CRISTIANISMO E GNOSTICISMO: UMA AVALIAÇÃO DE SUA INCOMPATIBILIDADE AO ENSEJO
DA PUBLICAÇÃO DO “EVANGELHO DE JUDAS”
RESUMO
Com a publicação do chamado
Evangelho de Judas, novamente é levantada a questão do relacionamento entre o gnosticismo
e o cristianismo nos primeiros séculos da era cristã. O gnosticismo pode ser
considerado um ramo dissidente do cristianismo? Os evangelhos gnósticos devem
ser considerados documentos do cristianismo, tais como os canônicos? O
Evangelho de Judas traz alguma contribuição para o estudo das raízes do
cristianismo? São questões que o autor responde pela negativa, demonstrando que
as premissas do gnosticismo são incompatíveis com as do cristianismo e que, por
essa razão, não se pode chamar o gnosticismo de cristão, qualquer que seja a
sua modalidade. Além de fazer uma comparação das principais crenças do
gnosticismo com as do cristianismo bíblico-histórico, o autor apresenta uma
breve análise do conteúdo do Evangelho de Judas para situá-lo no contexto
literário dos escritos gnósticos e deixar evidente a sua incompatibilidade com
a literatura canônica do Novo Testamento, especialmente com a dos evangelhos.
Para o autor, a descoberta e publicação do Evangelho de Judas podem contribuir
para o estudo do gnosticismo em si, em suas diversas modalidades, mas não para
o estudo do cristianismo em suas raízes históricas.
PALAVRAS-CHAVE
Gnosticismo; Cristianismo;
Evangelho de Judas; Evangelhos canônicos; Jesus Cristo; Apóstolos.
INTRODUÇÃO
No dia 6 de abril de 2006, a National
Geographic Society (Sociedade
Geográfica Nacional), com sede em Washington (EUA), convocou a imprensa para
anunciar o restauro e a tradução para o inglês de um manuscrito que se supõe
ser uma cópia em copta do original grego do Evangelho de Judas, do 2º século.
Esse documento, supostamente escrito no 3º ou 4º século na forma de códice,
teria ficado escondido por 1.700 anos até ser descoberto numa caverna de El Minya,
no deserto do
Egito, em 1978.
Durante muitos anos desde a sua descoberta, ficou em mãos de negociantes
de antiguidades até ser adquirido por Frieda Nussberger-Tchacos, uma
comerciante suíça, em 2000.
Dessa pessoa o documento herdou a sua identificação como
Códice Tchacos.
Antes já havia sido levado para
os Estados Unidos, onde, guardado no cofre de um banco por dezesseis anos,
sofreu séria deterioração. O documento foi depois transferido para a Fundação Mecenas
para Arte Antiga, em Basiléia (Suíça), em 2001, para ser restaurado e traduzido
pelo coptólogo Rodolphe Kasser e sua equipe. O projeto de restauração,
autenticação e tradução contou com o patrocínio da National Geographic Society,
que o apresentou ao público às vésperas da páscoa de 2006.
Vários testes científicos
comprovaram a antiguidade e autenticidade do documento. Por autenticidade se
quer dizer que ele não foi forjado ou falsificado. Acredita-se que seja
realmente um valioso achado arqueológico, talvez o mais importante depois da
descoberta dos papiros de Nag Hammadi (também no Egito), em 1945, e dos manuscritos
do Mar Morto, em 1947.
O códice contém não apenas o
Evangelho de Judas, mas também outros escritos, como um documento chamado “Tiago”
(também conhecido como O Primeiro Apocalipse de Tiago), a Carta de Pedro a
Filipe e fragmentos de um texto que os estudiosos estão chamando de “Livro de
Alógenes” (ou do Estranho). A parte do documento que foi traduzida, referente
ao Evangelho de Judas, é composta de 26 páginas, de um total de 62 do
documento.
1. A IMPORTÂNCIA DA DESCOBERTA
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Irineu |
Eliminando-se o apelo sensacionalista
que a mídia faz em casos como este, o que chama a atenção nessa descoberta é
que ela pode estabelecer uma ligação
direta entre o
documento e o seu
suposto original em
grego, do 2º
século, ao qual Irineu (bispo de Lião, na Gália Romana) fez referência
em sua obra Contra as Heresias, por volta de 180 a.D. Esta seria, então, a
primeira cópia encontrada desse evangelho, ainda que em outra língua. A
descoberta pode comprovar uma versão que circulava no 2º e no 3º séculos, entre
os gnósticos, sobre Jesus e Judas, inteiramente conflitante com o que
encontramos nos evangelhos canônicos, escritos no 1º século (período
apostólico), e em toda a tradição antiga.
Os quatro evangelistas bíblicos
se referem a Judas Iscariotes como um traidor (Mt 10.4; Mc 3.19; Lc 6.16 e Jo
6.71). João é mais enfático e o chama de ladrão e diabo (Jo 6.7-71; 12.4-6).
Ele diz que foi o diabo quem colocou no coração de Judas que traísse a Jesus e
que, na ceia, depois de receber o pão molhado, Satanás entrou nele (Jo 13.2,21-27).
Lucas também menciona que Satanás entrou nele (Lc 22.3). Conforme Mateus e
Marcos, Jesus disse que a traição seria necessária, mas teria sido melhor para
o traidor nem haver nascido, tal a gravidade desse ato (Mt 26.24; Mc 14.21).
João interpreta a traição como cumprimento do Salmo 41.9 quando diz: “... é,
antes, para que se cumpra a Escritura: Aquele que come do meu pão levantou
contra mim o seu calcanhar” (Jo 13.18). Lucas registra que Pedro, por ocasião
da escolha do substituto de Judas, disse que ele se transviou do apostolado
“indo para o seu próprio lugar” e que isto aconteceu em cumprimento das
Escrituras do Antigo Testamento (At 1.16,25). Mateus afirma que Judas, tocado
de remorso por ter traído sangue inocente, devolveu o dinheiro da recompensa e
foi enforcar-se (Mt 27.3-5). Lucas também registra um fim trágico para Judas
(At 1.18).
Por outro lado, na versão do
Evangelho de Judas, o Iscariotes é o único dos apóstolos que compreendeu Jesus,
tendo-se sobressaído sobre os demais. Foi ele quem recebeu revelações
especiais, não dadas aos outros. O fato de entregar Jesus nas mãos das
autoridades não foi um gesto de traição, mas de ajuda, para que o seu mestre
pudesse se libertar da sua humanidade, isto é, do seu corpo material, e entrar
numa dimensão espiritual.
Até a segunda metade do século
passado, o gnosticismo do 2º e 3º séculos a.D. praticamente só era conhecido
pelo combate que lhe tinha sido feito por seus críticos. Tanto Irineu
(130-200), em "Contra as Heresias", quanto Tertuliano (160-225), em "Contra
Marcião", tiveram que confrontar os seus ensinamentos. Com a descoberta dos
manuscritos de Nag Hammadi – uma pequena biblioteca de conteúdo eminentemente
gnóstico, em 1945, o estudo das crenças e ensinamentos gnósticos ganhou
grande impulso. Dentre esses documentos estavam o Evangelho de Tomé, o
Evangelho de Filipe, o Evangelho dos Egípcios e o Evangelho da Verdade. O
Evangelho de Judas vem juntar-se a esse grupo de escritos, que se caracterizam
não apenas por “preencher” supostas lacunas nas informações dos canônicos
(como, por exemplo, sobre a infância de Jesus), mas por apresentar versões
diferentes dos fatos e pessoas retratados nesses evangelhos.
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Irineu de Lyon |
A versão sobre Judas encontrada
nesse documento não é inédita. Irineu combateu, nos seus dias, uma seita
denominada “cainita”, cuja característica era reinterpretar o papel de
personagens bíblicos negativos como Caim (que empresta o seu nome à seita),
atribuindo-lhes funções importantes, de acordo com a sua visão gnóstica. Para
essa seita, Caim foi um herói e não um vilão, porque se voltou contra o deus
criador deste mundo mau e colocou-se ao lado do deus verdadeiro, aquele que de
fato deve ser adorado. Contrariar o deus criador do mundo, como fez Caim, seria
uma forma de reconhecer as prerrogativas do deus verdadeiro.
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Coré |
Nesse mesmo grupo
eram colocados outros que também se levantaram contra o criador, como Coré e
seus aliados, os homens de Sodoma e Gomorra e o próprio Judas Iscariotes. Em
sua obra Contra as Heresias, Irineu assim se expressa:
Outros ainda dizem
que Caim deriva da Potência Suprema e que Esaú, Coré, os sodomitas e
semelhantes eram todos da mesma raça dela; motivo pelo qual, mesmo combatidos pelo
Criador, nenhum deles sofreu algum dano, porque Sofia atraiu a si tudo o que
lhe era próprio. Dizem que Judas, o traidor, sabia exatamente todas estas
coisas e por ser o único dos discípulos que conhecia a verdade, cumpriu o
mistério da traição e que por meio dele foram destruídas todas as coisas
celestes e terrestres. E apresentam, à confirmação, um escrito produzido por
eles, que intitulam Evangelho de Judas.
A descoberta não vai muito além
daquilo que já se sabia com respeito a essa seita do 2º século. Como o
documento é do 3º ou do 4º século, se tão remota assim for a sua origem,
nenhuma informação histórica acrescentará para o estudo das correntes
antagônicas do cristianismo no 1º século. Não parece razoável o entusiasmo de
alguns críticos se eles, de fato, procuram conhecer, através deste documento, o
cristianismo nos seus primórdios, nas suas raízes. Para isto, ainda terão que
se contentar com as informações contidas nos evangelhos canônicos como as
únicas fontes confiáveis do cristianismo apostólico.
2. COMO ALGUNS ESTUDIOSOS VEEM A DESCOBERTA
A National Geographic Society
convidou quatro especialistas em literatura gnóstica para dar o seu ponto de
vista sobre a descoberta: Marvin Meyer, professor da Universidade Chapman, na
Califórnia (EUA), que ajudou a traduzir o documento; Barth Ehrman, da
Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill (EUA); Elaine Pagels, da
Universidade de Princeton, em Nova Jersey (EUA), e Craig Evans, da Universidade
de Acádia, Nova Escócia (Canadá).
Os três primeiros, de orientação
heterodoxa, defendem a ideia de que, nos seus primórdios, o cristianismo era
uma mistura de diferentes concepções do mundo e de Deus e não um “bloco
monolítico” como veio a ser, depois que um dos seus segmentos se tornou
hegemônico. Para Barth Ehrman e Elaine Pagels, os conceitos de ortodoxia e
heresia foram definidos pela ótica do grupo vencedor, em disputas que foram
mais políticas do que religiosas. Como a sua abordagem da religião e da
história da igreja é meramente sociológica, esses autores entendem que o
Evangelho de Judas é mais uma prova do suposto pluralismo cristão que vicejava
nos primeiros séculos. Craig Evans, considerado de linha ortodoxa, acredita que
esse evangelho não pode ser comparado com os canônicos em confiabilidade, mas
ainda assim vê aspectos positivos em seu conteúdo. Estes são alguns dos
comentários dos estudiosos consultados:
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Marvin Meyer |
2.1 Marvin Meyer
Para Meyer, o Evangelho de Judas
é um belo exemplo de texto gnóstico setiano. Ele o classifica nesse grupo pelo destaque
que o documento dá a Sete, o filho de Adão e Eva, como fazem outros documentos
gnósticos dessa escola. Com Sete foi possível recomeçar a história religiosa
que teve um começo trágico com a morte de Abel e o exílio de Caim. De acordo
com Meyer, esses gnósticos se consideravam descendentes de Sete, pois os seres
humanos que tinham conhecimento de Deus (gnose) viriam, de acordo com essa
seita, dessa linhagem. Relacionavam com Sete o próprio Jesus, como também faz o
Evangelho de Judas. O espírito e o poder de Sete teriam se encarnado na figura
de Jesus.
Meyer acredita que parte do
conflito que houve entre os gnósticos e a igreja primitiva (que ele chama de
“ortodoxia”) se deveu ao fato de eles se recusarem a ouvir os bispos ou os
sacerdotes, porque os gnósticos não precisavam de intermediários. De acordo com
a sua crença, a voz de Deus estava dentro de cada um.
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Barth Ehrman |
2.2 Barth Ehrman
Ehrman acredita que o evangelho
pertence à seita dos cainitas, que Irineu combateu. De acordo com
essa seita, Jesus
teria transmitido ensinamentos
secretos aos discípulos e a Judas em particular. Irineu, ao combater e
proibir a leitura desse evangelho, teria feito com que ele se perdesse para ser
descoberto só agora.
Ehrman vê
aspectos importantes nessa
descoberta: possibilitar que
os estudiosos conheçam certas
variedades do gnosticismo existente nos séculos 2º e 3º da era cristã e, ao
mesmo tempo, conhecer a história de Jesus do ponto de vista do escritor desse
evangelho. Segundo ele, neste segundo ponto está o maior valor da descoberta. Ainda
segundo Ehrman, a descoberta
pode ter um impacto no modo como as pessoas compreendem o cristianismo hoje. Ele crê que havia
diferentes versões da verdade no início, assim como há hoje, e que todas devem
ser respeitadas. O evangelho nos ensinaria a ser mais tolerantes com as
diferentes formas de cristianismo que existem atualmente, todas verdadeiras, porque,
segundo ele, ninguém tem a verdade toda. Estas são as suas palavras:
O Evangelho
de Judas nos mostra uma compreensão bem diferente da verdade, uma compreensão
bem diferente da religião cristã, em relação à que se tornou dominante. A razão por que é importante compreender esta
diversidade no início do cristianismo é porque ainda existe diversidade hoje. E
seria um erro achar que o cristianismo é apenas uma coisa hoje se, de fato, o
cristianismo é uma ampla gama de coisas. A minha visão é que, uma vez que
alguém compreende a diversidade desta religião que remonta a seus primeiros
séculos, esta pessoa se torna mais tolerante em relação a essa diversidade. Em
vez de insistir que você tem um pedaço da verdade, faz com que você perceba
que, de fato, existem muitas versões da verdade que merecem nosso respeito e
admiração. Então, em vez de insistir que você está certo e todo mundo está
errado, em vez disso é preciso compreender que o cristianismo é e sempre foi um
movimento amplamente diverso.
|
Elaine Pagels |
2.3 Elaine Pagels
Pagels vê como o aspecto mais
fascinante do Evangelho de Judas a noção de que Jesus e Judas agiam em mútuo
acordo e o fato de Judas ter uma estrela particular, um destino especial e uma
compreensão espiritual superior à dos demais discípulos. Ela não entra no
mérito se o que o evangelho diz é histórico ou não, mas acha interessante
conhecer uma nova perspectiva a respeito de personagens bíblicos como Judas,
Maria Madalena, Tomé e até Pedro e Paulo, à luz desses “evangelhos secretos”.
Ela acha improvável que esse evangelho contenha as palavras reais de Jesus e de
Judas, mas levanta a mesma dúvida com respeito aos evangelhos do Novo Testamento
e prefere descartar essa discussão. Pagels entende que “o que chamamos de
textos gnósticos são de fato um apanhado bem variado de fontes dos primórdios
do cristianismo” e diz que “existem mais de 55 textos e evangelhos conhecidos
desses ‘primórdios’ que ficaram fora do
Novo Testamento”, e
que estes guardam
muitas diferenças entre si.
Ela atribui a Irineu a unidade do
cristianismo posterior, quando, no final do 2º século, preocupado com a divisão
dos cristãos em vários grupos e com tradições conflitantes, ele “resolveu e
declarou que apenas quatro dos muitos evangelhos disponíveis seriam os
verdadeiros evangelhos, os autênticos”.
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Craig Evans |
Também para Evans o elemento mais
interessante desse evangelho é o fato de Jesus ter pedido a Judas que o traísse
para ele poder completar a sua missão. Ele destaca que os evangelhos canônicos
não dizem por que Judas fez isso. Teria ele agido nos bastidores, como outros
personagens dos evangelhos canônicos agiram? Ele menciona dois desses fatos: o
de se trazer um animal para Jesus entrar em Jerusalém e a preparação do lugar onde
comeriam a Páscoa. Não se diz quem fez isso e quais foram os detalhes. Apenas
que cumpriam uma ordem de Jesus. Evans pergunta: Seria possível que Judas
também estivesse agindo nos bastidores, obedecendo a uma ordem ou pedido de Jesus,
mas como a coisa acabou mal, com a sua prisão e morte, então esse ato passou a
ser lembrado como uma traição?
Na sua opinião, essa é uma
questão muito interessante, a mais importante desse evangelho, e que só ele
abre para nós. Evans pergunta:
Será que Jesus
tinha combinado alguma coisa com Judas sem que os outros discípulos soubessem, mas
algo deu muito errado e, quando Jesus foi preso, os discípulos só puderam
interpretar o fato como uma traição, pois na verdade nunca souberam por que
Judas fez o que fez?
E conclui: no Evangelho de Judas
pode ser que haja essa explicação. Embora ache interessante essa suposta
informação do evangelho, o que não deixa de ser estranho para
um estudioso considerado ortodoxo,
Evans coloca a tradição dos
evangelhos canônicos como
sendo mais fiel e
à qual se deve dar
preferência por ser
mais antiga e
remontar ao período de
vida de pessoas
que conviveram com
Jesus e o
ouviram. Lembra que houve um
controle no corpo dessas tradições e na sua preservação na comunidade cristã,
naquela primeira geração. Evangelhos posteriores como o de Tomé, de Pedro e de
Maria, que surgiram nas gerações seguintes, não refletem o pensamento dos
primeiros cristãos e por isso não têm o mesmo valor. Ele diz:
É por isso
que eu penso que sempre é necessário dar prioridade aos evangelhos do Novo
Testamento, se quisermos entender aquele que é conhecido como o verdadeiro e
histórico Jesus de Nazaré.
Evans também cita Irineu, que, no
final do 2º século, reconhecia o valor dos quatro evangelhos do Novo
Testamento, sabendo que eram mais antigos e, por isso, só eles deveriam ser
aceitos. Ao contrário da opinião de Pagels, e com mais acerto, ele argumenta
que Irineu não estabeleceu isso por conta própria, mas que foram os primeiros
cristãos que o fizeram. Aqueles quatro foram os evangelhos que esses primeiros
cristãos escolheram para ler e copiar e aos quais deram valor.
Evans finaliza com o argumento de
que o Jesus dos evangelhos canônicos é consistente com o judaísmo conhecido
antes de 70 a.D. Neles Jesus não aparece falando de éons, de sete camadas de
céus, de mistérios gnósticos especiais ou coisas dessa natureza. Ele diz:
Temos um Jesus consistente com todas
as fontes que conhecemos, tais como Josefo, os pergaminhos do Mar Morto e
outros textos da sinagoga sobre como era o judaísmo antes do ano de 70. Mas,
quando consultamos evangelhos como o de Judas, de Tomé ou de Maria, deparamos
com ideias novas e bem posteriores. Elas não representam o judaísmo pré-70, da
maneira como o vemos em São Mateus, São Marcos e São Lucas. São diferentes, são
estranhos, vieram de algum outro lugar. Vêm de um lugar posterior, e é isso que
chamamos, que os padres [sic] da igreja chamam de “gnosticismo”.
3. CONHECENDO O GNOSTICISMO
Definir o gnosticismo não é
tarefa fácil. Isso é reconhecido pelos próprios gnósticos atuais. É que há
tantas variantes dessa filosofia que se torna mais fácil ir do particular para
o geral, isto é, estudar um texto gnóstico para, através dele, conhecer o tipo
de gnosticismo que é encontrado ali. Um autor gnóstico diz que na verdade,
“gnosticismo”, assim como “protestantismo”, é uma palavra que perdeu grande
parte do seu significado. Assim como deveríamos saber se um escritor
“protestante” é calvinista, luterano, anabatista ou qualquer outro para
avaliá-lo devidamente, também o termo “gnóstico” deveria ser identificado.
Nesse ponto talvez resida o maior
valor dessa descoberta, se não o único. O Evangelho de Judas nos possibilita
conhecer mais alguns aspectos do gnosticismo. Irineu menciona vários sistemas
gnósticos, como os postulados por Marcos, Valentim, Simão,
o mago, Menandro, Saturnino e
Basílides, Carpócrates, Cerinto e
Marcião. Também descreve a crença dos ebionitas e dos nicolaítas, bem como as
de outras seitas menos influentes como as dos barbelonitas, dos ofitas e dos
setianos, e finalmente a dos cainitas. É na descrição dessa seita menor, a dos
cainitas, que ele menciona o Evangelho de Judas, como foi mencionado
anteriormente.
Embora este movimento só tenha se
tornado proeminente a partir do 2º século, devido à sua associação com o
cristianismo, geralmente se acredita que a sua origem seja mais antiga, não só
recuando aos primeiros dias da igreja cristã, mas remontando até mesmo às
tradições mais antigas da Babilônia e da Pérsia. Por isso, ele não deve ser
visto apenas como uma dissidência ou ramificação do cristianismo, mas como um
movimento de raízes próprias, pré-cristãs. Quando surgiu o cristianismo, certos
grupos acharam que podiam associar a ele algumas dessas crenças antigas, numa
espécie de sincretismo religioso comparável, até certo ponto, com aquele que se
faz no Brasil entre rituais e santos do catolicismo romano com rituais e
entidades dos cultos africanos.
A Enciclopédia Encarta conceitua
o gnosticismo como um...
movimento religioso
esotérico que floresceu
durante os séculos
2º e 3º e
trouxe um desafio para os cristão ortodoxos. A maioria das seitas gnósticas
professavam o cristianismo, mas suas crenças eram diferentes das dos cristãos
dos primeiros tempos da Igreja. Para seus seguidores, o gnosticismo prometia um
conhecimento secreto do reino divino. Segundo os gnósticos, sementes do Ser
Divino caíram até o universo material – que, em sua totalidade, é mau – e foram
encarceradas nos corpos humanos. O conhecimento ou gnose poderia despertar
estes elementos que voltariam à própria casa, isto é, o reino espiritual.
De acordo com essa mesma fonte,
Para explicar
a ordem do universo material, os gnósticos desenvolveram uma complicada
mitologia. Do Deus original, não cognoscível, uma série de divindades menores tinham
sido geradas, por emanação. Assim nasceu um Deus mau, criador do Universo e
identificado com o Deus do Antigo Testamento. Os cristãos gnósticos se negavam
a identificar o Deus do Novo Testamento, pai de Cristo, com o Deus do Antigo
Testamento. Para se justificarem, escreveram evangelhos apócrifos (como os
evangelhos de Tomás e de Maria) afirmando que Jesus expôs a seus discípulos a
interpretação gnóstica de seus ensinamentos. Ou seja, Cristo, o espírito
divino, habitou o corpo do homem Jesus, mas não morreu na cruz. Desta maneira,
os gnósticos rejeitavam o sofrimento, a morte e a ressurreição do corpo
terreno. Os gnósticos também não aceitavam outras interpretações literais e
tradicionais do Evangelho.
Essa conceituação do gnosticismo
naturalmente não contempla todas as suas modalidades e vertentes. No caso da
seita que escreveu o Evangelho de Judas, o sofrimento e a morte de Jesus não
são negados, antes explicados de acordo com a sua visão de libertação e
salvação. Uma tentativa de conceituação mais abrangente, englobando as suas principais
modalidades em todos os tempos e, provavelmente com mais autoridade, é
oferecida pelo bispo gnóstico Stephan A. Hoeller, em seu artigo What is a
Gnostic? (O que é um gnóstico?). Nesse texto é apresentada uma síntese feita
por Clark Emery, professor da Universidade de Miami, com doze pontos que
Hoeller considera uma
descrição precisa das
características do gnosticismo. Para ele essas características
podem ser consideradas normativas para se descrever um gnóstico, tanto na era
clássica como nos dias de hoje.
São as seguintes:
1. Os gnósticos postulam uma unidade espiritual
que veio a se dividir numa pluralidade.
2. O universo foi criado como resultado dessa
divisão pré-cósmica. Isto foi feito por um líder possuidor de poderes
espirituais inferiores e que frequentemente é assemelhado ao Jeová do Antigo
Testamento.
3. Uma
emanação feminina de
Deus estava envolvida
na criação cósmica
(embora num papel mais positivo do que o do líder).
4. No cosmos, o espaço e o tempo têm um caráter
malévolo e podem ser personificados como seres demoníacos que separam o homem
de Deus.
5. Para o homem, o universo é uma vasta prisão.
Ele está escravizado tanto pelas leis físicas da natureza como por leis morais,
como o código mosaico.
6. A humanidade pode ser personificada como
Adão, que jaz no profundo sono da ignorância, com seus poderes de
autoconsciência espiritual entorpecidos pela materialidade.
7. Dentro de cada homem natural está um “homem interior”,
uma centelha apagada da substância divina. Desde que esta existe em cada homem,
temos a possibilidade de nos despertar desse nosso estupor.
8. O que efetua esse despertamento não é a
obediência, nem a fé, nem boas obras, mas o conhecimento.
9. Antes do despertamento, os homens devem
passar por sonhos perturbadores.
10. O homem não obtém o conhecimento que o desperta
desses sonhos por cognição, mas através de experiências de revelação, e este
conhecimento não é informação, mas uma modificação do ser sensorial.
11. O despertamento (i.e., a
salvação) de qualquer indivíduo é um evento cósmico.
12. Desde que o esforço seja para
restaurar a inteireza e unidade de Deus, uma rebelião ativa
contra a lei
moral do Antigo
Testamento é exigida
de todo homem.
Em sua obra Gnosticismo, já
traduzida para o português, Hoeller encampa esses pontos e acrescenta mais
alguns a respeito de Jesus Cristo e da salvação. Para ele, Jesus foi o maior
dos mensageiros da luz dentre todos os que têm sido enviados, desde os
primeiros tempos da história, para “fazer avançar a gnose nas almas dos
humanos”. Seu ministério foi tanto o de dar “instruções referentes ao caminho
da gnose como o de comunicar mistérios”. Esses mistérios, também conhecidos
como sacramentos, são “auxílios sagrados para a gnose e foram confiados por ele
aos seus apóstolos e seus sucessores”. Ele afirma:
Por meio da prática espiritual
dos mistérios (sacramentos) e de uma luta inexorável e inflexível pela gnose,
os humanos podem avançar firmemente para a libertação de todo confinamento, material
e outros. O objetivo final deste processo
de liberação é a realização do conhecimento salvador e com ele a libertação da
existência corporificada e o retorno para a unidade última.
4. COMPARANDO O GNOSTICISMO COM
O CRISTIANISMO
Estes pontos do gnosticismo,
expostos por um dos seus líderes, deixam claro que não há como harmonizar essa
crença com o cristianismo das Escrituras Sagradas.
4.1 Deus
O gnosticismo é politeísta, pois
acredita que Deus se dividiu em diversas hierarquias de entidades ou emanações
divinas (ou éons). É assim que ele tenta explicar a existência do mal e a
natureza imperfeita do mundo criado.
O universo teria sido criado não pelo Deus
soberano e único revelado nas Escrituras, mas por um demiurgo (artesão ou
criador), uma entidade emanada do Deus Pai (o Éon perfeito), mas que não
preservou a sua bondade e perfeição.
|
Stephan A.
Hoeller |
Segundo o
gnóstico Stephan A.
Hoeller, citado acima,
o gnosticismo tenta unir e reconciliar conceitos do
monoteísmo, do politeísmo, do teísmo, do deísmo e do panteísmo, tudo ao mesmo
tempo. Para ele, o conceito gnóstico da divindade pode ser resumido da seguinte
forma:
a. Há um Deus verdadeiro, transcendente e
último, que está acima dos universos criados e que nada criou, no sentido em
que entendemos a criação. Embora esse Deus verdadeiro nada tenha criado, ele
fez emanar de si a substância de tudo que há no mundo, visível e invisível. Num
certo sentido, então, é possível dizer que tudo é Deus, pois tudo consiste da
substância de Deus. Muitas porções dessa essência original foram projetadas
para longe de sua fonte e sofreram mudanças corruptoras no processo. Assim,
adorar o cosmos, a natureza ou criaturas corpóreas é equivalente a adorar
porções corruptas e alienadas da essência divina, ainda que emanadas dela.
b. A crença gnóstica tem muitas
variações, mas todas elas se referem aos Éons, que seriam seres divinos
intermediários que existem entre o Deus último e verdadeiro e nós. Esses seres,
juntamente com o Deus verdadeiro, formam o
reino da Plenitude
(ou Pleroma), em
que a potência da
divindade opera plenamente.
A Plenitude se
contrasta com o
nosso estado existencial que,
comparado a ela, pode ser chamado de vacuidade ou vazio.
c. Um desse seres eônicos, chamado Sofia
(Sabedoria), é de grande importância na cosmologia gnóstica. Em suas jornadas,
Sofia veio a emanar do seu ser uma consciência imperfeita, um outro ser que se
tornou o criador do mundo material e psíquico, mundo esse criado à imagem de
sua própria imperfeição.
Este ser, não ciente de sua
origem, imaginou-se ser o deus último e absoluto. Por ter adquirido a essência
divina já existente e tê-la moldado em diversas outras formas, é também chamado
de Demiurgo, ou “meio-criador”. Assim, há uma metade autêntica, um componente
divino autêntico na criação, mas que não é reconhecido pelo “meio-criador” nem
por seus subordinados cósmicos, os Arcontes ou “governantes”.
Essa teogonia é a que tenta
explicar a natureza do Deus do Antigo Testamento, ao qual classifica como
cruel, vingativo e mau. A emanação feminina que esteve envolvida na criação, a
que se refere a conceituação de Clark Emery, seria a essência de Sofia, de quem
o demiurgo teria emanado. Por causa dessa essência o criador pôde transmitir à
criatura um pouco da divindade, quando formou Adão e Eva. Deste modo, toda a
humanidade traz em si, embora apagada, uma centelha divina.
Quem conhece
as Escrituras Sagradas
é capaz de
perceber que esse
conceito de divindade não
guarda qualquer paralelo
com o do
Deus único e
soberano do cristianismo. O
cristianismo não reconhece
qualquer outra divindade, nem qualquer outro criador que não
seja o Deus único do Antigo e do Novo Testamento. A doutrina da Trindade não
serve de paralelo para a ideia de uma pluralidade de deuses, pois Pai, Filho e
Espírito Santo são vistos como um só Deus verdadeiro e eterno, da mesma
substância, iguais em poder e glória. Toda a criação é atribuída nas Escrituras
tanto ao Pai quanto ao Filho e ao Espírito Santo. O cristianismo não tem uma
hierarquia de deuses, com poderes e naturezas diferentes.
4.2 O mundo
No gnosticismo, o mundo é visto
como essencialmente defeituoso e mau, desde a sua criação. O mundo é imperfeito
porque foi criado imperfeito, e não por causa do homem, dizem os gnósticos. A
culpa deve ser atribuída ao criador.
A doutrina do pecado original e
da queda pela desobediência de Adão e Eva, e a sua consequente ruína e
maldição, extensivas a todo o universo (cf. Gênesis 3), é considerada
inaceitável pelo gnosticismo. Hoeller afirma:
Os
monoteístas imaginam Deus como o criador e geralmente também como mantenedor, doador
das leis e executante das leis do universo. Como os gnósticos – bem
razoavelmente – não podiam acreditar que um par pecador de ancestrais humanos
pudesse ter realizado os inumeráveis males e aspectos desagradáveis do mundo,
sobrou somente um culpado: o Criador, o próprio Deus. O mundo não caiu, dizem
os gnósticos; certamente, ele foi imperfeito desde o começo.
Assim, para os gnósticos o
criador do mundo não é o “Deus último, verdadeiro e bom”, mas “uma deidade
menor, ignorante de um poder além dele mesmo” que “decide usurpar a posição da
divindade maior”. É essa divindade secundária (demiurgo) quem deu origem ao mal
e à imperfeição no mundo.
Para o cristianismo, toda a
criação era originariamente perfeita, por ter sido feita por um Deus único e
perfeito. No relato de Gênesis 1, ao final de cada etapa da criação se afirma:
“Viu Deus que isso era bom” (Gn 1.10,12,18,21,25), para depois concluir de modo
enfático no versículo 31: “Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito
bom”. Para o cristianismo, o mal entrou no mundo como resultado da rebelião da
criatura contra o criador (primeiro dos anjos e depois do homem – Judas 6;
Gênesis 3), e não como obra direta do criador.
4.3 A moralidade
O
(em particular a lei mosaica), como um instrumento para escravizá-lo. O Evangelho de Judas revela esse ponto de
vista em algumas de suas passagens, especialmente aquela em que Jesus parece
dizer a Judas que ele lhe prestaria um serviço por ajudá-lo a libertar-se do corpo
humano. É como têm sido interpretadas estas
palavras de Jesus a Judas no documento: “Tu sacrificarás o homem que me veste”.
Esse dualismo “matéria versus espírito” se manifesta no conceito expresso por
Emery de que “o universo é uma vasta prisão” para o homem. Quando diz que o
homem “está escravizado tanto pelas leis físicas da natureza como por leis
morais como o código mosaico”, ele revela a sua recusa de relacionar o corpo com
o espírito, negando a unidade
e a integralidade
desses dois elementos no ser
humano.
Segundo Hoeller, os gnósticos
ganharam esse epíteto de dualistas porque acreditam que o corpo se origina da
terra, mas o espírito humano vem do reino da Plenitude, onde habita a
verdadeira divindade. Segundo ele,
um ser humano
consiste de componentes físicos e psíquicos que são perecíveis, e também de um
componente espiritual, que é um fragmento da essência divina, algumas vezes
chamado de centelha divina.
Esse ponto de vista tem a sua
conseqüência direta no conceito de ética e moral do gnosticismo. Ao discorrer
sobre essas questões, Hoeller argumenta:
Se as
palavras “ética” ou “moralidade” forem tomadas como significando um sistema de
regras, então o gnosticismo é contrário a ambas. Tais sistemas comumente se
originaram com o Demiurgo e são dissimuladamente designadas para servir aos
propósitos dele. Se, por outro lado, a moralidade for considerada como
consistindo de uma integridade
interior surgida da
iluminação da centelha que habita o homem, então, o
gnóstico abraçará esta ética existencial, espiritualmente informada, como um
ideal.
Em que pese essa suposta visão de
moralidade que, segundo esse autor, deve caracterizar os ideais do gnosticismo,
o fato é que ela não faz uma ligação entre o homem interior e o exterior, entre
o corpo e o espírito. A moralidade é descrita apenas como uma integridade
interior, fruto da “iluminação da centelha divina que habita o homem” e como
uma “ética existencial espiritualmente informada”, qualquer que seja o sentido
que se dê a isto. Essa oposição às leis morais, especialmente à lei mosaica,
levou muitas seitas gnósticas do passado a terem um baixo padrão moral de
conduta. Irineu descreve os nicolaítas, uma das seitas gnósticas da sua época e
já conhecida nos dias do apóstolo João (Ap 2.6), como pessoas que viviam
desordenadamente, ensinando que a fornicação e o comer carne oferecida aos
ídolos eram coisas indiferentes.
A moral do cristianismo, por não
fazer essa dissociação ente o homem interior e o exterior, prescreve um padrão
de conduta compatível com a pureza, tanto do espírito quanto do corpo. Paulo,
escrevendo contra a fornicação diz:
Fugi da
impureza. Qualquer outro pecado que uma pessoa cometer é fora do corpo; mas
aquele que pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo. Acaso, não sabeis
que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que está em vós, o qual tendes
da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por
preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo (1Co 6.18-20).
Para o cristianismo, corpo e
espírito (ou alma) estão intimamente associados na constituição humana e não
podem ser separados.
4.4 O conhecimento
Os efeitos do pecado em Adão e
sua descendência são interpretados pelo gnosticismo como sendo mera ignorância,
devido à sua condição de matéria, um entorpecimento da autoconsciência, do qual
é possível sair através do conhecimento (gnose). Assim se expressa Hoeller:
Os humanos
estão presos num imbróglio que consiste na existência física combinada com a
ignorância de sua verdadeira origem, sua natureza essencial e seu destino
último. Para se
livrar deste imbróglio
os seres humanos
precisam de ajuda, embora possam também contribuir com
seus próprios esforços.
Esse conhecimento libertador é
adquirido, segundo os gnósticos, não por meio de experiências objetivas e
conscientes, como a fé, a obediência e uma conduta que corresponda a elas (boas
obras), mas através de uma experiência mística, um evento cósmico que vai
acender a fagulha adormecida em cada um. São experiências sensoriais de
revelação que vêm depois de sonhos atribulados e visões, como as que Judas
supostamente teve, conforme o “seu” evangelho. A isto o gnosticismo chama de
libertação espiritual, o que na sua linguagem equivale à salvação.
O cristianismo também prega um
conhecimento libertador, mas que vem pela fé em Cristo, e que é adquirido
através da revelação que ele dá em sua Palavra, e não por meio de experiências
cósmicas ou meramente sensoriais. A obediência aos mandamentos de Jesus e uma
conduta de vida compatível com o que ele ensinou são a demonstração prática de
se possuir esse conhecimento (Jo 8.32; 15.14). Essa não é uma libertação apenas
da ignorância espiritual, mas do próprio pecado que escraviza o homem e o
coloca em antagonismo e rebelião contra Deus. O Jesus do cristianismo disse:
“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8.32). Mas esse
conhecimento da verdade está diretamente relacionado ao conhecimento do próprio
Jesus e da palavra de Deus, ambos apresentados como “a verdade” (Jo 14.6;
17.7).
4.5 A salvação
Para o gnosticismo, a salvação é
obtida não pelo sofrimento e morte de Cristo, mas através da sua obra de
revelação de mistérios e ensinos esotéricos.
Conforme Hoeller,
os gnósticos
não buscam uma
salvação do pecado
(seja o original
ou outro qualquer), mas da
ignorância, da qual o pecado é uma consequência. A ignorância – pela qual se
quer dizer ignorância das realidades espirituais – é afastada apenas pela
gnose, e a revelação decisiva da Gnose é trazida pelo Mensageiro da Luz,
especialmente por Cristo, o Logos do Verdadeiro Deus. Não é pelo seu sofrimento
e morte, mas pela sua vida de ensino e pelo estabelecimento dos mistérios que
ele realizou sua obra de salvação.
Em outro lugar, Hoeller diz:
Resumindo, a
salvação para os gnósticos não significa uma reconciliação com um Deus zangado
através da morte do seu filho, mas uma libertação do estupor induzido pela
existência terrena e um despertar pela gnose. Eles não consideram que qualquer
tipo de pecado, incluindo o de Adão e Eva, seja poderoso o suficiente para
causar a degradação de todo o mundo manifesto. O mundo é falho porque esta é a
sua natureza, porém os seres humanos podem se libertar deste confinamento neste
mundo falho e da inconsciência que acompanha este confinamento. Jesus veio como
mensageiro e libertador, e aqueles que assumem no coração esta mensagem e
participam dos seus mistérios são, como o discípulo Tomé, salvos pela gnose.
O cristianismo bíblico ensina que
Jesus veio para dar a sua vida em resgate de muitos (Mt 20.28) e não para dar
ensinamentos esotéricos. Paulo ensina que a redenção é obtida pelo sangue de
Cristo (Ef 1.7), o qual, para nos resgatar da maldição da lei, fez-se ele
próprio maldição em nosso lugar (Gl 3.13).
4.6 A encarnação
A verdadeira divindade de Jesus é
negada pelos gnósticos, assim como a
sua verdadeira encarnação. O
conceito gnóstico de
divindade não deixa
espaço para que se reconheça Jesus como o Deus único e verdadeiro.
Alguns gnósticos até veem em Jesus “uma manifestação da mais alta divindade”,
mas não o verdadeiro e único Deus. Ele é considerado um mestre gnóstico ou
mensageiro de luz. Seu ministério foi o de ensinamentos gnósticos e “iniciação
nos mistérios libertadores”. É até considerado por alguns como o maior de todos
esses mensageiros e “a principal figura salvadora”, mas dentro do conceito de
que se é salvo não do pecado, mas da ignorância, da qual o pecado é apenas uma consequência.
Com respeito à encarnação, há
diferentes conceitos entre os gnósticos. Há os que consideram Jesus como um ser
sagrado e sobrenatural desde o nascimento, bem como os que creem que o Cristo
espiritual desceu e entrou na pessoa de Jesus no momento do seu batismo.
Nos dias de João havia os que
negavam que Jesus tivesse vindo em carne e que já adotavam uma crença que mais
tarde ficou conhecida como “docetismo” (1Jo 4.1-3).
O cristianismo crê que Jesus é o
Filho eterno de Deus e que ele assumiu uma natureza humana tornando-se
Deus-homem, verdadeiro Deus e verdadeiro homem (Jo 1.14; 1Jo 5.20). O apóstolo
João, ao defrontar-se com esse docetismo incipiente, que bem podia ser de
origem gnóstica, deu grande ênfase tanto à humanidade verdadeira de Jesus, o
Filho de Deus, a quem pôde ver e tocar (1Jo 1.1-3), como à sua divindade. Ele
foi enfático:
Também
sabemos que o Filho de Deus é vindo e nos tem dado entendimento para
reconhecermos o verdadeiro; e estamos no verdadeiro, em seu Filho, Jesus
Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna (1Jo 5.20).
Essa linguagem sugere uma
veemente condenação de ideias gnósticas já presentes em sua época.
A encarnação de Jesus, para o
cristianismo, foi uma necessidade em virtude de sua obra salvadora. Ele
precisou fazer-se carne (Jo 1.14) para viver e morrer em lugar do homem e pela
sua morte destruir “aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo” (Hb.
2.14; cf. Rm 8.3 e 1Pe 2.24; 4.1).
4.7 O mediador
Para o gnosticismo Jesus não é o
único mediador entre Deus e os homens (cf. 1Tm 2.5), mas um dos mensageiros da
luz que auxiliam o homem nessa tarefa de ser libertado pela gnose.
Hoeller afirma que
desde os
tempos mais antigos Mensageiros da Luz têm vindo do Verdadeiro Deus para
assistir os humanos na sua busca pela gnose. Apenas algumas dessas figuras
salvíficas são mencionadas nos escritos gnósticos; alguns dos mais importantes
são Sete (o terceiro filho de Adão), Jesus, e o Profeta Mani. A maioria dos
gnósticos sempre viu a Jesus como a principal figura salvadora (o Soter).
Para o cristianismo, Jesus não é
apenas um dos mensageiros vindos de Deus, ainda que fosse o principal. Ele é o
único caminho pelo qual se pode chegar a Deus e à vida eterna. Ele próprio
reivindicou essa exclusividade quando disse: “Eu sou o caminho, e a verdade, e
a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim" (Jo 14.6). Pedro deixou claro que “não
há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome,
dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12). Paulo
foi igualmente incisivo ao afirmar que “há um só Deus e um só Mediador entre
Deus e os homens, Cristo Jesus, homem” (1Tm 2.5).
Estes são alguns dos pontos
fundamentais que mostram a total incompatibilidade entre o cristianismo e a
doutrina gnóstica. Não há como considerar o gnosticismo uma dissidência ou
variação do cristianismo, pelo menos daquele cristianismo que foi registrado
pelos autores canônicos do 1º século e que chegou até nós.
5. SERIA ESSE EVANGELHO
REALMENTE DE JUDAS?
Nenhum estudioso sério, nem mesmo
os que acreditam que esse documento pode ser uma tradução do original
mencionado por Irineu, crê que ele foi escrito por Judas Iscariotes. Na época
em que se supõe ter sido escrito o seu original grego, em meados do 2º século,
todos os apóstolos já haviam morrido. Segundo os evangelhos canônicos e o livro
de Atos, Judas morreu logo após a traição, suicidando-se. Esse documento,
segundo estimam os estudiosos, data do 3º ou do 4º século, portanto cerca de
200 ou 300 anos depois de Jesus e de Judas. O próprio Irineu já estava
distanciado dos fatos relatados nos evangelhos bíblicos por mais de 100 anos. O
documento, mesmo na sua versão original, é da época em que proliferavam na
igreja cristã inúmeros escritos apócrifos que traziam em sua apresentação o
nome de algum apóstolo para ganhar credibilidade ou apenas para parecer
respeitáveis.
Quando se aceita que esse
Evangelho de Judas possa ser autêntico, não se está admitindo que tenha
autoridade apostólica e deva ser considerado como um documento legítimo da
igreja cristã. Nesse ponto, é preciso estabelecer uma diferença entre
documentos que sempre foram reconhecidos e aceitos por toda a Igreja e em todo
tempo (chamados pelos estudiosos de homologoumena), os documentos que por algum
tempo e em alguns lugares foram questionados, mas depois tiveram sua aceitação
geral estabelecida (chamados de antilegomena), os que foram durante algum tempo
e em alguns lugares aceitos e reconhecidos por algumas igrejas locais, mas
depois vieram a ser unanimemente rejeitados (chamados de apócrifos) e os que
nunca foram reconhecidos em nenhuma época e em nenhum lugar como legítimos
(chamados de pseudepígrafos).
A lista dos pseudepígrafos é
enorme e comporta evangelhos, atos, epístolas, apocalipses e obras de outros
gêneros literários, todos escritos depois do período apostólico. No século 19
já eram conhecidas e catalogadas mais de 280 dessas obras. O Evangelho de Judas
pode ser classificado como pertencendo a esse grupo, por nunca ter sido aceito
ou reconhecido em qualquer tempo e lugar. Não figurava em nenhuma lista
anterior. Cabe até indagar se essa é de fato uma cópia do original a que Irineu
se referiu. Irineu classifica o evangelho de Judas como pertencendo à seita dos
cainitas. Todavia, nesse documento recém-publicado nenhuma menção é feita a
Caim. Nele, o filho de Adão que é mencionado e que ocupa posição de destaque é
Sete, que é até mesmo identificado com Cristo. É por essa razão que Marvin
Meyer o considera um evangelho setiano, como vimos anteriormente.
Por outro lado, quanto aos
evangelhos canônicos, nenhum deles jamais foi questionado em qualquer tempo e
em qualquer lugar pela igreja. Eles circularam e foram aceitos desde o início
da igreja cristã, quando as pessoas que testemunharam os fatos neles narrados
ainda viviam e, se quisessem, poderiam contestá-los.
6. O GNOSTICISMO DO EVANGELHO DE
JUDAS
Antes que esse documento pudesse
ser traduzido foi necessário primeiro reconstruí-lo. Mais de mil fragmentos
precisaram ser ajuntados e postos em seu devido lugar, como se fossem peças de
um quebra-cabeça. Ainda assim, restaram muitas lacunas que dificultam o
entendimento do texto, exigindo um trabalho não apenas de tradução, mas de
interpretação e complementação de sentido. Contudo, os especialistas afirmam
ter conseguido reconstruir cerca de 80% do seu conteúdo e o que apresentaram
acreditam ser uma tradução compreensível.
O que segue são alguns dos
aspectos do gnosticismo encontrados nessa descoberta. O documento começa com a
seguinte apresentação: “O relato secreto da revelação que Jesus fez em conversa
com Judas Iscariotes por uma semana, três dias
antes de celebrar
a Páscoa”. Relatos secretos a pessoas
especiais constituem uma das marcas dos escritos gnósticos. Segundo essa doutrina,
poucos eram capazes de apreender o verdadeiro conhecimento interior ou
espiritual. Conforme esse documento, Judas foi um deles. Em outras passagens
desse evangelho essa preferência por Judas é manifesta, como veremos mais
adiante. A seguir, o
documento trata do
ministério terreno de
Jesus, com o
seguinte resumo:
Quando Jesus
apareceu na terra, realizou milagres e grandes maravilhas para a salvação da
humanidade. E visto que alguns [andaram] no caminho da justiça enquanto outros
andaram no caminho de suas transgressões, foram chamados os doze discípulos.
Ele começou a falar-lhes acerca dos mistérios além do mundo e do que
aconteceria no final. Muitas vezes não aparecia aos discípulos como ele
próprio, mas era visto entre eles como uma criança.
Essa descrição do modo como Jesus
aparecia aos discípulos pode levantar uma certa dúvida sobre a aceitação da sua
verdadeira corporalidade por parte dos autores do documento. Uma cena inicial
apresenta um diálogo entre Jesus e os seus discípulos sobre a oração de ação de
graças ou eucaristia. Nesse diálogo, Jesus parece zombar da atitude dos
discípulos, rindo de sua ignorância das coisas espirituais. O texto diz:
Certo dia ele
estava com os seus discípulos na Judéia e os encontrou reunidos e assentados em
piedosa celebração. Quando ele [se aproximou] dos seus discípulos reunidos,
assentados e fazendo uma oração de ação de graças pelo pão, [ele] riu. Os
discípulos [lhe] disseram: “Mestre, porque estás rindo de [nossa] oração de
ação de graças? Nós fizemos o que era certo”. Ele respondeu e disse [-lhes]:
“Eu não estou rindo de vós. Vós não estais fazendo isto por vossa própria
vontade, mas porque é através disto que o vosso deus [será] louvado. Eles
disseram: “Mestre, tu és [...] o filho do nosso deus”. Jesus lhes disse: “Como
me conheceis? Verdadeiramente [eu] vos digo, nenhuma geração das pessoas que
estão entre vós me conhecerá.
Nessa passagem, fica claro que,
segundo esse evangelho, o deus a quem os discípulos serviam não era o deus
verdadeiro. Era o deus criador do mundo mau e não o deus de quem Jesus era
filho. Jesus zomba da ignorância dos discípulos. O documento diz que os
discípulos se irritaram com essas palavras de Jesus, o que lhes custou mais
algumas observações de censura e ensejou a Judas destacar-se sobre os demais como
o único que conhecia o seu mestre e o único que sabia de onde ele tinha vindo:
Quando os seus
discípulos ouviram isto,
começaram a irar-se
e enfurecer-se e a
blasfemar contra ele
em seus corações.
Ao observar Jesus a
sua falta de entendimento, [disse-] lhes: “Por que este
debate vos conduziu à ira? O vosso Deus, que está dentro de vós [...] vos
provocou à ira [em] vossas almas. [Que] qualquer de vós que seja
[suficientemente forte] dentre os seres humanos ponha para fora o perfeito
humano e se coloque diante de mim. Eles todos disseram: “Nós somos fortes”. Mas
os seus espíritos não ousaram se colocar diante [dele], a não ser Judas
Iscariotes. Ele foi capaz de se colocar diante dele, mas não pôde fitá-lo nos
olhos, e desviou o seu rosto.
Judas lhe [disse]: “Eu sei quem
tu és e de onde vens. Tu és do domínio imortal de Barbelo. E eu não sou digno
de pronunciar o nome daquele que te enviou”.
É nesse contexto que Jesus chama
Judas à parte e lhe faz revelações em secreto:
Sabendo que Judas estava
refletindo sobre algo que era elevado, Jesus lhe disse: “Separa-te dos outros
e eu te
narrarei os mistérios
do reino. É
possível para ti
atingi-lo, mas tu serás muito afligido. Mas uma outra pessoa tomará o
teu lugar, para que os doze [discípulos] possam novamente vir à inteireza
(conclusão) com o seu deus”. Judas disse-lhe: “Quando me narrarás estas coisas
e [quando] o grande dia da luz raiará para a geração?” Mas quando ele disse
isto, Jesus retirou-se.
Depois disto, Jesus apresenta-se
aos discípulos numa segunda cena, na qual é mencionada uma espécie de
transmigração para outra esfera ou geração:
Na manhã
seguinte, depois desse acontecimento, Jesus [apareceu] novamente aos seus
discípulos. Eles lhe disseram: “Mestre, onde foste e o que fizeste quando nos
deixaste?” Jesus lhes disse: “Fui a uma outra grande e santa geração”. Seus
discípulos lhe disseram: “Qual é a grande geração que nos é superior e mais
santa do que nós, que não está agora nestes domínios?” Quando Jesus ouviu isto,
riu e lhes disse: “Por que estais pesando em vossos corações a respeito da
geração forte e santa? Verdadeiramente [eu] vos digo, ninguém nascido neste éon
verá aquela [geração] e nenhuma hoste de anjos das estrelas governará sobre
aquela geração, e nenhuma pessoa de nascimento mortal pode se associar a ela,
porque aquela geração não vem do [...] que veio a ser [...]. A geração de
pessoas dentre [vós] é da geração da humanidade [...] poder, a qual [... os]
outros poderes [...] pelos [quais] vos governais”. Quando os [seus] discípulos
ouviram isto, cada um deles ficou perturbado em espírito. Não podiam dizer
palavra.
A seguir, é narrada uma visão que
os discípulos tiveram do templo e a interpretação que Jesus dá sobre a mesma. O
texto é de difícil compreensão devido às muitas falhas no manuscrito, mas as
partes traduzidas falam de doze sacerdotes que recebem as ofertas de
pessoas de comportamento repreensível:
uns sacrificavam os
seus próprios filhos; outros, as suas esposas; alguns
dormiam com outros homens; outros se envolviam com assassinatos e com uma
multidão de outros pecados, invocando a Jesus e sacrificando em seu nome.
A
interpretação que Jesus
dá é que
esses sacerdotes haviam
“plantado árvores sem fruto, de
um modo vergonhoso”, e tudo isso em seu nome. E assim, desqualifica os próprios
apóstolos e o deus a quem eles serviam, identificando-os com aqueles que
praticavam tais coisas, as quais, não obstante, eram aceitas como sacrifício
perfeito pelo seu deus. Ele diz:
Estes que
vistes recebendo as ofertas no altar representam o que vós sois. Este é o deus
a quem servis e vós sois esses doze homens que vistes. O gado que vistes
trazido para o sacrifício são as muitas pessoas que fizestes desviar diante
daquele altar.
Depois, ele se dirige às gerações
humanas dizendo que o seu deus havia recebido o seu sacrifício pelas mãos de um
sacerdote a quem qualifica como “ministro do erro”, mas adverte que “é o
Senhor, o Senhor do Universo, quem determina que no último dia eles serão
envergonhados”. Judas, então, pergunta a Jesus a respeito daquela geração e das
gerações humanas e recebe a resposta de que as almas um dia se libertarão de
seus corpos para se tornarem imortais:
Judas diz [a
ele: “Rabb]i, que tipo de fruto esta geração produz?”. Jesus disse: “A almas de
toda geração humana morrerão. Todavia, quando essas pessoas tiverem completado o
tempo do reino
e o espírito
as deixar, os
seus corpos morrerão, mas as suas almas estarão vivas, e
elas serão assuntas”.
Numa terceira cena, Judas relata
uma visão a Jesus na qual ele é perseguido e castigado, mas Jesus diz que ele
fora extraviado por sua estrela, porém havia recebido a revelação dos
mistérios. Jesus o chama de décimo terceiro espírito e menciona os doze éons. O
texto é de difícil compreensão devido às lacunas existentes, mas poderia ser uma
referência à sua primazia sobre os demais apóstolos. Mas por que doze e não onze? Estaria o seu substituto (Matias) incluído
neste número? Por que ele seria o décimo terceiro espírito?
Judas disse: “Mestre, como tens ouvido a todos
eles, ouve também a mim agora. Pois eu tive uma grande visão”. Quando Jesus
ouviu isto, riu e lhe disse: “Ó tu, décimo terceiro espírito, por que te
esforças tanto? Mas fala e eu te sofrerei (tolerarei)”. Judas lhe disse: “Na
visão eu me vi enquanto os doze discípulos me apedrejavam e perseguiam [a mim
severamente]. Também vim ao lugar onde [...] depois de ti. Eu vi [uma casa...]
e meus olhos não podiam [compreender] o seu tamanho. Muita gente estava ao
redor dela, e aquela casa [tinha] um telhado de ramagens, e no meio da casa
estava [uma multidão – faltam duas linhas] dizendo: ‘Mestre, leva-me para
dentro junto com essas pessoas’”.
[Jesus] respondeu e disse: “Judas,
a tua estrela te fez extraviar”. E continuou: “Nenhuma pessoa de mortal
nascimento é digna de entrar na casa que tens visto, pois aquele lugar é
reservado para o santo. Nem o sol nem a lua governarão lá, nem o dia, mas o
santo habitará ali sempre, no domínio eterno com os santos anjos. Vê, eu te
expliquei os mistérios do reino e te ensinei acerca do erro das estrelas; e
[...] enviei [...] sobre os doze éons”.
Em outro lugar do diálogo Judas pergunta
a respeito de seu próprio destino e Jesus lhe diz que ele seria o décimo
terceiro e seria amaldiçoado pelas outras gerações sobre as quais viria a
governar, por causa da sua ascensão à geração santa:
Judas disse:
“Mestre, poderia ser que minha semente estivesse sob o controle dos
governantes?
”Jesus
respondeu e lhe disse: “Vem, que eu [faltam duas linhas], mas tu serás muito
afligido quando vires o reino e toda a sua geração”. Quando ouviu isto, Judas
lhe disse: “Que bem é esse que eu tenho recebido? Pois tu me tens separado desta
geração”. Jesus respondeu e disse: “Tu te tornarás no décimo terceiro, e serás
amaldiçoado pelas outras gerações – e virás a governar sobre elas. Nos últimos
dias elas amaldiçoarão a tua ascensão à [geração] santa”.
Na sequencia Jesus ensina a Judas
a respeito da cosmologia, do Espírito e do Auto-gerado. A narrativa segue o
conceito gnóstico de emanações a partir de uma divindade originalmente una e
perfeita. Jesus fala sobre um reino grande e ilimitado e um grande e invisível
Espírito. Anjos e éons são criados ao mando desse Espírito, para o seu serviço.
De uma nuvem emerge um grande anjo, o iluminado e divino Auto-Gerado. Outros
anjos são criados para o seu serviço. Então o Auto-Gerado cria luminares para
reinar sobre eles e miríades de anjos para o servirem.
A narrativa continua com a
história de um ser chamado Adamas e dos luminares. É nela que a geração de Sete
é mencionada como incorruptível.
Adamas estava
na primeira nuvem luminosa que nenhum anjo jamais viu entre todos os que são
chamados “Deus”. Ele [...] que [...] a imagem [...] e à semelhança d[este]
Anjo. E fez aparecer a incorruptível [geração] de Sete [...] os doze [...] os
vinte e quatro [...]. Ele fez com que aparecessem setenta e dois luminares na geração
incorruptível, de acordo com a vontade do Espírito. Os setenta e dois luminares fizeram, por sua
vez, com que aparecessem trezentos e sessenta luminares na geração
incorruptível, de acordo com a vontade do Espírito, para que o seu número fosse
cinco para cada uma.
A cosmologia prossegue com a
descrição do cosmos, do caos e do mundo inferior. O cosmos é chamado de
“perdição” pelo Auto-Gerado, seus luminares e os éons. Doze anjos são chamados
à existência para reinar sobre o caos e o mundo inferior. Um anjo, chamado
Nebro, que quer dizer “rebelde”, aparece de uma nuvem tendo o rosto flamejante
como fogo e a aparência conspurcada com
sangue. Esse anjo
é também chamado
Yaldabaoth.
Da nuvem
surge outro anjo, chamado Saklas,
e cada um deles cria outros seis anjos para serem seus assistentes.
Cinco governantes são
apresentados falando com doze anjos: Seth (Sete), que é chamado Cristo,
Harmathoth, Galila, Yobel e Adonaios. Segundo a narrativa, “estes são os cinco
que governaram sobre o mundo inferior, e antes de tudo sobre o caos”. Também se
descreve como foi criada a humanidade:
Então Saklas
disse aos seus anjos: “Criemos um ser humano à nossa semelhança e imagem”. Eles
formaram a Adão e sua mulher Eva, que é chamada, na nuvem, Zoe. Pois por este
nome todas as gerações buscam o homem, e cada um deles chama a mulher por estes
nomes.
Judas então pergunta sobre o
destino de Adão e da humanidade:
Judas disse a
Jesus: “[Qual] é a duração de tempo que o ser humano viverá?” Jesus disse: “Por
que estás querendo saber sobre isto, que Adão, com a sua geração, viveu seu
tempo de vida no lugar onde ele recebeu o seu reino, com longevidade com seu
governante?” Judas disse a Jesus: “O espírito humano morre?”. Jesus disse:
“Esta é a razão por que Deus ordenou que Miguel desse os espíritos das pessoas
a elas como um empréstimo, de forma que elas pudessem oferecer serviço, mas
aquele que é O Grande ordenou que Gabriel concedesse espíritos à grande geração
sem governante sobre ela – isto é, o espírito e a alma”.
A seguir, Jesus discorre sobre a
destruição dos maus:
Judas disse a
Jesus: “Então, que farão essas gerações?” Jesus disse: “Verdadeiramente eu te
digo, para todas elas as estrelas trazem as coisas à consumação. Quando Saklas
completar o lapso de tempo que lhe foi atribuído, a primeira estrela delas
aparecerá com as gerações, e elas completarão o que disseram que fariam. Então
eles vão fornicar em meu nome e sacrificar os seus filhos e eles vão [...] e [faltam
cerca de seis linhas e meia] meu nome, e ele irá [...] tua estrela sobre o [décimo]
terceiro éon”. Depois disso Jesus [se riu]. [Judas disse]: “Mestre, [por que
estás rindo de nós]?” [Jesus] respondeu [e disse]: “Eu não estou rindo [de vós],
mas do erro das estrelas, porque essas seis estrelas vagueiam com esses cinco combatentes,
e todas elas serão destruídas junto com as suas criaturas”.
Então, Jesus fala daqueles que
são batizados e da traição de Judas. É nessa passagem que se encontra a
expressão destacada pelos estudiosos como sendo o ponto que elucidaria a
“verdadeira” missão de Judas:
Judas disse a
Jesus: “Olha, que farão aqueles que foram batizados em teu nome?”. Jesus disse:
“Verdadeiramente [te] digo, este batismo [...] meu nome [faltam cerca de nove
linhas] para mim. Verdadeiramente [eu] te digo, Judas, [estes que] oferecem
sacrifícios a Saklas [...] Deus [faltam três linhas] tudo o que é mau. “Mas tu excederás
a todos eles. Pois tu sacrificarás o homem que me veste”.
Depois de mais algumas
observações de difícil entendimento, devido às lacunas no texto, Jesus fala
sobre o futuro da geração de Adão e do próprio Judas:
E então a
imagem da grande geração de Adão será exaltada, pois antes do céu, da terra e
dos anjos, aquela geração, que é dos reinos eternos, existe. Olha, tudo te foi
contado. Levanta os olhos e olha para a nuvem e para a luz dentro dela e para
as estrelas que a circundam. A estrela que guia o caminho é a tua estrela”. Judas
ergueu os olhos e viu a nuvem luminosa, e entrou nela.
O evangelho conclui com a
traição, da seguinte forma:
[...] Os seus sumo-sacerdotes murmuravam
porque [ele] tinha entrado na sala de hóspedes
para a sua
oração. Mas alguns
escribas estavam ali
observando cuidadosamente para o prender durante a oração, porque temiam
o povo, pois ele era considerado por todos como um profeta. Eles se aproximaram
de Judas e lhe disseram: “O que
estás fazendo aqui?
Tu és discípulo
de Jesus”. Judas lhes respondeu como desejavam. E tendo
recebido algum dinheiro o entregou a eles.
Assim termina o documento, sem
nenhuma menção à morte e ressurreição de Jesus e nem ao que aconteceu a Judas
depois disto. Essas narrativas mostram que o documento se alinha perfeitamente
com a literatura gnóstica conhecida da época.
7. POR QUE ESSE DOCUMENTO NÃO
PODE SER RECONHECIDO COMO UM EVANGELHO AUTÊNTICO?
Antes de responder a essa
pergunta, temos que considerar alguns princípios que nortearam a aceitação de
um livro como autorizado e confiável, nos primórdios da igreja cristã.
Enquanto os apóstolos estavam
vivos, eles eram o próprio “cânon” por serem
as testemunhas oculares do
ministério e da
ressurreição de Jesus.
A igreja podia recorrer a eles
para estabelecer a verdade sobre o ensino de Cristo. Lendas e crendices que já
circulavam a respeito de Cristo e dos apóstolos podiam ser desmascaradas pelo
testemunho apostólico (Jo 21.23,24; 1Jo 41-3).
Com a proliferação da literatura
cristã que passou a circular entre as igrejas já no período apostólico, a
igreja sentiu a necessidade de uma lista autenticada.
Quais livros deviam ser
reconhecidos? O testemunho e a autoridade dos apóstolos foram fundamentais
nesse reconhecimento. Eles, os apóstolos, advertiam contra os falsos documentos
que já circulavam como se fossem apostólicos (pseudônimos) e, por isso,
procuravam meios de autenticar os seus escritos, como, por exemplo, através de
uma assinatura conhecida (1Ts 2.20; 3.17).
A autoridade que os apóstolos
receberam para transmitir e completar a revelação de Jesus Cristo está
evidenciada nos textos de João 14.26; 16.13 e Atos 1.1-3,8. Tão conscientes estavam
eles dessa autoridade que Paulo podia dizer:
Outra razão
ainda temos nós para, incessantemente, dar graças a Deus: é que, tendo vós
recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como
palavra de homens, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com
efeito, está operando eficazmente em vós, os que credes (1Ts 1.8,13 – minha
ênfase).
A isto os estudiosos chamam de
consciência profética. É por terem essa consciência que recomendavam que
seus escritos fossem
lidos nas igrejas
(1Ts 5.27; Cl 4.16) Outros textos em que essa autoridade é reivindicada
por Paulo, Pedro e João são: 1Co 2.13; 14.37; Cl 4.16; 2Pe 1.16; 1Jo 1.3 e Ap 1.3.
Foram os apóstolos que transmitiram à segunda geração a confiabilidade de seu
testemunho (Hb 2.3,4).
Assim, as Escrituras do Antigo
Testamento mais os livros dos apóstolos e de pessoas diretamente ligadas a eles
(Marcos e Lucas, por exemplo) eram aceitos sem qualquer suspeita. O problema surgiu
quando começaram a aparecer esses outros livros que também pretendiam ser
aceitos como tendo autoridade divina. Isto principalmente no 2º século. Então,
foi necessário que a Igreja procurasse determinar quais livros eram ou não
dotados de autoridade e, por conseguinte, quais deveriam ser aceitos ou não.
Foi assim que surgiu o cânon. Alguns critérios para
essa aceitação foram
estabelecidos de modo natural,
dentre os quais podemos destacar os seguintes:
a. Princípio da autoridade profética ou apostólica
Os profetas,
tanto do Antigo
como do Novo
Testamento (e os
autores bíblicos foram profetas
no verdadeiro sentido da palavra – Ef 2.20), tinham consciência de ter recebido
revelação do Senhor e de estarem sob a sua influência e direção tanto quando
proclamavam como quando escreviam a mensagem dessa revelação. Eles
reivindicavam a mesma autoridade divina tanto para a sua palavra falada quanto
para a escrita. Paulo considerava que não só o falou, mas também o que escreveu
tinha a autoridade de Deus (1Co 14.37; Cl 4.16; 1Ts 5.27; 2Ts 2.15; 3.14). Por
essa razão, ordenava que os seus escritos fossem lidos nas igrejas (1Ts 5.27) e
que circulassem entre elas (Cl 4.16). Esse é o critério mais comumente
mencionado pelos pais da igreja. De acordo com esse critério, só os escritos
dos apóstolos ou de pessoas diretamente ligadas a eles e sob a sua autoridade
eram aceitos. Isso coloca no 1° século o final da produção dos escritos
reconhecidos, ou seja, no período apostólico.
b. Princípio da confiabilidade do livro
O
conteúdo do livro
canônico precisa ser
digno de confiança,
coerente com a
revelação anterior já conhecida
e sem erros factuais. As
raízes da aplicação
desse princípio podem ser
vistas em textos
como Gálatas 1.8-9;
Colossenses 2.8 (e ss); 1Timóteo 6.3 (e ss); 1João 4.1-4 e 2João 7-10.
Grande parte dos apócrifos foi rejeitada devido à sua falta de confiabilidade,
enquanto que alguns canônicos também foram de início questionados por supostas contradições
doutrinárias. Estes últimos (os antilegomena) só foram aceitos quando se
entendeu devidamente que não havia qualquer razão plausível para se duvidar de
sua confiabilidade.
c. Princípio da aceitação pelas
igrejas locais às quais os livros foram endereçados
Esse princípio tem sido
considerado o mais importante, pois inclui todos os outros na sua aplicação. A
autoridade do livro bíblico sempre foi reconhecida pela igreja à qual ele foi
dirigido. Em outras igrejas, devido a fatores de distância, comunicação, má
interpretação, etc., esse reconhecimento nem sempre se deu de modo imediato,
unânime e definitivo, mas ele acabou acontecendo, ainda que depois de algum
tempo. Milton Fisher lembra que “a plena aceitação pelos beneficiários
originais, seguida por um contínuo reconhecimento e uso, é fator indispensável
no desenvolvimento do cânon”.
É verdade que nenhum desses
princípios é suficiente, por si só, para reconhecer a canonicidade de um texto.
Certos livros não-canônicos poderiam alegar terem sido escritos por apóstolos
ou profetas (caso da pseudonímia), não apresentar necessariamente incorreções
teológicas ou factuais e até ser aceitos por certo tempo pela igreja. Isso de
fato aconteceu em alguns casos.
É por isso que, sem dispensar tais
princípios, temos ainda de crer na providência de Deus em preservar a sua Palavra e imprimir no seu
povo a percepção espiritual para aceitá-la. É o que
Calvino chama de “testemunho interno do Espírito”. F. F. Bruce também afirma
que a posição cristã histórica é que o Espírito Santo, que presidiu à formação
de cada um dos livros, também lhes dirigiu a seleção e incorporação,
continuando assim a dar cumprimento à promessa do Senhor de que ele guiaria os
discípulos a toda a verdade.
Certamente este não é um ponto
que os críticos não-ortodoxos levam em consideração, por não crerem no elemento
sobrenatural das Escrituras. Mas ele não pode ser esquecido pelos que, além de
critérios objetivos e fenomenologicamente evidenciáveis, têm como pressuposto a
origem divina dos livros canônicos.
O Evangelho de Judas, assim como
os demais evangelhos gnósticos, não pode ser aceito como um evangelho autêntico
porque não preenche qualquer desses requisitos. Não foi escrito por apóstolo ou
por alguém sob autoridade direta de apóstolo, já que data de época bem
posterior (pelo menos 100 anos depois da morte do último apóstolo); o seu
conteúdo é totalmente discordante de toda a revelação que encontramos nos
quatro evangelhos canônicos e ele nunca
foi aceito por
qualquer das igrejas
da sua época.
Nunca figurou em qualquer
lista como um evangelho autêntico. Pelo contrário, foi enumerado entre os
escritos de seitas heréticas, como atesta Irineu.
De igual forma, as evidências
disponíveis sobre a formação e o desenvolvimento do cânon demonstram que tal
fato não se deu por motivações políticas, como especulam alguns, mas por um
processo natural de reconhecimento e autenticação por parte das igrejas locais,
independentemente de concílios. Os concílios só fizeram reconhecer e aprovar
aquilo que as igrejas, como um todo, já aceitavam. Um ou outro livro exigiu uma
discussão mais circunstanciada por parte de algum concílio, mas tal discussão
nunca esteve relacionada a livros pseudepígrafos, como esses gnósticos, sobre
os quais sempre houve consenso de serem de origem espúria.
O cânon que hoje conhecemos e que
representa o que chamamos de ortodoxia não foi estabelecido arbitrariamente,
como resultado da vitória política de um grupo eclesiástico mais forte sobre
outros mais fracos, como querem alguns. Para que alguém pudesse considerar o
gnosticimo um ramo legítimo do cristianismo primitivo seria preciso demonstrar
que havia semelhanças e concordância entre os seus pontos principais. Não é o
que acontece, como se procurou
mostrar neste trabalho.
O combate a
esses grupos e
seus escritos se
deveu exatamente à sua
completa incompatibilidade com
o cristianismo apostólico, e não por razões políticas.
Finalmente, a alegação de que o
cristianismo dos primeiros séculos nunca foi um bloco monolítico só poderia ser
verdadeira se os desvios e aberrações doutrinárias, como esses do gnosticismo,
pudessem ser considerados formas aceitas de cristianismo, ainda que
discordantes. Não é o que acontece. Se nem mesmo desvios “menores” (quando
comparados aos da doutrina gnóstica), e de épocas bem posteriores, como os
debatidos nos Concílios de Nicéia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e
Calcedônia (451), foram tolerados, por não guardarem coerência com o
cristianismo apostólico, como poderiam doutrinas pagãs, mitológicas e
politeístas, iguais às do gnosticismo, ser consideradas variações
do cristianismo? Só mesmo a pressuposição pós-moderna de que cada uma das seitas que proliferavam nos
primeiros séculos do cristianismo tinha “uma versão da verdade” (ou seja, a sua
própria verdade) pode justificar essa ideia de que o cristianismo “é e sempre
foi um movimento amplamente diverso”, como quer Barth Ehrman.
CONCLUSÃO
Não se pode negar que a
descoberta e publicação desse Evangelho de Judas, seja ele cópia daquele a que
Irineu se refere ou não, traz uma contribuição para o estudo do chamado
“gnosticismo cristão”. Ele vem confirmar, com o seu amálgama de crenças de
origem pré-cristã e personagens do cristianismo, que o gnosticismo nunca foi
cristão. A sua visão do mundo e de Deus era e continua a ser totalmente diferente daquilo que os apóstolos e outros sob a sua autoridade
deixaram como os
fundamentos do cristianismo.
Portanto, a contribuição que esse evangelho oferece não é para o
cristianismo, mas para o próprio gnosticismo. Através dele é possível conhecer
mais alguns aspectos desse sistema de
pensamento. Desses, o mais importante
é a versão de que Judas não teria sido um traidor, mas um aliado de Jesus e o
único que realmente compreendeu a essência e a missão do seu mestre. Essa
versão era desconhecida na literatura gnóstica, até então.
Outros pontos de concordância
desse evangelho com os postulados comuns da literatura gnóstica, como vistos
neste trabalho, são os de que o mundo foi criado por um deus inferior e
imperfeito (Saklas) e, por isso, é imperfeito; a missão de Jesus foi revelar
mistérios a alguns (no caso, a Judas) enquanto outros são mantidos na ignorância (o restante dos
discípulos e sua geração continuavam servindo a um deus falso – o criador deste mundo); a morte é
um meio de libertação do espírito (tanto no caso de Jesus como no de Judas e da
sua geração); a ressurreição física não desempenha qualquer papel no esquema da
salvação – por isso nem é mencionada, pois os gnósticos não creem nela como modo
de aperfeiçoamento; a vida eterna (salvação) é vista como a migração do espírito
deste corpo para o mundo espiritual, e não como a restauração do indivíduo todo
(corpo e alma) ao estado de perfeição objetivado por Deus.
Por tudo isso, o documento não representa
qualquer abalo nos fundamentos do cristianismo. Ele nada acrescenta nem diminui
àquilo que tem sido conhecido e aceito como as doutrinas básicas do
cristianismo histórico. Porém, há os que podem tirar proveito dessa descoberta.
Aos estudiosos do gnosticismo, como já foi dito, ela serviu para mostrar novas
facetas desse diversificado sistema de crenças e suposições que tem atravessado
os séculos.
Para aqueles
cujo interesse comercial
está acima do interesse
pela verdade, caso de alguns editores de revistas
seculares, por exemplo, foi uma oportunidade para aumentar as suas vendas com
chamadas sensacionalistas para o que, supostamente, seria um achado que
desacreditaria o cristianismo. Já para os que não aceitam o caráter histórico
do conteúdo dos escritos canônicos, nem o teísmo clássico que caracteriza a fé
cristã, e estão à busca de ocasião para justificar o seu pluralismo teológico e
defender um conceito pós-moderno de verdade, não é este o documento que viria
satisfazer as suas expectativas. É de se supor que os que não suportam a “sã
doutrina”, conforme a linguagem de Paulo, continuem sentindo “coceira nos
ouvidos” (2Tm 4.3).