cidade às margens do Saale, onde
Nietzsche cresceu, em companhia da mãe, duas tias e da avó. Criança
feliz, aluno modelo, dócil e leal, seus colegas de escola o chamavam
"pequeno pastor"; com eles criou uma pequena sociedade artística e
literária, para a qual compôs melodias e escreveu seus primeiros versos.
Em
1858, Nietzsche obteve uma bolsa de estudos na então famosa escola de
Pforta, onde haviam estudado o poeta Novalis o filósofo Fichte
(1762-1814). Datam dessa época suas leituras de Schiller (1759-1805),
Hölderlin (1770-1843) e Byron (1788-1824); sob essa influência e a de
alguns professores, Nietzsche começou a afastar-se do cristianismo.
Excelente aluno em grego e brilhante em estudos bíblicos, alemão e
latim, seus autores favoritos, entre os clássicos, foram Platão (428-348
a.C.) e Ésquilo (525-456 a.C.). Durante o último ano em Pforta,
escreveu um trabalho sobre o poeta Teógnis (séc. VI a.C.). Partiu em
seguida para Bonn, onde se dedicou aos estudos de teologia e filosofia,
mas, influenciado por seu professor predileto, Ritschl, desistiu desses
estudos e passou a residir em Leipzig, dedicando-se à filologia. Ritschl
considerava a filologia não apenas história das formas literárias, mas
estudos das instituições e do pensamento. Nietzsche seguiu-lhe as
pegadas e realizou investigações originais sobre Diógenes Laércio (séc.
III), Hesíodo (séc. VIII a.C.) e Homero. A partir desses trabalhos foi
nomeado, em 1869, professor de filologia em Basiléia, onde permaneceu
por dez anos. A filosofia somente passou a interessá-lo a partir da
leitura de O Mundo como Vontade e Representação, de Schopenhauer
(1788-1860). Nietzsche foi atraído pelo ateísmo de Schopenhauer, assim
como pela posição essencial que a experiência estética ocupa em sua
filosofia, sobretudo pelo significado metafísico que atribui à música.
Em
1867, Nietzsche foi chamado para prestar o serviço militar, mas um
acidente em exercício de montaria livrou-o dessa obrigação. Voltou então
aos estudos na cidade de Leipzig. Nessa época teve início sua amizade
com Richard Wagner (1813-1883), que tinha quase 55 anos e vivia então
com Cosima, filha de Liszt (1811-1886). Nietzsche encantou-se com a
música de Wagner e com seu drama musical, principalmente com Tristão e
Isolda e com Os Mestres Cantores. A casa de campo de Tribschen, às
margens do lago de Lucerna, onde Wagner morava, tornou-se para Nietzsche
lugar d "refúgio e consolação". Na mesma época, apaixonou-se por
Cosima, que viria a ser, em obra posterior, a "sonhada Ariane". Em
cartas ao amigo Erwin Rohde, escrevia: "Minha Itália chama-se Tribschen e
sinto-me ali como em minha própria casa". Na universidade, passou a
tratar das relações entre a música e a tragédia grega, esboçando seu
livro O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música.
O Filósofo e o Músico
Em
1870, a Alemanha entrou em guerra com a França; nessa ocasião,
Nietzsche serviu o exército como enfermeiro, mas por pouco tempo, pois
logo adoeceu, contraindo difteria e disenteria. Essa doença parece ter
sido a origem das dores de cabeça e de estômago que acompanharam o
filósofo durante toda a vida. Nietzsche restabeleceu-se lentamente e
voltou a Basiléia a fim de prosseguir seus cursos.
Em
1871, publicou O Nascimento da Tragédia, a respeito da qual se costuma
dizer que o verdadeiro Nietzsche fala através das figuras de
Schopenhauer e de Wagner. Nessa obra, considera Sócrates (470 ou 469
a.C.-399 a.C.) um "sedutor", por ter feito triunfar junto à juventude
ateniense o mundo abstrato do pensamento. A tragédia grega, diz
Nietzsche, depois de ter atingido sua perfeição pela reconciliação da
"embriaguez e da forma", de Dioniso e Apolo, começou a declinar quando,
aos poucos, foi invadida pelo racionalismo, sob a influência "decadente"
de Sócrates. Assim, Nietzsche estabeleceu uma distinção entre o
apolíneo e o dionisíaco: Apolo é o deus da clareza, da harmonia e da
ordem; Dioniso, o deus da exuberância, da desordem e da música. Segundo
Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco, complementares entre si, foram
separados pela civilização. Nietzsche trata da Grécia antes da separação
entre o trabalho manual e o intelectual, entre o cidadão e o político,
entre o poeta e o filósofo, entre Eros e Logos. Para ele a Grécia
socrática, a do Logos e da lógica, a da cidade-Estado, assinalou o fim
da Grécia antiga e de sua força criadora. Nietzsche pergunta como, num
povo amante da beleza, Sócrates pôde atrair os jovens com a dialética,
isto é, uma nova forma de disputa (ágon), coisa tão querida pelos
gregos. Nietzsche responde que isso aconteceu porque a existência grega
já tinha perdido sua "bela imediatez", e tornou-se necessário que a vida
ameaçada de dissolução lançasse mão de uma "razão tirânica", a fim de
dominar os instintos contraditórios.
Seu
livro foi mal acolhido pela crítica, o que o impeliu a refletir sobre a
incompatibilidade entre o "pensador privado" e o "professor público".
Ao mesmo tempo, esperava-se com seu estado de saúde: dores de cabeça,
perturbações oculares, dificuldades na fala. Interrompeu assim sua
carreira universitária por um ano. Mesmo doente foi até Bayreuth, para
assistir à apresentação de O Anel dos Nibelungos, de Wagner. Mas o
"entusiasmo grosseiro" da multidão e a atitude de Wagner embriagado pelo
sucesso o irritaram.
Terminada
a licença da universidade para que tratasse da saúde, Nietzsche voltou à
cátedra. Mas sua voz agora era tão imperceptível que os ouvintes
deixaram de frequentar seus cursos, outrora tão brilhantes. Em 1879,
pediu demissão do cargo. Nessa ocasião, iniciou sua grande crítica dos
valores, escrevendo Humano, Demasiado Humano; seus amigos não o
compreenderam. Rompeu as relações de amizade que o ligavam a Wagner e,
ao mesmo tempo, afastou-se da filosofia de Schopenhauer, recusando sua
noção de "vontade culpada" e substituindo-a pela de "vontade alegre";
isso lhe parecia necessário para destruir os obstáculos da moral e da
metafísica. O homem, dizia Nietzsche, é o criador dos valores, mas
esquece sua própria criação e vê neles algo de "transcendente", de
"eterno" e "verdadeiro", quando os valores não são mais do que algo
"humano, demasiado humano".
Nietzsche,
que até então interpretara a música de Wagner como o "renascimento da
grande arte da Grécia", mudou de opinião, achando que Wagner
inclinava-se ao pessimismo sob a influência de Schopenhauer. Nessa época
Wagner voltara-se, ao mesmo tempo, a recusa do cristianismo e de
Schopenhauer; para Nietzsche, ambos são parentes porque são a
manifestação da decadência, isto é, da fraqueza e da negação. Irritado
com o antigo amigo, Nietzsche escreveu: "Não há nada de exausto, nada de
caduco, nada de perigoso para a vida, nada que calunie o mundo no reino
do espírito, que não tenha encontrado secretamente abrigo em sua arte;
ele dissimula o mais negro obscurantismo nos orbes luminosos do ideal.
Ele acaricia todo o instinto niilista (budista) e embeleza-o com a
música; acaricia toda a forma de cristianismo e toda expressão religiosa
de decadência".
Solidão, Agonia e Morte
Em
1880, Nietzsche publicou O Andarilho e sua Sombra: um ano depois
apareceu Aurora, com a qual se empenhou "numa luta contra a moral da
auto-renúncia". Mais uma vez, seu trabalho não foi bem acolhido por seus
amigos; Erwin Rohde nem chegou a agradecer-lhe o recebimento da obra,
nem respondeu à carta que Nietzsche lhe enviara. Em 1882, veio à luz A
Gaia Ciência, depois Assim falou Zaratustra (1884), Para Além de Bem e
Mal (1886), O Caso Wagner, Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche contra
Wagner (1888). Ecce Homo, Ditirambos Dionisíacos, O Anticristo e Vontade
de Potência só apareceram depois de sua morte.
Durante
o verão de 1881, Nietzsche residiu em Haute-Engandine, na pequena
aldeia de Silvaplana, e, durante um passeio, teve a intuição de O Eterno
Retorno, redigido logo depois. Nessa obra defendeu a tese de que o
mundo passa indefinidamente pela alternância da criação e da destruição,
da alegria e do sofrimento, do bem e do mal. De Silvaplana, Nietzsche
transferiu-se para Gênova, no outono de 1881, e depois para Roma, onde
permaneceu por insistência de Fräulein von Meysenburg, que pretendia
casá-lo com uma jovem finlandesa, Lou Andreas Salomé. Em 1882, Nietzsche
propôs-lhe casamento e foi recusado, mas Lou Andreas Salomé desejou
continuar sua amiga e discípula. Encontraram-se mais tarde na Alemanha;
porém, não houve a esperada adesão à filosofia nietzschiana e, assim,
acabaram por se afastar definitivamente.
Em
seguida, retornou à Itália, passando o inverno de 1882-1883 na baía de
Rapallo. Em Rapallo, Nietzsche não se encontrava bem instalado; porém,
"foi durante o inverno e no meio desse desconforto que nasceu o meu
nobre Zaratustra".
No
outono de 1883 voltou para a Alemanha e passou a residir em Naumburg,
em companhia da mãe e da irmã. Apesar da companhia dos familiares,
sentia-se cada vez mais só. Além disso, mostrava-se muito contrariado,
pois sua irmã tencionava casar-se com Herr Foster, agitador anti-semita,
que pretendia fundar uma empresa colonial no Paraguai, como reduto da
cristandade teutônica. Nietzsche desprezava o anti-semitismo, e, não
conseguindo influenciar a irmã, abandonou Naumburg.
Em
princípio de abril de 1884 chegou a Veneza, partindo depois para a
Suíça, onde recebeu a visita do barão Heinrich von Stein, jovem
discípulo de Wagner. Von Stein esperava que o filósofo o acompanhasse a
Bayreuth para ouvir o Parsifal, talvez pretendendo ser o mediador para
que Nietzsche não publicasse seu ataque contra Wagner. Por seu lado,
Nietzsche viu no rapaz um discípulo capaz de compreender o seu
Zaratustra. Von Stein, no entanto, veio a falecer muito cedo, o que o
amargurou profundamente, sucedendo-se alternâncias entre euforia e
depressão. Em 1885, veio a público a Quarta parte de Assim falou
Zaratustra; cada vez mais isolado, o autor só encontrou sete pessoas a
quem enviá-la. Depois disso, viajou para Nice, onde veio a conhecer o
intelectual alemão Paul Lanzky, que lera Assim falou Zaratustra e
escrevera um artigo, publicado em um jornal de Leipzig e na Revista
Européia de Florença. Certa vez, Lanzky se dirigiu a Nietzsche
tratando-o de "mestre" e Nietzsche lhe respondeu: "Sois o primeiro que
me trata dessa maneira".
Depois
de 1888, Nietzsche passou a escrever cartas estranhas. Um ano mais
tarde, em Turim, enfrentou o auge da crise; escrevia cartas ora
assinando "Dioniso", ora "o Crucificado" e acabou sendo internado em
Basiléia, onde foi diagnosticada uma "paralisia progressiva".
Provavelmente de origem sifilítica, a moléstia progrediu lentamente até a
apatia e a agonia. Nietzsche faleceu em Weimar, a 25 de agosto de 1900.
O Dionisíaco e o Socrático
Nietzsche
enriqueceu a filosofia moderna com meios de expressão: o aforismo e o
poema. Isso trouxe como conseqüência uma nova concepção da filosofia e
do filósofo: não se trata mais de procurar o ideal de um conhecimento
verdadeiro, mas sim de interpretar e avaliar. A interpretação procuraria
fixar o sentido de um fenômeno, sempre parcial e fragmentário; a
avaliação tentaria determinar o valor hierárquico desses sentidos,
totalizando os fragmentos, sem, no entanto, atenuar ou suprimir a
pluralidade. Assim, o aforismo nietzschiano é, simultaneamente, a arte
de interpretar e a coisa a ser interpretada, e o poema constitui a arte
de avaliar e a própria coisa a ser avaliada. O intérprete seria uma
espécie de fisiologista e de médico, aquele que considera os fenômenos
como sintomas e fala por aforismos; o avaliador seria o artista que
considera e cria perspectivas, falando pelo poema. Reunindo as duas
capacidades, o filósofo do futuro deveria ser artista e
médico-legislador, ao mesmo tempo.
Para
Nietzsche, um tipo de filósofo encontra-se entre os pré-socráticos, nos
quais existe unidade entre o pensamento e a vida, esta "estimulando" o
pensamento, e o pensamento "afirmando" a vida. Mas o desenvolvimento da
filosofia teria trazido consigo a progressiva degeneração dessa
característica, e, em lugar de uma vida ativa e de um pensamento
afirmativo, a filosofia ter-se-ia proposto como tarefa "julgar a vida",
opondo a ela valores pretensamente superiores, mediando-a por eles,
impondo-lhes limites, condenando-a. Em lugar do filósofo-legislador,
isto é, crítico de todos os valores estabelecidos e criador de novos,
surgiu o filósofo metafísico. Essa degeneração, afirma Nietzsche,
apareceu claramente com Sócrates, quando se estabeleceu a distinção
entre dois mundos, pela oposição entre essencial e aparente, verdadeiro e
falso, inteligível e sensível. Sócrates "inventou" a metafísica, diz
Nietzsche, fazendo da vida aquilo que deve ser julgado, medido,
limitado, em nome de valores "superiores" como o Divino, o Verdadeiro, o
Belo, o Bem. Com Sócrates, teria surgido um tipo de filósofo voluntário
e sutilmente "submisso", inaugurando a época da razão e do homem
teórico, que se opôs ao sentido místico de toda a tradição da época da
tragédia.
Para
Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como característica o
saber místico da unidade da vida e da morte e, nesse sentido, constitui
uma "chave" que abre o caminho essencial do mundo. Mas Sócrates
interpretou a arte trágica como algo irracional, algo que apresenta
efeitos sem causas e causas sem efeitos, tudo de maneira tão confusa que
deveria ser ignorada. Por isso Sócrates colocou a tragédia na categoria
das artes aduladoras que representam o agradável e não o útil e pedia a
seus discípulos que se abstivessem dessas emoções "indignas de
filósofos". Segundo Sócrates, a arte da tragédia desvia o homem do
caminho da verdade: "uma obra só é bela se obedecer à razão", formula
que, segundo Nietzsche, corresponde ao aforismo "só o homem que concebe o
bem é virtuoso". Esse bem ideal concebido por Sócrates existiria em um
mundo supra-sensível, no "verdadeiro mundo", inacessível ao conhecimento
dos sentidos, os quais só revelariam o aparente e irreal. Com tal
concepção, criou-se, segundo Nietzsche, uma verdadeira oposição
dialética entre Sócrates e Dioniso: "enquanto em todos os homens
produtivos o instinto é uma força afirmativa e criadora, e a consciência
uma força crítica e negativa, em Sócrates o instinto torna-se crítico e
a consciência criadora". Assim, Sócrates, o "homem teórico", foi o
único verdadeiro contrário do homem trágico e com ele teve início uma
verdadeira mutação no entendimento do Ser. Com ele, o homem se afastou
cada vez mais desse conhecimento, na medida em que abandonou o fenômeno
do trágico, verdadeira natureza da realidade, segundo Nietzsche.
Perdendo-se a sabedoria instintiva da arte trágica, restou a Sócrates
apenas um aspecto da vida do espírito, o aspecto lógico-racional;
faltou-lhe a visão mística, possuído que foi pelo instinto irrefreado de
tudo transformar em pensamento abstrato, lógico, racional. Penetrar a
própria razão das coisas, distinguindo o verdadeiro do aparente e do
erro era, para Sócrates, a única atividade digna do homem. Para
Nietzsche, porém, esse tipo de conhecimento não tarda a encontrar seus
limites: "esta sublime ilusão metafísica de um pensamento puramente
racional associa-se ao conhecimento como um instinto e o conduz
incessantemente a seus limites onde este se transforma em arte".
Por
essa razão, Nietzsche combateu a metafísica, retirando do mundo
supra-sensível todo e qualquer valor eficiente, e entendendo as ideias
não mais como "verdades" ou "falsidades", mas como "sinais". A única
existência, para Nietzsche, é a aparência e seu reverso não é mais o
Ser; o homem está destinado à multiplicidade, e a única coisa permitida é
sua interpretação.
O Vôo da Águia, a Ascensão da Montanha
A crítica nietzschiana à metafísica tem um sentido ontológico e um sentido moral: o combate à teoria das ideias socrático-platônicas é, ao mesmo tempo, uma luta acirrada contra o cristianismo.
Segundo
Nietzsche, o cristianismo concebe o mundo terrestre como um vale de
lágrimas, em oposição ao mundo da felicidade eterna do além. Essa
concepção constitui uma metafísica que, à luz das ideias do outro mundo,
autêntico e verdadeiro, entende o terrestre, o sensível, o corpo, como o
provisório, o inautêntico e o aparente. Trata-se, portanto, diz
Nietzsche, de "um platonismo para o povo", de uma vulgarização da
metafísica, que é preciso desmistificar. O cristianismo, continua
Nietzsche, é a forma acabada da perversão dos instintos que caracteriza o
platonismo, repousando em dogmas e crenças que permitem à consciência
fraca e escava escapar à vida, à dor e à luta, e impondo a resignação e a
renúncia como virtudes. São os escravos e os vencidos da vida que
inventaram o além para compensar a miséria; inventaram falsos valores
para se consolar da impossibilidade de participação nos valores dos
senhores e dos fortes; forjaram o mito da salvação da alma porque não
possuíam o corpo; criaram a ficção do pecado porque não podiam
participar das alegrias terrestres e da plena satisfação dos instintos
da vida. "Este ódio de tudo que é humano", diz Nietzsche, "de tudo que é
'animal' e mais ainda de tudo que é 'matéria', este temor dos
sentidos... este horror da felicidade e da beleza; este desejo de fugir
de tudo que é aparência, mudança, dever, morte, esforço, desejo mesmo,
tudo isso significa... vontade de aniquilamento, hostilidade à vida,
recusa em se admitir as condições fundamentais da própria vida".
Nietzsche
propôs a si mesmo a tarefa de recuperar a vida e transmutar todos os
valores do cristianismo: "munido de uma tocha cuja luz não treme, levo
uma claridade intensa aos subterrâneos do ideal". A imagem da tocha
simboliza, no pensamento de Nietzsche, o método filológico, por ele
concebido como um método crítico e que se constitui no nível da
patologia, pois procura "fazer falar aquilo que gostaria de permanecer
mudo". Nietzsche traz à tona, por exemplo, um significado esquecido da
palavra "bom". Em latim, bonus significa também o "guerreiro",
significado este que foi sepultado pelo cristianismo. Assim como esse,
outros significados precisariam ser recuperados; com isso se poderia
constituir uma genealogia da moral que explicaria as etapas das noções
de "bem" e de "mal". Para Nietzsche essas etapas são o ressentimento ("é
tua culpa se sou fraco e infeliz"); a consciência da culpa (momento em
que as formas negativas se interiorizam, dizem-se culpadas e voltam-se
contra si mesmas); e o ideal ascético (momento de sublimação do
sofrimento e de negação da vida). A partir daqui, a vontade de potência
torna-se vontade de nada e a vida transforma-se em fraqueza e mutilação,
triunfando o negativo e a reação contra a ação. Quando esse niilismo
triunfa, diz Nietzsche, a vontade de potência deixa de querer significar
"criar" para querer dizer "dominar"; essa é a maneira como o escravo a
concebe. Assim, na fórmula "tu és mau, logo eu sou bom", Nietzsche vê o
triunfo da moral dos fracos que negam a vida, eu negam a "afirmação";
neles tudo é invertido: os fracos passam a se chamar fortes, a baixeza
transforma-se em nobreza. A "profundidade da consciência" que busca o
Bem e a Verdade, diz Nietzsche, implica resignação, hipocrisia e
máscara, e o intérprete-filólogo, ao percorrer os signos para
denunciá-las, deve ser um escavador dos submundos a fim de mostrar que a
"profundidade da interioridade" é coisa diferente do que ela mesma
pretende ser. Do ponto de vista do intérprete que desça até os bas-fonds
da consciência, o Bem é a vontade do mais forte, do "guerreiro", do
arauto de um apelo perpétuo à verdadeira ultrapassagem dos valores
estabelecidos, do super-homem, entendida esta expressão no sentido de um
ser humano que transpõe os limites do humano, é o além-do-homem. Assim,
o vôo da águia, a ascensão da montanha e todas as imagens de
verticalidade que se encontram em Assim falou Zaratustra representam a
inversão da profundidade e a descoberta de que ela não passa de um jogo
de superfície.
A etimologia
nietzschiana mostra que não existe um "sentido original", pois as
próprias palavras não passam de interpretações, antes mesmo de serem
signos, e se elas só significam porque são "interpretações essenciais".
As palavras, segundo Nietzsche, sempre foram inventadas pelas classes
superiores e, assim, não indicam um significado, mas impõem uma
interpretação. O trabalho do etimologista, portanto, deve centralizar-se
no problema de saber o que existe para ser interpretado, na medida em
que tudo é máscara, interpretação, avaliação. Fazer isso é "aliviar o
que vive, dançar, criar". Zaratustra, o intérprete por excelência, é
como Dioniso.
Os Limites do Humano: O Além-do-Homem
Em Ecce Homo, Nietzsche assimila Zaratustra a Dioniso, concebendo o primeiro como o triunfo da afirmação da vontade de potência e o segundo como símbolo do mundo como vontade, como um deus artista, totalmente irresponsável, amoral e superior ao lógico. Por outro lado, a arte trágica é concebida por Nietzsche como oposta à decadência e enraizada na antinomia entre a vontade de potência, aberta para o futuro, e o "eterno retorno", que faz do futuro numa repetição; esta, no entanto, não significa uma volta do mesmo nem uma volta ao mesmo; o eterno retorno nietzschiano é essencialmente seletivo. Em dois momentos de Assim falou Zaratustra (Zaratustra doente e Zaratustra convalescente), o eterno retorno causa ao personagem-título, primeiramente, uma repulsa e um medo intoleráveis que desaparecem por ocasião de sua cura, pois o que o tornava doente era a idéia de que o eterno retorno estava ligado, apesar de tudo, a um ciclo, e que ele faria tudo voltar, mesmo o homem, o "homem pequeno". O grande desgosto do homem, diz Zaratustra, aí está o que me sufocou e que me tinha entrado na garganta e também o que me tinha profetizado o adivinho: tudo é igual. E o eterno retorno, mesmo do mais pequeno, aí está a causa de meu cansaço e de toda a existência. Dessa forma, se Zaratustra se cura é porque compreende que o eterno retorno abrange o desigual e a seleção. Para Dioniso, o sofrimento, a morte e o declínio são apenas a outra face da alegria, da ressurreição e da volta. Por isso, "os homens não têm de fugir à vida como os pessimistas", diz Nietzsche, "mas, como alegres convivas de um banquete que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma vez mais".
Para
Nietzsche, portanto, o verdadeiro oposto a Dioniso não é mais Sócrates,
mas o Crucificado. Em outros termos, a verdadeira oposição é a que
contrapõe, de um lado, o testemunho contra a vida e o empreendimento de
vingança que consiste em negar a vida; de outro, a afirmação do devir e
do múltiplo, mesmo na dilaceração dos membros dispersos de Dioniso. Com
essa concepção, Nietzsche responde ao pessimismo de Schopenhauer: em
lugar do desespero de uma vida para a qual tudo se tornou vão, o homem
descobre no eterno retorno a plenitude de uma existência ritmada pela
alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do
bem e do mal. O eterno retorno, e apenas ele, oferece, diz Nietzsche,
uma "saída fora da mentira de dois mil anos", e a transmutação dos
valores traz consigo o novo homem que se situa além do próprio homem.
Esse
super-homem nietzschiano não é um ser, cuja vontade "deseje dominar".
Se se interpreta vontade de potência, diz Nietzsche, como desejo de
dominar, faz-se dela algo dependente dos valores estabelecidos. Com
isso, desconhece-se a natureza da vontade de potência como princípio
plástico de todas as avaliações e como força criadora de novos valores.
Vontade de potência, diz Nietzsche, significa "criar", "dar" e
"avaliar".
Nesse
sentido, a vontade de potência do super-homem nietzschiano o situa
muito além do bem e do mal e o faz desprender-se de todos os produtos de
uma cultura decadente. A moral do além-do-homem, que vive esse
constante perigo e fazendo de sua vida uma permanente luta, é a moral
oposta à do escravo e à do rebanho. Oposta, portanto, à moral da
compaixão, da piedade, da doçura feminina e cristã. Assim, para
Nietzsche, bondade, objetividade, humildade, piedade, amor ao próximo,
constituem valores inferiores, impondo-se sua substituição pela virtù
dos renascentistas italianos, pelo orgulho, pelo risco, pela
personalidade criadora, pelo amor ao distante. O forte é aquele em que a
transmutação dos valores faz triunfar o afirmativo na vontade de
potência. O negativo subsiste nela apenas como agressividade própria à
afirmação, como a crítica total que acompanha a criação; assim,
Zaratustra, o profeta do além-do-homem, é a pura afirmação, que leva a
negação a seu último grau, fazendo dela uma ação, uma instância a
serviço daquele que cria, que afirma.
Compreende-se,
assim, porque Nietzsche desacredita das doutrinas igualitárias, que lhe
parecem "imorais", pois impossibilitam que se pense a diferença entre
os valores dos "senhores e dos escravos". Nietzsche recusa o socialismo,
mas em Vontade de Potência exorta os operários a reagirem "como
soldados".
Uma Filosofia Confiscada
Apoiado
na crítica nietzschiana aos valores da moral cristã, em sua teoria da
vontade de potência e no seu elogio do super-homem, desenvolveu-se um
pensamento nacionalista e racista, de tal forma que se passou a ver no
autor de "Assim Falou Zaratustra" um percursor do nazismo. A principal
responsável por essa deformação foi sua irmã Elisabeth, que, ao
assegurar a difusão de seu pensamento, organizando o Nietzsche-Archiv,
em Weimar, tentou colocá-lo a serviço do nacional-socialismo. Elisabeth,
depois do suicídio do marido, que fracassara em um projeto colonial no
Paraguai, reuniu arbitrariamente notas e rascunhos do irmão, fazendo
publicar Vontade de Potência como a última e a mais representativa das
obras de Nietzsche, retendo até 1908 Ecce Homo, escrita em 1888. Esta
obra constitui uma interpretação, feita por Nietzsche, de sua própria
filosofia, que não se coaduna com o nacionalismo e o racismo germânicos.
Ambos foram combatidos pelo filósofo, desde sua participação na guerra
franco-prussiana (1870-1871).
Por
ocasião desse conflito, Nietzsche alistou-se no exército alemão, mas
seu ardor patriótico logo se dissolveu, pois, para ele, a vitória da
Alemanha sobre a França teria como consequência "um poder altamente
perigoso para a cultura". Nessa época, aplaudia as palavras de seu
colega em Basiléia, Jacob Burckhardt (1818-1897), que insistia junto a
seus alunos para que não tomassem o triunfo militar e a expansão de um
Estado como indício de verdadeira grandeza.
Em
Para Além de Bem e Mal, Nietzsche revela o desejo de uma Europa unida
para enfrentar o nacionalismo ("essa neurose") que ameaçava subverter a
cultura européia. Por outro lado, quando confiou ao "louro" a tarefa de
"virilizar a Europa", Nietzsche levou até a caricatura seu desprezo
pelos alemães, homens "que introduziram no lugar da cultura a loucura
política e nacional... que só sabem obedecer pesadamente, disciplinados
como uma cifre oculta em um número". No mesmo sentido, Nietzsche
caracterizou os heróis wagnerianos como germanos que não passam de
"obediência e longas pernas". E acabou rompendo definitivamente com
Wagner, por causa do nacionalismo e anti-semitismo do autor de Tristão e
Isolda: "Wagner condescende a tudo que desprezo, até o anti-semitismo".
Para
compreender corretamente as ideias políticas de Nietzsche, é
necessário, portanto, purificá-lo de todos os desvios posteriores que
foram cometidos em seu nome. Nietzsche foi ao mesmo tempo um
antidemocrático e um antitotalitário. "A democracia é a forma histórica
de decadência do Estado", afirmou Nietzsche, entendendo por decadência
tudo aquilo que escraviza o pensamento, sobretudo um Estado que pensa em
si em lugar de pensar na cultura. Em Considerações Extemporâneas essa
tese é reforçada: "estamos sofrendo as consequências das doutrinas
pregadas ultimamente por todos os lados, segundo as quais o estado é o
mais alto fim do homem, e, assim, não há mais elevado fim do que
servi-lo. Considero tal fato não um retrocesso ao paganismo mas um
retrocesso à estupidez". Por outro lado, Nietzsche não aceitava as
considerações de que a origem do Estado seja o contrato ou a convenção;
essas teorias seriam apenas "fantásticas"; para ele, ao contrário, o
Estado tem uma origem "terrível", sendo criação da violência e da
conquista e, como consequência, seus alicerces encontram-se na máxima
que diz: "o poder dá o primeiro direito e não há direito que no fundo
não seja arrogância, usurpação e violência".
O
Estado, diz Nietzsche, está sempre interessado na formação de cidadãos
obedientes e tem, portanto, tendência a impedir o desenvolvimento da
cultura livre, tornando-a estática e estereotipada. Ao contrário disso, o
Estado deveria ser apenas um meio para a realização da cultura e para
fazer nascer o além-do-homem.
Assim Falou Zaratustra
Em
Ecce Homo, Nietzsche intitulou seus capítulos: "Por que sou tão
finalista?", "Por que sou tão sábio?", "Por que sou tão inteligente?",
"Por que escrevo livros tão bons?". Isso levou muitos a considerarem sua
obra como anormal e desqualificada pela loucura. Essa opinião, no
entanto, revela um superficial entendimento de seu pensamento. Para
entendê-lo corretamente, é necessário colocar-se dentro do próprio
núcleo de sua concepção da filosofia: Nietzsche inverteu o sentido
tradicional da filosofia, fazendo dela um discurso ao nível da patologia
e considerando a doença "um ponto de vista" sobre a saúde e vice-versa.
Para ele, nem a saúde, nem a doença são entidades; a fisiologia e a
patologia são uma única coisa; as oposições entre bem e mal, verdadeiro e
falso, doença e saúde são apenas jogos de superfície. Há uma
continuidade, diz Nietzsche, entre a doença e a saúde e a diferença
entre as duas é apenas de grau, sendo a doença um desvio interior à
própria vida; assim, não há fato patológico.
A
loucura não passa de uma máscara que esconde alguma coisa, esconde um
saber fatal e "demasiado certo". A técnica utilizada pelas classes
sacerdotais para a cura da loucura é a "meditação ascética", que
consiste em enfraquecer os instintos e expulsar as paixões; com isso, a
vontade de potência, a sensualidade e o livre florescimento do eu são
considerados "manifestações diabólicas". Mas, para Nietzsche, aniquilar
as paixões é uma "triste loucura", cuja decifração cabe à filosofia,
pois é a loucura que torna mais plano o caminho para as ideias novas,
rompendo os costumes e as superstições veneradas e constituindo uma
verdadeira subversão dos valores. Para Nietzsche, os homens do passado
estiveram mais próximos da idéia de que onde existe loucura há um grão
de gênio e de sabedoria, alguma coisa de divino: "Pela loucura os
maiores feitos foram espalhados foram espalhados pela Grécia". Em suma,
aos "filósofos além de bem e mal", aos emissários dos novos valores e da
nova moral não resta outro recurso, diz Nietzsche, a não ser o de
proclamar as novas leis e quebrar o jugo da moralidade, sob o
travestimento da loucura. É dentro dessa perspectiva, portanto, que se
deve compreender a presença da loucura na obra de Nietzsche. Sua crise
final apenas marcou o momento em que a "doença" saiu de sua obra e
interrompeu seu prosseguimento. As últimos cartas de Nietzsche são o
testemunho desse momento extremo e, como tal, pertencem ao conjunto de
sua obra e de seu pensamento. A filosofia foi, para ele, a arte de
deslocar as perspectivas, da saúde à doença, e a loucura deveria cumprir
a tarefa de fazer a crítica escondida da decadência dos valores e
aniquilamento: "Na verdade, a doença pode ser útil a um homem ou a uma
tarefa, ainda que para outros signifique doença... Não fui um doente nem
mesmo por ocasião da maior enfermidade".
A Moral de Kant
É
só no domínio da moral que a razão poderá, legitimamente, manifestar-se
em toda sua pujança. A razão teórica tinha necessidade da experiência
para não se perder no vácuo da metafísica. A razão prática, isto é,
ética, deve ao contrário, ultrapassar, para ser ela própria, tudo que
seja sensível ou empírico.
Toda
ação que toma seus móveis da sensibilidade, dos desejos empíricos, é
estranha à moral, mesmo que essa ação seja materialmente boa. Por
exemplo: se me empenho por alguém por cálculo interessado ou mesmo por
afeição, minha conduta não é moral. Com efeito, amanhã, meus cálculos e
meus sentimentos espontâneos poderiam levar-me a atos contrários. A
vontade que tem por fim o prazer, a felicidade, fica submetida às
flutuações de minha natureza. Nesse ponto, Kant se opõe não só ao
naturalismo dos filósofos iluministas, mas, também, à ontologia otimista
de São Tomás, para quem a felicidade é o fim legítimo de todas as
nossas ações. Em Kant, há o que Hegel mais tarde denominará uma visão
oral do mundo que afasta a ética dos equívocos da natureza. O imperativo
moral não é um imperativo hipotético que submeteria o bem ao desejo
(cumpre teu dever se nele satisfazes teu interesse, ou então, se teus
sentimentos espontâneos a ele te conduzem), mas o imperativo categórico:
Cumpre teu dever incondicionalmente.
Em
que consiste esse dever? Uma vez que as leis que a Razão se impõe não
podem, em nenhum caso, receber um conteúdo da experiência e que devem
exprimir a autonomia da razão pura prática, as regras morais só podem
consistir na própria forma da lei. "Age sempre de tal maneira que a
máxima de tua ação possa ser erigida em regra universal" (primeira
regra). O respeito pela razão estende-se ao sujeito racional: "Age
sempre de maneira a tratares a humanidade em ti e nos outros sempre ao
mesmo tempo como um fim e jamais como um simples meio" (segunda regra).
Desse modo, o princípio do dever, para ser absolutamente rigoroso, não
implica em nenhuma "alienação", como diríamos hoje, em nenhuma
"heteronomia", como diz Kant.
Para
se unirem numa justa reciprocidade de direitos e obrigações, os homens
só têm que obedecer às exigências de sua própria razão: "Age como se
fosses ao mesmo tempo legislador e súdito na república das vontades"
(terceira regra).
O único
sentimento que tem por si mesmo um valor moral nessa ética racionalista
é o sentimento do respeito, pois não é anterior à lei, mas é a própria
lei moral que o produz em mim; ele me engrandece, ele me realiza como
ser racional que obedece à lei moral. Vimos que, pelo fato de ser
puramente formal, essa moral não me propõe, efetivamente, um ato
concreto a realizar. Ela simplesmente autoriza ou proíbe este ou aquele
ato que tenho vontade de praticar. Por exemplo, vejo de imediato que não
tenho o direito de mentir, mesmo que me diga: e se todos fizessem o
mesmo? A mentira de todos para com todos é contraditória, portanto,
proibída. A moral formal, por conseguinte, apresenta-se como
essencialmente negativa. Como diz Jan Kélévitch, o imperativo categórico
é um "proibitivo categórico".
A
moral de Kant, ao privilegiar a razão humana, exprime sua desconfiança
com relação à natureza humana, aos instintos, às tendências de tudo o
que é empírico, passivo, passional, ou, como diz Kant, patológico. Tal é
o rigoríssimo kantiano. A razão fala sobre a forma severa do dever
porque é preciso impor silêncio à natureza carnal, porque é preciso, ao
preço de grande esforço, submeter a humana vontade à lei do dever. Por
conseguinte, o domínio da moral não é o da natureza (submissão animal
aos instintos) nem o da santidade (em que a natureza, transfigurada pela
graça, sentiria uma atração instintiva e irresistível pelos valores
morais). O mérito moral é medido precisamente pelo esforço que fazemos
para submeter nossa natureza às exigências do dever.
Moral e Metafísica
A
moral de Kant é o que chamamos de uma moral independente. Ela não
possui outro fundamento além da consciência humana, essa consciência que
é essencialmente razão. Mesmo que o universo não tenha o menor sentido,
mesmo que a alma seja mortal, o discípulo de Kant se sabe obrigado a
respeitar as máximas da razão.
Todavia,
Kant vai reerguer a metafísica - essa metafísica cuja demonstração era
impossível, segunda a crítica da razão pura. A originalidade de Kant
está no fato de que, ao invés de buscar os fundamentos de sua moral na
metafísica, ele vai estabelecer os fundamentos de uma metafísica na
moral, a título de "postulados da razão prática". Por exemplo: o dever
me prescreve a realização de certa perfeição moral que não consigo
atingir na vida presente (posto que não chego a purificar totalmente a
determinação de querer dos móveis sensíveis). Kant então postula a
imortalidade da alma.
Por
outro lado, Kant constata que a virtude e a felicidade quase não estão
juntas, neste mundo em que, de um modo geral, os maus são muito
prósperos. Ele então postula que um Deus justiceiro, por intermédio de
um sistema de recompensa e punições, restabelecerá no além a harmonia
entre virtude e felicidade.
Finalmente,
partindo da consciência da obrigação moral, Kant vai postular a
liberdade humana. Com efeito, a obrigação moral exclui a necessidade dos
atos humanos. A obrigação não teria o menor sentido se minha conduta
fosse automaticamente determinada por minhas tendências ou pelas
influências que sofri. Ser moralmente obrigado é ter o poder de
responder sim ou não à regra moral, é ter a liberdade de escolher entre o
bem e o mal. "Tu deves, diz Kant, então podes."
Esta
liberdade não poderia ser demonstrada. No plano dos fenômenos, isto é,
da experiência, do que hoje denominamos ciência psicológica, eu vejo que
meus atos, ao contrário, são determinados uns pelos outros no tempo.
Aquele crime pode ser explicado pelas paixões de seu autor, pela
deplorável educação que recebeu, etc... E, no entanto, o homem se sente
responsável, por conseguinte, livre. Não esqueçamos que o mundo dos
fenômenos, isto é, do determinismo, é um mundo de aparências. Por trás
desse determinismo aparente, pelo qual o mundo se me apresenta no
conhecimento, esconde-se a realidade numenal de minha liberdade. Por
conseguinte, é fora do tempo, é nas profundezas do ser inacessível ao
saber científico, que o mau escolheu livremente o seu caráter de mau. Em
tal sistema, portanto, não existe liberdade parcial nem
meia-responsabilidade. Totalmente determinados nas aparências
fenomenais, seríamos totalmente livres em nossa realidade numenal: daí
se segue que nenhum pecado poderia ser escusável.
A Crítica do Juízo
Desse modo, a filosofia de Kant nos surge como uma filosofia essencialmente trágica, já que afirma simultaneamente a necessidade da natureza (na Crítica da Razão Pura) e a exigência de uma liberdade absoluta (na Crítica da Razão Prática).
A Crítica do Juízo
Desse modo, a filosofia de Kant nos surge como uma filosofia essencialmente trágica, já que afirma simultaneamente a necessidade da natureza (na Crítica da Razão Pura) e a exigência de uma liberdade absoluta (na Crítica da Razão Prática).
Em
sua terceira grande obra, A Crítica do Juízo, Kant se esforça por
mostrar a possibilidade de uma reconciliação entre o mundo natural e o
da liberdade. A natureza talvez não seja apenas o domínio do
determinismo, mas também o da finalidade que aparece notadamente na
organização harmoniosa dos seres vivos. Todavia, se o princípio de
causalidade (determinismo) é constitutivo da experiência (não posso
dispensá-lo para explicar a natureza), o princípio de finalidade
permanece facultativo, puramente regulador (posso interpretar o
agrupamento de certas condições como a manifestação de um fim). Tudo se
passa como se o pássaro fosse feito para voar, mas uma coisa apenas é
certa: o pássaro voa porque é constituído de tal maneira.
Os
valores de beleza, presentes na obra de arte, igualmente nos oferecem
uma espécie de reconciliação entre a razão e a imaginação, já que, na
contemplação estética, a bela aparência que admiramos parece
inteiramente penetrada dos valores do espírito. Finalidade sem fim (isto
é, harmonia pura, fora de todo móvel exterior à obra de arte), a beleza
oferece à nossa imaginação a oportunidade de uma satisfação
inteiramente desinteressada. Ela é, no mundo kantiano, o exemplo único
de uma satisfação ao mesmo tempo sensível e pura de todo egoísmo, o
momento privilegiado em que uma emoção, longe de manifestar meu egoísmo
dominador, dele me liberta e, como se diz muito bem, me "arrebata".
KARL MARX
Como
pareceria o mundo hoje, se Karl Marx tivesse realizado seu projeto de
vida original? É que o jovem Marx se considerava um porta nato, e alguns
produtos de suas inspirações poéticas chegaram até nós. Eles trazem
títulos altamente líricos, algo como "Canto dos elfos", "Canto dos
gnomos" ou "Canto das sereias", ou seja, trata-se de fúteis cantilenas
mitológicas. Uma poesia particularmente comovedora, ainda que
profundamente triste, é intitulada "Tragédia do destino". Vale citar
algumas estrofes:
"A menina está ali tão reservada,
tão silente e pálida;
a alma, como um anjo delicada,
está turva e abatida...
Tão suave, tão fiel ela era,
devotada ao céu,
da inocência imagem pura,
que a Graça teceu.
Aí chega um nobre senhor
sobre portentoso cavalo,
nos olhos um mar de amor
e flechas de fogo.
Feriu-a no peito tão fundo;
mas ele tem de partir,
em gritos de guerra bramando:
nada o pode impedir".
Mas Marx também encontra outro tom:
"Os mundos uivam o próprio canto fúnebre.
e nós somos macacos de um Deus frio".
Após
essa amostra, surge a pergunta se a poesia alemã perdeu muito com a
decisão de Marx, ainda que sob profusos sofrimentos da alma, de abdicar
da carreira poética. Em todo caso, o pai, um advogado bem-sucedido,
exprime-se assim: "Lamentaria ver você como um poetinha." Sugere,
entretanto, que o filho escreva uma "ode em grande estilo" sobre a
Batalha de Waterloo. Os pósteros, porém, dependendo de se enxergar no
marxismo a salvação ou a perdição do mundo, sentem-se aliviados ou
angustiados por Marx ter desistido, após longo tempo, de cavalgar o
Pégaso.
Trier, Alemanha |
Após
dois semestres, Marx continua seus estudos em Berlim, mas também lá se
evidencia que ele não é nenhum estudante modelar. Seu pai tem razão em
se queixar. "Desordem, divagação apática por todas as áreas do saber,
meditação indolente junto da sedenta lamparina de azeite; embrutecimento
erudito em robe de chambre em vez de embrutecimento junto da caneca de
cerveja, insociabilidade repugnante com menosprezo total pelas boas
maneiras", tudo isso ele censura no filho. Marx assiste apenas a poucas
aulas, e mesmo essas antes do âmbito da Filosofia e da História do que
do âmbito do Direito. Por semestres inteiros quase não frequenta a
universidade. De qualquer modo ele se forma aos 23 anos com um trabalho
sobre um tema filosófico, em Jena, sem nem sequer ter estado lá por uma
única hora. Mas esses acontecimentos não o impressionam. Para ele mais
importante é pertencer ao "Clube do Doutor", uma agremiação de jovens
discípulos de Hegel, e lá discutir dia e noite. Seus amigos atestam que
ele é um "arsenal de pensamentos", uma "alma-danada de ideias". Ao mesmo
tempo escreve "um novo sistema metafísico fundamental". Naturalmente,
quer se tornar professor; mas desiste quando vê que seus amigos, os
hegelianos de esquerda, quase sem exceção naufragavam no governo
reacionário.
Em
vez disso, Marx torna-se redator no Jornal Renano, de tendência
liberal, publicado em Colônia. Essa atividade força-o a ocupar-se com
problemas concretos de natureza política e econômica. Ele redige a folha
em um espírito intrépido e liberal. Porém, recusa rudemente o
comunismo, do qual mais tarde deveria tornar-se o cabeça. Após breve
tempo, contudo, tem de suspender sua atividade de editor sob pressão
policial. O jornal – "a meretriz do Reno", como o rei prussiano havia
por bem chamá-lo – deixa de ser publicado.
Depois
de ter-se casado com sua noiva de longos anos, Marx dirigi-se para
Paris, onde edita juntamente com seu amigo Arnold Ruge os Anuários
Franco-Germânicos. Por um tempo vive juntamente com a família Ruge em
uma "comunidade comunista", que porém logo se desagregaria devido à
incompatibilidade de gênios. Em Paris, Marx entra em contato com Heine e
com socialistas franceses. Mas também sua permanência nesta cidade não é
muito longa. A pedido do governo prussiano é expulso da França e
estabelece-se provisoriamente em Bruxelas, onde funda o primeiro partido
comunista do mundo (com 17 membros). Marx vai por pouco tempo para
Londres, retornando então durante a Revolução de 1848 – por ocasião da
qual escreve O Manifesto Comunista –, à França e à Alemanha a fim de
promover seus planos revolucionários. Em Colônia, funda o Novo Jornal
Renano. Mas é novamente expulso e vive até seus últimos dias, com apenas
algumas interrupções para breves viagens ao continente, em Londres.
Porém, todos esses anos em Paris e Bruxelas são cheios de contendas
amargas e não particularmente tolerantes conduzidas contra
revolucionários dissidentes; há também um trabalho intensivo em
manuscritos filosóficos e econômicos, os quais em grande parte só serão
publicados após sua morte.
Em
Londres, Marx vive em situações muito limitadas com uma família que se
multiplica com rapidez. Frequentemente padecem necessidades. A fundação
de um jornal fracassa. Marx tem de levar a vida em grande parte por meio
de donativos, sobretudo de seu amigo Friedrich Engels. As condições de
moradia são na maioria das vezes catastróficas; ocasionalmente, até a
mobília é penhorada. Ocorre inclusive de Marx nem sequer poder sair de
casa por sua roupa ter sido penhorada. As doenças perseguem a família;
apenas algumas das crianças sobrevivem aos primeiros anos. Pressionado
por dívidas, Marx pensa em declarar bancarrota; apenas o fiel amigo
Engels consegue impedir esse ato extremo. A senhora Jenny desespera-se
frequentemente e deseja para si e suas crianças antes a morte do que
viver uma vida tão miserável. Acresce que Marx se envolve em um caso
amoroso com a empregada doméstica, que não fica sem consequências e
prejudica sensivelmente o clima doméstico já afetado pela miséria
financeira. Continuam também as desavenças com os correligionários.
Apesar de tudo, Marx trabalha ferreamente, ainda que interrompido por períodos de inatividade causada por esgotamento, em sua obra-prima, O Capital. Ele consegue enfim publicar o primeiro volume; como quase não aparecem comentários, ele mesmo escreve críticas positivas e negativas. Em 1883 porém, antes que a obra de três volumes esteja completa, Marx morre aos 65 anos.
Apesar de tudo, Marx trabalha ferreamente, ainda que interrompido por períodos de inatividade causada por esgotamento, em sua obra-prima, O Capital. Ele consegue enfim publicar o primeiro volume; como quase não aparecem comentários, ele mesmo escreve críticas positivas e negativas. Em 1883 porém, antes que a obra de três volumes esteja completa, Marx morre aos 65 anos.
O
aspecto e a personalidade de Marx são descritos por um amigo russo de
modo bem intuitivo, ainda que sua magnífica barba seja esquecida: "Ele
representa o tipo de homem constituído por energia, força de vontade e
convicção inflexível, um tipo que também segundo a aparência era
extremamente estranho. Uma grossa juba negra sobre a cabeça, as mãos
cobertas pelos pêlos, o paletó abotoado totalmente, possuía contudo o
aspecto de um homem que tem o direito e o poder de atrair a atenção, por
mais esquisitos que parecessem seu aspecto e seu comportamento. Seus
movimentos eram desastrados, porém ousados e altivos; suas maneiras iam
frontalmente de encontro a toda forma de sociabilidade. Mas eram
orgulhosas, com um laivo de desprezo, e sua voz aguda, que suava como
metal, combinava-se estranhamente com os juízos radicais que fazia sobre
homens e coisas. Não falava senão em palavras imperativas, intolerantes
contra toda resistência, que aliás eram ainda intensificadas por um tom
que me tocava quase dolorosamente e que impregnava tudo o que falava.
Esse tom expressava a firme convicção de sua missão de dominar os
espíritos e de prescrever-lhes leis. Diante de mim estava a encarnação
de um ditador democrático, assim como se fosse em momentos de fantasia."
Desde
o início de sua atividade filosófica, Marx insere-se na maior disputa
espiritual de seu tempo, determinada pela vultosa figura de Hegel, cujo
pensamento ele chama de "a filosofia atual do mundo". Inicialmente, Marx
dedica-se a Hegel com paixão para, depois, distanciar-se dele com tanto
maior aspereza.
Sua
crítica inicia-se pela concepção da história de Hegel. Para este, a
história não é uma mera sequência casual de acontecimentos, mas um
suceder racional que se desenvolve segundo um princípio imanente, ou
seja, uma dialética interna. O decisivo nisso é que o verdadeiro sujeito
da história não são os homens que agem. Na história antes dominaria um
espírito que tudo abrange, ao qual Hegel designa como "espírito do
mundo" ou "espírito absoluto" ou mesmo "Deus". Esse, o Deus que
vem-a-ser, realiza no curso da história sua autoconsciência. Ele chega,
por meio dos diferentes momentos do processo histórico, a si mesmo.
Hegel
era da opinião de que em seu tempo e em seu próprio sistema o espírito
absoluto teria, após todos seus descaminhos através da história,
finalmente alcançado seu objetivo: a perfeita autoconsciência. "O
espírito universal chegou ora até aqui. A última filosofia é o resultado
de todas as anteriores; nada está perdido, todos os princípios foram
preservados. Esta idéia concreta é o resultado dos esforços do espírito
por quase 2500 anos, seu fervoroso trabalho, de reconhecer-se."
Portanto, após o surgimento da filosofia hegeliana, não pode haver mais
nada realmente inconcebível. Esse é o sentido da conhecida frase do
Prefácio à Filosofia do Direito: "O que é racional é real; e o que é
real é racional." Razão e realidade chegaram portanto, segundo Hegel,
finalmente à adequação uma com a outra; elas foram verdadeiramente
conciliadas. O espírito absoluto compreendeu a si mesmo como a realidade
total e a realidade total como manifestação sua.
Marx e Hegel |
Quando
Hegel afirma que a realidade estaria conciliada com a razão, ele não
poderia, segundo Marx, ter em vista a realidade concreta. Em Hegel, tudo
se passa no âmbito do mero pensamento. Mesmo a realidade sobre a qual
ele fala, é a mera realidade pensada. Para Marx, porém, a realidade
factual mostra-se contraditória, inconcebível e portanto não conciliada
com a razão. Todo o empenho filosófico de Hegel fracassa porque ele não é
capaz de incluir essa realidade efetiva em seu pensar, por mais
abrangente que esse seja. "O mundo é portanto um mundo dilacerado, que
se opõe a uma filosofia fechada em sua própria totalidade."
Para
Marx, portanto, a realidade concreta é a realidade do homem. "As
pressuposições com as quais iniciamos são os indivíduos reais." A
filosofia como Marx a postula – em contraposição a Hegel e em
concordância com Feuerbach – é uma filosofia da existência humana. "A
raiz do homem é o próprio homem." Marx denomina sua filosofia por isso
mesmo de "humanismo real". O real primeiro e originário para o homem é o
próprio homem. É dele, portanto, que o novo pensar também tem de
partir.
Mas
o que é o homem? O significativo aqui é que Marx não considera o homem,
como o faz Hegel, essencialmente a partir de sua faculdade de conhecer.
Ao contrário, trata-se decisivamente da práxis humana, da ação
concreta. "Na práxis, o homem tem de comprovar a verdade, isto é, a
realidade, o poder e a mundanalidade de seu pensamento." "Parte-se do
homem real que age."
É
da essência da práxis humana que ela se realize na relação com o outro.
Se Feuerbach queria conceber o homem como indivíduo isolado, Marx
ressalta com toda clareza: o homem vive desde sempre em uma sociedade
que o supera. "O indivíduo é o ser social." "O homem, isto é o mundo do
homem: Estado, sociedade." Essa natureza social constitui para Marx o
ponto de partida para toda reflexão subsequente. Assim deve-se entender a
muito discutida frase: "Não é a consciência do homem que determina seu
ser, mas é seu ser social que determina sua consciência."
Mas
por que meio se constitui a sociedade humana? Marx responde:
basicamente, não por meio da consciência comum, mas por meio do trabalho
comum. Pois o homem é originariamente um ser econômico. As relações
econômicas e particularmente as forças produtivas a elas subjacentes são
a base (ou a "infra-estrutura") de sua existência. Apenas na medida em
que essas relações econômicas se modificam, também se desenvolvem os
modos da consciência, que representam a "superestrutura ideológica".
Desta superestrutura fazem parte o Estado, as leis, as ideias, a moral, a
arte, a religião e similares. Na base econômica reencontram-se também
aquelas leis do desenvolvimento histórico, como as que Hegel atribuiu ao
espírito. As relações econômicas desdobram-se de modo dialético, mais
precisamente, no conflito de classes. Por isso, para Marx, a história é
principalmente a história das lutas de classes.
Até
aqui tudo poderia parecer como uma das muitas teorias antropológicas e
histórico-filosóficas, em que a história da filosofia é bastante rica,
isto é, até interessante mas realmente apenas mais uma interpretação
entre muitas outras. Por que, então, o que Marx diz é tão estimulante?
Como se explica que seu pensamento tenha determinado tão amplamente o
tempo seguinte? Isso reside obviamente em que Marx não se detém no
âmbito do pensamento puro, mas que se põe a trabalhar decisivamente na
transformação da realidade: "Os filósofos têm apenas interpretado
diversamente o mundo; trata-se de modificá-lo."
Nessa
intenção, Marx empreende uma crítica de seu tempo. Observa que em seus
dias a verdadeira essência do homem, sua liberdade e independência, "a
atividade livre e consciente", não se podem fazer valer. Por toda parte o
homem é tirado a si mesmo. Por toda parte perdeu as autênticas
possibilidades humanas de existência. Esse é o sentido daquilo que Marx
chama de "auto-alienação" do homem. Ela significa uma permanente
"depreciação do mundo do homem".
Também
aqui Marx recorre às relações econômicas. A auto-alienação do homem tem
sua raiz em uma alienação do trabalhador do produto de seu trabalho:
este não pertence àquele para seu usufruto, mas ao empregador. O produto
do trabalho torna-se uma "mercadoria", isto é, uma coisa estranha ou
alheia ao trabalhador, que o coloca em posição de dependência, porque
ele precisa compará-la para poder subsistir. "O objeto que o trabalho
produz, seu produto, apresenta-se a ele como uma essência estranha, como
um poder independente do produtor." Da mesma forma também o trabalho se
torna "trabalho alienado": não a ele imposto de sua autoconservação; o
trabalho torna-se, em sentido próprio, "trabalho forçado". Esse
desenvolvimento atinge sua culminância no capitalismo, no qual o capital
assume a função de um poder separado dos homens.
A
alienação do produto do trabalho conduz também a uma "alienação do
homem". Isso não vale apenas para a "luta de inimigos entre capitalista e
trabalhador". As relações interpessoais em geral perdem cada vez mais a
sua imediação. Elas são mediadas pelas mercadorias e pelo dinheiro, "a
meretriz universal". Enfim, os próprios proletários assumem caráter de
mercadoria; sua força de trabalho é comercializada no mercado de
trabalho, no qual se encontra à mercê do arbítrio dos compradores. Seu
"mundo interior" torna-se "cada vez mais pobre"; sua "destinação humana e
sua dignidade" perdem-se cada vez mais. O trabalhador é "o homem
extraviado de si mesmo"; sua existência é "a perda total do homem"; sua
essência é uma "essência desumanizada".
Mas,
no ápice desse desenvolvimento – o que Marx crê poder demonstrar –, tem
de sobrevir a guinada. Ela se torna possível desde que o proletariado
se conscientize de sua alienação. Ele se compreende então como "a
miséria consciente de sua miséria espiritual e física, a desumanização
que, consciente de sua desumanização, supera por isso a si mesma".
Concretamente, segundo os prognósticos de Marx, chega-se a uma
concentração do capital nas mãos de poucos, a um crescente desemprego e
empobrecimento das massas. Com isso, porém, o capital torna-se seu
próprio coveiro. Pois a essa concentração de capital devem seguir-se,
segundo "leis infalíveis" – com necessidade histórica, cientificamente
reconhecida e dialética –, a subversão e a revolução. A missão dessa
revolução é "transformar o homem em homem", para que "o homem seja o ser
supremo para o homem". Trata-se de "derrubar todas as relações em que o
homem é um ser degradado, escravizado, abandonado e desprezado".
Importa realizar "o verdadeiro reino da liberdade", desenfronhar o homem
em "toda a riqueza de sua essência" e, com isso, superar
definitivamente a alienação.
Marx
considera tudo isso tarefa do movimento comunista. É chegado o tempo do
"comunismo como superação positiva da propriedade privada enquanto
auto-alienação do homem e por isso como apropriação real da essência
humana por meio de e para o homem; por isso, como regresso – perfeito,
consciente e dentro da riqueza total do desenvolvimento até aqui –, do
homem para si mesmo enquanto homem social, ou seja, humano. Esse
comunismo é a verdadeira dissolução do antagonismo entre o homem e a
natureza e entre o homem e o homem. A verdadeira solução do conflito
entre liberdade e necessidade. Ele é o enigma decifrado da história, a
verdadeira realização da essência do homem". Com o comunismo,
"encerra-se a pré-história da sociedade humana" e inicia-se a sociedade
"realmente humana". Mas sobre como essa sociedade comunista deve ser,
Marx não nos dá nenhuma informação adicional.
JEAN-PAUL SARTRE
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JEAN-PAUL SARTRE
Filósofo, romancista e dramaturgo francês (21/6/1905-15/4/1980). Um dos maiores nomes da filosofia existencialista do século XX, que tem como instrumento de conhecimento a existência do ser no mundo. Nasce em Paris e estuda na Escola Normal Superior, onde conhece a escritora Simone de Beauvoir em 1924, com quem estabelece uma relação afetiva até sua morte. De 1931 a 1945 leciona filosofia em várias escolas secundárias. Recrutado em 1939 para a II Guerra Mundial, acaba prisioneiro dos alemães entre 1940 e 1941. Depois de libertado, volta a lecionar e se integra à Resistência Francesa, de oposição ao nazismo, fundando o movimento Socialismo e Liberdade. Finda a guerra, aproxima-se dos comunistas. Em 1945 cria com outros intelectuais a revista Les Temps Modernes, que exerce grande influência sobre a intelectualidade francesa. É o primeiro diretor do hoje tradicional jornal esquerdista Libération. Em 1956 rompe com os comunistas após a intervenção das tropas soviéticas na Hungria. Escreve peças de teatro, como Entre Quatro Paredes (1944) e O Diabo e o Bom Deus (1951), e romances, como A Idade da Razão (1945) e Com a Morte na Alma (1949). Entre seus escritos filosóficos, estão os livros O Ser e o Nada (1943) e Crítica da Razão Dialética (1960). Morre em Paris.
BIBLIOGRAFIA
DURANT, Will, História da Filosofia - A Vida e as Ideias dos Grandes Filósofos, São Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.
FRANCA S. J., Padre Leonel, Noções de História da Filosofia.
PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís, História da Filosofia, Edições Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição, 1974.
VERGEZ, André e HUISMAN, Denis, História da Filosofia Ilustrada pelos Textos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.
Coleção Os Pensadores, Os Pré-socráticos, Abril Cultural, São Paulo, 1.ª edição, vol.I, agosto 1973.
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