FILOSOFIA CLÁSSICA
Os Pré-Socráticos
A
 característica fundamental do pensamento grego está na solução dualista
 do problema metafísico-teológico, isto é, na solução das relações entre
 a realidade empírica e o Absoluto que a explique, entre o mundo e Deus,
 em que Deus e mundo ficam separados um do outro. Consequência desse 
dualismo é o irracionalismo, em que fatalmente finaliza a serena 
concepção grega do mundo e da vida. O mundo real dos indivíduos e do 
“vir-a-ser” depende do princípio eterno da matéria obscura, que tende 
para Deus como o imperfeito para o perfeito; assimila em parte, a 
racionalidade de Deus, mas nunca pode chegar até ele porque dele não 
deriva. E a consequência desse irracionalismo outra não pode ser senão o
 pessimismo: um pessimismo desesperado, porque o grego tinha 
conhecimento de um absoluto racional, de Deus, mas estava também 
convicto de que ele não cuida do mundo e da humanidade, que não criou, 
não conhece, nem governa; e pensava, pelo contrário, que a humanidade é 
governada pelo Fado, pelo Destino, a saber, pela necessidade irracional.
 O último remédio desse mal da existência será procurado no ascetismo, 
considerando-o como a solidão interior e a indiferença heroica para com 
tudo, a resignação e a renúncia absoluta.
O Gênio Grego
A característica do gênio filosófico grego pode-se compendiar em alguns traços fundamentais: racionalismo, ou seja, a consciência do valor supremo do conhecimento racional; esse racionalismo não é, porém, abstrato, absoluto, mas se integra na experiência, no conhecimento sensível; o conhecimento, pois, não é fechado em si mesmo, mas aberto para o ser, é apreensão (realismo); e esse realismo não se restringe ao âmbito da experiência, mas a transpõe, a transcende para o absoluto, do mundo a Deus, sem o qual o mundo não tem explicação; embora, para os gregos, o "conhecer" - a contemplação, o teorético, o intelecto - tenham a primazia sobre o "operar" - a ação, o prático, a vontade - o segundo elemento, todavia, não é anulado pelo primeiro, mas está a ele subordinado; e o otimismo grego, consequência lógica do seu próprio racionalismo, cederá lugar ao pessimismo, quando se manifestar toda a irracionalidade da realidade, quando o realismo impuser tal concepção. Todos esses elementos vêm sendo, ainda, organizados numa síntese insuperável, numa unidade harmônica, realizada por meio de um desenvolvimento também harmônico, aperfeiçoado mediante uma crítica profunda. Entre as raças gregas, a cultura e a filosofia são devidas, sobretudo, aos jônios, sendo jônios também os atenienses.
Divisão da
História da Filosofia Grega
Os Períodos Principais do Pensamento Grego
Consoante a ordem cronológica e a
marcha evolutiva das ideias pode dividir-se a história da filosofia grega em
quatro períodos:
I. Período pré-socrático (séc.
VII - V a.C.) - Problemas cosmológicos. Período Naturalista: pré-socrático, em
que o interesse filosófico é voltado para o mundo da natureza;
II. Período socrático (séc. IV
a.C.) - Problemas metafísicos. Período Sistemático ou Antropológico: o período
mais importante da história do pensamento grego (Sócrates, Platão,
Aristóteles), em que o interesse pela natureza é integrado com o interesse pelo
espírito e são construídos os maiores sistemas filosóficos, culminando com Aristóteles;
III. Período pós-socrático (séc.
IV a.C. - VI p.C.) - Problemas morais. Período Ético: em que o interesse
filosófico é voltado para os problemas morais, decaindo, entretanto a
metafísica;
IV. Período Religioso: assim
chamado pela importância dada à religião, para resolver o problema da vida, que
a razão não resolve integralmente. O primeiro período é de formação, o segundo
de apogeu, o terceiro de decadência.
Primeiro Período
O
 primeiro período do pensamento grego toma a denominação substancial de 
período naturalista, porque a nascente especulação dos filósofos é 
instintivamente voltada para o mundo exterior, julgando-se encontrar aí 
também o princípio unitário de todas as coisas; e toma a denominação 
cronológica de período pré-socrático, porque precede Sócrates e os 
sofistas, que marcam uma mudança e um desenvolvimento e, por 
conseguinte, o começo de um novo período na história do pensamento 
grego. Esse primeiro período tem início no alvor do VI século a.C., e 
termina dois séculos depois, mais ou menos, nos fins do século V. Surge e
 floresce fora da Grécia propriamente dita, nas prósperas colônias 
gregas da Ásia Menor, do Egeu (Jônia) e da Itália meridional, da 
Sicília, favorecido sem dúvida na sua obra crítica e especulativa pelas 
liberdades democráticas e pelo bem-estar econômico. Os filósofos deste 
período preocuparam-se quase exclusivamente com os problemas 
cosmológicos. Estudar o mundo exterior nos elementos que o constituem, 
na sua origem e nas contínuas mudanças a que está sujeito, é a grande 
questão que dá a este período seu caráter de unidade. Pelo modo de a 
encarar e resolver, classificam-se os filósofos que nele floresceram em 
quatro escolas: Escola Jônica; Escola Itálica; Escola Eleática; Escola 
Atomística.
Escola Jônica
Tales de Mileto - (624-548 a.C.) "Água"
Segundo
 Aristóteles sobre a teoria de Tales: elemento estático e elemento 
dinâmico. Elemento Estático - a flutuação sobre a água. Elemento 
Dinâmico - a geração e nutrição de todas as coisas pela água. Tales 
acreditava em uma "alma do mundo", havia um espírito divino que formava 
todas as coisas da água. Tales sustentava ser a água a substância de 
todas as coisas.
Anaximandro de Mileto (611-547 A.C.) "Ápeiron"
Fragmentos
"Imortal...
 e imperecível (o ilimitado enquanto o divino) - Aristóteles, Física". 
Esta (a natureza do ilimitado, ele diz que) é sem idade e sem velhice. 
Hipólito, Refutação.
Anaxímenes de Mileto (588-524 A.C.) "Ar"
Fragmentos
"O
 contraído e condensado da matéria ele diz que é frio, e o ralo e o 
frouxo (é assim que ele expressa) é quente". (Plutarco). "Com nossa 
alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim também todo o 
cosmo sopro e ar o mantém". (Aécio).
Vida de Heráclito   
Filosofia de Heráclito
Heráclito concebe o próprio absoluto como processo, como a própria dialética. A dialética é: 
A. Dialética exterior, um raciocinar de cá para lá e não a alma da coisa dissolvendo-se a si mesma;
B. Dialética imanente do objeto, situando-se, porém, na contemplação do sujeito; 
C. Objetividade de Heráclito, isto é, compreender a própria dialética como princípio.
É
 o progresso necessário, e é aquele que Heráclito fez. O ser é o um, o 
primeiro; o segundo é o devir - até esta determinação avançou ele. Isto é
 o primeiro concreto, o absoluto enquanto nele se dá a unidade dos 
opostos. Nele encontra-se, portanto, pela primeira vez, a ideia 
filosófica em sua forma especulativa; o raciocínio de Parmênides e Zenão
 é entendimento abstrato; por isso Heráclito foi tido como filósofo 
profundo e obscuro e como tal criticado. 
O
 que nos é relatado da filosofia de Heráclito parece, à primeira vista, 
muito contraditório; mas nela se pode penetrar com o conceito e assim 
descobrir, em Heráclito, um homem de profundos pensamentos. Ele é a 
plenitude da consciência até ele - uma consumação da ideia na totalidade
 que é o início da Filosofia ou expressa a essência da ideia, o 
infinito, aquilo que é.
O Princípio Lógico
O
 princípio universal. Este espírito arrojado pronunciou pela primeira 
vez esta palavra profunda: "O ser não é mais que o não-ser", nem é 
menos; ou ser e nada são o mesmo, a essência é mudança. O verdadeiro é 
apenas como a unidade dos opostos; nos eleatas, temos apenas o 
entendimento abstrato, isto é, apenas o ser é. Dizemos, em lugar da 
expressão de Heráclito: O absoluto é a unidade do ser e do não-ser. Se 
ouvimos aquela frase "O ser não é mais que o não-ser", desta maneira, 
não parece, então, produzir muito sentido, apenas destruição universal, 
ausência de pensamento. Temos, porém, ainda uma outra expressão que 
aponta mais exatamente o sentido do princípio. Pois Heráclito diz: "Tudo
 flui (panta rei), nada persiste, nem permanece o mesmo". E Platão ainda
 diz de Heráclito: "Ele compara as coisas com a corrente de um rio - que
 não se pode entrar duas vezes na mesma corrente"; o rio corre e toca-se
 outra água. Seus sucessores dizem até que nele nem se pode mesmo 
entrar, pois que imediatamente se transforma; o que é, ao mesmo tempo já
 novamente não é. Além disso, Aristóteles diz que Heráclito afirma que é
 apenas um o que permanece; disto todo o resto é formado, modificado, 
transformado; que todo o resto fora deste um flui, que nada é firme, que
 nada se demora; isto é, o verdadeiro é o devir, não o ser - a 
determinação mais exata para este conteúdo universal é o devir. Os 
eleatas dizem: só o ser é, é o verdadeiro; a verdade do ser é o devir; 
ser é o primeiro pensamento enquanto imediato. Heráclito diz: Tudo é 
devir; este devir é o princípio. Isto está na expressão: "O ser é tão 
pouco como o não-ser; o devir é e também não é". As determinações 
absolutamente opostas estão ligadas numa unidade; nela temos o ser e 
também o não-ser. Dela faz parte não apenas o surgir, mas também o 
desaparecer; ambos não são para si, mas são idênticos. É isto que 
Heráclito expressou com suas sentenças. O não ser é, por isso é o 
não-ser, e o não-ser é, por isso é o ser; isto é a verdade da identidade
 de ambos. 
 É
 um grande pensamento passar do ser para o devir; é ainda abstrato, mas,
 ao mesmo tempo, também é o primeiro concreto, a primeira unidade de 
determinações opostas. Estas estão inquietas nesta relação, nela está o 
princípio da vida. Com isto está preenchido o vazio que Aristóteles 
apontou nas antigas filosofias - a falta de movimento; este movimento é 
aqui, agora mesmo, princípio.
É
 um grande pensamento passar do ser para o devir; é ainda abstrato, mas,
 ao mesmo tempo, também é o primeiro concreto, a primeira unidade de 
determinações opostas. Estas estão inquietas nesta relação, nela está o 
princípio da vida. Com isto está preenchido o vazio que Aristóteles 
apontou nas antigas filosofias - a falta de movimento; este movimento é 
aqui, agora mesmo, princípio.
É
 uma grande convicção que se adquiriu, quando se reconheceu que o ser e o
 nada são abstrações sem verdade, que o primeiro elemento verdadeiro é o
 devir. O entendimento separa a ambos como verdadeiros e de valor; a 
razão, pelo contrário, reconhece um no outro, que num está contido seu 
outro - e assim o todo, o absoluto deve ser determinado como o devir. 
Heráclito
 também diz que os opostos são características do mesmo, como, por 
exemplo, "o mel é doce e amargo" - ser e não-ser ligam-se ao mesmo. 
Sexto observa: Heráclito parte, como os céticos, das representações 
correntes dos homens; ninguém negará que os sãos dizem do mel que é 
doce, e os que sofrem de icterícia que é amargo - se fosse apenas doce, 
não poderia modificar sua natureza através de outra coisa e assim também
 para os que sofrem de icterícia seria doce. Zenão começa a sobressumir 
os predicados opostos e aponta no movimento aquilo que se opõe - um por 
limites e um sobressumir os limites; Zenão só exprimiu o infinito pelo 
seu lado negativo -, por causa de sua contradição, como o não 
verdadeiro. Em Heráclito, vemos o infinito como tal expresso como 
conceito e essência: o infinito, que é em si e para si, é a unidade dos 
opostos e, na verdade, dos universalmente opostos, da pura oposição, ser
 e não-ser. Tomamos nós o ente em si e para si, não a representação do 
ente, do pleno, assim o puro ser é o pensamento simples, em que todo o 
determinado é negado, o absolutamente negativo - nada é o mesmo, apenas 
este igual a si mesmo -, passagem absoluta para o oposto, ao qual Zenão 
não chegou! "Do nada, nada vem." Em Heráclito o momento da negatividade é
 imanente; disto trata o conceito de toda a Filosofia. 
Primeiro
 tivemos a abstração de ser e não-ser, numa forma bem imediata e 
universal; mais exatamente, porém, também Heráclito concebeu as 
oposições de maneira mais determinada. É esta unidade de real e ideal, 
de objetivo e subjetivo; o objetivo somente é o devir subjetivo. Este 
verdadeiro é o processo do devir; Heráclito expressou de modo 
determinado este pôr-se numa unidade das diferenças. Aristóteles diz, 
por exemplo, que Heráclito "ligou o todo e o não-todo" (parte) - o todo 
se torna parte e a parte o é para se tornar o todo -, o "que se une e se
 opõe", do mesmo modo, "o que concorda e o dissonante"; e de que de tudo
 (que se opõe) resulta um, e de um tudo. Este um não é o abstrato, a 
atividade de dirimir-se; a morta infinitude é uma má abstração em 
oposição a esta profundidade que vemos em Heráclito. Sexto Empírico cita
 o seguinte que Heráclito teria dito: A parte é algo diferente do todo; 
mas é também o mesmo que o todo é; a substância é o todo e a parte. O 
fato de Deus ter criado o mundo Ter-se dividido a si mesmo, gerado seu 
Filho, etc. - todos estes elementos concretos estão contidos nesta 
determinação. Platão diz, em seu Banquete, sobre o princípio de 
Heráclito: "O um, diferenciado de si mesmo, une-se consigo mesmo" - este
 é o processo da vida, "como a harmonia do arco e da lira". Deixa então 
que Erixímaco, que fala no Banquete, critique o fato de a harmonia ser 
desarmônica ou se componha de opostos, pois que a harmonia se formaria 
de altos e baixos, mas da unidade pela arte da música. Mas isto não 
contradiz Heráclito, que justamente quer isto. O simples, a repetição de
 um único som não é harmonia. Da harmonia faz parte a diferença; é 
preciso que haja essencial e absolutamente uma diferença. Esta harmonia é
 precisamente o absoluto devir, transformar-se - não devir outro, agora 
este, depois aquele. O essencial é que cada diferente, cada particular 
seja diferente de um outro - mas não de um abstrato qualquer outro, mas 
de seu outro; cada um apenas é, na medida em que seu outro em si esteja 
consigo, em seu conceito. Mudança é unidade, relação de ambos a um, um 
ser, este e o outro. Na harmonia e no pensamento concordamos que seja 
assim; vemos, pensamos a mudança, a unidade essencial. O espírito 
relaciona-se na consciência com o sensível e este sensível é seu outro. 
Assim também no caso dos sons; devem ser diferentes, mas de tal maneira 
que também possam ser unidos - e isto os sons são em si. Da harmonia faz
 parte determinada oposição, seu oposto, como na harmonia das cores. A 
subjetividade é o outro da objetividade, não de um pedaço de papel - o 
absurdo disto logo se mostra - , deve ser seu outro, e nisto reside sua 
identidade; assim cada coisa é o outro do outro enquanto seu outro. Este
 é o grande princípio de Heráclito; pode parecer obscuro, mas é 
especulativo; e isto é, para o entendimento que segura para si o ser, o 
não-ser, o subjetivo e objetivo, o real e o ideal, sempre obscuro. 
Os Modos da Realidade
Heráclito
 não ficou parado, em sua exposição, nesta expressão em conceitos, no 
puro lógico, mas além desta forma universal, na qual expôs seu 
princípio, deu à sua ideia também uma expressão real. Esta figura pura é
 precipuamente de natureza cosmológica, ou sua forma é mais a forma 
natural; por isso, é incluído ainda na Escola Jônica, e com isto deu 
novos impulsos à filosofia da natureza. Sobre esta forma real de seu 
princípio os historiadores, contudo, não estão de acordo entre si. A 
maioria diz que ele teria posto a essência ontológica como fogo, outros 
dizem que como ar, outros dizem que antes o vapor que o ar; mesmo o 
tempo é citado, em Sexto, como o primeiro ser do ente. A questão é a 
seguinte: Como compreender esta diversidade? Não se deve absolutamente 
crer que se deva atribuir estas notícias à negligência dos escritores, 
pois as testemunhas são as melhores, como Aristóteles e Sexto Empírico, 
que não falam destas formas de passagem, mas de modo bem determinado, 
sem, no entanto, chamar a atenção para estas diferenças e contradições. 
Uma outra razão mais próxima parece-nos resultar da obscuridade do 
escrito de Heráclito, o qual, na confusão de seu modo de expressão, 
poderia dar motivos para mal-entendidos. Mas, considerando mais 
detidamente, esta dificuldade desaparece; esta mostra-se mais para uma 
análise superficial; no conceito profundo de Heráclito acha-se a 
verdadeira saída deste empecilho. De maneira alguma podia Heráclito 
afirmar, como Tales, que a água ou o ar ou coisa semelhante seria a 
essência absoluta; e não o podia afirmar como um primeiro donde emanaria
 o outro, na medida em que pensou ser como idêntico como o não-ser ou no
 conceito infinito. Assim, portanto, a essência absoluta que é não pode 
surgir nele como uma determinidade existente, por exemplo, a água, mas a
 água enquanto se transforma, ou apenas o processo. 
A.
 - Processo abstrato, tempo. Heráclito, portanto, disse que o tempo é o 
primeiro ser corpóreo, como exprime Sexto. "Corpóreo" é uma expressão 
inadequada. Os céticos escolhiam muitas vezes as expressões mais 
grosseiras ou tornavam os pensamentos grosseiros para mais facilmente 
liquidá-los. "Corpóreo" significa sensibilidade abstrata; o tempo é a 
intuição abstrata do processo; diz que ele é o primeiro ser sensível. O 
tempo, portanto, é a essência verdadeira. Na medida em que Heráclito não
 parou na expressão lógica do devir, mas deu a seu princípio a forma de 
um ente, deduz-se disto que primeiro tinha que oferecer-se a forma do 
tempo; pois precisamente, no sensível, no que se pode ver, o tempo é o 
primeiro que se oferece como o devir; é a primeira forma do devir. 
Enquanto intuído, o tempo é o puro devir. O tempo é puro transformar-se,
 é o puro conceito, o simples, que é harmônico a partir de absolutamente
 opostos. Sua essência é ser e não-ser, sem outra determinação - ser 
puro e abstrato não-ser, postos imediatamente numa unidade e ao mesmo 
tempo separados. Não como se o tempo fosse e não fosse, mas o tempo é 
isto: no ser imediatamente não-ser e no não-ser imediatamente ser - esta
 mudança de ser para não-ser, este conceito abstrato, é, porém, visto de
 maneira objetiva, enquanto é para nós. No tempo não é o passado e o 
futuro, somente o agora; e este é, para não ser, está logo destruído, 
passado - e este não-ser passa, do mesmo modo, para o ser, pois ele é. É
 a abstrata contemplação desta mudança. Se tivéssemos de dizer como 
aquilo que Heráclito reconheceu como a essência existe para a 
consciência, nesta pura forma em que ele o reconheceu, não haveria outra
 que nomear a não ser o tempo; é, por conseguinte, absolutamente certo 
que a primeira forma do que devém é o tempo; assim isto se liga ao 
princípio do pensamento de Heráclito. 
B.
 - A forma real como processo, fogo. Mas este puro conceito objetivo 
deve realizar-se mais. No tempo estão os momentos, ser e não-ser, postos
 apenas negativamente ou como momentos que imediatamente desaparecem. 
Além disso, Heráclito determinou o processo de um modo mais físico. O 
tempo é intuição, mas inteiramente abstrata. Se quisermos 
representar-nos o que ele é, de modo real, isto é, expressar ambos os 
momentos como uma totalidade para si, como subsistente, então levanta-se
 a questão: que ser físico corresponde a esta determinação? O tempo, 
dotado de tais momentos, é o processo; compreender a natureza significa 
apresentá-la como processo. Este é o elemento verdadeiro de Heráclito e o
 verdadeiro conceito; por isso, logo compreendemos que Heráclito não 
podia dizer que a essência é o ar ou a água ou coisas semelhantes, pois 
eles mesmos não são (isto é o próximo) o processo. O fogo, porém, é o 
processo: assim afirmou o fogo como a primeira essência - e este é o 
modo real do processo heracliteano, a alma e a substância do processo da
 natureza. Justamente no processo distinguem-se os momentos, como no 
movimento: 
1. o puro momento negativo,
2. os momentos da oposição subsistente, água e ar, e
3. a totalidade em repouso, a terra. A vida da natureza é o processo destes momentos: a divisão da totalidade em repouso da terra na oposição, o pôr desta oposição, destes momentos - e a unidade negativa, o retorno para a unidade, o queimar da oposição subsistente. O fogo é o tempo físico; ele é esta absoluta inquietude, absoluta dissolução do que persiste - o desaparecer de outros, mas também de si mesmo; ele não é permanente. Por isso compreendemos (é inteiramente consequente) por que Heráclito pode nomear o fogo como o conceito do processo de sua determinação fundamental.
1. o puro momento negativo,
2. os momentos da oposição subsistente, água e ar, e
3. a totalidade em repouso, a terra. A vida da natureza é o processo destes momentos: a divisão da totalidade em repouso da terra na oposição, o pôr desta oposição, destes momentos - e a unidade negativa, o retorno para a unidade, o queimar da oposição subsistente. O fogo é o tempo físico; ele é esta absoluta inquietude, absoluta dissolução do que persiste - o desaparecer de outros, mas também de si mesmo; ele não é permanente. Por isso compreendemos (é inteiramente consequente) por que Heráclito pode nomear o fogo como o conceito do processo de sua determinação fundamental.
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"Os homens são deuses mortais e os deuses, homens imortais; viver é-lhes morte e morrer é-lhes vida".
"Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos".
Segundo
 o pitagorismo, a essência, o princípio essencial de que são compostas 
todas as coisas, é o número, ou seja, as relações matemáticas. Os 
pitagóricos, não distinguindo ainda bem forma, lei e matéria, substância
 das coisas, consideraram o número como sendo a união de um e outro 
elemento. Da racional concepção de que tudo é regulado segundo relações 
numéricas, passa-se à visão fantástica de que o número seja a essência 
das coisas.
Mas,
 achada a substância una e imutável das coisas, os pitagóricos se acham 
em dificuldades para explicar a multiplicidade e o vir-a-ser, 
precisamente mediante o uno e o imutável. E julgam poder explicar a 
variedade do mundo mediante o concurso dos opostos, que são - segundo os
 pitagóricos - o ilimitado e o limitado, ou seja, o par e o ímpar, o 
imperfeito e o perfeito. O número divide-se em par, que não põe limites à
 divisão por dois, e, por conseguinte, é ilimitado (quer dizer, 
imperfeito, segundo a concepção grega, a qual via a perfeição na 
determinação); e ímpar, que põe limites à divisão por dois e, portanto, é
 limitado, determinado, perfeito. Os elementos constitutivos de cada 
coisa - sendo cada coisa número - são o par e o ímpar, o ilimitado e o 
limitado, o pior e o melhor. Radical oposição esta, que explicaria o 
vir-a-ser e o multíplice, que seriam reconduzidos à concordância e à 
unidade pela fundamental harmonia (matemática), que governa e deve 
governar o mundo material e moral, astronômico e sonoro.
Como
 a filosofia da natureza, assim a astronomia pitagórica representa um 
progresso sobre a jônica. De fato, os pitagóricos afirmaram a 
esfericidade da Terra e dos demais corpos celestes, bem como a rotação 
da Terra, explicando assim o dia e a noite; e afirmaram também a 
revolução dos corpos celestes em torno de um foco central, que não se 
deve confundir com o Sol. Pelo que diz respeito à moral, enfim, dominam 
no pitagorismo o conceito de harmonia, logicamente conexo com a 
filosofia pitagórica, e as práticas ascéticas e abstinenciais, com 
relação à metempsicose e à reencarnação das almas.
Para
 compreendermos seus princípios fundamentais, é preciso partir do 
eleatismo. Como é possível uma pluralidade? Pelo fato de o não-ser ter 
um ser. Portanto, identificam o não-ser ao Ápeiron de Anaximandro, ao 
absolutamente Indeterminado, àquilo que não tem nenhuma qualidade; a 
isso opõe-se o absolutamente Determinado, o Péras. Mas ambos compõem o 
Uno, do qual se pode dizer que é impar, delimitado e ilimitado, 
inqualificado e qualificado. Dizem, pois, contra o eleatismo, que, se o 
Uno existe, foi em todo caso formado por dois princípios, pois, nesse 
caso, há também uma pluralidade; da unidade procede a série dos números 
aritméticos (monádicos), depois os números geométricos ou grandezas 
(formas espaciais). Portanto, a Unidade veio a ser; portanto, há também 
uma pluralidade. Desde que se têm o ponto, a linha, as superfícies e os 
corpos, têm-se também os objetos materiais; o número é a essência 
própria das coisas. Os eleatas dizem: "Não há não-ser, logo, tudo é uma 
unidade". Os pitagóricos: "A própria unidade é o resultado de um ser e 
de um não-ser, portanto há, em todo caso, não-ser e, portanto, também 
uma pluralidade".
À
 primeira vista, é uma especulação totalmente insólita. O ponto de 
partida me parece ser a apologia da ciência matemática contra o 
eleatismo. Lembramo-nos da dialética de Parmênides. Nela, é dito da 
Unidade (supondo que não existe pluralidade):
1) que ela não tem partes e não é um todo;
2) que tampouco tem limites;
3) portanto, que não está em parte nenhuma;
4) que não pode nem mover-se nem estar em repouso, etc. Mas, por outro lado, o Ser e a Unidade dão a Unidade existente, portanto a diversidade, e as partes múltiplas, e o número, e a pluralidade do ser, e a delimitação, etc. É um procedimento análogo: ataca-se o conceito da Unidade existente porque comporta os predicados contraditórios e é, portanto, um conceito contraditório, impossível. Os matemáticos pitagóricos acreditavam na realidade das leis que haviam descoberto; bastava-lhes que fosse afirmada a existência da Unidade para deduzir dela também a pluralidade. E acreditavam discernir a essência verdadeira das coisas em suas relações numéricas. Portanto, não há qualidades, não há nada além de quantidades, não quantidades de elementos (água, fogo, etc.), mas delimitações do ilimitado, do Ápeiron; este é análogo ao ser potencial da hyle de Aristóteles. Assim, toda coisa nasce de dois fatores opostos. De novo, aqui, dualismo. Notável quadro estabelecido por Aristóteles (Metaf. I, 5): delimitado, ilimitado; ímpar, par; uno, múltiplo; direita, esquerda; masculino, feminino; imóvel, agitado; reto, curvo; luz, trevas; bom, mau; quadrado, ablongo. De um lado têm-se, portanto: delimitado, ímpar, uno, direita, masculino, imóvel, reto, luz, bom, quadrado. De outro lado, ilimitado, par, múltiplo, esquerda, feminino, agitado, curvo, trevas, mau, ablongo. Isso lembra o quadro-modelo de Parmênides. O ser é luz e, portanto, sutil, quente, ativo; o não-ser é noite e, portanto, denso, frio, passivo.
1) que ela não tem partes e não é um todo;
2) que tampouco tem limites;
3) portanto, que não está em parte nenhuma;
4) que não pode nem mover-se nem estar em repouso, etc. Mas, por outro lado, o Ser e a Unidade dão a Unidade existente, portanto a diversidade, e as partes múltiplas, e o número, e a pluralidade do ser, e a delimitação, etc. É um procedimento análogo: ataca-se o conceito da Unidade existente porque comporta os predicados contraditórios e é, portanto, um conceito contraditório, impossível. Os matemáticos pitagóricos acreditavam na realidade das leis que haviam descoberto; bastava-lhes que fosse afirmada a existência da Unidade para deduzir dela também a pluralidade. E acreditavam discernir a essência verdadeira das coisas em suas relações numéricas. Portanto, não há qualidades, não há nada além de quantidades, não quantidades de elementos (água, fogo, etc.), mas delimitações do ilimitado, do Ápeiron; este é análogo ao ser potencial da hyle de Aristóteles. Assim, toda coisa nasce de dois fatores opostos. De novo, aqui, dualismo. Notável quadro estabelecido por Aristóteles (Metaf. I, 5): delimitado, ilimitado; ímpar, par; uno, múltiplo; direita, esquerda; masculino, feminino; imóvel, agitado; reto, curvo; luz, trevas; bom, mau; quadrado, ablongo. De um lado têm-se, portanto: delimitado, ímpar, uno, direita, masculino, imóvel, reto, luz, bom, quadrado. De outro lado, ilimitado, par, múltiplo, esquerda, feminino, agitado, curvo, trevas, mau, ablongo. Isso lembra o quadro-modelo de Parmênides. O ser é luz e, portanto, sutil, quente, ativo; o não-ser é noite e, portanto, denso, frio, passivo.
O ponto de partida que permite afirmar que tudo o que é qualitativo é quantitativo encontra-se na acústica.
Teoria das cordas sonoras; relação de intervalos; modo dórico.
A
 música, com efeito, é o melhor exemplo do que queriam dizer os 
pitagóricos. A música, como tal, só existe em nossos nervos e em nosso 
cérebro; fora de nós ou em si mesma (no sentido de Locke), compõe-se 
somente das relações numéricas quanto ao ritmo, se se trata de sua 
quantidade, e quanto à tonalidade, se se trata de sua qualidade, 
conforme se considere o elemento harmônico ou o elemento rítmico. No 
mesmo sentido, poder-se-ia exprimir o ser do universo, do qual a música 
é, pelo menos em certo sentido, a imagem, exclusivamente com o auxílio 
de números. E tal é, estritamente, o domínio da química e das ciências 
naturais. Trata-se de encontrar fórmulas matemáticas para as forças 
absolutamente impenetráveis. Nossa ciência é, nesse sentido, pitagórica.
 Na química, temos uma mistura de atomismo e de pitagorismo, para a qual
 Ecphantus na Antiguidade passa por ter aberto o caminho.
A
 contribuição original dos pitagóricos é, pois, uma invenção 
extremamente importante: a significação do número e, portanto, a 
possibilidade de uma investigação exata em física. Nos outros sistemas 
de física, tratava-se sempre de elementos e de sua combinação. As 
qualidades nasciam por combinação ou por dissociação; agora, enfim, 
afirma-se que as qualidades residem na diversidade das proporções. Mas 
esse pressentimento estava ainda longe da aplicação exata. Contentou-se,
 provisoriamente, com analogias fantasiosas.
Se
 se pergunta a que se pode vincular a filosofia pitagórica, encontra-se,
 inicialmente, o primeiro sistema de Parmênides, que fazia nascer todas 
as coisas de uma dualidade; depois, o Ápeiron de Anaximandro, delimitado
 e movido pelo fogo de Heráclito. Mas estes são apenas, evidentemente, 
problemas secundários; na origem há a descoberta das analogias numéricas
 no universo, ponto de vista inteiramente novo. Para defender essa ideia
 contra a doutrina unitária dos eleatas, tiveram de erigir a noção de 
número, foi preciso que também a Unidade tivesse vindo a ser; retomaram 
então a idéia heraclitiana do pólemos, pai de todas as coisas, e da 
Harmonia que une as qualidades opostas; a essa força, Parmênides chamava
 Aphrodite. Simbolizava a gênese de todas as coisas a partir da oitava. 
Decompuseram os dois elementos de que nasce o número em par e ímpar. 
Identificaram essas noções com termos filosóficos já usuais. Chamar o 
Ápeiron de Par é sua grande inovação; isso porque os ímpares, os 
gnómones, davam nascimento a uma série limitada de números, os números 
quadrados. Remetem-se, assim, a Anaximandro, que reaparece aqui pela 
última vez. Mas identificam esse limite com o fogo de Heráclito, cuja 
tarefa é, agora, dissolver o indeterminado em tantas relações numéricas 
determinadas; é essencialmente uma força calculadora. Se houvessem 
tomado emprestado de Heráclito a palavra lógos, teriam entendido por ela
 a proporção (aquilo que fixa as proporções, como o Péras fixa o 
limite). Sua idéia fundamental é esta: a matéria, que é representada 
inteiramente destituída de qualidade, somente por relações numéricas 
adquire tal ou tal qualidade determinada. Tal é a resposta dada ao 
problema de Anaximandro. O vir-a-ser é um cálculo. Isso lembra a palavra
 de Leibniz, ao dizer que a música é "exercitium arithmeticae occultum 
nescientis se numerare animi" (¹). Os pitagóricos teriam podido dizer o 
mesmo do universo, mas sem poder dizer quem faz o cálculo.
(¹) O exercício de aritmética oculto do espírito que não sabe calcular.
A
 força mística do grande filósofo e reformador religioso, há 2.600 anos 
vem, poderosamente, influindo no pensamento Ocidental. Dentre as 
religiões de mistérios, de caráter iniciático, a doutrina pitagórica foi
 a que mais se difundiu na antiguidade.
Não
 consideramos apenas lenda o que se escreveu sobre essa vida 
maravilhosa, porque há, nessas descrições, sem dúvida, muito de 
histórico do que é fruto da imaginação e da cooperação ficcional dos que
 se dedicaram a descrever a vida do famoso filósofo de Samos.
O
 fato de negar-se, peremptoriamente, a historicidade de Pitágoras (como 
alguns o fazem), por não se ter às mãos documentação bastante, não 
impede que seja o pitagorismo uma realidade empolgante na história da 
filosofia, cuja influência atravessa os séculos até nossos dias.
Acontece
 com Pitágoras o que aconteceu com Shakespeare, cuja existência foi 
tantas vezes negada. Se não existiu Pitágoras de Samos, houve com 
certeza alguém que construiu essa doutrina, e que, por casualidade, 
chamava-se Pitágoras. Podemos assim parafrasear o que foi dito quanto a 
Shakespeare. Mas, pondo de lado esses escrúpulos ingênuos de certos 
autores, que preferem declará-lo como não existente, como se houvesse 
maior validez na negação da sua historicidade do que na sua afirmação, 
vamos a seguir relatar algo, sinteticamente, em torno dessa lenda.
Em
 1917, perto de Porta Maggiori, sob os trilhos da estrada de ferro, que 
liga Roma a Nápoles, foi descoberta uma cripta, que se julgou a 
princípio fosse a porta de uma capela cristã subterrânea. Posteriormente
 verificou-se que se tratava de uma construção realizada nos tempos de 
Cláudio, por volta de 41 a 54 d.C., e que nada mais era do que um 
templo, onde se reuniam os membros de uma seita misteriosa, que, afinal, averiguou-se ser pitagórica. Sabe-se hoje, com base histórica, que 
antes, já em tempos de César, proliferavam os templos pitagóricos, e se 
essa seita foi tão combatida, deve-se mais ao fato de ser secreta do que
 propriamente por suas ideias. Numa obra, hoje cara aos pitagóricos, 
Carcopino (La Brasilique pythagoricienne de la Porte Majeure) dá-nos um 
amplo relato desse templo. E foi inegavelmente essa descoberta tão 
importante que impulsionou novos estudos, que se realizaram sobre a 
doutrina de Pitágoras, os quais tendem a mostrar o grande papel que 
exerceu na história, durante vinte e cinco séculos, essa ordem, que 
ainda existe e tem seus seguidores, embora esteja, em nossos dias, como 
já esteve no passado, irremediavelmente infectada de ideias estranhas 
que, ao nosso ver, desvirtuam o pensamento genuíno de Pitágoras de 
Samos.
É
 aceito quase sem divergência por todos que se debruçaram a estudar a 
sua vida, que Pitágoras nasceu em Samos, entre 592 a 570 antes da nossa 
era; ou seja, naquele mesmo século em que surgiram tantos grandes 
condutores de povos e criadores de religiões, como foi Gautama Buda, 
Zoroastro (Zaratustra), Confúcio e Lao Tsé.
Inúmeras
 são as divergências sobre a verdadeira nacionalidade de Pitágoras, pois
 uns afirmam ter sido ele de origem egípcia; outros, síria ou, ainda, 
natural de Tiro.
Relata
 a lenda que Pitágoras, cujo nome significa o Anunciador pítico 
(Pythios), era filho de Menesarco e de Partêmis, ou Pythaia. Tendo esta,
 certa vez, levado o filho à Pítia de Delfos, esta sacerdotiza 
vaticinou-lhe um grande papel, o que levou a mãe a devotar-se com o 
máximo carinho à sua educação. Consta que Pitágoras, que desde criança 
se revelava prodigioso, teve como primeiros mestres a Hermodamas de 
Samos até os 18 anos, depois Ferécides de Siros, tendo sido, 
posteriormente, aluno de Tales, em Mileto, e ouvinte das conferências de
 Anaximandro. Foi depois discípulo de Sonchi, um sacerdote egípcio, 
tendo, também, conhecido Zaratos, o assírio Zaratustra ou Zoroastro, em 
Babilônia, quando de sua estada nessa grande metrópole da antiguidade.
Conta-nos,
 ainda, a lenda que o hierofante Adonai aconselhou-o a ir ao Egito, 
recomendado ao faraó Amom, onde, afirma-se, foi iniciado nos mistérios 
egípcios, nos santuários de Mênfis, Dióspolis e Heliópolis. Afirma-se, 
ademais, que realizou um retiro no Monte Carmelo e na Caldéia, quando 
foi feito prisioneiro pelas tropas de Cambísis, tendo sido daí conduzido
 para a Babilônia. Foi em sua viagem a essa metrópole da Antiguidade, 
que conheceu o pensamento das antigas religiões do Oriente, e frequentou
 as aulas ministradas por famosos mestres de então.
Observa-se,
 porém, em todas as fontes que nos relatam a vida de Pitágoras, que este
 realizou, em sua juventude, inúmeras viagens e peregrinações, tendo 
voltado para Samos já com a idade de 56 anos. Suas lições atraíram-lhe 
muitos discípulos, mas provocaram, também, a inimizade de Policrates, 
então tirano de Samos, o que fez o sábio exilar-se na Magna Grécia 
(Itália), onde, em Crotona, fundou o seu famoso Instituto.
Antes
 de sua localização na Magna Grécia, relata-se que esteve em contato com
 os órficos, já em decadência, no Peloponeso, tendo então conhecido a 
famosa sacerdotiza Teocléia de Delfos.
Mas
 é na Itália que desempenha um papel extraordinário, porque aí é que 
funda o seu famoso Instituto, o qual, combatido pelos democratas de 
então, foi finalmente destruído, contando-nos a lenda que, em seu 
incêndio, segundo uns, pereceu Pitágoras, junto com os seus mais amados 
discípulos, enquanto outros afirmam que conseguiu fugir, tomando um rumo
 que permaneceu ignorado.
Segundo
 as melhores fontes, Pitágoras deve ter falecido entre 510 e 480. A 
sociedade pitagórica continuou após a sua morte, tendo desaparecido 
quando do famoso massacre de Metaponto, depois da derrota da liga 
crotoniata. 
"Com ordem e com tempo encontra-se o segredo de fazer tudo e tudo fazer bem". (Pitágoras)
O Pitagorismo   
"Ajuda teus semelhantes a levantar sua carga, mas não a carregues". (Pitágoras)
A Pátria Estelar
Dentre
 as religiões de mistério, de caráter iniciático, uma teve enorme 
difusão: o culto de Dioniso, originário da Trácia, e que passou a 
constituir o núcleo da religião órfica. O orfismo - de Orfeu, que 
primeiro teria recebido a revelação de certos mistérios e os teria 
confiado a iniciados sob a forma de poemas musicais - era uma religião 
essencialmente esotérica. Os órficos acreditavam na imortalidade da alma
 e na metempsicose, ou seja, na transmigração da alma através de vários 
corpos, a fim de efetivar sua purificação. A alma aspiraria, por sua 
própria natureza, a retornar à sua pátria celeste, às estrelas, de onde 
caíra. Para libertar-se, porém, do ciclo das reincarnações, o homem 
necessitaria da ajuda de Dioniso, deus libertador que completava a 
libertação preparada pelas práticas catárticas (entre as quais se incluía a abstinência de certos alimentos). A religião órfica 
pressupunha, portanto, uma distinção - não só de natureza como também de
 valor - entre a alma ignea e imortal e os corpos pereciveis através dos
 quais ela realizava sua purificação.
"O que fala, semeia - o que escuta, recolhe". (Pitágoras)
Salvação pela Matemática
Pitágoras
 de Samos, que se tornou figura legendária na própria Antiguidade, teria
 sido antes de mais nada um reformador religioso, pois realizou uma 
modificação fundamental na doutrina órfica, transformando o sentido da 
"via de salvação"; em lugar do deus Dioniso colocou a matemática.
Da
 vida de Pitágoras quase nada pode ser afirmado com certeza, já que ela 
foi objeto de uma série de relatos tardios e fantasiosos, como os 
referentes às suas viagens e a seus contatos com culturas orientais. 
Parece certo, contudo, que ele teria deixado Samos (na Jônia), na 
segunda metade do século VI a.C. fugindo à tirania de Polícrates, 
transferindo-se para Crotona (na Magna Grécia) fundou uma confraria 
científico-religiosa.
Pitágoras
 criou um sistema global de doutrinas, cuja finalidade era descobrir a 
harmonia que preside à constituição do cosmo e traçar, de acordo com 
ela, as regras da vida individual e do governo das cidades. Partindo de 
ideias órficas, o pitagorismo pressupunha uma identidade fundamental, de
 natureza divina, entre todos os seres. Essa similitude profunda entre 
os vários existentes era sentida pelo homem sob a forma de um "acordo 
com a natureza", que, sobretudo, depois do pitagórico Filolau, será 
qualificada como uma "harmonia", garantida pela presença do divino em 
tudo. Natural que dentro de tal concepção - vista por alguns autores 
como o fundamento do "mito helênico" - o mal seja entendido sempre como 
desarmonia.
A
 grande novidade introduzida certamente pelo próprio Pitágoras na 
religiosidade órfica foi a transformação do processo de libertação da 
alma num esforço puramente humano, porque basicamente intelectual. A 
purificação resultaria do trabalho intelectual, que descobre a estrutura
 numérica das coisas e torna, assim, a alma semelhante ao cosmo, 
entendido como unidade harmônica, sustentada pela ordem e pela 
proporção, e que se manifesta como beleza.
Pitágoras
 teria chegado à concepção de que todas as coisas são números através 
inclusive de uma observação no campo musical: verificou no monocórdio 
que o som produzido varia de acordo com a extensão da corda sonora. Ou 
seja, descobriu que há uma dependência do som em relação à extensão, da 
música, (tão importante como propiciadora de vivências religiosas 
estáticas) em relação à matemática.
"Todas as coisas são números". (Pitágoras)
De
 acordo com essa concepção, os pitagóricos adotaram uma representação 
figurada dos números, em substituição às representações literais mais 
arcaicas, usadas pelos gregos e depois pelos romanos. A representação 
figurada permitia explicitar a lei de composição dos números e torna-se 
um fator de avanço das investigações matemáticas dos pitagóricos. Os 
primeiros números, representados figurativamente, bastavam para 
justificar o que há de essencial no universo: o um é o ponto, mínimo de 
corpo, unidade de extensão; o dois determina a linha; o três gera a 
superfície, enquanto o quatro produz o volume. Já por sua própria 
notação figurativa evidencia-se que a primitiva matemática pitagórica 
constitui uma aritmo-geometria, a associar intimamente os aspectos 
numéricos e geométrico, a quantidade e sua expressão espacial.
"Pensem o que quiserem de ti; faze aquilo que te parece justo". (Pitágoras)
O Escândalo dos "Irracionais"
A
 primitiva concepção pitagórica de número apresentava limitações que 
logo exigiriam dos próprios pitagóricos tentativas de reformulação. O 
principal impasse enfrentado por essa aritmo-geometria baseada em 
inteiros (já que as unidades seriam indivisíveis) foi o levantado pelos 
números irracionais. Tanto na relação entre certos valores musicais 
(expressos matematicamente), quanto na base mesma da matemática, surgem 
grandezas inexprimíveis naquela concepção de número. Assim, a relação 
entre o lado e a diagonal do quadrado (que é a da hipotenusa do 
triângulo retângulo isósceles com o cateto) tornava-se "irracional", 
aquelas linhas não apresentavam "razão comum" ou "comum medida", o que 
se evidenciava pelo aparecimento na tradução aritmética da relação entre
 elas, de valores sem possibilidade de determinação exaustiva, como V¯².
 O "escândalo" dos irracionais manifestava-se no próprio teorema de 
Pitágoras (o quadrado construído sobre a hipotenusa é igual a soma dos 
quadrados construídos sobre os catetos). Com efeito, desde que se 
atribuísse valor 1 ao cateto de um triângulo isósceles, a hipotenusa 
seria igual a V¯². Ou então, quando se pressupunha que os valores 
correspondentes à hipotenusa e aos catetos eram números primos entre si,
 acabava-se por se concluir pelo absurdo de que um deles não era afinal 
nem par nem ímpar.
Apesar
 desses impasses - e em grande parte por causa deles - o pensamento 
pitagórico evoluiu e expandiu-se, influenciando praticamente todo o 
desenvolvimento da ciência e da filosofia gregas. Sua astronomia, 
estreitamente vinculada à sua religião astral foi o ponto de partida das
 várias doutrinas que os gregos formulariam, pressupondo o universo 
harmonicamente constituído por astros que desenvolvem trajetórias, 
presos a esferas homocêntricas. Essa geometrização do cosmo estava 
aliada, no pitagorismo, às concepções musicais também desenvolvidas pela
 escola: separadas por intervalos equivalentes aos intervalos musicais, 
aquelas esferas produziram, em seu movimento, sons de acorde perfeito. 
Essa "harmonia das esferas", permanentemente soante, seria a própria 
tessitura do que o homem considera "silêncio".
"Educai as crianças e não será preciso punir os homens". (Pitágoras)
ZENÃO - Vida, Obras e Pensamento
A
 característica de Zenão é a dialética. Ele é o mestre da Escola 
Eleática; nela seu puro pensamento torna-se o movimento do conceito em 
si mesmo, a alma pura da ciência - é o iniciador da dialética. Pois até 
agora só vimos nos eleatas a proposição: "O nada não possui realidade, 
não é, e aquilo que é surgir e desaparecer cai fora". Em Zenão, pelo 
contrário, também descobrimos tal afirmar e sobressumir daquilo que o 
contradiz, mas não o vemos, ao mesmo tempo, começar com esta afirmação; é
 a razão que realiza o começo - ela aponta, tranquila em si mesma, 
naquilo que é afirmado como sendo sua destruição. Parmênides afirmou: "O
 universo é imutável, pois na mudança seria posto o não-ser daquilo que 
é; mas somente é ser, no 'não-ser é' se contradizem sujeito e 
predicado". Zenão, pelo contrário, diz: "Afirmai vossa mudança: nela 
enquanto mudança, é o nada para ela, ou ela não é nada". Nisto consistia
 o movimento determinado, pleno para aquela mudança; Zenão falou e 
voltou-se contra o movimento como tal ou puro movimento.
Também
 Zenão era um eleata; é o mais jovem e viveu particularmente em convívio
 com Parmênides. Este o amava muito e o adotou como filho. Seu pai 
verdadeiro chamava-se Teleutágoras. Em sua vida não apenas era algo de 
muito respeito em seu Estado, mas também em geral era célebre e muito 
respeitado como professor. Platão o lembra: de Atenas e de outros 
lugares vinham homens a ele para entregar-se à sua formação. 
Atribuiu-se-lhe orgulhosa auto-suficiência, pelo fato de (exceto sua 
viagem a Atenas) ter sua residência fixa em Eléia, negando-se a viver 
por mais tempo na grande e poderosa Atenas, para lá colher fama. Segundo
 muitas lendas, a fortaleza de sua alma tornou-se célebre pela sua 
morte. Ela teria salvo um Estado (não se sabe se sua pátria Eléia ou se 
Sicília) de seu tirano, sacrificando da seguinte maneira sua vida: Teria
 participado de uma conjuração para derrubar o tirano, tendo, porém, 
esta sido traída. Quando o tirano, diante de seu povo, o fez torturar de
 todos os modos, para arrancar-lhe a confissão dos nomes dos outros 
conjuradores, e ao perguntar pelos inimigos do Estado, Zenão delatou 
primeiro todos os amigos do tirano como participantes da conjuração, 
chamando então o tirano mesmo a peste do Estado. Dessa maneira, as 
poderosas admoestações ou também as torturas horríveis e a morte de 
Zenão ergueram os cidadãos e levantaram-lhes o ânimo, para caírem sobre o
 tirano, liquidá-lo e assim libertar-se. De modo violento e furioso de 
sua reação. Diz-se que ele se postou como se quisesse dizer ainda algo 
aos ouvidos do tirano, mordendo-lhe, no entanto, a orelha e cerrando os 
dentes até ter sido trucidado pelos outros. Outros narram que ele teria 
ferrado os dentes em seu nariz, segurando-o assim. Outros ainda dizem 
que, tendo suas respostas sido seguidas de enormes torturas, ele cortou a
 língua com os próprios dentes e a cuspiu no rosto do tirano, para lhe 
mostrar que dele nada arrancaria; depois disso teria sido triturado num 
pilão.
1)
 Segundo seu elemento tético, a filosofia de Zenão é, em seu conteúdo, 
inteiramente igual à que vimos em Xenófanes e Parmênides, apenas com 
esta diferença fundamental, que os momentos e as oposições são expressos
 mais como conceitos e pensamentos. Já em seu elemento tético vemos 
progresso; ele já está mais avançado no sobressumir das oposições e 
determinações.
"É
 impossível", diz ele, "que, quando algo é, surja" (ele relaciona isto 
com a divindade); "pois teria que surgir ou do igual ou do desigual. 
Ambas as coisas são, porém. impossíveis; pois não se pode atribuir, ao 
igual, que dele se produza mais do que deve ser produzido já que os 
iguais devem ter entre si as mesmas determinações." Com a aceitação da 
igualdade, desaparece a diferença entre o que produz e aquilo que é 
produzido. "Tampouco pode surgir o desigual do desigual; pois se do mais
 fraco se originasse o mais forte ou do menor o maior ou do pior o 
melhor, ou se, inversamente, o pior viesse do melhor, originar-se-ia o 
não-ser do ente, o que é impossível; portanto. Deus é eterno." Isto foi 
denominado panteísmo (spinozismo), que repousaria sobre a proposição ex 
nihilo nihil fit. Em Xenófanes e Parmênides tínhamos ser e nada. Do nada
 é imediatamente nada, do ser, ser; mas assim já é. Ser é a igualdade 
expressa como imediata; pelo contrário, igualdade como igualdade 
pressupõe o movimento do pensamento e a mediação, a reflexão em si. Ser e
 não-ser situam-se assim, lado a lado, sem que sua unidade seja 
concebida como a de diferentes; estes diferentes não são expressos como 
diferentes. Em Zenão a desigualdade é o outro membro em oposição a 
igualdade.
Em
 seguida, é demonstrada a unidade de Deus: "Se Deus é o mais poderoso de
 tudo, então Ihe é próprio que seja um; pois, na medida em que dele 
houvesse dois ou ainda mais, ele não teria poder sobre eles; mas 
enquanto Ihe faltasse o poder sobre os outros não seria Deus. Se, 
portanto, houvesse mais deuses, eles seriam mais poderosos e mais fracos
 um em face do outro; não seriam, por conseguinte, deuses; pois faz 
parte da natureza de Deus não ter acima de si nada mais poderoso; pois o
 igual não é nem pior nem melhor que o igual - ou não se distingue dele.
 Se, portanto, Deus é e se ele é de tal natureza, então só há um Deus; 
não seria capaz de tudo o que quisesse, se houvesse mais deuses".
"Sendo
 um, é em toda parte igual, ouve, vê e possui também, em toda parte, os 
outros sentimentos; pois, não fosse assim, as partes de Deus dominariam 
uma sobre a outra" (uma estaria onde a outra não está, reprimi-la-ia; 
uma parte teria determinações que faltariam às outras), "o que é 
impossível. Como Deus é em toda parte igual, possui ele a forma 
esférica; pois não é aqui assim, em outra parte de outro modo, mas em 
toda parte igual." Diz ainda: "Já que é eterno, um e esférico, ele nao é
 nem infinito (ilimitado) nem limitado. Pois, a) ilimitado é o não-ente;
 pois este não possui nem meio, nem começo, nem fim, nem uma parte - tal
 coisa é o ilimitado. Como, porém, é o não-ente, assim não é o ente. 0 
ilimitado é o indeterminado, o negativo; seria o não-ente, a supressão 
do ser, e é assim, ele mesmo, determinado como algo unilateral. b) 
Dar-se-ia delimitação mútua, se houvesse diversos; mas. como é apenas 
um, ele não é limitado." Assim Zenão também mostra: "O um não se move, 
nem é imóvel. Pois imóvel é a) o não-ente" (no não-ente não se realiza 
nenhum movimento; com a falta de movimento estaria posto o não-ser ou o 
vazio; o imóvel é negativo; "pois para ele nenhuma outra coisa advém, 
nem vai para coisa alguma. b) Movido, porém, somente é o múltiplo; pois 
um dever-se-ia mover para o outro." Movido só é o que é diferente de 
outro; pressupõe-se uma multiplicidade de tempo, espaço. "O um, 
portanto, não está nem em repouso nem se movimenta; pois não se parece 
nem com o não-ente nem com o múltiplo. Em tudo isto, Deus se comporta 
assim; pois ele é eterno e um, idêntico a si mesmo e esférico nem 
ilimitado nem limitado, nem em repouso nem em movimento." Do fato de 
nada poder provir, quer do igual quer do desigual, Aristóteles conclui 
que, ou nada existe fora de Deus, ou tudo é eterno.
Vemos,
 em tal tipo de raciocínio, uma dialética que se pode denominar de 
raciocínio metafísico. 0 princípio da identidade Ihe serve de 
fundamento: "O nada é igual ao nada, não passa para o ser, nem 
vice-versa; do igual, portanto, nada pode provir". O ser, o um da Escola
 Eleática é apenas esta abstração, este afundar-se no abismo da 
identidade do entendimento. Este modo, o mais antigo, de argumentar é 
ainda, até o dia de hoje, válido, por exemplo, nas assim chamadas 
demonstrações da unidade de Deus. A isto vemos ligada uma outra espécie 
de raciocínio metafísico: são feitas pressuposições, por exemplo. o 
poder de Deus, raciocinando-se, a partir daí. negando-se predicados. 
Esta a maneira comum de nós raciocinarmos. No que se refere às 
determinações deve-se observar que elas, enquanto algo negativo, devem 
ser mantidas afastadas do ser positivo e apenas real.
Para
 ir a esta abstração fazemos um outro caminho, não utilizamos a 
dialética que usa a Escola Eleática; nosso caminho é trivial e mais 
óbvio. Nós dizemos que Deus é imutável, a mudança apenas se atribui às 
coisas finitas (isto como que sendo uma proposição empírica); de um lado
 temos, assim, as coisas finitas e a mudança; de outro lado, a 
imutabilidade nesta unidade abstrata e absoluta consigo mesma. É a mesma
 separação; só que nós deixamos valer como ser também o finito. o que os
 eleatas desprezaram. Ou também partimos das coisas finitas para as 
espécies, gêneros, e deixamos, passo a passo, o negativo de lado; e o 
gênero mais alto é então Deus, que, enquanto o ser supremo, é apenas 
afirmativamente, mas sem qualquer determinação. Ou passamos do finito 
para o infinito, dizendo que o finito, enquanto limitado, deve ter seu 
fundamento no infinito. Em todas estas formas que nos são bem familiares
 está contida a mesma dificuldade da questão que se levanta no que diz 
respeito ao pensamento eleático: De onde vem a determinação, como deve 
ela ser concebida, tanto no um mesmo, que deixa o finito de lado, como 
no modo como o infinito se manifesta no finito? Os eleatas 
distinguem-se, em seu pensamento, de nosso modo de refletir comum, pelo 
fato de terem posto mãos à obra de maneira especulativa - o especulativo
 tem lugar no fato de afirmarem que a mudança não é - e pelo fato de, 
desta maneira. terem mostrado que, assim como se pressupõe o ser, a 
mudança é em si contradição, algo incompreensível: pois do um, do ser, 
está afastada a determinação do negativo, da multiplicidade. Enquanto 
nós deixamos valer, em nossa representação, a realidade do mundo finito,
 os eleatas foram mais consequentes, avançando até a afirmação de que só
 o um é e de que o negativo não é - consequência que, ainda que deva ser
 por nós admirada, é, contudo, não menos, uma grande abstração
Particularmente
 digno de nota é o fato de que. em Zenão, já há a consciência mais alta 
de que uma determinação é negada de que esta negação mesma é novamente 
uma determinação, devendo então, na negação absoluta. não ser negada 
apenas uma determinação, mas ambas as negações que se opõem. Antes é 
negado o movimento e a essência absoluta aparece como em repouso; ou é 
negada enquanto finita. e então é puramente infinita. Isto, porém, 
também é determinação, também ela finita. Do mesmo modo, também o ser em
 oposição ao não-ser é uma determinação.
Sendo
 a essência absoluta posta como o um ou o ser, ela é posta através da 
negação; é determinada como o negativo e, assim, como o nada, e ao nada 
se atribuem os mesmos predicados que ao ser: o puro ser não é movimento,
 é o nada do movimento. Isto pressentiu Zenão; e, porque previu que o 
ser é o oposto do nada, assim negou ele do um o que deveria dizer-se do 
nada. Mas o mesmo deveria acontecer com o resto. 0 um é o mais poderoso e
 nisto determinado propriamente como o destruir absoluto; pois o poder é
 também o não-ser absoluto de um outro, o vazio. 0 um é igualmente o não
 dos muitos: tanto no nada como no um, a multiplicidade está 
sobressumida. Esta dialética mais alta encontramo-la em Platão, em seu 
Parmênides. Aqui isto surge apenas referido a algumas determinações não 
com referência às determinações do um e do ser mesmo.
A
 consciência mais alta é a consciência sobre a nulidade do ser enquanto 
algo determinado em face do nada; isto se dá, parte em Heráclito e, 
então, nos sofistas; com isto não permanece verdade alguma, ser-em-si, 
mas apenas o ser para o outro é, ou seja, a certeza da consciência 
individual e a certeza como refutação - o lado negativo da dialética.
Zenão
 possui o aspecto importante de ser o descobridor da dialética: se não é
 ele propriamente, no que vimos, o descobridor da dialética em sua 
plenitude, ao menos é quem está em seu começo; pois ele nega predicados 
que se opõem. Portanto, Xenófanes, Parmênides, Zenão põem como 
fundamento a proposição: Nada é nada, o nada não é, ou o igual (como diz
 Melisso) é a essência; isto é, eles afirmam um dos predicados que se 
opõem, como a essência. Eles põem-no fixamente; onde encontram, numa 
determinação, o oposto, suprimem com isto essa determinação. Mas, assim,
 esta somente se suprime através de um outro, através de minha 
afirmação, através da distinção que faço de que um lado é o verdadeiro, o
 outro sem importância (nulo) (parte-se de uma determinada proposição); 
sua nulidade não aparece nela mesma, não de maneira que se suprima a si 
mesma, isto é, que contenha em si uma contradição. Como movimento: 
Verifiquei algo e vejo que é o nulo; demonstrei isto, segundo o 
pressuposto, no movimento; conclui-se, portanto, que ele é o nulo. Mas 
uma outra consciência não verifica aquilo; eu declaro isto como 
imediatamente verdadeiro; a outra consciência tem razão em afirmar uma 
outra: coisa como imediatamente verdadeira, por exemplo, o movimento. 
Como sempre é o caso quando um sistema filosófico refuta o outro, o 
primeiro sistema é posto como fundamento e a partir dele se entra em 
debate contra o outro. Assim a coisa é facilitada: "O outro sistema não 
possui verdade, porque não concorda com o meu"; mas o outro sistema tem o
 mesmo direito de dizer assim. Eu não devo demonstrar sua não-verdade 
através de um outro, mas em si mesmo. De nada ajuda demonstrar meu 
sistema ou minha proposição e então concluir: portanto, o sistema que se
 opõe está errado; para esta proposição aquela sempre parecerá algo de 
estranho, algo exterior. O falso não deve ser apresentado corno falso 
porque o oposto é verdadeiro, mas em si mesmo.
Esta
 convicção racional vemos despertar em Zenão. No Parmênides de Platão 
(127-128), esta dialética é muito bem descrita. Platão fá-lo falar assim
 sobre isto: faz Sócrates dizer que Zenão afirma em seu escrito o mesmo 
que Parmênides, isto é, que tudo é um: mas que nos procura enganar com 
uma expressão, procurando dar a impressão de que está dizendo algo de 
novo. Sócrates diz que Parmênides afirma em seu poema que tudo é um: 
Zenão, pelo contrário, que o múltiplo não é. Zenão responde que escreveu
 isto, antes contra aqueles que procuram tornar ridícula (komodeiñ) a 
proposição de Parmênides, quando mostram quantas coisas ridículas e que 
contradições contra si mesmos resultam de suas afirmações. Diz que 
combateu aqueles que afirmam o ser do múltiplo, para demonstrar que 
disto resultariam muito mais coisas discordantes que da proposição de 
Parmênides.
Isto
 é a determinação mais exata da dialética objetiva. Nesta dialética não 
vemos afirmar-se o pensamento simples para si mesmo, mas, fortalecido, 
levar a guerra para território inimigo. Este lado possui a dialética na 
consciência de Zenão; mas ela deve ser considerada também de seu lado 
positivo. Conforme a representação corrente da ciência, em que 
proposições são resultado da demonstração, é a demonstração o movimento 
da convicção, ligação através de mediação. A dialética como tal é a) 
dialética exterior, este movimento distinto do compreender deste 
movimento; b) não é um movimento apenas de nossa intuição, mas a partir 
da coisa mesma, isto é, demonstrada para o puro conceito do conteúdo. 
Aquela dialética é uma mania de contemplar objetos, de neles apontar 
razões e aspectos, através dos quais se torna vacilante o que em geral 
vale como firme. Podem ser então razões bem exteriores. A outra 
dialética, porém, é a consideração imanente do objeto: ele é tomado para
 si, sem pressuposições, ideia, dever-ser, não segundo circunstâncias 
exteriores, leis, razões. A gente se põe inteiramente dentro da coisa, 
considera o objeto em si mesmo e o toma segundo as determinações que 
possui. Nesta consideração, ele se demonstra a si mesmo, mostra que 
possui determinações opostas, que se suprime (sobressume): esta 
dialética encontramos precipuamente junto aos antigos. A dialética 
subjetiva, que raciocina, baseando-se em razões exteriores, torna-se 
norma quando se concede: "No correto está o incorreto e no falso também o
 verdadeiro". A dialética verdadeira não deixa nada sobrando em seu 
objeto, de tal modo que apresentaria falhas apenas de um lado; mas ele 
se dissolve segundo sua natureza inteira. 0 resultado desta dialética é 
zero, o negativo; o afirmativo que nela se esconde ainda não aparece. A 
esta dialética verdadeira pode juntar-se o que os eleatas fizeram. Mas 
junto a eles ainda não vingou a determinação, a essência do 
com-preender; ficaram parados na ideia de que através da contradição o 
objeto se torna nulo.
A
 dialética da matéria de Zenão não foi até hoje ainda refutada; não se 
conseguiu ainda passar além dela e a questão fica esquecida no 
indeterminado. "Ele demonstra que, quando é o múltiplo, então é grande e
 pequeno: grande, assim o múltiplo é infinito, segundo a grandeza" (tò 
mégethos), deve-se ultrapassar a multiplicidade, enquanto limite 
indiferente, para passar para o infinito; o que é infinito não é “mais 
grande”, nem “mais múltiplo”; infinito é o negativo do múltiplo; 
"pequeno, de maneira que não tem mais grandeza", átomos, o não-ente. 
"Aqui mostra ele que o que não tem tamanho, nem espessura, nem massa 
(ónkos), também não é. Pois se fosse acrescentado a um outro não 
aumentaria a este; pois, se não tem tamanho e grandeza, nada poderia 
acrescentar ao tamanho do outro; assim o que foi acrescentado não é 
nada. O mesmo aconteceria ao ser retirado; o outro não seria por isso 
diminuído; não é, portanto, nada". 
Os
 aspectos mais exatos desta dialética nos conservou Aristóteles; o 
movimento foi tratado particularmente por Zenão, de maneira objetiva e 
dialética. Mas o caráter exaustivo que vemos no Parmênides de Platão não
 Ihe corresponde. Vemos desaparecer para a consciência de Zenão o 
simples pensamento imóvel para tornar-se ele mesmo movimento pensante; 
na medida em que combate o movimento sensível, ele o dá a si. O fato de a
 dialética ter tido atraída sua atenção primeiro para o movimento é a 
razão de a dialética mesma ser este movimento ou o movimento mesmo ser a
 dialética de todo ente. A coisa tem. enquanto se move, sua dialética 
mesma em si, e o movimento é: tornar-se outro, sobressumir-se. 
Aristóteles afirma que Zenão teria negado o movimento pelo fato de 
possuir contradição interna. Mas não se deve entender isto assim como se
 o movimento não fosse - como nós dizemos, não há elefantes, não há 
rinocerontes. Que o movimento existe, que ele é fenômeno, isto nem está 
em questão; o movimento possui certeza sensível, como existem elefantes.
 Neste sentido, Zenão nem teve a idéia de negar o movimento. Pelo 
contrário, seu questionar vai em busca de sua verdade; mas o movimento é
 não verdadeiro, pois ele é contradição. Com isto quer ele dizer que não
 se Ihe deveria atribuir verdadeiro ser. Zenão mostra então que a 
representação do movimento contém uma contradição e apresenta quatro 
modos de refutação do movimento. Os argumentos repousam sobre a infinita
 divisão do espaço e do tempo.
1)
 Primeira forma: Zenão diz que o movimento não tem verdade alguma, 
porque o movido deveria atingir primeiro a metade do espaço como sua 
meta. Aristóteles diz isto de maneira tão breve por ter tratado antes 
amplamente o objeto e tê-lo exposto detidamente. Isto deve ser 
compreendido de maneira mais universal; é pressuposta a continuidade do 
espaço. O que se move deve atingir uma determinada meta; este caminho é 
um todo. Para percorrer o todo, o que é movido deve antes ter percorrido
 a metade. Agora a meta é o fim desta metade. Mas esta metade é 
novamente um todo, este espaço possui assim uma metade; deve, portanto, 
ter atingido antes a metade desta metade, e assim até o infinito. Zenão 
toca aqui na divisibilidade infinita do espaço. Pelo fato de espaço e 
tempo serem absolutamente contínuos, nunca se pode parar com a divisão. 
Cada grandeza - e cada tempo e espaço sempre tem uma grandeza - é 
novamente divisível em duas metades; estas devem ser percorridas e, 
mesmo onde colocamos um espaço o menor possível, sempre surge este mesmo
 estado de coisas. O movimento que seria o percurso destes momentos 
infinitos nunca termina; portanto, o que é movido nunca atinge sua meta.
É
 conhecido como Diógenes de Sínope, o Cínico, refutou tais provas da 
contradição do movimento, de maneira muito simples; levantou-se em 
silêncio e caminhou de cá para lá - ele as refutou pela ação. Mas a 
estória é continuada também assim: a um aluno que se contentara com esta
 refutação, Diógenes o castigou pela simples razão de que, se o 
professor havia discutido com argumentos, ele só poderia deixar valer 
uma refutação também com argumentos. Da mesma maneira a gente não deve 
satisfazer-se com a certeza sensível; mas é preciso compreender.
Vemos
 aqui desenvolvido o infinito aparecer. Primeiro em sua contradição - 
uma consciência dele. O movimento, o puro aparecer em si mesmo é o 
objeto e surge como um pensado, um posto segundo sua essência, a saber, 
(consideramos a forma dos momentos) em suas diferenças da pura igualdade
 consigo mesmo e da pura negatividade - do ponto contra a continuidade. 
Na nossa representação não parece contraditório que o ponto no espaço 
ou, do mesmo modo, o momento no tempo contínuo seja posto ou que seja 
afirmado o agora do tempo como uma continuidade, uma duração (dia, ano);
 mas seu conceito contradiz-se a si mesmo. A igualdade consigo mesmo, a 
continuidade é absoluta homogeneidade, é eliminação de toda diferença, 
de todo negativo, de todo ser para si; o ponto é, pelo contrário, o puro
 ser para si, o absoluto distinguir-se e a supressão de toda igualdade e
 homogeneidade com outro. Mas estes dois estão postos numa unidade, no 
espaço e no tempo, espaço e tempo, portanto, a contradição. O mais fácil
 é mostrá-la no movimento; pois, no movimento, o oposto é também posto 
para a representação. Pois o movimento e a essência, a realidade do 
tempo e do espaço; e, enquanto esta aparece, é posta, também é posto já o
 fenômeno da contradição. É para esta contradição que Zenão chama a 
atenção.
É
 a continuidade de um espaço, é o positivo que é posto; e nele o limite 
que o divide ao meio. Mas o limite que divide ao meio não é limite 
absoluto ou em si e para si, mas é algo limitado, é novamente 
continuidade. Mas esta continuidade também novamente nada é de absoluto,
 mas põe o oposto nela - limite que divide ao meio; mas com isto 
novamente não é posto o limite da continuidade, a metade ainda é 
continuidade e assim até o infinito. Até o infinito - com isto nos 
representamos um além, que não pode ser atingido, fora da representação 
que não pode atingi-lo. É um inacabado ultrapassar, mas presente no 
conceito - um passar além de uma determinação oposta para outra, de 
continuidade para negatividade, de negatividade para continuidade; elas 
estão diante de nós. Destes dois momentos pode, no processo, ser 
afirmado um deles como o essencial. Primeiro Zenão põe o progresso 
contínuo de maneira tal que não se atinge nada igual a si, um 
determinado - nenhum espaço limitado, portanto, continuidade; ou Zenão 
afirma o avanço neste limitar.
A
 resposta geral e a solução de Aristóteles é que espaço e tempo não são 
divididos infinitamente, mas apenas divisíveis. Parece, entretanto, que,
 enquanto são divisíveis (potentia, dynámei, não actu, energeía), também
 devem estar efetivamente divididos infinitamente; pois, de outro modo, 
não poderiam ser divididos ao infinito - uma resposta geral para a 
representação. 
2)
 "O segundo argumento" (que também é pressuposição da continuidade e 
posição da divisão) chama-se "argumento de Aquiles", o homem dos pés 
velozes. Os antigos gostavam de vestir as dificuldades com 
representações sensíveis. De dois corpos que se movem numa direção, dos 
quais um está na frente e outro o segue numa determinada distância, 
movendo-se, porém, mais rapidamente que aquele, sabemos que o segundo 
alcançará o primeiro. Zenão, porém, diz: "O mais vagaroso nunca poderá 
ser alcançado nem mesmo pelo mais rápido"; e isto ele demonstra assim: o
 que segue necessita de uma determinada parte do tempo para "alcançar o 
lugar de onde partiu o que está em fuga", no começo desta determinada 
parte do tempo. Durante o tempo em que o segundo atingiu o ponto onde o 
primeiro se achava, este já avançou para mais longe, deixou atrás de si 
novo espaço que o segundo novamente deverá percorrer numa parte desta 
parte do tempo; e assim se vai até o infinito. B percorre numa hora duas
 milhas, A, no mesmo tempo, uma milha. Se estão separados entre si por 
duas milhas, então B chegou numa hora onde A estava no começo da hora. 
Mas o espaço (uma milha), vencido por A, será percorrido por B na metade
 de uma hora, e assim ao infinito. Desta maneira, o movimento mais 
rápido nada ajuda ao segundo corpo para percorrer o espaço intermediário
 que o separa do outro; o tempo de que necessita, também o mais vagaroso
 sempre tem à sua disposição, e "com isto ele já sempre conseguiu uma 
vantagem".
Aristóteles,
 que trata disto, diz brevemente sobre o mesmo: "Este argumento 
representa a mesma divisão infinita'' ou o infinito ser dividido através
 do movimento. "É algo não verdadeiro; pois o rápido, contudo, alcançará
 o vagaroso, se Ihe for permitido ultrapassar o limite, o limitado." A 
resposta é correta e contém tudo. Nesta representação são admitidos dois
 pontos de tempo e dois de espaço que estão separados entre si - isto é,
 são limitados, são limites um para o outro. Se, ao contrário, se admite
 que tempo e espaço são contínuos, de maneira tal que dois pontos do 
tempo ou dois pontos de espaço se relacionam entre si de maneira 
contínua, então eles são, igualmente, na medida em que são dois também 
não dois - são idênticos.
Zenão
 apenas faz valer o limite, a divisão, o momento da separação de espaço e
 tempo em sua total determinação; por isto surge a contradição. O que 
gera a dificuldade sempre é o pensamento, porque separa em sua distinção
 aqueles momentos de um objeto, na realidade unidos. 0 pensamento 
produziu a queda original, quando o homem comeu da árvore do 
conhecimento do bem e do mal; mas também ressarce este prejuízo. É uma 
dificuldade superar o pensamento e é somente ele que causa esta 
dificuldade.
3)
 "O terceiro argumento" tem a forma que Zenão descreve assim: "A flecha 
em voo repousa", e isto porque "o que se move sempre está no mesmo 
agora" e no aqui igual a si mesmo, no "não-distinguível" (en tõ nyn, 
katà tò íson); ele está aqui, e aqui e aqui. Assim que dizemos que 
sempre é o mesmo; a isto, porém, não chamamos movimento, mas repouso: o 
que sempre está no aqui e agora, repousa. Ou deve-se dizer da flecha que
 sempre está no mesmo espaço e no mesmo tempo; não consegue ultrapassar 
seu espaço, não conquista um outro espaço, isto é, um espaço maior ou 
menor. Aqui o tornar-se outro foi sobressumido; o ser limitado é posto 
como tal, mas o limitar é, contudo, um momento. No aqui agora como tais,
 não há diferença. No espaço, um ponto é tão bem um aqui como o outro, 
isto aqui e isto aqui e mais um outro, etc.; e, contudo, o aqui é sempre
 o mesmo aqui; não são distintos entre si. A continuidade, a igualdade 
do aqui e afirmada aqui contra a opinião da diferença. Cada lugar é 
lugar diferente - portanto, o mesmo; a diferença é apenas aparente. Não é
 neste estado de coisas, mas no mundo do espírito que se manifesta a 
verdadeira e objetiva diferença.
Isto
 acontece também na mecânica: pergunta-se qual se move de dois corpos. 
Para determinar qual deles se move é preciso mais de dois lugares, ao 
menos três. Mas uma coisa é correta: o movimento é absolutamente 
relativo; se, no espaço absoluto, por exemplo, o olho repousa ou se 
move, é inteiramente o mesmo. Ou, conforme uma proposição de Newton: se 
dois corpos giram, em círculo, um em torno do outro, surge a pergunta se
 um repousa ou se ambos se movem. Newton quer decidir isto por uma 
circunstância exterior, os fios estendidos (tensio filorum). Se num 
navio caminho na direção oposta da direção em que se move o navio, o 
mover-me é movimento com relação ao navio, mas repouso com relação a 
outra coisa.
Nos
 dois primeiros argumentos a continuidade no avançar é o que predomina: 
não existe limite absoluto, nem espaço limitado, mas apenas continuidade
 absoluta, transgredir todos os limites. No argumento agora em questão é
 retido o aspecto inverso, a saber, o absoluto ser-limitado, a 
interrupção da continuidade, nenhuma passagem para outro. Sobre este 
terceiro argumento diz Aristóteles que ele se origina do fato de se 
aceitar que o tempo consiste de "agoras"; pois, se não se concede isto, 
não se pode tirar a conclusão a que Zenão chegou.
4)
 "O quarto argumento" e tomado de corpos iguais que se movem no estádio 
ao lado de um igual, com velocidade igual, um a partir do fim do 
estádio, o outro a partir do meio, um em direção do outro; disto se 
deveria concluir que a metade do tempo é igual ao dobro. O erro da 
conclusão consiste no fato de admitir que, no que se move e no que está 
em repouso, a coisa percorre uma mesma extensão em tempo igual, com 
velocidade igual; isto, porém, é falso.
Esta
 quarta forma diz respeito à contradição no movimento oposto. A oposição
 possui aqui uma outra forma: a) mas também novamente o universo, o 
comum, que deve ser atribuído inteiramente a cada parte, enquanto 
realiza para si apenas uma parte; b) é apenas posto como verdadeiro 
(como sendo) o que cada parte faz para si. Aqui a distância de um corpo é
 a soma do afastar se de ambos; é o que acontece quando caminho dois pés
 para o leste e outro, partindo do mesmo ponto, caminha dois pés para o 
oeste; assim estamos distantes um do outro quatro pés - aqui ambos devem
 ser somados; na distância de ambos, ambos são positivos. Ou avancei e 
retrocedi dois pés - no mesmo ponto; ainda que tenha andado quatro pés, 
não saí do ponto em que estava. 0 movimento é, portanto, nulo; pois pelo
 movimento de ir para frente e para trás há aqui coisas opostas que se 
suprimem.
Isto
 é então a dialética de Zenão. Ele captou as determinações que contém 
nossa representação do espaço e tempo; ele as tinha em sua consciência e
 nelas mostra o aspecto contraditório. As antinomias de Kant nada mais 
são do que aquilo que Zenão aqui já fizera.
O
 elemento universal da dialética, a proposição universal da escola 
eleática foi, portanto: "0 verdadeiro é apenas o um, todo o resto é 
não-verdadeiro"; como a filosofia kantiana chegou ao resultado: 
"Conhecemos apenas fenômenos". No todo é o mesmo princípio: "O conteúdo 
da consciência é apenas um fenômeno, nada verdadeiro"; mas nisto também 
reside uma diferença. Pois Zenão e os Eleatas afirmaram sua proposição 
com a seguinte significação: "O mundo sensível é em si mesmo apenas 
mundo fenomenal, com suas formas infinitamente diversas - este lado não 
possui verdade em si mesmo". Nào é, porém, isto que pensa Kant. Ele 
afirma: Voltando-se para o mundo, quando o pensamento se dirige para o 
mundo exterior (para o pensamento também o mundo dado no interior é algo
 exterior), voltando-se para ele, fazemos dele um fenômeno; é a 
atividade de nosso pensamento que atribui ao exterior tantas 
determinações: o sensível, determinações da reflexão, etc. Só nosso 
conhecimento é fenômeno, o mundo é em si absolutamente verdadeiro; só 
nossa aplicação, nosso acréscimo o arruína para nós; o que 
acrescentamos, nada vale. O mundo torna-se não-verdadeiro pelo fato de 
Ihe jogarmos em cima uma massa de determinações. Isto é então a grande 
diferença. Este conteúdo também é nulo em Zenão; mas, em Kant, porque é 
obra nossa. Em Kant é o elemento espiritual que arruína o mundo; segundo
 Zenão, é o mundo, o que aparece em si que é não-verdadeiro. Segundo 
Kant, é nosso pensar, a atividade de nosso espírito o elemento mau - é 
uma enorme humildade do espírito não ter confiança no conhecimento. Na 
Bíblia diz Cristo: "Pois não sois melhores que os pardais?" Nós o somos 
enquanto pensamos - enquanto seres sensíveis, tão bons ou tão maus como 
os pardais. O sentido da dialética de Zenão possui maior objetividade 
que esta dialética moderna. A dialética de Zenão ainda se conteve nos 
limites da metafísica: mais tarde, com os sofistas, tornou se universal.
De
 sua vida sabemos poucas coisas seguras. mas muitas lendas. Viagens 
extraordinárias, a ruína material, as honras que recebeu de seus 
concidadãos, sua solidão, seu grande poder de trabalho. Uma tradição 
tardia afirma que ele ria de tudo...
Demócrito
 e Leucipo partem do eleatismo. Mas o ponto de partida de Demócrito é 
acreditar na realidade do movimento porque o pensamento é um movimento. 
Esse é seu ponto de ataque: o movimento existe porque eu penso e o 
pensamento tem realidade. Mas se há movimento deve haver um espaço 
vazio, o que equivale a dizer que o não-ser é tão real quanto o ser. Se o
 espaço é absolutamente pleno, não pode haver movimento. Com efeito: 1) o
 movimento espacial só pode ter lugar no vazio, pois o pleno não pode 
acolher em si nada que lhe seja heterogêneo; se dois corpos pudessem 
ocupar o mesmo lugar no espaço, poderia haver uma infinidade deles, pois
 o menor poderia acolher em si o maior; 2) a rarefação e a condensação 
só se explicam pelo espaço vazio; 3) o crescimento só se explica porque o
 alimento penetra nos interstícios do corpo;  4) Em um vaso cheio de cinza pode-se ainda derramar tanta água quanta se 
ele estivesse vazio, a cinza desaparece nos interstícios vazios da água.
 O não ser é, portanto, também o pleno, nastón (de nasso, ou aperto), o 
stereón. O pleno é aquilo que não contém nenhum Kenón. Se toda grandeza 
fosse divisível ao infinito, não haveria mais nenhuma grandeza, não 
haveria mais ser. Se deve subsistir um pleno, isto é, um ser, é preciso 
que a divisão não possa ir ao infinito. Mas o movimento demonstra o ser,
 tanto quanto o não-ser. Se somente o não ser existisse, não haveria 
movimento. O que resta são os átomos. O ser é a unidade indivisível.
Mas,
 se esses seres devem agir uns sobre os outros pelo choque, é preciso 
que sejam de natureza idêntica. Demócrito afirma, portanto, como 
Pitágoras, que o ser deve ser semelhante a si mesmo em todos os pontos. O
 ser não pertence mais a um ponto do que a outro. Se um átomo fosse o 
que o outro não é, haveria um não-ser, o que é uma contradição. Somente 
nossos sentidos nos mostram coisas qualitativamente diferentes. São 
chamadas também idéai ou skhémata. Todas as qualidades são nómo, os 
seres só diferem pela quantidade. É preciso, pois, remeter todas as 
qualidades a diferenças quantitativas. Elas só se distinguem pela forma 
(rhysmós, skhéma), pela ordem (diathigé, táxis), peia posição (tropé, 
thésis). A difere de N pela forma, AN de NA pela ordem, Z de N pela 
posição. A principal diferença está na forma, que indica diferença de 
grandeza e de peso. O peso pertence a cada corpo (como medida de todas 
as quantidades). Como todos os seres são da mesma natureza, o peso deve 
pertencer igualmente a todos, isto é, à mesma massa, o mesmo peso. O 
ser, portanto, é definido como pleno, dotado de uma forma, pesado; os 
corpos são idênticos a esses predicados. Temos aqui a distinção que 
reaparece em Locke: as qualidades primárias pertencem às coisas em si 
mesmas, fora de nossa representação; não se pode fazer abstração delas; 
são: a extensão, a impermeabilidade, a forma, o número. Todas as outras 
qualidades são secundárias, produzidas pela ação das qualidades 
primárias sobre os órgãos de nossos sentidos, dos quais são apenas as 
impressões: cor, som, gosto, odor, dureza, moleza, polido, rugoso, etc. 
Pode-se, portanto, fazer abstração da natureza dos corpos na medida em 
que é apenas a ação dos nervos sobre os órgãos sensoriais.
Uma
 coisa nasce quando se produz um certo agrupamento de átomos; desaparece
 quando esse grupo se desfaz, muda quando muda a situação ou a 
disposição desse grupo ou quando uma parte é substituída por outra. 
Cresce quando lhe são acrescentados novos átomos. Toda ação de uma coisa
 sobre outra se produz pelo choque dos átomos; se há separação no 
espaço, recorre-se à teoria das aporrhoaí. Percebe-se, pois, que 
Empédocles foi utilizado a fundo, pois este havia discernido o dualismo 
do movimento em Anaxágoras e recorrido à ação mágica. Demócrito adota 
uma posição adversa. Anaxágoras reconhecia quatro elementos; Demócrito 
esforçou-se por caracterizá-los a partir de seus átomos da mesma 
natureza. O fogo é feito de átomos pequenos e redondos; nos outros 
elementos estão misturados átomos diversos; os elementos distinguem-se 
apenas pela grandeza de suas partes. É por isso que a água, a terra e o 
ar podem nascer um do outro por dissociação.
Demócrito
 pensa, com Empédocles, que somente o semelhante age sobre o semelhante.
 A teoria dos poros e das aporrhoaí preparava a do kenón. O ponto de 
partida de Demócrito, a realidade do movimento, Ihe é comum com 
Anaxágoras e Empédocles, provavelmente também sua dedução a partir da 
realidade do pensamento. Com Anaxágoras, tem em comum os ápeira ou 
matérias originais. Naturalmente, é antes de tudo de Parmênides que ele 
procede, é este que domina todas as suas concepções fundamentais. Ele 
retorna ao primeiro sistema de Parmênides, segundo o qual o mundo se 
compunha de ser e de não-ser. Toma emprestado de Heráclito a crença 
absoluta no movimento, a idéia de que todo movimento pressupõe uma 
contradição e de que o conflito é o pai de todas as coisas.
De
 todos os sistemas antigos, o de Demócrito é o mais lógico: pressupõe a 
mais estrita necessidade presente em toda parte, não há nem interrupção 
brusca nem intervenção estranha no curso natural das coisas. Só então o 
pensamento se desprende de toda a concepção antropomórfica do mito, 
tem-se, enfim, uma hipótese cientificamente utilizável; esta hipótese, o
 materialismo, sempre foi da maior utilidade. É a concepção mais 
terra-a-terra; parte das qualidades reais da matéria, não procura logo 
de início, como a hipótese do Nous ou as causas finais de Aristóteles, 
ultrapassar as forças mais simples. É um grande pensamento reconduzir às
 manifestações inumeráveis de uma força única, da espécie mais comum, 
todo esse universo cheio de ordem e de exata finalidade. A matéria que 
se move segundo as Ieis mais gerais produz, com o auxílio de um 
mecanismo cego, efeitos que parecem os desígnios de uma sabedoria 
suprema. Leia-se Kant, História Natural do Céu, p. 48. Rosenkr.: 
''Admito que a matéria de todo o universo está em um estado de dispersão
 geral e faço dele um perfeito caos. Vejo as substâncias se formarem em 
virtude de leis conhecidas de atração e modificarem, pelo choque, seu 
movimento. Sinto o prazer de ver um todo bem ordenado nascer sem o 
auxílio de fábulas arbitrárias, pelo efeito de leis mecânicas bem 
conhecidas, e esse todo é tão semelhante ao universo que temos sob os 
olhos que não posso impedir-me de tomá-lo por ele mesmo. Não contestarei
 então que a teoria de Lucrécio ou de seus predecessores, Epicuro, 
Leucipo, Demócrito, tem muita analogia com a minha. Parece-me que se 
poderia dizer aqui, em certo sentido, sem muita imprudência: 'Dai-me a 
matéria, e eu vos farei um mundo' ". 
Eis
 como Demócrito se representa a formação de um mundo dado: os átomos 
flutuam, perpetuamente agitados, no espaço infinito; censurou-se desde a
 Antiguidade esse ponto de partida, dizendo que o mundo teria sido 
movido e teria nascido por "acaso", concursu quodam fortuito, que o 
"acaso cego" reinaria entre os materialistas. Esta é uma maneira muito 
pouco filosófica de se exprimir. O que é preciso dizer é que há uma 
causalidade sem finalidade, anánke sem intenções. Não há acaso, mas um 
conjunto de leis rigorosas, embora não racionais. 
Demócrito
 deduz todo movimento do espaço vazio e do peso. Os átomos pesados caem e
 fazem subir os átomos leves com sua pressão. O movimento original é, 
bem entendido, vertical, uma queda regular e eterna no infinito do 
espaço; não se pode indicar sua velocidade, pois, como o espaço é 
infinito e a queda regular não há medida para essa velocidade...
Como
 os átomos vieram a operar movimentos laterais, a formar turbilhões na 
regularidade das combinações que se faziam e se desfaziam? Se tudo caía 
na mesma velocidade, isso seria equivalente ao repouso absoluto; a 
velocidade sendo desigual, eles se encontram, alguns são repelidos, 
produz-se um movimento giratório. Esse turbilhão aproxima, 
primeiramente, o que é de mesma natureza. Quando os átomos em equilíbrio
 são tão numerosos que não podem mais se mover, os mais leves são 
repelidos para o vazio exterior, como se fossem expulsos; os outros 
permanecem juntos, entrelaçando-se e formando uma espécie de 
conglomerado... Cada um desses conglomerados que se separam da massa dos
 corpos primitivos é um mundo; há infinitos mundos. Estes nasceram e 
perecerão.
Cada
 vez que nasce um mundo, é que uma massa produzida pelo choque de átomos
 heterogêneos se separou; as partes mais leves são empurradas para o 
alto; sob o efeito combinado de forças opostas, a massa entra em 
rotação, os elementos repelidos para fora depositam-se no exterior como 
uma película. Esse invólucro vai-se tornando cada vez mais fino, certas 
partes sendo atraídas para o centro pela rotação. Os átomos centrais 
formam a terra, aqueles que se elevam formam o céu, o fogo, o ar. Alguns
 formam massas espessas, mas o ar que os leva é por sua vez levado em um
 rápido turbilhão; neste eles secam pouco a pouco e se inflamam pela 
rapidez do movimento (astros). Do mesmo modo, as partículas do corpo 
terrestre são pouco a pouco arrancadas pelos ventos e pelos astros e se 
acumulam em água nos ocos. Assim a terra se solidifica. Pouco a pouco 
ela tomou uma posição fixa no centro do universo; no começo, quando ela 
era ainda pequena e leve, movia-se de um lado para outro. O sol e a lua,
 em um estágio antigo de sua formação, foram apanhados pelas massas que 
se moviam em torno do núcleo terrestre e desse modo viram-se atraídos 
para nosso sistema sideral.
Nascimento
 dos seres animados. A essência da alma reside em sua força animadora; é
 esta que move os seres animados. O pensamento é um movimento. A alma 
deve, pois, ser feita da matéria mais móvel, de átomos sutis, lisos e 
arredondados (de fogo). Essas partículas de fogo estão espalhadas por 
todo o corpo; entre todos os átomos corporais se intercala um átomo de 
alma. Estes se movem perpetuamente. Por causa de sua sutileza e de sua 
mobilidade arriscam-se a serem arrancados do corpo pelo ar circundante. É
 disso que nos preserva a respiração, que nos traz constantemente de 
fora novos átomos de fogo e de alma para substituir os átomos 
desaparecidos e que prende no interior do corpo aqueles que quereriam 
escapar. Se a respiração cessa, o fogo interior escapa. Disso resulta a 
morte. Isso não acontece em um instante; pode ocorrer que a vida seja 
restaurada depois da desaparição de uma parte da alma. O sono - morte 
aparente.
Teoria
 das percepções dos sentidos. O contato não é imediato, opera-se por 
meio das aporrhoaí. Estas penetram no corpo pelos sentidos e espalham-se
 por todas as partes; disso nasce a representação das coisas. Duas 
condições são necessárias: uma certa força da impressão e a afinidade do
 órgão que a recebe. Somente o semelhante sente o semelhante, percebemos
 as coisas por meio das partes de nosso ser que Ihes são análogas.
A
 percepção é idêntica ao pensamento. Uma e outro são modificações 
mecânicas da matéria da alma; se a alma é levada por esse movimento à 
temperatura conveniente, percebe exatamente os objetos, o pensamento é 
sadio. Se o movimento a aquece ou a esfria excessivamente, as 
representações são falsas e o pensamento é malsão. É aqui que começam as
 verdadeiras dificuldades do materialismo, porque ele próprio começa a 
sentir seu prõton pseudos. Tudo o que é objetivo, extenso, agente, 
potanto material, tudo aquilo que o materialismo considera como seu 
fundamento mais solido, não passa de um dado extremamente mediato, um 
concreto extremamente relativo, que passou pelo mecanismo do cérebro e 
acomodou-se às formas do tempo, do espaço e da causalidade, graças às 
quais se apresenta como extenso no espaço e agente no tempo. É de um tal
 dado que o materialismo quer, agora, deduzir o único dado imediato, a 
representação. É uma prodigiosa petição de princípios; de repente, o 
último elo aparece como o ponto de partida de que já dependia o primeiro
 elo da corrente. Assim, comparou-se o materialismo ao Barão de Crac 
(sic), que, quando atravessava o rio a cavalo, suspendia sua montaria 
apertando-a entre as pernas e se suspendia a si mesmo por meio de sua 
peruca, que puxava para cima. O absurdo consiste em partir do dado 
objetivo, enquanto, na verdade, todo dado objetivo é determinado de 
várias maneiras pelo sujeito pensante e desaparece totalmente quando se 
faz abstração do sujeito. Por outro lado, o materialismo é uma hipótese 
preciosa e de uma verdade relativa, mesmo depois que se descobriu o 
prõton pseudos; é uma representação cômoda nas ciências naturais, e 
todos os seus resultados permanecem verdadeiros para nós, se não no 
absoluto. Trata-se do mundo que é o nosso, para cuja produção cooperamos
 sempre.
Anotações sobre Demócrito  
Os
 fragmentos de Moral (= Estudos Éticos) têm, por um lado, um tom 
desenvolto de homem do mundo e uma bela forma. Não recendem a estoicismo
 nem a platonismo, mas, aqui e ali, lembram Aristóteles e sua 
metropathía.
Não
 são indignos de Demócrito. É um problema psicológico saber se foi ele 
que os escreveu. A tradição não prova nada... Junta-se a isso a 
obscuridade em que nos encontramos a respeito de Leucipo. Se este é o 
inventor da ideia principal, podemos entretanto atribuir também a 
Demócrito uma grande diversidade de concepções.
Todos
 os materialistas pensam que, se o homem é infeliz, é por não conhecer a
 natureza. Assim o Sistema da Natureza começa nestes termos: "O homem é 
infeliz porque não conhece a natureza".
Sobre
 a questão da criação do mundo, Demócrito é perfeitamente claro. Uma 
sequência infinita de anos, a cada mil anos uma pedrinha é juntada às 
outras, e a terra acaba por ser o que é.
Sobre o problema da origem do mundo, ele foi, igualmente, de uma completa clareza.
O materialismo é o elemento conservador na ciência como na vida. A ética de Demócrito é conservadora.
"Contenta-te
 com o mundo tal como é", é o cânon moral que o materialismo produziu. 
Uma plena virilidade do pensamento e da investigação aparece cm 
Demócrito. Entretanto, ele não perde o senso da poesia. É o que prova 
sua própria descrição, seu juízo sobre os poetas, que considera como 
profetas da verdade (isso lhe parece um fato natural).
Não acreditamos nos contos, mas sentimos sua força poética.
Características do Pensamento de Demócrito
• Gosto pela ciência. Aitíai. Viagens;
• Clareza. Aversão ao bizarro;
• Simplicidade do método;
• Arrojo poético (poesia do atomismo);
• Sentimento de um progresso poderoso;
• Fé absoluta em seu sistema;
• O Mal excluído de seu sistema.
• Paz de espírito, resultado do estudo cientifico. Pitágoras.
• Inquietações míticas: racionalismo.
• Inquietações morais: ascetismo.
• Inquietações políticas: quietismo.
• Inquietações conjugais: adoção de filhos.
|  | 
| Vauvenargues | 
–
 É a meta de sua filosofia. Os sistemas anteriores não lhe davam isso, 
pois deixavam subsistir um elemento irracional. Eis por que ele procurou
 remeter tudo àquilo que é mais fácil de compreender, a queda e o 
choque.
Queria
 sentir-se no mundo como em um quarto claro. Racionalista encarnado, pai
 do racionalismo, acomodava à sua maneira os deuses, o espetáculo dos 
sacrifícios, etc. Demócrito, sem dúvida, deve igualmente ser incluído 
entre os melancólicos...
A meta é o otium litteratum: "ter a paz"
Demócrito, esse Humboldt do mundo antigo.
Sente-se
 impelido a correr o mundo. Retorna pobre e sem recursos, reduzido, como
 um mendigo, a viver das esmolas de seu irmão. Sua cidade natal o toma 
por um pródigo. Recusam-lhe uma sepultura honrada, até o dia em que seus
 parentes tomam as dores do morto e em que se elevam monumentos em honra
 daquele que, desprezado em vida, quase morrera de fome.
Ele
 se desempenha com excessiva rapidez dos encargos de construir o mundo e
 a moral. Os problemas mais profundos Ihe permanecem ocultos. É que sua 
vontade é a mola de sua investigação; o que quer é terminá-la e atingir o
 conhecimento último. Ele se atrela a este, e é isso que Ihe dá sua 
segurança e sua confiança em si. Ainda não havia notado, ao passar em 
revista os sistemas anteriores, uma abundância infinita de pontos de 
vista diversos; conservou, de seus raros predecessores, aquilo que Ihe 
era homogêneo, aquilo que lhe parecia inteligível e simples, e condenou 
sem indulgência a intrusão de um mundo mítico. É, pois, um racionalista 
confiante; crê na capacidade liberadora de seu sistema e elimina dele 
tudo aquilo que é mau e imperfeito.
Período Sistemático (SOFISTAS)

O
 segundo período da história do pensamento grego é o chamado período 
sistemático. Com efeito, nesse período realiza-se a sua grande e lógica 
sistematização, culminando em Aristóteles, através de Sócrates e Platão,
 que fixam o conceito de ciência e de inteligível, e através também da 
precedente crise cética da sofística. O interesse dos filósofos gira, de
 preferência, não em torno da natureza, mas em torno do homem e do 
espírito; da metafísica passa-se à gnosiologia e à moral. Daí ser dado a
 esse segundo período do pensamento grego também o nome de 
antropológico, pela importância e o lugar central destinado ao homem e 
ao espírito no sistema do mundo, até então limitado à natureza exterior.
Esse
 período esplêndido do pensamento grego - depois do qual começa a 
decadência - teve duração bastante curta. Abraça, substancialmente, o 
século IV a.C., e compreende um número relativamente pequeno de grandes 
pensadores: os sofistas e Sócrates, daí derivando as chamadas escolhas 
socráticas menores, sendo principais a cínica e a cirenaica, 
precursoras, respectivamente, do estoicismo e do epicurismo do período 
seguinte; Platão e Aristóteles, deles procedendo a Academia e o Liceu, 
que sobreviverão também no período seguinte e além ainda, especialmente a
 Academia por motivos éticos e religiosos, e em seus desenvolvimentos 
neoplatônicos em especial - apesar de o aristotelismo ter superado 
logicamente o platonismo. 
É
 certo, não obstante, que as obras completas de Demócrito (que incluem 
as obras de Leucipo e outros, bem como as de Demócrito) continuaram a 
existir, porquanto a escola as conservou em Abdera e Teos ao longo dos 
tempos helenísticos. Por isso, foi possível para Trasilo, sob o reinado 
de Tibério, fazer uma edição das obras de Demócrito, organizada em 
tetralogias, exatamente como sua edição dos diálogos de Platão. Mesmo 
isso não foi suficiente para preservá-las. Os epicuristas, que tinham a 
obrigação de ter estudado o homem a quem deviam tanto, detestavam 
qualquer tipo de estudo, e provavelmente nem se preocuparam em 
multiplicar os exemplares de um escritor cujas obras teriam sido um 
testemunho permanente para a carência de originalidade que caracterizou o
 próprio sistema deles.
Sabemos
 extremamente pouco sobre a vida de Demócrito. Como Protágoras, era 
natural de Abdera na Trácia, uma cidade que nem mereceria a reputação 
proverbial de embotamento, considerando que pode dar origem a dois 
homens de tanta envergadura. Quanto à data do seu nascimento, temos 
apenas conjeturas para nos orientar. Em uma das principais obras, 
afirmou que elas foram escritas 730 anos após a queda de Tróia; não 
sabemos; porém, quando, segundo a suposição dele, isto ocorrera. Havia 
nessa época e posteriormente diversas eras em uso. Disse também algures 
que, quando Anaxágoras era velho, ele era jovem, e a partir dai 
concluiu-se que nasceu em 460 a.C. Parece, entretanto, cedo demais, 
visto estar baseado na hipótese de que tinha quarenta anos quando se 
encontrou com Anaxágoras, e a expressão "jovem" sugere menos que esta 
idade. Demais, cumpre-nos encontrar um espaço para Leucipo entre eles 
[Demócrito] e Zenão. Se Demócrito morreu, como se diz, com a idade de 
noventa ou cem anos, de qualquer maneira ainda vivia quando Platão 
fundara a Academia. Mesmo a partir de fundamentos meramente 
cronológicos, é falso classificar Demócrito entre os predecessores de 
Sócrates, e obscurece o fato de que, como Sócrates, ele tentou responder
 ao seu distinto concidadão Protágoras.
Demócrito
 foi discípulo de Leucipo, e temos uma prova contemporânea, a de Glauco 
de Régio, que também os pitagóricos foram seus mestres. Um membro 
posterior da escola, Apolodoro de Quizico, diz que tomou conhecimento 
por intermédio de Filolau, o que parece muito provável. Isto esclarece o
 seu conhecimento geométrico, bem como, outros aspectos do seu sistema. 
Sabemos, outrossim, que Demócrito falou nas obras das doutrinas de 
Parmênides e Zenão, que chegou a conhecê-las através de Leucipo. Fez 
menção a Anaxágoras, e parece ter dito que a sua teoria do sol e da lua 
não era original. Isto pode referir se à explicação dos eclipses, que 
geralmente fora atribuída em Atenas, e sem dúvida alguma na Jonia, a 
Anaxágoras, ainda que Demócrito naturalmente estivesse ciente de ser ela
 pitagórica.
Diz-se
 ter visitado o Egito, mas há uma certa razão para se acreditar que o 
fragmento onde isto é mencionado (fragmento 298 b) é apócrifo. Há um 
outro (fragmento 116) no qual ele diz: "Eu fui a Atenas e ninguém tomou 
conhecimento de mim". Se disse isto, sem dúvida deu a entender que não 
conseguira causar uma impressão tal como o fizera o seu mais brilhante 
concidadão Protágoras. Por outro lado, Demétrio de Falerão afirmou que 
Demócrito jamais visitou Atenas; então é possível que este fragmento 
também seja apócrifo. Seja como for, ele deve ter despendido a maior 
parte do seu tempo no estudo, ensinando e escrevendo em Abdera. Não era 
um sofista itinerante do tipo moderno, mas sim o cabeça de uma escola 
regular.
A
 verdadeira grandeza de Demócrito não está na teoria dos átomos e do 
vazio, que ele parece ter exposto bem conforme a tinha recebido de 
Leucipo. Menos ainda está no seu sistema cosmológico, que deriva 
mormente de Anaxágoras. Pertence inteiramente a uma outra geração que a 
desses homens, e não está preocupado de modo especial em encontrar uma 
resposta a Parmênides. A questão à qual tinha que se dedicar era a de 
sua própria época. A possibilidade de ciência havia sido negada, bem 
como todo o problema do conhecimento levantado por Protágoras, e era 
isto que exigia uma solução. Ademais, o problema do comportamento 
tornara-se premente. A originalidade de Demócrito, portanto, está 
precisamente na mesma linha que a de Sócrates.
Teoria do Conhecimento
Demócrito
 procedeu como Leucipo ao fazer uma avaliação puramente mecânica da 
sensação, e é provável que ele seja o autor da doutrina minuciosa dos 
átomos com respeito a este assunto. Uma vez que a alma se compõe de 
átomos como qualquer outra coisa, a sensação deve consistir no impacto 
dos átomos externos sobre os átomos da alma, e os órgãos dos sentidos 
devem ser simplesmente ''passagens" (póroi = poros) através das quais 
estes átomos se introduzem. Disto decorre que os objetos da visão não 
são estritamente as coisas que nós mesmos presumimos ver, mas as 
"imagens" (deíkela, eídola) que os corpos estão constantemente emitindo.
 A imagem na pupila do olho era considerada como a coisa essencial em 
visão. Não é, porém, uma semelhança exata do corpo do qual provém, pois 
está sujeita às distorções causadas pela interferência do ar. Este é o 
motivo por que vemos as coisas a distância de um modo embaraçado e 
indistinto, e por que, se a distância for grande, não podemos vê-las de 
modo algum. Se não houvesse ar, mas somente o vazio, entre nós e os 
objetos da visão, isto não seria assim; "poderíamos ver uma formiga 
rastejando no firmamento". As diferenças de cor devem-se à lisura ou 
aspereza das imagens ao tato. A audição explica-se de uma maneira 
similar. O som é uma torrente de átomos que jorram do corpo sonante e 
produzem movimento no ar entre ele [corpo] e o ouvido. Chegou, portanto,
 ao ouvido junto com aquelas porções do ar que se Ihe assemelham. As 
diferenças de paladar são devidas às diferenças nas figuras (eide, 
skhémata) dos átomos que entram em contato com os órgãos desse sentido; e
 o olfato explica-se semelhantemente, embora não com os mesmos detalhes.
 De modo idêntico, o tato, considerado como o sentido pelo qual sentimos
 o calor e o frio, o molhado e o seco e outros que tais, é afetado de 
acordo com a forma e o tamanho dos átomos chocando nele.
Aristóteles
 afirma que Demócrito reduziu todos os sentidos ao tato, e é realmente 
verdade se entendermos por tato o sentido que percebe qualidades, tais 
como forma, tamanho e peso. Este, todavia, deve ser cautelosamente 
distinguido do sentido próprio do tato, que acima foi descrito. Para 
compreender esta questão, temos que considerar a doutrina do 
conhecimento "legítimo" e "ilegítimo".
É
 aqui que Demócrito entra nitidamente em conflito com Protágoras, que 
asseverou serem todas as sensações igualmente verdadeiras para o objeto 
sensível. Demócrito, pelo contrário, considera falsas todas as sensações
 dos sentidos próprios, posto que elas não têm uma contrapartida real 
fora do objeto sensível. Nisto, naturalmente, está em conformidade com a
 tradição eleática onde repousa a teoria atômica. Parmênides afirmara 
claramente que o paladar, as cores, o som e outros semelhantes eram 
apenas "nomes" (onómata), e é bastante idêntico a Leucipo que disse algo
 de parecido, apesar de não haver razão de se acreditar que ele tenha 
elaborado uma teoria sobre o assunto. Seguindo o exemplo de Protágoras, 
Demócrito foi obrigado a ser explícito com referência à questão. Sua 
doutrina, felizmente, foi-nos preservada através de suas próprias 
palavras. "Por convenção (nómo)": disse ele (fragmento 125), "há o doce;
 por convenção há o amargo; por convenção há o quente e por convenção há
 o frio; por convenção há a cor". Porém, na realidade (etee), há os 
átomos e o vazio. Deveras, as nossas sensações não representam nada de 
externo, apesar de serem causadas por algo fora de nós, cuja verdadeira 
natureza não pode ser apreendida pelos sentidos próprios. Esta é a razão
 por que a mesma coisa às vezes dá a sensação de doce e às vezes de 
amargo. "Pelos sentidos", afirmou Demócrito (fragmento 9),"nós na 
verdade não conhecemos nada de certo, mas somente alguma coisa que muda 
de acordo com a disposição do corpo e das coisas que nele penetram ou 
Ihe opõem resistência". Não podemos conhecer a realidade deste modo, 
pois "a verdade jaz num abismo" (fragmento 117). Vê-se que esta doutrina
 tem muito em comum com a distinção moderna entre as qualidades 
primárias e secundárias da matéria.
Demócrito,
 pois, rejeita a sensação como fonte de conhecimento, exatamente como 
fizeram os pitagóricos e Sócrates; contudo, como eles, ressalva a 
possibilidade de ciência, afirmando que existe uma outra fonte de 
conhecimento que não a dos sentidos próprios. "Há", diz ele (fragmento 
11), "duas formas de conhecimento (gnóme): o legítimo (gnesíe) e o 
ilegítimo (skotíe). Ao ilegítimo pertencem todos estes: a visão, a 
audição, o olfato, o paladar e o tato. O legítimo, porém, está separado 
daquele". Esta é a resposta de Demócrito a Protágoras. Ele diz que o 
mel, por exemplo, é tanto amargo quanto doce, doce para mim e amargo 
para você. Na realidade, é "não mais tal do que tal" (oudèn mãllon toion
 è toion). Sexto Empírico e Plutarco afirmaram claramente que Demócrito 
argüiu contra Protágoras, e o fato, por conseguinte, está fora da 
discussão.
Ao
 mesmo tempo, não se pode ignorar que Demócrito dera uma explicação 
puramente mecânica deste conhecimento legítimo, como o fizera do 
ilegítimo. Defendeu, com efeito, que os átomos fora de nós poderiam 
afetar diretamente os átomos da nossa alma sem a intervenção dos órgãos 
dos sentidos. Os átomos da alma não se restringem a algumas partes 
específicas do corpo, mas nele penetram em qualquer direção, e não há 
nada que os impeça de ter contato imediato com os átomos externos, 
chegando assim a conhecê-los como realmente são. O "conhecimento 
legítimo" é, afinal de contas, da mesma natureza do "ilegítimo", e 
Demócrito recusou-se, como Sócrates, a fazer uma separação absoluta 
entre os sentidos e o conhecimento. "Pobre Mente", imagina ele os 
sentidos dizerem (fragmento 125); "é por causa de nós que conseguiste as
 provas com as quais atiras contra nós. Teu tiro é uma capitulação." O 
conhecimento "legítimo" não é, apesar de tudo, pensamento, mas uma 
espécie de sentido interno, e seus objetos são como os "sensíveis 
comuns" de Aristóteles.
Como
 seria de esperar de um seguidor dos pitagóricos e de Zenão, Demócrito 
ocupou-se com o problema da continuidade. Em uma passagem digna de nota 
(fragmento 155), ele o confirma desta forma: "Se um cone fosse cortado 
por um plano em linha paralela à base, o que se deveria pensar das 
superfícies das duas partes cortadas? Seriam iguais ou desiguais? Se 
forem desiguais, farão irregular o cone, pois ele terá muitas incisões 
em forma de degraus e muitas asperezas. Se forem iguais, então as partes
 cortadas serão iguais, e o cone terá a aparência de um cilindro, que é 
composto de círculos iguais e não desiguais, o que é o maior absurdo". 
Segundo um comentário de Arquimedes, parece que Demócrito prosseguiu 
afirmando que o volume do cone era a terça parte do volume do cilindro 
sobre a mesma base e do mesmo peso, cujo teorema foi demonstrado 
primeiro por Eudoxo. É evidente, pois, que ele estava empenhado em 
problemas tais como aqueles que finalmente deram origem ao método 
infinitesimal do próprio Arquimedes. Vemos mais uma vez como foi 
importante a obra de Zenão como um fermento intelectual. 
A Sofística
Após
 as grandes vitórias gregas, atenienses, contra o império persa, houve 
um triunfo político da democracia, como acontece todas as vezes que o 
povo sente, de repente, a sua força. E visto que o domínio pessoal, em 
tal regime, depende da capacidade de conquistar o povo pela persuasão, 
compreende-se a importância que, em situação semelhante, devia ter a 
oratória e, por conseguinte, os mestres de eloquência. Os sofistas, 
sequiosos de conquistar fama e riqueza no mundo, tornaram-se mestres de 
eloquência, de retórica, ensinando aos homens ávidos de poder político a
 maneira de consegui-lo. Diversamente dos filósofos gregos em geral, o 
ensinamento dos sofistas não era ideal, desinteressado, mas sobejamente 
retribuído. O conteúdo desse ensino abraçava todo o saber, a cultura, 
uma enciclopédia, não para si mesma, mas como meio para fins práticos e 
empíricos e, portanto, superficial.
A
 época de ouro da sofística foi - pode-se dizer - a segunda metade do 
século V a.C. O centro foi Atenas, a Atenas de Péricles, capital 
democrática de um grande império marítimo e cultural. Os sofistas 
maiores foram quatro. Os menores foram uma plêiade, continuando até 
depois de Sócrates, embora sem importância filosófica. 
Protágoras foi o maior de todos, chefe de escola e teórico da sofística. 
Moral, Direito e Religião
Em
 coerência com o ceticismo teórico, destruidorda ciência, a sofística 
sustenta o relativismo prático, destruidor da moral. Como é verdadeiro o
 que tal ao sentido, assim é bem o que satisfaz ao sentimento, ao 
impulso, à paixão de cada um em cada momento. Ao sensualismo, ao 
empirismo gnosiológicos correspondem o hedonismo e o utilitarismo ético:
 o único bem é o prazer, a única regra de conduta é o interesse 
particular. Górgias declara plena indiferença para com todo moralismo: 
ensina ele a seus discípulos unicamente a arte de vencer os adversários;
 que a causa seja justa ou não, não lhe interessa. A moral, portanto, - 
como norma universal de conduta - é concebida pelos sofistas não como 
lei racional do agir humano, isto é, como a lei que potencia 
profundamente a natureza humana, mas como um empecilho que incomoda o 
homem.
Desta
 maneira, os sofistas estabelecem uma oposição especial entre natureza e
 lei, quer política, quer moral, considerando a lei como fruto 
arbitrário, interessado, mortificador, uma pura convenção, e entendendo 
por natureza, não a natureza humana racional, mas a natureza humana 
sensível, animal, instintiva. E tentam criticar a vaidade desta lei, na 
verdade tão mutável conforme os tempos e os lugares, bem como a sua 
utilidade comumente celebrada: não é verdade - dizem - que a submissão à
 lei torne os homens felizes, pois grandes malvados, mediante graves 
crimes, têm frequentemente conseguido grande êxito no mundo e, aliás, a 
experiência ensina que para triunfar no mundo, não é mister justiça e 
retidão, mas prudência e habilidade.
Então
 a realização da humanidade perfeita, segundo o ideal dos sofistas, não 
está na ação ética e ascética, no domínio de si mesmo, na justiça para 
com os outros, mas no engrandecimento ilimitado da própria 
personalidade, no prazer e no domínio violento dos homens. Esse domínio 
violento é necessário para possuir e gozar os bens terrenos, visto estes
 bens serem limitados e ambicionados por outros homens. É esta, aliás, a
 única forma de vida social possível num mundo em que estão em jogo 
unicamente forças brutas, materiais. Seria, portanto, um prejuízo a 
igualdade moral entre os fortes e os fracos, pois a verdadeira justiça 
conforme à natureza material, exige que o forte, o poderoso, oprima o 
fraco em seu proveito.
Quanto
 ao direito e à religião, a posição da sofística é extremista também, 
naturalmente, como na gnosiologia e na moral. A sofística move uma justa
 crítica, contra o direito positivo, muitas vezes arbitrário, 
contingente, tirânico, em nome do direito natural. Mas este direito 
natural - bem como a moral natural - segundo os sofistas, não é o 
direito fundado sobre a natureza racional do homem, e sim sobre a sua 
natureza animal, instintiva, passional. Então, o direito natural é o 
direito do mais poderoso, pois em uma sociedade em que estão em jogo 
apenas forças brutas, a força e a violência podem ser o único elemento 
organizador, o único sistema jurídico admissível.
A
 respeito da religião e da divindade, os sofistas não só trilham a mesma
 senda dos filósofos racionalistas gregos do período precedente e 
posterior, mas - de harmonia com o ceticismo deles - chegam até o 
extremo, até o ateísmo, pelo menos praticamente. Os sofistas, pois, 
servem-se da injustiça e do muito mal que existe no mundo, para negar 
que o mundo seja governado por uma providência divina.
Protágoras de Abdera
Protágoras
 nasceu em Abdera - pátria de Demócrito, cuja escola conheceu - pelo ano
 480. Viajou por toda a Grécia, ensinando na sua cidade natal, na Magna 
Grécia, e especialmente em Atenas, onde teve grande êxito, sobretudo 
entre os jovens, e foi honrado e procurado por Péricles e Eurípedes. 
Acusado de ateísmo, teve de fugir de Atenas, onde foi processado e 
condenado por impiedade, e a sua obra sobre os deuses foi queimada em 
praça pública. Refugiou-se então na Sicília, onde morreu com setenta 
anos (410 a.C.), dos quais, quarenta dedicados à sua profissão. Dos 
princípios de Heráclito e das variações da sensação, conforme as 
disposições subjetivas dos órgãos, inferiu Protágoras a relatividade do 
conhecimento. Esta doutrina enunciou-a com a célebre fórmula; o homem é a
 medida de todas as coisas. Esta máxima significava mais exatamente que 
de cada homem individualmente considerado dependem as coisas, não na sua
 realidade física, mas na sua forma conhecida. Subjetivismo, relativismo
 e sensualismo são as notas características do seu sistema de ceticismo 
parcial. Platão deu o nome de Protágoras a um dos seus diálogos, e a um 
outro o de Górgias. 
Górgias de Leôncio
Górgias
 nasceu em Abdera, na Sicília, em 480-375 a.C - correlacionado com 
Empédocles - representa a maior expressão prática da sofística, mediante
 o ensinamento da retórica; teoricamente, porém, foi um filósofo 
ocasional, exagerador dos artifícios da dialética eleática. Em 427 foi 
embaixador de sua pátria em Atenas, para pedir auxílio contra os 
siracusanos. Ensinou na Sicília, em Atenas, em outras cidades da Grécia,
 até estabelecer-se em Larissa na Tessália, onde teria morrido com 109 
anos de idade. Menos profundo, porém, mais eloquente que Protágoras, 
partiu dos princípios da escola eleata e concluiu também pela absoluta 
impossibilidade do saber. É autor duma obra intitulada "Do não ser", na 
qual desenvolve as três teses:
Nada
 existe; se alguma coisa existisse não a poderíamos conhecer; se a 
conhecêssemos não a poderíamos manifestar aos outros. A prova de cada 
uma destas proposições e um enredo de sofismas, sutis uns, outros 
pueris.
No
 Górgias de Platão, Górgias declara que a sua arte produz a persuasão 
que nos move a crer sem saber, e não a persuasão que nos instrui sobre 
as razões intrínsecas do objeto em questão. Em suma, é mais ou menos o 
que acontece com o jornalismo moderno. Para remediar este extremo 
individualismo, negador dos valores teoréticos e morais, Protágoras 
recorre à convenção estatal, social, que deveria estabelecer o que é 
verdadeiro e o que é bem!
SÓCRATES
A Vida
Inteiramente
 absorvido pela sua vocação, não se deixou distrair pelas preocupações 
domésticas nem pelos interesses políticos. Quanto à família, podemos 
dizer que Sócrates não teve, por certo, uma mulher ideal na quérula 
Xantipa; mas também ela não teve um marido ideal no filósofo, ocupado 
com outros cuidados que não os domésticos. 
Quanto
 à política, foi ele valoroso soldado e rígido magistrado. Mas, em 
geral, conservou-se afastado da vida pública e da política 
contemporânea, que contrastavam com o seu temperamento crítico e com o 
seu reto juízo. Julgava que devia servir a pátria conforme suas 
atitudes, vivendo justamente e formando cidadãos sábios, honestos, 
temperados - diversamente dos sofistas, que agiam para o próprio 
proveito e formavam grandes egoístas, capazes unicamente de se 
acometerem uns contra os outros e escravizar o próximo.
Entretanto,
 a liberdade de seus discursos, a feição austera de seu caráter, a sua 
atitude crítica, irônica e a consequente educação por ele ministrada, 
criaram descontentamento geral, hostilidade popular, inimizades 
pessoais, apesar de sua probidade. Diante da tirania popular, bem como 
de certos elementos racionários, aparecia Sócrates como chefe de uma 
aristocracia intelectual. Esse estado de ânimo hostil a Sócrates 
concretizou-se, tomou forma jurídica, na acusação movida contra ele por 
Mileto, Anito e Licon: de corromper a mocidade e negar os deuses da 
pátria introduzindo outros. Sócrates desdenhou defender-se diante dos 
juizes e da justiça humana, humilhando-se e desculpando-se mais ou 
menos. Tinha ele diante dos olhos da alma não uma solução empírica para a
 vida terrena, e sim o juízo eterno da razão, para a imortalidade. E 
preferiu a morte. Declarado culpado por uma pequena minoria, assentou-se
 com indômita fortaleza de ânimo diante do tribunal, que o condenou à 
pena capital com o voto da maioria.
Tendo
 que esperar mais de um mês a morte no cárcere - pois uma lei vedava as 
execuções capitais durante a viagem votiva de um navio a Delos - o 
discípulo Criton preparou e propôs a fuga ao Mestre. Sócrates, porém, 
recusou, declarando não querer absolutamente desobedecer às leis da 
pátria. E passou o tempo preparando-se para o passo extremo em palestras
 espirituais com os amigos. Especialmente famoso é o diálogo sobre a 
imortalidade da alma - que se teria realizado pouco antes da morte e foi
 descrito por Platão no Fédon com arte incomparável. Suas últimas 
palavras dirigidas aos discípulos, depois de ter sorvido tranqüilamente a
 cicuta, foram: "Devemos um galo a Esculápio". É que o deus da medicina 
tinha-o livrado do mal da vida com o dom da morte. Morreu Sócrates em 
399 a.C. com 71 anos de idade.
Método de Sócrates
É
 a parte polêmica. Insistindo no perpétuo fluxo das coisas e na 
variabilidade extrema das impressões sensitivas determinadas pelos 
indivíduos que de contínuo se transformam, concluíram os sofistas pela 
impossibilidade absoluta e objetiva do saber. Sócrates restabelece-lhe a
 possibilidade, determinando o verdadeiro objeto da ciência. 
O
 objeto da ciência não é o sensível, o particular, o indivíduo que 
passa; é o inteligível, o conceito que se exprime pela definição. Este 
conceito ou ideia geral obtém-se por um processo dialético por ele 
chamado indução e que consiste em comparar vários indivíduos da mesma 
espécie, eliminar-lhes as diferenças individuais, as qualidades mutáveis
 e reter-lhes o elemento comum, estável, permanente, a natureza, a 
essência da coisa. Por onde se vê que a indução socrática não tem o 
caráter demonstrativo do moderno processo lógico, que vai do fenômeno à 
lei, mas é um meio de generalização, que remonta do indivíduo à noção 
universal. 
Praticamente,
 na exposição polêmica e didática destas ideias, Sócrates adotava sempre
 o diálogo, que revestia uma dúplice forma, conforme se tratava de um 
adversário a confutar ou de um discípulo a instruir. No primeiro caso, 
assumia humildemente a atitude de quem aprende e ia multiplicando as 
perguntas até colher o adversário presunçoso em evidente contradição e 
constrangê-lo à confissão humilhante de sua ignorância. É a 
ironiasocrática. No segundo caso, tratando-se de um discípulo (e era 
muitas vezes o próprio adversário vencido), multiplicava ainda as 
perguntas, dirigindo-as agora ao fim de obter, por indução dos casos 
particulares e concretos, um conceito, uma definição geral do objeto em 
questão. A este processo pedagógico, em memória da profissão materna, 
denominava ele maiêutica ou engenhosa obstetrícia do espírito, que 
facilitava a parturição das ideias. 
Doutrinas Filosóficas
A introspecção é o característico da filosofia de Sócrates. E exprime-se no famoso lema conhece-te a ti mesmo - isto é, torna-te consciente de tua ignorância - como sendo o ápice da sabedoria, que é o desejo da ciência mediante a virtude. E alcançava em Sócrates intensidade e profundidade tais, que se concretizava, se personificava na voz interior divina do gênio ou demônio.
Como
 é sabido, Sócrates não deixou nada escrito. As notícias que temos de 
sua vida e de seu pensamento, devemo-las especialmente aos seus dois 
discípulos Xenofonte e Platão, de feição intelectual muito diferente. 
Xenofonte, autor de Anábase, em seus Ditos Memoráveis, legou-nos de 
preferência o aspecto prático e moral da doutrina do mestre. Xenofonte, 
de estilo simples e harmonioso, mas sem profundidade, não obstante a sua
 devoção para com o mestre e a exatidão das notícias, não entendeu o 
pensamento filosófico de Sócrates, sendo mais um homem de ação do que um
 pensador. Platão, pelo contrário, foi filósofo grande demais para nos 
dar o preciso retrato histórico de Sócrates; nem sempre é fácil 
discernir o fundo socrático das especulações acrescentadas por ele. Seja
 como for, cabe-lhe a glória e o privilégio de ter sido o grande 
historiador do pensamento de Sócrates, bem como o seu biógrafo genial. 
Com efeito, pode-se dizer que Sócrates é o protagonista de todas as 
obras platônicas embora Platão conhecesse Sócrates já com mais de 
sessenta anos de idade. 
"Conhece-te
 a ti mesmo" - o lema em que Sócrates cifra toda a sua vida de sábio. O 
perfeito conhecimento do homem é o objetivo de todas as suas 
especulações e a moral, o centro para o qual convergem todas as partes 
da filosofia. A psicologia serve-lhe de preâmbulo, a teodicéia de 
estímulo à virtude e de natural complemento da ética. 
Em
 psicologia, Sócrates professa a espiritualidade e imortalidade da alma,
 distingue as duas ordens de conhecimento, sensitivo e intelectual, mas 
não define o livre arbítrio, identificando a vontade com a inteligência.
 
Em
 teodicéia, estabelece a existência de Deus: a) com o argumento 
teológico, formulando claramente o princípio: tudo o que é adaptado a um
 fim é efeito de uma inteligência; b) com o argumento, apenas esboçado, 
da causa eficiente: se o homem é inteligente, também inteligente deve 
ser a causa que o produziu; c) com o argumento moral: a lei natural 
supõe um ser superior ao homem, um legislador, que a promulgou e 
sancionou. Deus não só existe, mas é também Providência, governa o mundo
 com sabedoria e o homem pode propiciá-lo com sacrifícios e orações. 
Apesar destas doutrinas elevadas, Sócrates aceita em muitos pontos os 
preconceitos da mitologia corrente que ele aspira reformar.
Moral
 - É a parte culminante da sua filosofia. Sócrates ensina a bem pensar 
para bem viver. O meio único de alcançar a felicidade ou semelhança com 
Deus, fim supremo do homem, é a prática da virtude. A virtude adquiri-se
 com a sabedoria ou, antes, com ela se identifica. Esta doutrina, uma 
das mais características da moral socrática, é consequência natural do 
erro psicológico de não distinguir a vontade da inteligência. Conclusão:
 grandeza moral e penetração especulativa, virtude e ciência, ignorância
 e vício são sinônimos. "Se músico é o que sabe música, pedreiro o que 
sabe edificar, justo será o que sabe a justiça".
Sócrates
 reconhece também, acima das leis mutáveis e escritas, a existência de 
uma lei natural - independente do arbítrio humano, universal, fonte 
primordial de todo direito positivo, expressão da vontade divina 
promulgada pela voz interna da consciência. 
Sublime
 nos lineamentos gerais de sua ética, Sócrates, em prática, sugere quase
 sempre a utilidade como motivo e estímulo da virtude. Esta feição 
utilitarista empana-lhe a beleza moral do sistema. 
Gnosiologia
O
 interesse filosófico de Sócrates volta-se para o mundo humano, 
espiritual, com finalidades práticas, morais. Como os sofistas, ele é 
cético a respeito da cosmologia e, em geral, a respeito da metafísica; 
trata-se, porém, de um ceticismo de fato, não de direito, dada a sua 
revalidação da ciência. A única ciência possível e útil é a ciência da 
prática, mas dirigida para os valores universais, não particulares. Vale
 dizer que o agir humano - bem como o conhecer humano - se baseia em 
normas objetivas e transcendentes à experiência. O fim da filosofia é a 
moral; no entanto, para realizar o próprio fim, é mister conhecê-lo; 
para construir uma ética é necessário uma teoria; no dizer de Sócrates, a
 gnosiologia deve preceder logicamente a moral. Mas, se o fim da 
filosofia é prático, o prático depende, por sua vez, totalmente, do 
teorético, no sentido de que o homem tanto opera quanto conhece: 
virtuoso é o sábio, malvado, o ignorante. O moralismo socrático é 
equilibrado pelo mais radical intelectualismo, racionalismo, que está 
contra todo voluntarismo, sentimentalismo, pragmatismo, ativismo. 
A
 filosofia socrática, portanto, limita-se à gnosiologia e à ética, sem 
metafísica. A gnosiologia de Sócrates, que se concretizava no seu 
ensinamento dialógico, donde é preciso extraí-la, pode-se 
esquematicamente resumir nestes pontos fundamentais: ironia, maiêutica, 
introspecção, ignorância, indução, definição. Antes de tudo, cumpre 
desembaraçar o espírito dos conhecimentos errados, dos preconceitos, 
opiniões; este é o momento da ironia, isto é, da crítica. Sócrates, de 
par com os sofistas, ainda que com finalidade diversa, reivindica a 
independência da autoridade e da tradição, a favor da reflexão livre e 
da convicção racional. A seguir será possível realizar o conhecimento 
verdadeiro, a ciência, mediante a razão. Isto quer dizer que a instrução
 não deve consistir na imposição extrínseca de uma doutrina ao discente,
 mas o mestre deve tirá-la da mente do discípulo, pela razão imanente e 
constitutiva do espírito humano, a qual é um valor universal. É a famosa
 maiêutica de Sócrates, que declara auxiliar os partos do espírito, como
 sua mãe auxiliava os partos do corpo. 
Esta
 interioridade do saber, esta intimidade da ciência - que não é 
absolutamente subjetivista, mas é a certeza objetiva da própria razão - 
patenteiam-se no famoso dito socrático"conhece-te a ti mesmo" que, no 
pensamento de Sócrates, significa precisamente consciência racional de 
si mesmo, para organizar racionalmente a própria vida. Entretanto, 
consciência de si mesmo quer dizer, antes de tudo, consciência da 
própria ignorância inicial e, portanto, necessidade de superá-la pela 
aquisição da ciência. Esta ignorância não é, por conseguinte, ceticismo 
sistemático, mas apenas metódico, um poderoso impulso para o saber, 
embora o pensamento socrático fique, de fato, no agnosticismo filosófico
 por falta de uma metafísica, pois, Sócrates achou apenas a forma 
conceptual da ciência, não o seu conteúdo. 
O
 procedimento lógico para realizar o conhecimento verdadeiro, 
científico, conceptual é, antes de tudo, a indução: isto é, remontar do 
particular ao universal, da opinião à ciência, da experiência ao 
conceito. Este conceito é, depois, determinado precisamente mediante a 
definição, representando o ideal e a conclusão do processo gnosiológico 
socrático, e nos dá a essência da realidade. 
A Moral
Como
 Sócrates é o fundador da ciência em geral, mediante a doutrina do 
conceito, assim é o fundador, em particular da ciência moral, mediante a
 doutrina de que eticidade significa racionalidade, ação racional. 
Virtude é inteligência, razão, ciência, não sentimento, rotina, costume,
 tradição, lei positiva, opinião comum. Tudo isto tem que ser criticado,
 superado, subindo até à razão, não descendo até à animalidade - como 
ensinavam os sofistas. É sabido que Sócrates levava a importância da 
razão para a ação moral até àquele intelectualismo que, identificando 
conhecimento e virtude - bem como ignorância e vício - tornava 
impossível o livre arbítrio. Entretanto, como a gnosiologia socrática 
carece de uma especificação lógica, precisa - afora a teoria geral de 
que a ciência está nos conceitos - assim a ética socrática carece de um 
conteúdo racional, pela ausência de uma metafísica. Se o fim do homem 
for o bem - realizando-se o bem mediante a virtude, e a virtude mediante
 o conhecimento - Sócrates não sabe, nem pode precisar este bem, esta 
felicidade, precisamente porque lhe falta uma metafísica. Traçou, 
todavia, o itinerário, que será percorrido por Platão e acabado, enfim, 
por Aristóteles. Estes dois filósofos, partindo dos pressupostos 
socráticos, desenvolverão uma gnosiologia acabada, uma grande metafísica
 e, logo, uma moral. 
Escolas Socráticas Menores
A
 reforma socrática atingiu os alicerces da filosofia. A doutrina do 
conceito determina para sempre o verdadeiro objeto da ciência: a indução
 dialética reforma o método filosófico; a ética une pela primeira vez e 
com laços indissolúveis a ciência dos costumes à filosofia especulativa.
 Não é, pois, de admirar que um homem, já aureolado pela austera 
grandeza moral de sua vida, tenha, pela novidade de suas ideias, 
exercido sobre os contemporâneos tamanha influência. Entre os seus 
numerosos discípulos, além de simples amadores, como Alcibíades e 
Eurípedes, além dos vulgarizadores da sua moral (socratici viri), como 
Xenofonte, havia verdadeiros filósofos que se formaram com os seus 
ensinamentos. Dentre estes, alguns, saídos das escolas anteriores não 
lograram assimilar toda a doutrina do mestre; desenvolveram 
exageradamente algumas de suas partes com detrimento do conjunto. 
Sócrates
 não elaborou um sistema filosófico acabado, nem deixou algo de escrito;
 no entanto, descobriu o método e fundou uma grande escola. Por isso, 
dele depende, direta ou indiretamente, toda a especulação grega que se 
seguiu, a qual, mediante o pensamento socrático, valoriza o pensamento 
dos pré-socráticos desenvolvendo-o em sistemas vários e originais. Isto 
aparece imediatamente nas escolas socráticas. Estas - mesmo 
diferenciando-se bastante entre si - concordam todas pelo menos na 
característica doutrina socrática de que o maior bem do homem é a 
sabedoria. A escola socrática maior é a platônica; representa o 
desenvolvimento lógico do elemento central do pensamento socrático - o 
conceito - juntamente com o elemento vital do pensamento precedente, e 
culmina em Aristóteles, o vértice e a conclusão da grande metafísica 
grega. Fora desta escola começa a decadência e desenvolver-se-ão as 
escolas socráticas menores.
São fundadores das escolas socráticas menores, das quais as mais conhecidas são: 
1.
 A escola de Megara, fundada por Euclides (449-369), que tentou uma 
conciliação da nova ética com a metafísica dos eleatas e abusou dos 
processos dialéticos de Zenão. 
2.
 A escola cínica, fundada por Antístenes (n. c. 445), que, exagerando a 
doutrina socrática do desapego das coisas exteriores, degenerou, por 
último, em verdadeiro desprezo das conveniências sociais. São bem 
conhecidas as excentricidades de Diógenes.
3.
 A escola cirenaica ou hedonista, fundada por Aristipo, (n. c. 425) que 
desenvolveu o utilitarismo do mestre em hedonismo ou moral do prazer. 
Estas escolas, que, durante o segundo período, dominado pelas altas 
especulações de Platão e Aristóteles , verdadeiros continuadores da 
tradição socrática, vegetaram na penumbra, mais tarde recresceram 
transformadas ou degeneradas em outras seitas filosóficas. Dentre os 
herdeiros de Sócrates, porém, o herdeiro genuíno de suas ideias, o seu 
mais ilustre continuador foi o sublime Platão. 
Introdução à Apologia de Sócrates
De
 acordo com Diógenes Laércio, a acusação apresentada contra Sócrates, em
 janeiro de 399 a.C., foi a que segue: "A seguinte acusação escreve e 
jura Meleto, filho de Meleto, do povoado de Piteo, contra Sócrates, 
filho de Sofronisco, do povoado de Alópece. Sócrates é culpado de não 
aceitar os deuses que são reconhecidos pelo Estado, de introduzir novos 
cultos, e, também, é culpado de corromper a juventude. Pena: a morte"
A
 cidade de Atenas não podia mover ações, mas um cidadão podia, 
assumindo, porém, total responsabilidade, se a acusação não fosse 
considerada procedente pelo júri. O acusador era Meleto, mas não só ele;
 também Ânito e Lícon, com os mesmos direitos à palavra no decorrer do 
processo. Meleto era o acusador oficial, porém nada exigia que o 
acusador oficial fosse o mais respeitável, hábil ou temível, mas somente
 aquele que assinava a acusação.
E,
 neste caso, a influência exercida por Ânito constituiu o elemento mais 
respeitável no desfecho do processo, que foi por ele zelosamente 
preparado nas reuniões dos diversos cidadãos, sustentando-o com a 
autoridade de seu nome.
No
 Eutífron, vemos que Sócrates, ao se aproximar do Pórtico do Rei, onde 
fora afixada a acusação por Meleto, ao ser inquirido pelo adivinho 
Eutífron a respeito de quem era aquele que o acusava, respondeu: "Sei 
bem pouco a respeito dele, talvez porque seja um homem jovem e 
desconhecido. Acredito chamar-se Meleto, do povoado de Piteo, de cabelos
 lisos, barba rala e nariz em forma de bico de pássaro". 
A
 respeito de saber com exatidão quem era esse Meleto, existem muitas 
dúvidas, sendo uma delas se se tratava do personagem citado por 
Aristófanes. Mas não há elementos em que basear essa suposição, pois um 
jovem poeta de 399 a.C. pouco provavelmente chamaria a atenção de 
Aristófanes em 405 a.C., além de considerar que Sócrates insiste no fato
 de que Meleto é desconhecido.
Julgar
 tratar-se do Meleto que, em 399 a.C., chegou a tomar parte da acusação 
contra Andócides, no célebre processo por causa da mutilação da estátua 
de Hermes e da profanação dos Mistérios, seria muito conveniente, por 
haver sido essa também uma acusação de impiedade. Contudo, existe outro 
obstáculo, de acordo com a própria informação de Andócides: esse Meleto 
foi um dos que, em 404 a.C., por ordem dos Trinta Tiranos, se prestaram a
 deter Leon de Salamina. À parte o problema da mudança de lado - de 
partidário dos Trinta Tiranos tornar-se aliado de Ânito, que derrotara e
 expulsara esses mesmos Trinta Tiranos -, sobra a dificuldade de 
explicar por que motivo Sócrates, que conforme ele mesmo afirma na 
Apologia, juntamente com outros quatro homens recebera a ordem de deter a
 Leon de Salamina, tendo sido o único a recusar-se a obedecer, não disse
 que Meleto era um desses homens.
Exceto
 se reputarmos que essa defesa não seja de fato de Sócrates, e sim 
escrita por Platão, que se vale do nome de Meleto, já então tido como um
 fanático religioso, a fim de engrandecer o mestre desaparecido.
Desse
 modo, podemos considerar Meleto de Sócrates o mesmo Meleto de 
Andócides, assim solucionando o problema que tanta discussão tem 
provocado, embora, logicamente, fique apenas no campo da suposição, já 
que nada corrobora realmente esta pretensão.
O
 pouco que conhecemos ou podemos presumir a respeito de Lícon é que 
pouca importância e autoridade teve no decorrer do processo, com seu 
nome sendo citado sempre com evidente desapreço.
Ânito,
 o mais importante dos acusadores, é aquele que, não resta dúvida, dava a
 impressão de conhecer Sócrates, que a ele alude como se Meleto fosse 
seu subordinado, como se deste tivesse se originado a idéia da pena de 
morte para persuadir Sócrates a abandonar a cidade antes que o processo 
tivesse seguimento. Ânito era filho de Antemione, comerciante de couro, 
nascera por volta de - 150 a.C. e já havia exercido importantes cargos e
 magistraturas, sendo estratego em 410 a.C. Após ter sido enviado ao 
exílio pelos Trinta Tiranos, juntamente com Trasíbulo e outros, 
regressou de File com estes e tomou parte da expedição armada contra o 
governo dos tiranos. Depois da restauração do regime democrático, 
tornou-se um dos mais eminentes cidadãos de Atenas.
Ânito
 manteve relação com Sócrates, segundo comprova sua atuação no Mênon, 
onde manifesta uma ameaça velada a este: "Afigura-se-me, ó Sócrates, que
 com muita facilidade te dedicas à maledicência, e eu te aconselho, se 
quiseres me ouvir, que tenhas cuidado".
A
 opinião de Platão a esse respeito é bem clara: não foi por razões 
religiosas que Sócrates recebeu a condenação, mas sim por questões 
evidentemente políticas.
A bem da verdade, Sócrates dera, mediante palavras e atos, patente mostra de sua obstinada repulsa aos governos democráticos.
Portanto,
 nessa época de instalação do regime democrático, convinha afastar de 
Atenas o mestre de Crísias, o homem que sempre se recordava de haver 
sido discípulo de Arquesilau, o qual, por sua vez, fora discípulo de 
Anaxágoras, expulso de Atenas em decorrência de um processo parecido com
 o seu.
Mas
 é preciso frisar que o propósito, como o próprio Sócrates repete, não 
era matá-lo, e sim afastá-lo de Atenas, e se isso não ocorreu deveu-se à
 demasiada teimosia do próprio Sócrates, que em vez de escolher o exílio
 preferiu a proposta de uma multa irrisória, vindo a ser, por 
conseguinte, condenado.
No
 que concerne à condenação por motivos religiosos, da mesma maneira que 
se dá com condenações por motivos políticos, o texto da sentença 
preocupa-se muito mais em esconder do que apresentar as verdadeiras 
causas. Tanto isso é verdade que, em sua defesa, vemos o réu inverter a 
ordem das acusações e colocar em primeiro lugar a última imputação: 
corromper os jovens.
Desde
 a época de Sócrates, afirmara-se o culto patriarcal, em que Zeus era o 
deus-pai, o líder máximo. Se a acusação tivesse se dado em épocas mais 
antigas, poderíamos presumir que Sócrates teria adotado a defesa do 
culto da deusa, isto é, um movimento reacionário em termos de culto.
Coloquemos a questão com mais clareza: as lendas referem a revolta patriarcal contra o matriarcado.
A
 Tripla Deusa, venerada como Réia, esposa de Cronos, em seus três 
aspectos: lua crescente, lua cheia a lua minguante, era a suprema deusa e
 gerava uma vez por ano a Dionisos - Zagreus, seu filho, que era sempre 
devorado pelo tempo.
Dessa
 maneira, as múltiplas facetas da deusa prevaleciam, constituindo as 
sacerdotisas os verdadeiros líderes das povoações e os homens, seus 
instrumentos de fertilização e prazer, executando os trabalhos mais 
necessários à sobrevivência e à defesa.
Numerosas
 revoltas começaram a eclodir com a chegada de contínuas levas de 
dórios, minianos e jônios, em cujas culturas o patriarcalismo era 
arraigado, que acabaram por fomentar a rebelião de Zagreus contra seu 
pai e mãe. Zagreus torna-se Zeus, o Deus-Agnes, ou o Agnos-Deus, que 
pode significar tanto o deus desconhecido quanto o deus-carneiro; Réia 
vem a ser adorada como Hera, e seus aspectos: marinho, lunar e noturno, 
como Anfitrite, Ártemis e Cérbero. Anfitrite é esposa de Posêidon, um 
dos aspectos de Zeus; Ártemis é filha de Zeus, e permanece virgem; 
quanto a Cérbero, representa Hécate, sendo fiel guardião dos domínios de
 Hades, outro aspecto de Zeus, seu culto tendo sido de novo extinto 
durante o período de estabelecimento do culto olímpico.
Nessa
 fase seria de fato correto crer que alguém sofresse um processo por 
questões religiosas, mas à época de Sócrates tudo isso já se encontrava 
devidamente solidificado, e a argumentação de Burnet, em seu comentário à
 Apologia, revela-se, portanto, bem pouco confiável, quando afirma "que 
esses novos deuses da cosmologia jônica eram uma antiga história e que 
poderia ser uma violação da anistia colocá-los de novo à luz do dia".
Portanto,
 considerando-se a anistia garantida até mesmo pelo próprio Ânito, que 
juntamente com Trasíbulo fora seu principal defensor, não era possível 
levar em conta as culpas passadas de Sócrates para condená-lo, isso 
presumindo que existisse alguma, e era necessário arranjar o pretexto 
para executá-lo.
Era
 todo o ensinamento socrático que se tornava perigoso, e não os novos 
fatos. O que significava aquela sabedoria, proclamada superior até mesmo
 pelo oráculo, que consistia em saber que não se sabe?
Qual
 a postura dos políticos diante disso? Que direitos seriam mais opostos 
aos da democracia do que aqueles originados da experiência e da 
competência, e a superioridade da inteligência sobre os direitos da 
assembléia popular e soberana?
É
 isso que causou a condenação de Sócrates, a exigência de que o piloto 
do barco conheça seu ofício, isto é, a superioridade do saber sobre a 
aclamação do povo.
Ademais,
 é necessário recordar que Sócrates manteve relações com os Trinta 
Tiranos: estes não lhe teriam ordenado a prisão de Leon de Salamina se 
não o considerassem um deles; Crísias, o mais feroz dos Tiranos, havia 
sido seu discípulo, e também Alcebíades, que voltara a ser assunto pela 
recente inclusão de seu nome entre os envolvidos na profanação dos 
Mistérios. E mais: Sócrates menciona a seu favor sua participação no 
caso do exílio de Querofonte, porém, assim, insiste no fato de que, 
durante o mandato dos Trinta, Querofonte foi obrigado a se exilar, 
enquanto Sócrates pôde permanecer.
Some-se
 a isto que Sócrates jamais desejou exercer nenhuma magistratura, nem 
participar de alguma forma do governo de sua cidade, embora não seja 
verdade que permanecesse fora do âmbito do governo, pois com frequência 
era visto discutindo em público; e não se pode afirmar, pelos 
testemunhos que possuímos, que fosse singularmente prudente ou 
diplomático em sua maneira de discutir.
As
 mais importantes orientações da vida eram subvertidas por seu orgulho 
de ter consciência da sua ignorância, e os jovens, de fato, iriam acabar
 desrespeitando qualquer autoridade que não se identificasse com a 
inteligência e a sabedoria, provocando ainda o desapreço por tudo que 
não buscasse a sabedoria, desprezando a economia doméstica e a riqueza.
Apologia de Sócrates
Preâmbulo
Desconheço
 atenienses, que influência tiveram meus acusadores em vosso espírito; a
 mim próprio, quase me fizeram esquecer quem sou, tal o poder de 
persuasão de sua eloquência. De verdades, porém, não disseram nenhuma. 
Uma, sobretudo, me espantou das muitas perfídias que proferiram: a 
recomendação de precaução para não vos deixardes seduzir pelo orador 
formidável que sou. Com efeito, não corarem de me haver eu de desmentir 
prontamente com os fatos, ao mostrar-me um orador nada formidável, eis o
 que me pareceu a maior de suas insolências, salvo se essa gente chama 
formidável a quem diz a verdade; se é o que entendem, eu admitiria que, 
em contraste com eles, sou um orador. Seja como for, repito-o, de 
verdades eles não disseram alguma; de mim, porém, vós ouvireis a verdade
 inteira. Mas não por Zeus, atenienses, não ouvireis discursos como os 
deles, aprimorados em substantivos e verbos, em estilo florido; serão 
expressões espontâneas, nos termos que me ocorrerem, porque deposito 
confiança na justiça do que digo; nem espere outra coisa qualquer um de 
vós. Verdadeiramente, senhores, não ficaria bem a um velho como eu vir 
diante de vós modelar seus discursos como um rapazinho. Faço-vos, 
contudo, um pedido, atenienses, uma súplica premente; se ouvirdes, na 
minha defesa, a mesma linguagem que habitualmente emprego na praça, 
junto das bancas, onde tantos dentre vós me haveis escutado, e em outros
 lugares, não a estranheis nem vos revolteis por isso. Acontece que 
venho ao tribunal pela primeira vez aos setenta anos de idade; sinto-me,
 assim, completamente estrangeiro à linguagem do local. Se eu fosse de 
fato um estrangeiro, sem dúvida me desculparíeis o sotaque e o linguajar
 de minha criação; peço-vos nesta oportunidade a mesma tolerância, que é
 de justiça a meu ver, para a minha linguagem, que poderia ser talvez 
pior, talvez melhor, e que examineis com atenção se o que digo é justo 
ou não. Nisso reside o mérito de um juiz; o de um orador, em dizer a 
verdade.
A Defesa de Sócrates - Primeira Parte
Diversidade Entre Duas Categorias de Acusadores: os Antigos e os Recentes
Em
 princípio, ó atenienses, é legítimo que eu me defenda das calúnias das 
primeiras acusações que me foram dirigidas e dos primeiros acusadores, e
 depois das mais recentes acusações e dos novos acusadores. Pois muitos 
que se encontram entre vós já me acusaram no passado, sempre faltando 
com a verdade, e esses me causam bem mais temor do que Ânito e seus 
amigos, embora estes sejam acusadores perigosos. Mas os primeiros são 
muito mais perigosos, ó cidadãos, aqueles que convivendo com a maior 
parte de vós, como crianças que deviam ser educadas, procuraram 
convencer-vos de acusações não menos caluniosas contra mim: que existe 
um certo Sócrates, homem de muita sabedoria, que especula a respeito das
 coisas do céu, que esquadrinha todos os segredos obscuros, que 
transforma as razões mais fracas nas mais consistentes. Estes, ó 
atenienses, que propalaram essas coisas acerca de mim, são os acusadores
 que mais receio, porque, ao ouvi-los, as pessoas acreditam que quem se 
dedica a tais investigações não admite a existência dos deuses. E esses 
acusadores são muito numerosos e me acusaram há bastante tempo, e, o que
 é mais grave, caluniaram-me quando vós tínheis aquela idade em que é 
bastante fácil – alguns de vós éreis crianças ou adolescentes – dar 
crédito às calúnias, e assim, em resumo, acusaram-me obstinadamente, sem
 que eu contasse com alguém para me defender. E o que é mais assombroso é
 que seus nomes não podem sequer ser citados, exceto o de um 
comediógrafo; porém os outros – os que, por inveja ou por vício em fazer
 falsas acusações, procuraram colocar-vos contra mim, ou os que 
pretenderam convencer os outros por estarem verdadeiramente convencidos e
 de boa fé –, esses todos não podem ser encontrados, nem se pode exigir 
que ao menos alguns deles venham até aqui, nem acusar ninguém por 
difamação, e, em verdade, a fim de me defender só posso lutar contra 
sombras, e acusar de mentiroso a quem não responde. Portanto, vós deveis
 vos certificar de que existem duas categorias de acusadores: de um 
lado, os que me acusam há pouco tempo, e de outro, os que já me acusam 
há bastante tempo e dos quais tenho falado a respeito, e então 
reconhecereis que devo defender-me destes em primeiro lugar. Ainda mais 
porque esses acusadores fizeram-se ouvir por vós antes e mais 
demoradamente do que aqueles que vieram depois.
Defender-me-ei,
 portanto, ó atenienses, e assim descobrirei se aquela calúnia, que 
martiriza meu coração há tanto tempo, possa ser extirpada, embora deva 
fazê-lo em tão curto prazo. E se eu for bem-sucedido, se conseguir 
acarretar-vos algum benefício com a minha defesa, será excelente para 
vós e para mim. Bem sei quanto isto é difícil e tenho plena consciência 
da enorme dificuldade que me espera. Que tudo se passe de acordo com a 
vontade do Deus, pois à lei é necessário obedecer e defender-se.
Defesa Contra os Antigos Acusadores
Calúnia a Respeito do Saber de Sócrates
Vamos
 começar desde o início e examinar que tipo de acusação motivou essa 
calúnia, na qual Meleto se baseou para redigir sua acusação neste 
processo. Que afirmavam meus detratores? Façamos de conta que se trate 
de uma acusação juramentada de acusadores reais e dos quais seja preciso
 ler o texto: "Sócrates é réu de haver-se ocupado de assuntos que não 
eram de sua alçada, e investigando o que existe embaixo da terra e no 
céu, procurando transformar a mentira em verdade e ensinando-a às 
pessoas". A acusação possui mais ou menos este teor. Assististes a 
alguma coisa semelhante na comédia de Aristófanes, na qual um certo 
Sócrates aparece andando de lá para cá, afirmando que caminha em cima 
das nuvens, e outro amontoado de tolices, que não consigo compreender 
nem um pouco. E não digo isso por julgar aquelas ciências coisas vis, se
 é mesmo verdade que haja cientistas de tais ciências. Não faltaria 
quem, acompanhando Meleto, fizesse contra mim uma acusação tão grave! Eu
 só vos asseguro, ó atenienses, que não me ocupo desses assuntos, e 
recorro à maioria de vós para que sirvam de testemunhas. Peço que 
revelem publicamente quantos de vós já me ouviram falar a respeito 
dessas coisas, e então compreendereis que tudo o mais que dizem sobre 
mim possui o mesmo valor.
Resumindo:
 nada existe em tudo isso que corresponda à verdade; e, mais ainda, se 
ouvistes alguém declarar que instruo os homens em troca de dinheiro, 
isto também não passa de mentira. Mesmo que, se alguém se propõe a 
instruir homens como fazem Górgias de Leontini, Pródico de Ceo e Hípias 
de Élida, se me afigure coisa em absoluto nada condenável. Esses 
valorosos homens percorrem as cidades com o propósito de instruir os 
jovens, aos quais seria mais fácil, e sem ter de gastar dinheiro, 
fazer-se instruir por um de seus concidadãos; e convencem esses jovens a
 preferir a sua companhia à dos seus, recebendo em troca dinheiro e 
ainda por cima gratidão. Ouvi também referências a outro homem, de 
Paros, que possui muita sabedoria e veio morar em Atenas, e o soube por 
intermédio de Cálias, filho de Hipônico, homem que gastou mais dinheiro 
com sofistas do que qualquer outro ateniense. Perguntei a ele:
–
 Cálias, se teus dois filhos fossem dois potros ou duas vitelas, terias 
de contratar e pagar uma pessoa que tomasse conta deles, que tivesse a 
capacidade de lhes ensinar as virtudes para serem acrescentadas à sua 
natureza, e eles se tomariam cavalariços ou agricultores; mas teus 
filhos são homens; que educação, então: tencionas proporcionar-lhes? 
Quem entende das virtudes que lhes são necessárias, ou seja, das 
virtudes do homem e cidadão? Acredito que pensaste a respeito disso 
quando puseste os filhos no mundo. Existe alguém capaz de fazê-lo? 
– Claro que sim – respondeu-me.
– E quem é ele? – indaguei-lhe. – de onde é e quanto cobra para ensinar?
– Eveno de Paros. E seu preço é cinco minas – respondeu-me.
No
 íntimo, parabenizei esse tal de Eveno, se é de fato possuidor dessa 
doutrina e a ensina a tão baixo preço. Eu mesmo me orgulharia se fosse 
capaz de tal coisa, contudo eu não sei, ó atenienses.
O Que é o Saber de Sócrates
O Oráculo de Delfos
|  | 
| Oráculo de Delfos | 
Procurarei
 esclarecer-vos a respeito da causa dessas calúnias contra mim. 
Escutai-me, portanto. É possível que alguns entre vós creiam que eu 
esteja brincando; não, estou falando sério. Ó atenienses, é verdade que 
adquiri renome por possuir certa sabedoria. E que tipo de sabedoria é 
essa? Possivelmente, uma sabedoria estritamente humana. E a respeito de 
ser sábio, receio possuir esta única sabedoria. Ao passo que esses, de 
quem vos falava há pouco, talvez sejam possuidores de uma sabedoria 
sobre-humana, mas afirmo que não a conheço, e quem diz o contrário 
mente, apenas com o intuito de caluniar-me. Peço-vos para não fazer 
algazarra, ó atenienses, embora possais ter a impressão de que eu esteja
 proferindo palavras por demais fortes; que não é meu depoimento, mas o 
de uma testemunha que merece toda a vossa confiança. De minha sabedoria,
 se de fato se trata de sabedoria, e de sua natureza, invocarei como 
testemunha, diante de vós, o próprio deus de Delfos. Todos vós conheceis
 Querefonte. Era meu amigo desde o tempo da juventude e pertencente ao 
vosso partido popular; partiu no último exílio em vossa companhia e 
regressou também em vossa companhia. Sabeis que tipo de homem era 
Querofonte e de como era determinado em suas resoluções Dirigiu-se em 
certa ocasião a Delfos e atreveu-se a perguntar ao oráculo se existia 
alguém mais sábio que eu. A pitonisa respondeu que não existia ninguém. 
Como testemunho deste fato se prestará o irmão de Querefonte, em virtude
 de este haver falecido.
Pesquisa Junto aos Políticos
Saberão
 agora o motivo pelo qual vos relato isso: meu intento é pôr-vos a par 
de onde se originou a calúnia contra mim. Após ter ouvido a resposta do 
oráculo, refleti da seguinte maneira: "Que pretende o deus dizer? Qual é
 o significado oculto do enigma? Tendo em vista que eu não me considero 
sábio, que quer dizer o deus ao afirmar que sou o mais sábio dos homens?
 Com certeza não mente, pois ele não pode mentir". E longamente me 
mantive nesta dúvida. Por fim, ao arrepio de minha vontade, comecei a 
investigar acerca disso. Fui ter com um daqueles que possuem reputação 
de sábios, julgando que somente assim poderia desmentir o oráculo e 
responder ao vaticínio: "Este é mais sábio que eu e afirmastes que era 
eu". Mas enquanto estava analisando este – o nome não é necessário que 
eu vos revele, ó cidadãos; basta dizer que era um de nossos políticos –,
 enfim, este com que, analisando e raciocinando em conjunto, fiz a 
experiência que irei descrever-vos, e este homem aparentava ser sábio, 
no entender de muitas pessoas e especialmente de si mesmo, mas talvez 
não o fosse de verdade. Procurei fazê-lo compreender que embora se 
julgasse sábio, não o era. Em vista disso, a partir daquele momento, não
 só ele passou a me odiar, como também muitos dos que se encontravam 
presentes. Afastei-me dali e cheguei à conclusão de que era mais sábio 
que aquele homem, neste sentido, que nós, eu e ele, podíamos não saber 
nada de bom, nem de belo, mas aquele acreditava saber e não sabia, 
enquanto eu, ao contrário, como não sabia, também não julgava saber, e 
tive a impressão de que, ao menos numa pequena coisa, fosse mais sábio 
que ele, ou seja, porque não sei, nem acredito sabê-lo. Aí procurei um 
outro, entre os que possuem reputação de serem mais sábios que aqueles, e
 me ocorreu exatamente a mesma coisa, e também este me dedicou ódio, 
juntamente com muitos outros.
Pesquisa Junto aos Poetas
Não
 obstante isso, continuei diligentemente com minha pesquisa, embora 
notando, com desagrado e assombro, que todos passaram a me odiar e que, 
contudo, afigurava-se-me impossível deixar de atentar para as palavras 
do deus. "Se almejas saber o que o oráculo quer dizer", dizia a mim 
mesmo, "deves visitar todos aqueles que possuem reputação de sabedoria."
 Por isso, ó atenienses, devo dizer-vos de novo a verdade; juro-vos que 
este foi o resultado da minha pesquisa: os que eram famosos por 
possuírem maior sabedoria, conforme minha pesquisa, conforme a palavra 
do deus, pareceram-me quase todos em maior erro. E outros, sem fama 
alguma, se me afiguraram melhores e mais sábios. Mas desejo terminar de 
relatar-vos minhas peregrinações e as fadigas que sofri para 
convencer-me de que a palavra do oráculo era incontestável.
Em
 seguida aos políticos, fui procurar os poetas, tanto os que escreviam 
ditirambos e tragédias como os demais, convencido de que diante daqueles
 confirmaria minha ignorância e sua superioridade. Peguei suas melhores 
poesias, as que considerava mais bem construídas, e indaguei aos 
próprios poetas o que eles pretendiam dizer; porque dessa maneira 
aprenderia alguma coisa com eles. Estou com vergonha, ó atenienses, de 
contar-vos a verdade! Mas é obrigatório que eu a diga. Resumindo, todas 
as outras pessoas presentes discorriam melhor a respeito do que os 
poetas haviam escrito que os próprios autores; diante disto, descobri 
que não era por nenhum tipo de sabedoria que eles faziam versos, mas por
 uma propensão e inspiração natural que eu desconheço, como os adivinhos
 e vaticinadores, que dizem de fato muitas coisas belas, mas não 
conhecem nada do que dizem, e aproximadamente o mesmo, e isto eu percebi
 com clareza, é o que ocorre entre os poetas. E compreendi também que os
 poetas, pelo fato de fazerem poesias, julgavam-se os mais sábios dos 
homens até mesmo em outras coisas em que realmente não o eram. Então 
afastei-me deles, com a certeza de ser mais sábio que eles, pelo mesmo 
motivo que era mais que os políticos.
Pesquisa Junto aos Artesãos
No
 final, dirigi-me aos artesãos, que de sua arte tinha a consciência de 
não conhecer nada, e eles sabiam que eu os considerava conhecedores de 
numerosas e belas coisas. E não me equivoquei, eles conheciam coisas que
 eu não conhecia, e nisso eram mais sábios do que eu. Porém, ó 
atenienses, também os artesãos famosos apresentavam o mesmo defeito dos 
poetas: por conhecerem muito bem sua arte, cada um deles julgava-se 
extremamente sábio, até mesmo em outros assuntos de maior realce e 
dificuldade, e este importante defeito deslustrava toda sua sabedoria. 
De forma que eu, em nome do oráculo, indaguei a mim mesmo se deveria 
permanecer tal como era, nem sabedor de minha sabedoria nem ignorante de
 minha ignorância, ambas as coisas, como eles, e respondi a mim e ao 
oráculo que convinha continuar tal qual eu era.
O Verdadeiro Saber Consiste em Saber Que Não se Sabe
Em
 virtude desta pesquisa, fiz numerosas e perigosíssimas inimizades, e a 
partir destas inimizades surgiram muitas calúnias, e entre as calúnias, a
 fama de sábio, porque, toda vez que participava de uma discussão, as 
pessoas julgavam que eu fosse sábio naqueles assuntos em que somente 
punha a descoberto a ignorância dos demais. A verdade, porém, é outra, ó
 atenienses: quem sabe é apenas o deus, e ele quer dizer, por intermédio
 de seu oráculo, que muito pouco ou nada vale a sabedoria do homem, e, 
ao afirmar que Sócrates é sábio, não se refere propriamente a mim, 
Sócrates, mas só usa meu nome como exemplo, como se tivesse dito: "Ó 
homens, é muito sábio entre vós aquele que, igualmente a Sócrates, tenha
 admitido que sua sabedoria não possui valor algum". É por esta razão 
que ainda hoje procuro e investigo, de acordo com a palavra do deus, se 
existe alguém entre os atenienses ou estrangeiros que possa ser 
considerado sábio e, como acho que ninguém o seja, venho em ajuda ao 
deus provando que não há sábio algum. E tomado como estou por esta ânsia
 de pesquisa, não me restou mais tempo para realizar alguma coisa de 
importante nem pela cidade nem pela minha casa, e levo uma existência 
miserável por conta deste meu serviço ao deus.
As Muitas Inimizades e a Acusação
Vós
 tendes conhecimento de que os jovens que dispõem de mais tempo que os 
outros, os filhos das famílias mais ricas, seguem-me de livre e 
espontânea vontade, e se regozijam em assistir a esta minha análise dos 
homens; inúmeras vezes procuram imitar-me e tentam, por sua própria 
conta, analisar alguma pessoa. Logicamente, deparam-se com numerosos 
homens que julgam saber alguma coisa e sabem pouco ou nada, e então, 
aqueles que são analisados por eles voltam-se contra mim e não contra 
quem os analisou, declarando que Sócrates é homem por demais infame e 
corruptor dos jovens. E se alguém indaga: "Afinal, o que faz e o que 
ensina este Sócrates para corromper os jovens?", nada respondem, porque o
 desconhecem, e, só para não evidenciar que estão confusos, dizem as 
coisas que comumente são ditas contra todos os filósofos, além de 
afirmar que ele especula sobre as coisas que se encontram no céu e as 
que ficam embaixo da terra, e que também ensina a não acreditar nos 
deuses e apresenta como melhores as piores razões. A verdade, porém, é 
que esses homens demonstraram ser pessoas que dão a impressão de saber 
tudo, porém, naturalmente, não querem dizer a verdade. Desta maneira, 
ambiciosos, dominados pela paixão e numerosos como são, e todos da mesma
 opinião nesta difamação a meu respeito e com argumentos que podem 
parecer também convincentes, sem escrúpulo algum encheram vossos ouvidos
 com suas calúnias. Este é o motivo pelo qual, finalmente, lançaram-se 
contra mim Meleto, Ânito e Lícon: Meleto profundamente irado por causa 
dos poetas, Ânito por causa dos artesãos e dos políticos, Lícon por 
causa dos oradores. Contudo, como vos disse desde o início, seria de 
fato um verdadeiro milagre se eu tivesse a capacidade de arrancar-vos do
 coração esta calúnia que possui raízes tão firmes e profundas. Esta é, ó
 cidadãos, a verdade, e eu a revelo por completo, sem ocultar-vos nada, 
nem mesmo esquivando-me dela, embora saiba que sou odiado por muitos 
exatamente por isso. Por sinal, é outra prova de que digo a verdade, e 
que esta é a calúnia contra mim e esta a causa. Indagai quanto 
quiserdes, agora ou depois, e recebereis sempre a mesma resposta.
Defesa Contra Meleto
No
 que diz respeito aos meus primeiros acusadores, isso é o bastante para a
 defesa das culpas a mim atribuídas; procurarei em seguida defender-me 
de Meleto, homem digno e patriota, como ele mesmo se define, e dos 
acusadores que virão depois. Vou começar desde o início e como se na 
verdade dissesse respeito a outra espécie de acusadores, analisemos 
também o ato de acusação deste. Declarou mais ou menos isto:"Sócrates é 
réu de corromper os jovens, de não crer nos deuses nos quais a cidade 
crê e também de praticar cultos religiosos extravagantes".
Analisemos
 esta acusação minuciosamente. Meleto afirma que corrompo a juventude, e
 eu digo, ó atenienses, que o réu é o próprio Meleto, porque aborda com 
leviandade assuntos sérios e tão inescrupulosamente leva homens diante 
do tribunal, com o intuito de fazer crer que se preocupa com coisas com 
as quais, na verdade, nunca se preocupou. E procurarei provar-vos que 
isso é a pura verdade.
Meleto Não Sabe o Que é Educar Nem Corromper
Meleto, mostra-te e responde. Não julgas de suprema importância que os jovens consigam se tornar os melhores possíveis? 
MELETO: — Julgo.
SÓCRATES:
 — Dize, então, aos juizes o que os torna melhores. Com certeza o sabes,
 pois esta é uma preocupação tua e descobriste quem os corrompe, 
conforme afirmas, e por este motivo citaste-me diante do tribunal e me 
acusaste. Vamos, dize aos juizes o que os faz melhores. Vês, Meleto, 
como ficas calado, sem saber o que dizer? E isto não te se afigura 
vergonhoso, e prova suficiente do que afirmo: que nunca te preocupaste 
com estes assuntos? Vamos, ó excelente homem, responde: que os faz 
melhores?
MELETO: — As leis.
SÓCRATES:
 — Não se trata disto, meu amigo. Indago-te qual é o homem que, em 
primeiro lugar, deve ter conhecimento, conforme dizes, das leis.
MELETO: — Estes, ó Sócrates, os juizes.
SÓCRATES: — Afirmas, então, Meleto, que estes possuem a capacidade de educar os jovens e torná-los melhores? 
MELETO: — Afirmo.
SÓCRATES: — Crês que todos, ou alguns sim e outros não? 
MELETO: — Todos.
SÓCRATES:
 — Dizes bem, por Hera! E grande a quantidade de bons educadores! Também
 estes que estão nos ouvindo tornam os jovens melhores ou não?
MELETO: — Sim, também estes. 
SÓCRATES: — E os senadores?
MELETO: — Também os senadores.
SÓCRATES:
 — Quer dizer, então, Meleto, que talvez aqueles das Assembléias 
Populares corrompam os jovens? Ou também aqueles os tornam melhores?
MELETO: — Também aqueles.
SÓCRATES:
 — Todos os atenienses que te ouvem tornam os jovens bons e belos, 
todos, exceto eu. Portanto, sou eu quem os corrompe. É isto que queres 
dizer?
MELETO: — Exatamente isto.
SÓCRATES:
 — Como sou infeliz! Mas responde-me a isto: também com os cavalos crês 
que seja assim? Que todos os homens os tornem melhores e somente um os 
mutile? Ou, ao contrário, que somente um os torne melhores, ou poucos, 
aqueles que são peritos em cavalos, e que os demais se sirvam dos 
cavalos e os mutilem? E não acontece assim, ó Meleto, com os cavalos e 
com todos os seres vivos? Com certeza é assim, digam Ânito e tu mesmo 
que sim ou não. Seria uma grande felicidade para os jovens se 
correspondesse à verdade que somente um lhes causa danos e todos os 
outros os educam e melhoram. Mas, prossegue, Meleto, já que demonstrei a
 contento que tu nunca te preocupaste com os jovens. Mais ainda, 
demonstrei que nunca tiveste preocupação com as coisas pelas quais me 
trouxeste diante deste tribunal.
Agora
 dize-me, ó Meleto, o que mais convém, viver entre bons cidadãos ou 
entre maus cidadãos? Amigo, responde, não é difícil o que te pergunto. 
Os maus não prejudicam aqueles que lhes são próximos? E os bons não lhes
 fazem o bem? 
MELETO: — Com toda a certeza.
SÓCRATES:
 — Pode existir alguém que esteja com eles e que prefira receber o mal 
em lugar do bem? Responde, excelente homem. Também a lei deseja que 
respondas. Pode existir alguém que prefira receber o mal?
MELETO: — Não, realmente.
SÓCRATES: — Então, trouxeste-me a este tribunal porque corrompo os jovens por querer è os torno maus, ou faço isto sem querer? 
MELETO: — Afirmo que é por querer.
SÓCRATES:
 — Quer dizer, então, ó Meleto, tua sabedoria sendo maior que a minha, 
na tua idade, tendo eu os anos que tenho, que pensas conhecer melhor do 
que eu que os maus sempre causam algum mal, principalmente àqueles mais 
próximos deles, e que os bons façam o bem, e que eu ignore essas coisas a
 ponto de não saber que se se torna mau a um deles corre-se o risco de 
receber algo mau dele e que, no caso de saber disso, eu me empenhe em 
torná-los maus? Não me persuadirás disto, ó Meleto. Nem acredito que 
possas persuadir a ninguém. Ou seja, não corrompo os jovens, ou, se os 
corrompo, faço-o sem querer, de maneira que em ambos os casos mentes. Se
 eu os corrompo sem querer, por faltas involuntárias, não existe lei 
alguma que possa me obrigar a vir até aqui, mas sim que faça com que 
seja afastado, a fim de advertir-me ou censurar-me, e é claro que, uma 
vez advertido, não mais farei o que fazia sem querer. Tens evitado 
encontrar-te comigo e advertir-me; não o quiseste fazer de forma alguma e
 me trazes aqui, embora as leis estabeleçam que aqui sejam trazidos 
somente os que devem ser castigados, e não censurados.
Meleto Acusa Sócrates de Ateísmo e se Contradiz
Neste
 momento, cidadãos de Atenas, é bastante evidente aquilo que eu 
afirmava: que Meleto nunca se preocupou com essas coisas. Apesar disso, 
dize-nos, Meleto, de que maneira, de acordo com tua opinião, eu corrompo
 a juventude? Não o faço, como afirma com clareza a acusação que 
apresentaste contra mim, ensinando-os a não acreditar nos deuses nos 
quais a cidade acredita, mas em outras divindades novas? Não é, conforme
 dizes, ensinando estas coisas que os corrompo?
MELETO: — Sim, eu digo exatamente isto.
SÓCRATES:
 — Em nome desses mesmos deuses a respeito dos quais agora falamos, 
explica-te com maior clareza, tanto para mim como para estes juízes, 
porque não consigo compreender a quais deuses eu ensino que os jovens 
devem acreditar, pois se naqueles que acredito são deuses, não sou ateu 
e, por conseguinte, não posso ser culpado disso, mesmo que não sejam os 
da cidade, e sim outros; é por causa disso que me trazes a este 
tribunal, por que são outros ou por que afirmas que não acredito de 
maneira alguma nos deuses e ensino isto aos jovens?
MELETO: — Eu afirmo que não acreditas de maneira alguma nos deuses.
SÓCRATES:
 — Ó excelente Meleto! Por que dizes que não acredito, da mesma maneira 
que os outros homens, que o sol e a lua sejam deuses?
MELETO: — Com certeza, ó juízes, pois afirma que o sol é uma pedra e a lua é feita de terra.
SÓCRATES:
 — Pensas, meu bom Meleto, em acusar também Anaxágoras? E tens em tão 
pouca estima e reputas tão ignorantes nas letras a estes juízes, a ponto
 de não saberem que os livros de Anaxágoras de Clazomena estão repletos 
destes ensinamentos? E por que motivo os jovens iriam aprender de mim 
estas coisas que por uma simples dracma podem comprar na ágora e 
zombarem de Sócrates, se este as apresentasse como suas, ainda mais 
sendo tão extravagantes? Por Zeus, pensas de fato que eu não acredite em
 deus algum?
MELETO: — Em nenhum, com certeza.
SÓCRATES:
 — Ninguém acredita em ti, ó Meleto, e naquilo que afirmas; creio que 
não consegues persuadir nem a ti mesmo. Na verdade, ó atenienses, tudo 
isto se me afigura desaforado e atrevido, e quem escreveu esta acusação 
foi desaforado e a escreveu por atrevimento e desrespeito juvenil. É 
como se alguém desejasse pôr-me à prova compondo uma espécie de 
enigma: "Dar-se-á conta Sócrates, aquele grande sábio, que o estou 
ridicularizando e me contradigo? Ou conseguirei enganá-lo e a todos 
aqueles que me ouvem?" Com efeito, parece-me que Meleto se contradiz na 
acusação, como se declarasse: "Sócrates é réu de não acreditar nos 
deuses, mas também de acreditar nos deuses". E isto significa desejo de 
se divertir.
Ó
 atenienses, analisai comigo de que maneira creio que ele se contradiz. 
Responde, ó Meleto. E vós, como já vos exortei no começo, recordai-vos 
de não me interromper se continuo a raciocinar à minha maneira.
Existe
 alguém, ó Meleto, que acredite na existência de fatos humanos e não em 
homens? Fazei com que responda, ó atenienses, e não criai tanta agitação
 por causa de uma palavra. Há quem não acredite na existência de 
cavalos, mas sim nas coisas relativas a cavalos? E que não acredite na 
existência de flautistas, mas sim que existam sons de flauta? Não ha 
ninguém, eu mesmo respondo, a ti e aos outros que aqui se encontram, se 
não queres responder. Mas responde ao menos à pergunta seguinte: existe 
quem possa acreditar em coisas demoníacas, mas não em demônios? 
MELETO: — É completamente impossível.
SÓCRATES:
 — Quanta satisfação me proporcionou tua resposta, embora tenhas sido 
obrigado pelos juízes. Portanto, acusas-me de acreditar em coisas 
demoníacas e de ensiná-las; é isto que afirmas e que juraste no teu ato 
de acusação. Mas se acredito em coisas demoníacas, devo obrigatoriamente
 crer em demônios, não é assim? Com certeza é assim. Parece-me que 
aceitas, já que não contestas. E não consideramos estes demônios filhos 
dos deuses? 
MELETO: — Logicamente.
SÓCRATES:
 — Ora, se afirmas que existem demônios, se estes demônios são deuses, é
 neste ponto que eu digo que fazes enigmas e brincadeiras, quando 
declaras que eu, embora não acreditando na existência dos deuses, afirmo
 a sua existência, uma vez que digo existirem demônios. De outra forma, 
se estes demônios são filhos dos deuses, são também filhos bastardos 
gerados por ninfas ou outras mães; então, quem poderá pensar que existam
 filhos de deuses e de deuses não? Seria disparate igual se pensasse que
 os mulos fossem filhos de jumentos e cavalos e que estes últimos não 
existissem. Por isso, Meleto, é impossível, exceto que haja sido para 
pôr-me à prova, que tenhas escrito contra mim uma acusação como esta, ou
 é necessário dizer que não sabias do que me acusar? Mas que consiga 
convencer quem quer que seja, mesmo se fraco de intelecto, que a mesma 
pessoa que acredita em coisas demoníacas possa não acreditar em coisas 
divinas e, de outra forma, que a mesma pessoa que acredita em coisas 
demoníacas possa não acreditar nem em demônios, nem em deuses, nem em 
heróis, isto é impossível.
A Missão Divina
Fazer o Que é Justo, Permanecer no Lugar Adequado, Obedecer ao Deus
Chega,
 ó atenienses, isto é o bastante para demonstrar que não sou culpado das
 acusações de Meleto, pois não se faz necessária uma defesa muito longa.
 O que eu vos disse, desde o início, que um profundo ódio ergueu-se 
contra mim, e vindo de muitas pessoas, é verdade, vós sabeis; e se algo 
me causará dano, não será nem Meleto nem Ânito, mas sim este ódio, esta 
calúnia e esta raiva das pessoas. Pessoas estas que já causaram a perda 
de tantos outros e valorosos homens, e, acredito, outros ainda irão 
perder, não havendo perigo que causem somente a minha perda.
Algum
 de vós poderia talvez altercar-me: "Sócrates, não te envergonhas de 
haveres exercido tal atividade, que agora coloca em risco tua vida?" Eu 
responderia a este: "Não falas bem se pensas que alguém, tendo a 
capacidade de fazer algum bem, mesmo sendo pequeno, deva calcular os 
riscos de vida ou de morte e não deva olhar o injusto e se pratica as 
ações de homem honesto e corajoso ou de infame e mau. Por outro lado, 
acompanhando este teu raciocínio, teriam sido néscios todos os heróis 
que morreram em Tróia, e o mais néscio de todos seria o filho de Tétis 
que, sem se envergonhar, tamanho desdém mostrou pelo perigo, quando sua 
mãe, uma deusa, estando ele ávido do sangue de Heitor, disse-lhe, se bem
 me lembro: 'Ó filho, se vingares a morte do teu companheiro Pátroclo e 
matares Heitor, também morrerás'. Ao ouvir tais palavras, Aquiles 
negligenciou o perigo e a morte, receando muito mais viver 
miseravelmente sem vingar o amigo, e declarou: 'Rapidamente eu morra, 
logo após ter castigado a quem matou, nem que para isso me torne objeto 
de desprezo'. Acreditas que Aquiles tenha pensado na morte e no perigo?"
É
 assim que deve ser, ó atenienses, que onde alguém se haja instalado, 
considerando ser aquele seu lugar mais honroso, ou onde tenha sido 
instalado por quem ordena, aí, creio, deve ficar e enfrentar os riscos e
 não pensar na morte, nem em outra desgraça qualquer, à exceção de na 
desonra e na vergonha.
Declaro-vos,
 ó cidadãos, que meu comportamento seria anormal e excêntrico se, ao 
passo que em Potidéia, Anfípolis e Délio, quando os comandantes que vós 
elegestes me designaram uma posição, lá fiquei, como qualquer outro, 
arriscando minha vida, aqui, ao contrário, ao receber ordens do deus, ao
 menos conforme pude ouvir e interpretar essa mesma ordem, pela qual 
deveria viver filosofando e dedicando-me a conhecer a mim mesmo e aos 
outros, que, digo, por temor à morte ou a outra desgraça semelhante, 
tivesse desertado do posto a mim designado pelo deus. Seria algo, 
repito, anormal e, de fato, existiriam então motivos para trazer-me aqui
 no tribunal como sendo um desumano que não cresse nos deuses, já que 
desobedece ao oráculo, receia a morte e julga ser sábio sem sê-lo. Com 
efeito, atenienses, recear a morte não passa de julgar ser sábio e não 
sê-lo, dado que significa pensar saber aquilo que não se sabe. E, em 
verdade, ninguém sabe se, por acaso, ela não seja o maior de todos os 
bens que podem ser dados ao homem e, contudo, receiam-na como se 
soubessem que ela é a maior das desgraças. E não é ignorância, a mais 
vergonhosa das ignorâncias, acreditar saber o que não se sabe? Ora, 
atenienses, acredito distinguir-me por este motivo e precisamente neste 
ponto da maior parte dos homens, e se me atrevesse a dizer que em alguma
 coisa sou mais sábio que os outros, somente por isto o diria, que como 
não sei nada de preciso a respeito das coisas do Hades, também nada 
penso saber a esse respeito. Mas ser injusto e desobedecer a quem é 
melhor que nós, seja deus, seja homem, isto bem sei que é coisa 
vergonhosa e indecente. Por isso, como ocorre diante dos males que sei 
que são nefastos, nunca acontecerá que eu fuja diante daqueles de que 
não sei se por acaso não são bens.
Portanto,
 mesmo que me concedesses a liberdade, contra a vontade de Ânito que, 
desde o começo, declarava não ser necessário que eu viesse até este 
tribunal, ou, uma vez aqui trazido, que era impossível não condenar-me à
 morte, porque, dizia, se consigo safar-me da condenação, daquele 
momento em diante, seus filhos prosseguindo a praticar os ensinamentos 
de Sócrates, estariam inapelavelmente perdidos e corrompidos; se, ao 
ouvir este raciocínio de Ânito, me dissésseis: "Ó Sócrates, não 
pretendemos dar, agora, atenção a Ânito e deixamos-te livre, desde que 
não empregues mais teu tempo nessas pesquisas, nem te ocupes mais de 
filosofia, e se fores surpreendido a praticar ainda estas coisas, 
morrerás"; se, como dizia, com esta condição me deixásseis em liberdade,
 eu vos responderia: "Ó atenienses, eu vos amo, mas obedecerei primeiro 
ao deus do que a vós, e enquanto tiver ânimo, e enquanto for capaz, não 
pararei de filosofar, não pararei de estimular-vos e censurar-vos; e a 
quem quer que eu encontrasse de vós, em qualquer ocasião, conversando da
 minha maneira habitual, assim diria: "E tu, que és o melhor dos homens;
 tu, ateniense, cidadão da maior cidade e mais célebre por sabedoria e 
poder, não te envergonhes de pensar em acumular o máximo de riquezas, 
fama e honras, sem te preocupar em cuidar da inteligência, da verdade e 
da tua alma, para que se tornem tão boas quanto possível?" E se algum de
 vós retrucasse que cuida de fato delas, não o deixaria afastar-se nem 
iria embora, mas o interrogaria, o analisaria, o impugnaria, e se me 
afigurasse que não possui virtude mas apenas afirma possuí-la, eu o 
envergonharia demonstrando-lhe que considera infames as coisas mais 
estimáveis e de valor, as infames. E agiria assim com qualquer um que eu
 quisesse: jovens ou velhos, atenienses ou estrangeiros, e também com 
vós, que me sois mais estritamente próximos. Isto, vós não desconheceis,
 é ordem do deus e estou convencido de que haja para vós maior bem na 
cidade do que esta minha obediência ao deus.
Em
 verdade, com este meu caminhar não faço outra coisa a não ser 
convencer-vos, jovens e velhos, de que não deveis vos preocupar nem com o
 corpo, nem com as riquezas, nem com qualquer outra coisa antes e mais 
que com a alma, a fim de que ela se torne excelente e muito virtuosa, e 
de que das riquezas não se origina a virtude, mas da virtude se originam
 as riquezas e todas as outras coisas que são venturas para os homens, 
tanto para os cidadãos individualmente como para o Estado. Se ao falar 
desta maneira corrompo os jovens, está certo, isto significará que 
minhas palavras são nocivas, mas se alguém afirma que falo 
diferentemente e não deste modo, então diz coisas insensatas. Por tudo 
isso, permiti que vos diga, ó cidadãos atenienses: ou dareis ouvidos a 
Ânito, ou não dareis, absolver-me-eis ou não, mas, de qualquer forma, 
tende a certeza de que nunca agirei de outra maneira que esta, mesmo que
 não só uma, mas muito mais vezes devesse morrer.
Não
 promoveis algazarra, ó cidadãos, lembrai-vos de meu pedido de que não 
causásseis balbúrdia diante do que eu dissesse, mas que vos limitásseis a
 ouvir. Ademais, creio que vos será útil escutar. Restam-me algumas 
outras coisas a dizer-vos, às quais, talvez, erguereis a voz. Não, não 
fazei assim. Convencei-vos: se me condenardes à morte, a mim que sou 
como vos disse, não me causareis maior dano que podeis causar a vós 
mesmos. A mim não causarão dano nem Meleto nem Ânito. E nem o poderiam. 
Não penso que seja possível que um homem de bem receba o mal de um 
malvado. Poderá sim, Ânito, condenar-me à morte, ou ao desterro, 
espoliar-me dos direitos civis; tudo em que este homem crer e outros 
crerem serão grandes males, não o creio eu; penso que seja um mal bem 
mais grave aquele que é cometido por esses que tentam condenar à morte 
um homem inocente. Logo, ó atenienses, de maneira alguma estou falando 
em minha defesa, como alguém poderia achar, mas falo por vós, que não 
necessitais pecar, condenando-me à morte, contra o dom do deus. Pois se 
me matardes, não encontrarão facilmente um outro igual a mim, que, não 
riam da comparação, tenha sido colocado de fato pelo deus aos flancos da
 cidade como aos flancos de um cavalo grande e de boa raça, mas pelo seu
 próprio tamanho, um pouco lerdo e necessitado de estímulo, um ferrão. 
Assim parece-me que o deus me colocou aos flancos da cidade; nunca paro 
de exortar-vos, de convencer-vos, de falar-vos, um por um, estando a 
vosso lado, em todo lugar. Afirmo, pois, que outro como eu não nascerá 
facilmente, ó atenienses, e se desejais me ouvir, me poreis a salvo. Mas
 se estais irritados comigo como o que está em vias de adormecer com 
quem o desperta, e golpeais como a matar um inseto inoportuno, 
condenar-me-eis à morte, por obediência a Ânito, e depois, no decorrer 
de todo o resto de vossa existência, dormireis tranquilamente, se o deus
 não vos mandar algum outro para substituir-me. E se for eu mesmo a 
pessoa indicada pelo deus para presentear a cidade, podereis me 
reconhecer por isso: que não parece humano que haja descuidado todos os 
meus negócios e ainda aguentar por tantos anos que tenham sido 
descuidadas as coisas da minha casa, e sempre, ao contrário, cuidando 
das vossas, estando por perto como estaria um pai ou irmão mais velho, 
para convencer-vos a buscar a virtude. Que se desta vida tirasse algum 
proveito e se pelos conselhos que dou recebesse alguma compensação, aí 
sim haveria uma razão, mas vistes que meus detratores, que me acusaram 
tão despudoradamente de tantas outras culpas, desta não tiveram o 
despudor de me acusar, pondo-me frente a frente com uma testemunha, 
somente uma, que provasse ter eu recebido uma única vez compensação ou 
de havê-la solicitado. E a prova cabal de que é verdade o que vos 
declaro, eu dou: a minha pobreza.
Repugnância e Abstenção Socrática da Política Comum
É
 possível que pareça estranho eu me encontrar sempre próximo e me dar 
tanto ao trabalho de fornecer conselhos a este ou àquele em particular, 
se, ao se tratar de aconselhar a cidade e de ir à tribuna para falar ao 
povo, então me falte coragem. E o motivo disso me haveis ouvido dizer 
várias vezes e em vários lugares, que existe em mim não sei que espírito
 divino e demoníaco, a respeito do qual, também Meleto, com jeito de 
estar se divertindo, aponta no ato da acusação. É como uma voz que 
possuo dentro de mim desde criança, e que, toda vez que eu a ouço, 
sempre faz com que eu desista do que estou para fazer, e nunca me 
convence a realizar qualquer outra coisa. É essa voz que me impede de me
 ocupar das coisas do Estado, e parece-me que faz muito bem em agir 
dessa forma. Sabeis perfeitamente, ó cidadãos, que se eu tivesse, por 
algum tempo, me ocupado dos negócios de Estado, teria sido morto também 
num curto espaço de tempo e não teria realizado nada de útil, nem por 
vós nem por mim. E não me desprezei se falo assim, pois é a verdade. Não
 existe homem que possa se salvar ao opor-se com sinceridade, não digo a
 vós, mas a qualquer outra multidão, e tente impedir que muitas vezes se
 cometam injustiças as leis na cidade; e é também preciso que aquele que
 luta em defesa do que é justo, se de fato pretende escapar da morte, 
mesmo que por breve tempo, de viver de forma privada e não exercer 
funções públicas.
aquilo
 que afirmo eu mesmo posso oferecer-vos provas cabais, e não palavras, 
mas do que mais necessitais: fatos. Escutai o que me sucedeu e vereis 
então que diante do que é justo não sou homem de ceder a ninguém por 
temor à morte; e que, além de não ceder, estou pronto a morrer. Falarei 
um pouco grosseiramente, como fazem alguns dos frequentadores dos 
tribunais, mas com sinceridade. Tendes conhecimento, ó cidadãos, de que 
nunca exerci em nossa cidade magistratura alguma, exceto uma vez em que 
fiz parte do Conselho, justamente no dia em que era o vosso desejo 
julgar em conjunto, ao arrepio da lei, e em seguida acolhestes todos ao 
meu parecer, aqueles dez capitães que não haviam recolhidos os náufragos
 e os mortos depois da batalha naval das Arginusas. Então eu me opus, 
lutando para que nada fosse feito contra a lei, e votei contra. Os 
oradores habituais já estavam prontos para suspender-me da função e 
aprisionar-me, e vós a instigá-los e a gritar; julguei que era meu dever 
correr aquele risco mantendo-me ao lado do direito e do justo em vez de 
apoiar-vos e deliberar o injusto por temer a prisão e a morte. E isto 
ocorreu quando a cidade ainda era regida por uma democracia. Mais tarde,
 depois que surgiu a oligarquia, os Trinta mandaram-me chamar, e a mais 
outros quatros, levaram-nos à sala do Tolo e ordenaram que retirássemos 
de Salamina o Leon de Salamina, para que este viesse a morrer. E davam 
ordens semelhantes a vários outros homens, na tentativa de envolver em 
seus atos cruéis o maior número de pessoas possível. E naquela ocasião, 
não com palavras, e sim com fatos, demonstrei que a morte, se a palavra 
não soar por demais vulgar, não possui importância alguma para mim, mas 
de não cometer injustiças ou crueldades, isto sim me importa acima de 
qualquer coisa.E aquele governo, apesar de prepotente, não me 
atemorizou, não me obrigou a cometer um ato injusto, e, quando saímos do
 Tolo e os outros quatro se dirigiram para Salamina a fim de retirar 
Leon, deixei-os ir e voltei para casa. Acredito que só por causa disso, 
eu já teria morrido, se aquele governo não tivesse sido deposto logo em 
seguida. E disto que relatei possuo muitas testemunhas.
O Testemunho dos Discípulos, de seus Pais e Irmãos
Credes
 que eu teria vivido por tantos anos se houvesse me ocupado de assuntos 
públicos e, fazendo-o como homem de bem, tivesse lutado em defesa da 
justiça e tivesse considerado esta defesa, como é necessário, meu dever 
mais alto? Com certeza, atenienses, não existe homem que o tivesse 
conseguido! Em verdade, em toda minha existência, tanto em público, nas 
poucas vezes que me ocupei de coisas públicas, como privadamente, sempre
 fui o mesmo, um homem que diante do justo nunca cedeu a quem quer que 
fosse, a ninguém, e nem mesmo àqueles que os caluniadores chamam de meus
 discípulos. Nunca fui mestre de quem, quer que seja, principalmente se é
 uma pessoa que , quando falo ou atendo àquilo que acredito ser meu 
ofício, deseja escutar-me; seja jovem, seja velho, nunca me refutaram, e
 não é verdade que, se recebo dinheiro, eu falo e se não recebo, fico 
calado, porque estou da mesma maneira à disposição de todos, pobres e 
ricos, quem quer que me indague e deseje ouvir as minhas respostas. Por 
conseguinte, se entre os homens que me frequentam, um se torne de boa 
formação moral ou não, não será justo que eu receba elogios ou 
impropérios, já que não prometi ensinamento algum a ninguém, nem nunca 
ensinei coisa alguma. E se há quem diga que aprendeu ou ouviu alguma 
coisa de mm, em particular, alguma coisa que todos os outros não tenham 
aprendido ou ouvido, tenhais a certeza de que este não diz a verdade.
Diante
 disso, como é possível que a alguns agrade estar comigo tanto tempo? 
Vós ouvistes, ó cidadãos, que eu disse toda a verdade: têm prazer de 
ouvir-me quando submeto à prova aqueles que pensam serem sábios e não o 
são. Com efeito, não é desagradável. Ao fazer isso, repito-vos, cumpro 
as ordens do deus, dadas por intermédios de vaticínios e sonhos, e por 
outros meios de que se serve a providência divina para ordenar ao homem 
que faça alguma coisa. E estas coisas, ó atenienses, são verdadeiras e 
demonstráveis. Se de fato eu corrompo os jovens, se já corrompi algum, 
seria ainda necessário que estes, ao envelhecerem, tomassem consciência 
de que quando eram jovens eu os aconselhei a praticar o mal, e que 
viessem à tribuna para acusar-me e para exigir minha punição, e, se não 
quisessem fazê-lo diretamente, que enviassem hoje para cá as pessoas de 
sua família, pais, irmãos, e outros, se os que lhe são caro sofreram 
algum mal por mim causado, e que me fizessem pagar por isso. Muitos 
destes estão presentes, eu os vejo. Ali está Críton, meu contemporâneo e
 conterrâneo com sei filho Critóbulo, e também Lisânias de Esfeto, com 
seu filho Ésquino,e ainda Antífon de Cefísia, pai de Epígeno, e ali 
estão outros, cujos irmãos viveram comigo familiarmente, Nicóstrato, , 
filho de Teozótides, irmão de Teódoto, e como Teódoto faleceu, não 
poderá falar com o irmão a meu favor, e aí está Parálio, filho de 
Demódoco,de quem era irmão Teages, e ali Adimanto, filho de Aríston, de 
quem ali se encontra o irmão Platão, e Aantodoro, de quem temos aqui o 
irmão Apolodoro. E poderia nomear muitos outros. E conseguiria indicar 
vários outros que Meleto poderia apresentar como testemunhas na sua 
acusação; se ele se esqueceu disso, que os apresente agora, cedo-lhe o 
lugar; se existe alguma testemunha deste tipo, que se manifeste.
Porém,
 atenienses, vereis que todos farão o contrário, todos falarão a favor 
do corruptor, em defesa daquele que causa o mal de seus familiares, como
 afirmam Meleto e Ânito. Talvez esses, os corrompidos, tenham alguma 
razão para me defender, mas aqueles que não foram corrompidos, que são 
agora anciãos, que outra razão podem ter para me defender exceto esta, 
que é verdadeira e justa: a certeza de que Meleto mente e eu digo a 
verdade?
Epílogo
Sócrates não quer Misericórdia
Cidadãos,
 são estas, enfim, as razões que posso apresentar em minha defesa, e 
algumas mais, que, porém, são bem poucos diferentes destas. É possível 
que alguém entre vós, ao pensar em si mesmo, possa irritar-se comigo se,
 algum dia, ao ter de enfrentar um processo menos arriscado do que este,
 suplicou clemência aos juizes, e, além disso, trouxe ao tribunal os 
filhos e vários de seus parentes e amigos, ao passo que eu não me porto 
desta maneira, embora, ao que parece, esteja arriscando a vida .É 
possível que alguém, ao fazer intimamente esta comparação, se deixe 
influenciar pelo amor-próprio ferido e, desta forma, enraivecido com 
minha atitude, emita seu voto com raiva. A uma pessoa assim, que talvez 
esteja entre vós, não afirmo categoricamente que há, poderei responder 
da seguinte maneira: "Meu estimado amigo, eu também trouxe alguém da 
minha família, e aqui caberia aquele dito de Homero: 'Que não de 
carvalho, nem de pedra nasci, mas de criaturas humanas'.
Eu
 também possuo família, ó atenienses; tenho três filhos, um já crescido e
 dois ainda crianças, mas não os trouxe aqui para despertar vossa 
misericórdia e absolver-me". E não é por orgulho que me comporto assim, 
nem por desprezo, nem para provar que sou corajoso diante da mote, mas 
pela minha reputação, pela vossa e de toda a cidade, não me pareceu 
honroso agir dessa maneira, ainda mais na minha idade e com o meu nome, 
verdadeiro ou falso que seja, porque corre pela cidade que, em quaisquer
 aspectos, Sócrates se distingue da maioria dos homens. Ora, se aquele 
que entre vós possuem fama de se distinguirem pela sabedoria e coragem, 
ou por outra virtude qualquer, se procedessem dessa maneira, seria 
vergonhoso, e pessoas desse tipo, eu mesmo presenciei muitas vezes, 
quando eram réus em um processo, embora possuíssem alguma boa reputação,
 têm atitudes excepcionais, como se achassem que iriam sofrer sabe-se lá
 que tortura se devessem morrer e como se tornassem imortais se não 
fossem condenados à morte por vós. Estes, sim, envergonham a toda a 
cidade, tanto que qualquer forasteiro poderia imaginar que aqueles 
atenienses que se distinguem por sua virtude e que seus concidadãos 
elegem à magistratura e outras honras não são em nada melhores que as 
mulheres. Por isso, não nos portamos dessa maneira é o que compete a 
nós, que temos fama de sermos ainda alguma coisa. Nem vos conviria, se 
nos comportássemos assim, deixar-nos fazê-lo, mas sim mostrar a todos 
que julgais com maior rigor quem encena esses dramas lastimosos e cobre a
 cidade de ridículo do que quem suporta com serenidade o próprio 
destino.
Não
 considero justo, ó cidadãos, tentar influir nos juízes e, mediante 
súplicas, livrar-me da condenação, mas sim infomá-los e convencê-los. 
Os
 juízes não se encontram aqui para favorecer o justo, mas para julgar o 
justo, nem juraram que favorecerão a quem lhes paga, mas que farão 
justiça de acordo com as leis. Portanto, não é necessário que vos 
habitueis a isso; não faremos coisas boas e piedosas, nem vos nem eu. 
Não iríeis querer então, ó atenienses, que eu cometesse diante de vós 
atos que reputo desonestos, injustos e vis, e eu menos ainda, eu que sou
 acusado por Meleto, aqui presente, de impiedade. Porque é evidente que 
se eu, por meio de súplicas procurasse convencer-vos e obrigar-vos a 
violar o juramento, eu vos ensinaria que, desta acusação, seria culpado 
de não crer nos deuses. E é justamente o contrário que sucede. Acredito 
nos deuses mais do que qualquer um dos meus acusadores, e deixo a vosso 
critério, e ao do deus, julgar o que será para vós e para mim o melhor.
Segunda Parte
A Pena
Do Esperado da Pena
Se
 eu não estou abalado, ó atenienses, com o que acaba de ocorrer, o de 
terem votado pela minha condenação, isso deve-se, entre outras razões, 
ao fato de não haver sido apanhado de surpresa. O que, no entanto, me 
causa mais estranheza é o grande número de votos favoráveis a mm , pois 
acreditava que seria condenado por muito mais votos, e não por tão 
poucos. Ao que me parece, com apenas mais trinta votos a meu favor teria
 sido absolvido. Portanto, penso haver escapado das mãos de Meleto, e 
não só haver escapado delas, mas, o que é bastante evidente, se Ânito e 
Lícon não tivessem vindo para me acusar, eu teria sido multado em mil 
dracmas por não haver conseguido um quinto dos votos.
Este
 homem, então, pensa que mereço a pena capital. E eu, que pena 
apresentarei em oposição à vossa, ó atenienses? Não é evidente que seja a
 mesma que me foi imposta? Qual será então? Que pena merecerei ou que 
multa, por não haver usufruído em paz, ao longo da minha existência, o 
que aprendi, e por ter desprezado aquilo que atrai a maioria; riquezas, 
interesses particulares, cargos militares e políticos e todas as outras 
magistraturas, e as agitações e conspirações que acontecem nas cidades, 
pois sempre me considerei por demais honesto para conseguir salvar-me se
 me dedicasse a tais coisas e convencido de que não teria sido útil nem 
para mm nem para vós, e porque sempre acudi rapidamente aonde quer que 
eu reputasse poder proporcionar o maior bem a cada um de vós em 
particular, tentando convencer-vos de que, antes de qualquer coisa e de 
vós mesmos, procurásseis ser os melhores e mais sensatos possível, e que
 vos esforçásseis ao máximo para trabalhar em prol da cidade. Que mereço
 por sempre haver agido desta forma? Algum grande bem, ó atenienses, se é
 que devo ser recompensado como mereço. Que será apropriado para um 
pobre benfeitor que precisa de tempo para aconselhar-vos nos vossos 
assuntos? O que mais seria conveniente a esse homem, atenienses não 
seria mantê-lo no Pritaneu com muito maior razão do que aqueles que, com
 cavalo, biga ou quadriga, tenham conseguido triunfos nos Jogos 
Olímpicos. Porque estes vos proporcionam felicidade, e também a mim, e 
não precisam ser sustentados como eu precioso. Se, então, devo pedir, de
 acordo com o direito, aquilo a que faço jus, peço se alimentado no 
Pritaneu.
Contudo,
 mesmo nestas minhas palavras de agora, talvez julgais notar quase o 
mesmo sentimento de ofensivo orgulho que acreditáveis ter percebido 
quando falava a respeito de suplicar e despertar comiseração. Não, não é
 isso, ó cidadãos, mas algo bastante diferente. Penso nunca haver 
prejudicado ninguém por querer, e mesmo assim não logrei convencer-vos; 
tivemos muito pouco tempo para nos entendermos. E acredito que se 
houvesse leis entre nós, como as que há entre outros povos, que proíbem 
que uma pena de morte seja aplicada em apenas um dia, e sim em mais, 
estaríeis convencidos, e, mesmo assim, não é fácil livrar-se em tão 
breve espaço de tempo de acusações tão graves. E também pensa em 
prejudicar a mm mesmo ao declarar que sou merecedor da pena e pedir que 
esta pena seja aplicada a mim. E por temer o que eu deveria agir dessa 
forma? Talvez por temer sofrer aquilo que Meleto exige para mim e que eu
 declaro não saber se é bom ou mau? E em troca desta pena devo escolher 
outra entre aquelas que eu sei serem más? Deverei solicitar a prisão? E 
por que motivo deverei viver preso, a serviço da eterna magistratura dos
 Onze? Uma pena em dinheiro e permanecer enjaulado enquanto não for 
paga? Mas é exatamente a mesma coisa que a anterior, porque não possuo 
dinheiro para pagá-la. Pedirei o exílio? Sim, talvez seja precisamente 
esta pena que desejastes para mim. Porém, em verdade, ó atenienses, eu 
teria de estar imbuído de uma bem ingênua vontade de viver se fosse 
assim tão irracional a ponto de não poder nem mesmo fazer este 
raciocínio, que enquanto vós, embora sendo meus concidadãos, não fostes 
capazes de agüentar minha companhia e os meus discursos, e mais, que 
minha companhia foi tão desagradável que procuras agora livrar-vos dela,
 que outros a agüentariam de bom grado? E ainda, atenienses, que 
excelente vida seria a minha, nesta idade, exilado, mudando sempre de 
país para país, perseguido em todos os lugares. Porque sei muito bem que
 aonde quer que eu vá, os jovens acorrerão a fim de me ouvir, como aqui,
 e, se eu os repelir, serão estes mesmos que me farão perseguir, 
convencendo os mais velhos; e se não os repelir, serei perseguido por 
seus pais e demais parentes.
Algum
 de vós talvez pudesse contestar-me: "Em silêncio e quieto, ó Sócrates, 
não poderias viver após ter saído de Atenas?" Isso seria simplesmente 
impossível. Porque, se vos dissesse que significaria desobedecer ao deus
 e que, por conseguinte, não seria possível que eu vivesse em silêncio, 
não acreditaríeis e pensaríeis que estivesse sendo sarcástico. Se vos 
dissesse que esse é o maior bem para o homem, meditar todos os dias 
sobre a virtude e acerca dos outros assuntos que me ouvistes discutindo e
 analisando a meu respeito e dos demais, e que uma vida desprovida de 
tais análises não é digna de ser vivida, se vos dissesse isto, 
acreditar-me-iam menos ainda. Contudo, é isto que vos digo, ó 
atenienses, porém é difícil convencer-vos. Por outro lado, não estou 
habituado a considerar-me merecedor de mal algum. Se eu possuísse 
dinheiro, poderia ter-me aplicado uma multa que conseguisse pagar, 
porque, assim, não teria me infligido mal algum. Mas não possuo dinheiro
 e não posso fazer isso, exceto se desejeis multar-me de uma quantia que
 eu tenha a possibilidade de pagar. Poderei pagar-vos apenas uma mina de
 prata. Portanto, multo-me em uma mina de prata.
Mas
 vedes, ó atenienses, que Platão, Críton, Critóbulo e Apolodoro querem 
que eu me multe em trinta minas, que eles mesmos garantirão. Multo-me 
então em trinta minas. E esses homens, dignos de crédito e confiança, 
serão garantes dessa quantia. 
Terceira Parte
Após a Condenação
Aos que Votaram Contra
Por
 não haverdes aguardado mais um pouco, atenienses, aqueles que desejarem
 injuriar a cidade vos impingirão a fama e a acusação de terdes matado 
Sócrates, um sábio. Sim, chamar-me-ão de sábio, apesar de que eu não o 
seja, os que vos quiserem censurar. Se esperásseis mais algum tempo, a 
própria natureza satisfaria o vosso desejo. Bem sabeis a minha idade, já
 distante da vida e próxima da morte. Não dirijo essas palavras a todos 
vós, mas aos que votaram pela minha morte.
Para
 esses mesmos, adito o seguinte: talvez imagineis, senhores, que me 
perdi por falta de discursos com que vos poderia persuadir, se na minha 
opinião se devesse tudo fazer e dizer para escapar à justiça. Engano! 
Perdi-me por falta, não de discursos, mas de atrevimento e descaramento,
 por me recusar a proferir o que mais gostais de ouvir, lamentos e 
gemidos, fazendo e dizendo uma porção de coisas que declaro indignas de 
mm, tais como costumais ouvir dos outros. Ora, se antes achei que o 
perigo não justificava indignidade alguma, tampouco me pesa agora da 
maneira por que me defendi; ao contrário, muito mais folgo em morrer 
após a defesa que fiz, do que folgaria em viver após fazê-la daquele 
outro modo. Quer no tribunal, quer na guerra, não devo eu, não deve 
ninguém lançar mão de todo e qualquer recurso para escapar à morte. Com 
efeito, é evidente que, nas batalhas, muitas vezes se pode escapar à 
morte arrojando as armas e suplicando piedade aos perseguidores; em cada
 perigo, tem muitos outros meios de escapar à morte quem ousa tudo fazer
 e dizer. Não se tenha por difícil escapar à morte, porque muito mais 
difícil é escapar à maldade; ela corre mais ligeira que a morte. Neste 
momento, fomos apanhados, eu, que sou um velho vagaroso, pela mais lenta
 das duas, eu e os meus acusadores, ágeis e velozes, pela mais ligeira, a
 malvadez. Agora, vamos partir; eu, condenado por vós à morte; eles, 
condenados pela verdade a seu pecado e a seu crime. Eu aceito a pena 
imposta; eles igualmente. Por certo, tinha de ser assim e penso que não 
houve excessos.
Acerca
 do futuro, no entanto, quero fazer-vos um vaticínio, meus condenadores;
 de fato, eis-me chegado àquele momento em que os homens vaticinam 
melhor, quando estão para morrer. Eu vos afianço, homens que me mandais 
matar, que o castigo os vos alcançará logo após a minha morte e será, 
por Zeus, muito mais duro que a pena capital que me impusestes. Vós o 
fizestes supondo que vos livraríeis de dar boas contas de vossa vida; 
mas o resultado será inteiramente oposto, eu vo-lo asseguro. Serão mais 
numerosos os que vos pedirão contas; até agora eu os continha e vós não 
os percebíeis; eles serão tanto mais importunos quanto são mais jovens, e
 vossa irritação será maior. Se imaginais que, matando homens, evitareis
 que alguém vos repreenda a má vida, estais enganados; essa não é uma 
forma de libertação, enm é inteiramente eficaz nem honrosa; esta outra, 
sim, é a mais honrosa e mais fácil; em vez de tapar a boca dos outros, 
preparar-se para ser o melhor possível. Com este vaticínio, despeço-me 
de vós que me condenastes.
Aos que o Absolveram
Com
 os que votaram pela absolvição, gostaria de conversar com respeito ao 
que se acaba de suceder, enquanto os magistrados estão ocupados e antes 
de ir para onde devo morrer. Por conseguinte, senhores, ficai comigo 
mais um pouco; nada obsta que nos entretenhamos enquanto dispomos de 
tempo. Quero explicar-vos, como a amigos, o sentido exato de que me 
aconteceu agora.
O
 que me ocorreu senhores juízes, a vós é que chamo com tino de juízes, 
foi algo prodigioso. A usual inspiração, a da divindade, sempre foi 
rigorosamente assídua em opor-se a ações mínimas, quando eu ia cometer 
um erro; agora, porém, acaba de me ocorrer o que vós estais vendo, o que
 se poderia considerar, e há quem o faça, como o maior dos males; mas a 
advertência divina não se me opôs de manhã, ao sair de casa, nem 
enquanto subia aqui para o tribunal, nem quando ia dizer alguma coisa; 
no entanto, quantas vezes ela me conteve em meio de outros discursos! 
Mas hoje não se me opôs vez alguma no decorrer do julgamento, em nenhuma
 ação ou palavra. A que devo atribuir isso? Vou dizer-vos: é bem 
possível que seja um bem para mim o que aconteceu e não é forçoso 
acreditar que a morte seja um mal. Disso tenho agora uma boa prova, 
porque a usual advertência não poderia deixar de opor-se, se não fosse 
uma ação boa o que eu estava para praticar.
Façamos
 mais esta reflexão: há grande esperança de que isto seja um bem. Morrer
 é uma destas duas coisas: ou o morte é igual a nada, e não sente 
nenhuma sensação d coisa nenhuma; ou, então, como se costuma dizer, 
trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para 
outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o 
adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte!
Bem
 posso imaginar que, se devêssemos identificar uma noite em que 
estivéssemos dormindo tão profundamente que nem mesmo sonhássemos e, 
contrapondo a essa as demais noites e dias de nossa vida, pensar e dizer
 quantos dias e noites de nossa existência vivemos melhor e mais 
agradavelmente do que naquela noite, bem posso imaginar que, já não digo
 um homem comum, mas o próprio rei da Pérsia acharia fácil enumerar tal 
noite entre as outras noites e dias. Logo, se a morte é isso, digo que é
 uma vantagem, porque, assim sendo, toda a duração do tempo se apresenta
 como nada mais que uma noite. Se, do outro lado, a morte é como a 
mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão 
todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes? 
Se,
 ao chegar ao Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a 
gente vai encontrar os verdadeiros juízes que, segundo consta, lá 
distribuem a justiça, Minos, ¹ Radamanto, Éaco, Triptólemo e outros 
semideuses que foram justiceiros em vida, não valeria a pena a viagem? 
Quanto não daria qualquer de vós para estar na companhia de Orfeu, ² 
Museu, Hesíodo e Homero? Por mm, estou pronto a morrer muitas vezes, se 
isso é verdade; eu de modo especial acharia lá um entretenimento 
maravilhoso, quando encontrasse Palamedes, Ajax de Telamon e outros dos 
antigos, que tenham morrido por um sentença iníqua; não me seria 
desagradável comparar com os deles os meus sofrimentos e, o que é mais, 
passar o tempo examinando e interrogando os de lá como aos de cá, a ver 
quem deles é sábio e quem, não o sendo, cuida que é. Quanto não se 
daria, senhores juízes, para sujeitar a exame aquele que comandou a 
imensa expedição contra Tróia, ou Ulisses, ou Sísifo? Milhares de outros
 se poderiam nomear, homens e mulheres, com quem seria uma felicidade 
indizível estar junto, conversando com eles, sujeitando-os a exame! Os 
de lá absolutamente não matam por uma razão dessas! Os de lá são mais 
felizes que os de cá, entre outros motivos, por serem imortais pelo 
resto do tempo, se a tradição está certa.
Vós
 também, senhores juízes, deveis bem esperar da morte e considerar 
particularmente esta verdade: não há, para o homem bom, mal algum, quer 
na vida, quer na morte, e os deuses não descuidam de seu destino. O meu 
não é consequência do acaso; vejo claramente que era melhor para mim 
morrer agora e ficar livre de fadigas. Por isso é que a advertência nada
 me impediu. Não me insurjo absolutamente contra os que votaram contra 
mm ou me acusaram. Verdade é que não me acusaram e condenaram com esse 
modo de pensar, mas na suposição de que me causavam dano: nisso merecem 
censura. No entanto, só tenho um pedido a lhes fazer: quando meus filhos
 crescerem, castigai-os, atormentai-os com os mesmíssimos tormentos que 
eu vos infligi, se achardes que eles estejam cuidando mais da riqueza ou
 de outra coisa que da virtude; se estiverem supondo ter um valor que 
não tenham, repreendei-os, como vos fiz eu, por não cuidarem do que 
devem e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se vós assim agirdes, eu 
terei recebido de vós justiça; eu, e meus filhos também.
Bem,
 é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem 
segue melhor destino, se eu, se vós, é segredo para todos, exceto para a
 divindade.
¹
 Rei lendário de Creta, filho de Europa e de Zeus, marido de Pasífae, 
sábio legislador, juiz dos Infernos com Éaco e Triptólemo.
²
 Célebre aedo da era pré-homérica, cantava e tocava a lira com tal 
perfeição que até as feras se aquietavam e vinham deitar-se a seus pés. 
Atribuía-se-lhe a invenção da lira e dos rituais mágicos e divinatórios,
 origem de seitas místicas, a que se deu o nome de orfismo.
PLATÃO
A Vida e as Obras
Aos
 vinte anos, Platão travou relação com Sócrates - mais velho do que ele 
quarenta anos - e gozou por oito anos do ensinamento e da amizade do 
mestre. Quando discípulo de Sócrates e ainda depois, Platão estudou 
também os maiores pré-socráticos. Depois da morte do mestre, Platão 
retirou-se com outros socráticos para junto de Euclides, em Mégara.
Daí
 deu início a suas viagens, e fez um vasto giro pelo mundo para se 
instruir (390-388). Visitou o Egito, de que admirou a veneranda 
antigüidade e estabilidade política; a Itália meridional, onde teve 
ocasião de travar relações com os pitagóricos (tal contato será fecundo 
para o desenvolvimento do seu pensamento); a Sicília, onde conheceu 
Dionísio o Antigo, tirano de Siracusa e travou amizade profunda com 
Dion, cunhado daquele. Caído, porém, na desgraça do tirano pela sua 
fraqueza, foi vendido como escravo. Libertado graças a um amigo, voltou a
 Atenas.
Em
 Atenas, pelo ano de 387, Platão fundava a sua célebre escola, que, dos 
jardins de Academo, onde surgiu, tomou o nome famoso de Academia. 
Adquiriu, perto de Colona, povoado da Ática, uma herdade, onde levantou 
um templo às Musas, que se tornou propriedade coletiva da escola e foi 
por ela conservada durante quase um milênio, até o tempo do imperador 
Justiniano (529 d.C.).
Platão,
 ao contrário de Sócrates, interessou-se vivamente pela política e pela 
filosofia política. Foi assim que o filósofo, após a morte de Dionísio o
 Antigo, voltou duas vezes - em 366 e em 361 - à Dion, esperando poder 
experimentar o seu ideal político e realizar a sua política utopista. 
Estas duas viagens políticas a Siracusa, porém, não tiveram melhor êxito
 do que a precedente: a primeira viagem terminou com desterro de Dion; 
na segunda, Platão foi preso por Dionísio, e foi libertado por Arquitas e
 pelos seus amigos, estando, então, Arquistas no governo do poderoso 
estado de Tarento.
Voltando
 para Atenas, Platão dedicou-se inteiramente à especulação metafísica, 
ao ensino filosófico e à redação de suas obras, atividade que não foi 
interrompida a não ser pela morte. Esta veio operar aquela libertação 
definitiva do cárcere do corpo, da qual a filosofia - como lemos no 
Fédon - não é senão uma assídua preparação e realização no tempo. Morreu
 o grande Platão em 348 ou 347 a.C., com oitenta anos de idade.
Platão
 é o primeiro filósofo antigo de quem possuímos as obras completas. Dos 
35 diálogos, porém, que correm sob o seu nome, muitos são apócrifos, 
outros de autenticidade duvidosa.
A
 forma dos escritos platônicos é o diálogo, transição espontânea entre o
 ensinamento oral e fragmentário de Sócrates e o método estritamente 
didático de Aristóteles. No fundador da Academia, o mito e a poesia 
confundem-se muitas vezes com os elementos puramente racionais do 
sistema. Faltam-lhe ainda o rigor, a precisão, o método, a terminologia 
científica que tanto caracterizam os escritos do sábio estagirita.
A
 atividade literária de Platão abrange mais de cinquenta anos da sua 
vida: desde a morte de Sócrates , até a sua morte. A parte mais 
importante da atividade literária de Platão é representada pelos 
diálogos - em três grupos principais, segundo certa ordem cronológica, 
lógica e formal, que representa a evolução do pensamento platônico, do 
socratismo ao aristotelismo. 
O Pensamento: A Gnosiologia
Como
 já em Sócrates, assim em Platão a filosofia tem um fim prático, moral; é
 a grande ciência que resolve o problema da vida. Este fim prático 
realiza-se, no entanto, intelectualmente, através da especulação, do 
conhecimento da ciência. Mas - diversamente de Sócrates, que limitava a 
pesquisa filosófica, conceptual, ao campo antropológico e moral - Platão
 estende tal indagação ao campo metafísico e cosmológico, isto é, a toda
 a realidade. 
Este
 caráter íntimo, humano, religioso da filosofia, em Platão é tornado 
especialmente vivo, angustioso, pela viva sensibilidade do filósofo em 
face do universal vir-a-ser, nascer e perecer de todas as coisas; em 
face do mal, da desordem que se manifesta em especial no homem, onde o 
corpo é inimigo do espírito, o sentido se opõe ao intelecto, a paixão 
contrasta com a razão. Assim, considera Platão o espírito humano 
peregrino neste mundo e prisioneiro na caverna do corpo. Deve, pois, 
transpor este mundo e libertar-se do corpo para realizar o seu fim, isto
 é, chegar à contemplação do inteligível, para o qual é atraído por um 
amor nostálgico, pelo eros platônico.
Platão
 como Sócrates, parte do conhecimento empírico, sensível, da opinião do 
vulgo e dos sofistas, para chegar ao conhecimento intelectual, 
conceptual, universal e imutável. A gnosiologia platônica, porém, tem o 
caráter científico, filosófico, que falta a gnosiologia socrática, ainda
 que as conclusões sejam, mais ou menos, idênticas. O conhecimento 
sensível deve ser superado por um outro conhecimento, o conhecimento 
conceptual, porquanto no conhecimento humano, como efetivamente, 
apresentam-se elementos que não se podem explicar mediante a sensação. O
 conhecimento sensível, particular, mutável e relativo, não pode 
explicar o conhecimento intelectual, que tem por sua característica a 
universalidade, a imutabilidade, o absoluto (do conceito); e ainda menos
 pode o conhecimento sensível explicar o dever ser, os valores de 
beleza, verdade e bondade, que estão efetivamente presentes no espírito 
humano, e se distinguem diametralmente de seus opostos, fealdade, erro e
 mal-posição e distinção que o sentido não pode operar por si mesmo.
Segundo
 Platão, o conhecimento humano integral fica nitidamente dividido em 
dois graus: o conhecimento sensível, particular, mutável e relativo, e o
 conhecimento intelectual, universal, imutável, absoluto, que ilumina o 
primeiro conhecimento, mas que dele não se pode derivar. A diferença 
essencial entre o conhecimento sensível, a opinião verdadeira e o 
conhecimento intelectual, racional em geral, está nisto: o conhecimento 
sensível, embora verdadeiro, não sabe que o é, donde pode passar 
indiferentemente o conhecimento diverso, cair no erro sem o saber; ao 
passo que o segundo, além de ser um conhecimento verdadeiro, sabe que o 
é, não podendo de modo algum ser substituído por um conhecimento 
diverso, errôneo. Poder-se-ia também dizer que o primeiro sabe que as 
coisas estão assim, sem saber porque o estão, ao passo que o segundo 
sabe que as coisas devem estar necessariamente assim como estão, 
precisamente porque é ciência, isto é, conhecimento das coisas pelas 
causas.
Sócrates
 estava convencido, como também Platão, de que o saber intelectual 
transcende, no seu valor, o saber sensível, mas julgava, todavia, poder 
construir indutivamente o conceito da sensação, da opinião; Platão, ao 
contrário, não admite que da sensação - particular, mutável, relativa - 
se possa de algum modo tirar o conceito universal, imutável, absoluto. 
E, desenvolvendo, exagerando, exasperando a doutrina da maiêutica 
socrática, diz que os conceitos são a priori, inatos no espírito humano,
 donde têm de ser oportunamente tirados, e sustenta que as sensações 
correspondentes aos conceitos não lhes constituem a origem, e sim a 
ocasião para fazê-los reviver, relembrar conforme a lei da associação.
Aqui
 devemos lembrar que Platão, diversamente de Sócrates, dá ao 
conhecimento racional, conceptual, científico, uma base real, um objeto 
próprio: as ideias eternas e universais, que são os conceitos, ou alguns
 conceitos da mente, personalizados. Do mesmo modo, dá ao conhecimento 
empírico, sensível, à opinião verdadeira, uma base e um fundamento 
reais, um objeto próprio: as coisas particulares e mutáveis, como as 
concebiam Heráclito e os sofistas. Deste mundo material e contigente, 
portanto, não há ciência, devido à sua natureza inferior, mas apenas é 
possível, no máximo, um conhecimento sensível verdadeiro - opinião 
verdadeira - que é precisamente o conhecimento adequado à sua natureza 
inferior. Pode haver conhecimento apenas do mundo imaterial e racional 
das idéias pela sua natureza superior. Este mundo ideal, racional - no 
dizer de Platão - transcende inteiramente o mundo empírico, material, em
 que vivemos. 
Teoria das Idéias
Sócrates
 mostrara no conceito o verdadeiro objeto da ciência. Platão 
aprofunda-lhe a teoria e procura determinar a relação entre o conceito e
 a realidade fazendo deste problema o ponto de partida da sua filosofia.
A
 ciência é objetiva; ao conhecimento certo deve corresponder a 
realidade. Ora, de um lado, os nossos conceitos são universais, 
necessários, imutáveis e eternos (Sócrates), do outro, tudo no mundo é 
individual, contingente e transitório (Heráclito). Deve, logo, existir, 
além do fenomenal, um outro mundo de realidades, objetivamente dotadas 
dos mesmos atributos dos conceitos subjetivos que as representam. Estas 
realidades chamam-se Ideias. As ideias não são, pois, no sentido 
platônico, representações intelectuais, formas abstratas do pensamento, 
são realidades objetivas, modelos e arquétipos eternos de que as coisas 
visíveis são cópias imperfeitas e fugazes. Assim a ideia de homem é o 
homem abstrato perfeito e universal de que os indivíduos humanos são 
imitações transitórias e defeituosas.
Todas
 as ideias existem num mundo separado, o mundo dos inteligíveis, situado
 na esfera celeste. A certeza da sua existência funda-a Platão na 
necessidade de salvar o valor objetivo dos nossos conhecimentos e na 
importância de explicar os atributos do ente de Parmênides, sem, com 
ele, negar a existência do fieri. Tal a célebre teoria das ideias, alma 
de toda filosofia platônica, centro em torno do qual gravita todo o seu 
sistema.
A Metafísica
As Ideias
O
 sistema metafísico de Platão centraliza-se e culmina no mundo divino 
das ideias; e estas contrapõe-se a matéria obscura e incriada. Entre as 
ideias e a matéria estão o Demiurgo e as almas, através de que desce das
 ideias à matéria aquilo de racionalidade que nesta matéria aparece.
O
 divino platônico é representado pelo mundo das ideias e especialmente 
pela ideia do Bem, que está no vértice. A existência desse mundo ideal 
seria provada pela necessidade de estabelecer uma base ontológica, um 
objeto adequado ao conhecimento conceptual. Esse conhecimento, aliás, se
 impõe ao lado e acima do conhecimento sensível, para poder explicar 
verdadeiramente o conhecimento humano na sua efetiva realidade. E, em 
geral, o mundo ideal é provado pela necessidade de justificar os 
valores, o dever ser, de que este nosso mundo imperfeito participa e a 
que aspira.
Visto
 serem as ideias conceitos personalizados, transferidos da ordem lógica à
 ontológica, terão consequentemente as características dos próprios 
conceitos: transcenderão a experiência, serão universais, imutáveis. 
Além disso, as ideias terão aquela mesma ordem lógica dos conceitos, que
 se obtém mediante a divisão e a classificação, isto é, são ordenadas em
 sistema hierárquico, estando no vértice a ideia do Bem, que é papel da 
dialética (lógica real, ontológica) esclarecer. Como a multiplicidade 
dos indivíduos é unificada nas ideias respectivas, assim a 
multiplicidade das ideias é unificada na ideia do Bem. Logo, a ideia do 
Bem, no sistema platônico, é a realidade suprema, donde dependem todas 
as demais ideias, e todos os valores (éticos, lógicos e estéticos) que 
se manifestam no mundo sensível; é o ser sem o qual não se explica o 
vir-a-ser. Portanto, deveria representar o verdadeiro Deus platônico. No
 entanto, para ser verdadeiramente tal, falta-lhe a personalidade e a 
atividade criadora. Desta personalidade e atividade criadora - ou, 
melhor, ordenadora - é, pelo contrário, dotado o Demiurgo o qual, embora
 superior à matéria, é inferior às ideias, de cujo modelo se serve para 
ordenar a matéria e transformar o caos em cosmos.
As Almas
A
 alma, assim como o Demiurgo, desempenha papel de mediador entre as 
ideias e a matéria, à qual comunica o movimento e a vida, a ordem e a 
harmonia, em dependência de uma ação do Demiurgo sobre a alma. Assim, 
deveria ser, tanto no homem como nos outros seres, porquanto Platão é um
 pampsiquista, quer dizer, anima toda a realidade. Ele, todavia, dá à 
alma humana um lugar e um tratamento à parte, de superioridade, em vista
 dos seus impelentes interesses morais e ascéticos, religiosos e 
místicos. Assim é que considera ele a alma humana como um ser eterno 
(coeterno às ideias, ao Demiurgo e à matéria), de natureza espiritual, 
inteligível, caído no mundo material como que por uma espécie de queda 
original, de um mal radical. Deve portanto, a alma humana, libertar-se 
do corpo, como de um cárcere; esta libertação, durante a vida terrena, 
começa e progride mediante a filosofia, que é separação espiritual da 
alma do corpo, e se realiza com a morte, separando-se, então, na 
realidade, a alma do corpo.
A
 faculdade principal, essencial da alma é a de conhecer o mundo ideal, 
transcendental: contemplação em que se realiza a natureza humana, e da 
qual depende totalmente a ação moral. Entretanto, sendo que a alma 
racional é, de fato, unida a um corpo, dotado de atividade sensitiva e 
vegetativa, deve existir um princípio de uma e outra. Segundo Platão, 
tais funções seriam desempenhadas por outras duas almas - ou partes da 
alma: a irascível (ímpeto), que residiria no peito, e a concupiscível 
(apetite), que residiria no abdome - assim como a alma racional 
residiria na cabeça. Naturalmente a alma sensitiva e a vegetativa são 
subordinadas à alma racional.
Logo,
 segundo Platão, a união da alma espiritual com o corpo é extrínseca, 
até violenta. A alma não encontra no corpo o seu complemento, o seu 
instrumento adequado. Mas a alma está no corpo como num cárcere, o 
intelecto é impedido pelo sentido da visão das ideias, que devem ser 
trabalhosamente relembradas. E diga-se o mesmo da vontade a respeito das
 tendências. E, apenas mediante uma disciplina ascética do corpo, que o 
mortifica inteiramente, e mediante a morte libertadora, que desvencilha 
para sempre a alma do corpo, o homem realiza a sua verdadeira natureza: a
 contemplação intuitiva do mundo ideal.
O Mundo
O
 mundo material, o cosmos platônico, resulta da síntese de dois 
princípios opostos, as ideias e a matéria. O Demiurgo plasma o caos da 
matéria no modelo das ideias eternas, introduzindo no caos a alma, 
princípio de movimento e de ordem. O mundo, pois, está entre o ser 
(ideia) e o não-ser (matéria), e é o devir ordenado, como o adequado 
conhecimento sensível está entre o saber e o não-saber, e é a opinião 
verdadeira. Conforme a cosmologia pampsiquista platônica, haveria, antes
 de tudo, uma alma do mundo e, depois, partes da alma, dependentes e 
inferiores, a saber, as almas dos astros, dos homens, etc.
O
 dualismo dos elementos constitutivos do mundo material resulta do ser e
 do não-ser, da ordem e da desordem, do bem e do mal, que aparecem no 
mundo. Da ideia - ser, verdade, bondade, beleza - depende tudo quanto há
 de positivo, de racional no vir-a-ser da experiência. Da matéria - 
indeterminada, informe, mutável, irracional, passiva, espacial - 
depende, ao contrário, tudo que há de negativo na experiência.
Consoante
 a astronomia platônica, o mundo, o universo sensível, são esféricos. A 
terra está no centro, em forma de esfera e, ao redor, os astros, as 
estrelas e os planetas, cravados em esferas ou anéis rodantes, 
transparentes, explicando-se deste modo o movimento circular deles.
No
 seu conjunto, o mundo físico percorre uma grande evolução, um ciclo de 
dez mil anos, não no sentido do progresso, mas no da decadência, 
terminados os quais, chegado o grande ano do mundo, tudo recomeça de 
novo. É a clássica concepção grega do eterno retorno, conexa ao clássico
 dualismo grego, que domina também a grande concepção platônica.
Moral
Segundo
 a psicologia platônica, a natureza do homem é racional, e, por 
consequência, na razão realiza o homem a sua humanidade: a ação racional
 realiza o sumo bem, que é, ao mesmo tempo, felicidade e virtude. 
Entretanto, esta natureza racional do homem encontra no corpo não um 
instrumento, mas um obstáculo - que Platão explica mediante um dualismo 
filosófico-religioso de alma e de corpo: o intelecto encontra um 
obstáculo nos sentidos, a vontade no impulso, e assim por diante. Então a
 realização da natureza humana não consiste em uma disciplina racional 
da sensibilidade, mas na sua final supressão, na separação da alma do 
corpo, na morte. Agir moralmente é agir racionalmente, e agir 
racionalmente é filosofar, e filosofar é suprimir o sensível, morrer aos
 sentidos, ao corpo, ao mundo, para o espírito, o inteligível, a ideia.
Em
 todo caso, visto que a alma humana racional se acha, de fato, neste 
mundo, unida ao corpo e aos sentidos, deve principiar a sua vida moral 
sujeitando o corpo ao espírito, para impedir que o primeiro seja 
obstáculo ao segundo, à espera de que a morte solte definitivamente a 
alma dos laços corpóreos. Noutras palavras, para que se realize a 
sabedoria, a contemplação, a filosofia, a virtude suma, a única virtude 
verdadeiramente humana e racional, é necessário que a alma racional 
domine, antes de tudo, a alma concupiscível, derivando daí a virtude da 
temperança, e domine também a alma irascível, donde a virtude da 
fortaleza. Tal harmônica distribuição de atividade na alma conforme a 
razão constituiria, pois, a justiça, virtude fundamental, segundo 
Platão, juntamente com a sapiência, embora a esta naturalmente inferior.
 Temos, destarte, uma classificação, uma dedução das famosas quatro 
virtudes naturais, chamadas depois cardeais - prudência, fortaleza, 
temperança, justiça - sobre a base da metafísica platônica da alma.
Quanto
 ao destino das almas depois da morte, eis o pensamento de Platão: em 
geral, o destino da alma depende da sua filosofia, da razão; em 
especial, depende da religião, dos mistérios órfico-dionisíacos. Em 
geral, distingue ele três categorias de alma: 
1. As que cometeram pecados inexpiáveis, condenadas eternamente; 
2. As que cometeram pecados expiáveis; 
3.
 As que viveram conforme à justiça. As almas destas últimas duas 
categorias nascem de novo, encarnam-se de novo, para receber a pena ou o
 prêmio merecidos. Segundo o pensamento que lemos no Fédon, seria mister
 acrescentar uma quarta categoria de almas, as dos filósofos, videntes 
de ideias, libertados da vida temporal para sempre.
A Política
Os escritos em que Platão trata especificamente do problema da política, são a República, o Político e as Leis. Na República, a obra fundamental de Platão sobre o assunto, traça o seu estado ideal, o reino do espírito, da razão, dos filósofos, em chocante contraste com os estados e a política deste mundo.
Qual
 é, pois, a justificação da sociedade e do estado? Platão acha-a na 
própria natureza humana, porquanto cada homem precisa do auxílio 
material e moral dos outros. Desta variedade de necessidades humanas 
origina-se a divisão do trabalho e, por consequência, a distinção em 
classes, em castas, que representam um desenvolvimento social e uma 
sistematização estável da divisão do trabalho no âmbito de um estado. A 
essência do estado seria então, não uma sociedade de indivíduos 
semelhantes e iguais, mas dessemelhantes e desiguais. Tal especificação e
 concretização da divisão do trabalho seria representada pela 
instituição da escravidão; tal instituição, consoante Platão, é 
necessária porquanto os trabalhos materiais, servis, são incompatíveis 
com a condição de um homem livre em geral.
Segundo
 Platão, o estado ideal deveria ser dividido em classes sociais. Três 
são, pois, estas classes: a dos filósofos, a dos guerreiros, a dos 
produtores, as quais, no organismo do estado, corresponderiam 
respectivamente às almas racional, irascível e concupiscível no 
organismo humano. À classe dos filósofos cabe dirigir a república. Com 
efeito, contemplam eles o mundo das ideias, conhecem a realidade das 
coisas, a ordem ideal do mundo e, por conseguinte, a ordem da sociedade 
humana, e estão, portanto, à altura de orientar racionalmente o homem e a
 sociedade para o fim verdadeiro. Tal atividade política constitui um 
dever para o filósofo, não, porém, o fim supremo, pois este fim supremo é
 unicamente a contemplação das ideias.
À
 classe dos guerreiros cabe a defesa interna e externa do estado, de 
conformidade com a ordem estabelecida pelos filósofos, dos quais e 
juntamente com os quais, os guerreiros receberam a educação. Os 
guerreiros representam a força a serviço do direito, representado pelos 
filósofos.
À
 classe dos produtores, enfim, - agricultores e artesãos - submetida às 
duas precedentes, cabe a conservação econômica do estado, e, 
consequentemente, também das outras duas classes, inteiramente entregues
 à conservação moral e física do estado. Na hierarquia das classes, a 
dos trabalhadores ocupa o ínfimo lugar, pelo desprezo com que era 
considerado por Platão - e pelos gregos em geral - o trabalho material.
Na
 concepção ideal, espiritual, ética, ascética do estado platônico, pode 
causar impressão, à primeira vista, o comunismo dos bens, das mulheres e
 dos filhos, que Platão propugna para as classes superiores. Entretanto,
 Platão foi levado a esta concepção política - tornada depois sinônimo 
de imanentismo, materialismo, ateísmo - não certamente por estes 
motivos, mas pela grande importância e função moral por ele atribuída ao
 estado, como veículo dos valores transcendentais da Ideia. Tinha ele 
compreendido bem que os interesses particulares, privados, econômicos e,
 especialmente, domésticos, estão efetivamente em contraste com os 
interesses coletivos, sociais, estatais, sendo estes naturalmente 
superiores àqueles - eticamente considerados. E não hesita em sacrificar
 totalmente os interesses inferiores aos superiores, a riqueza, a 
família, o indivíduo ao estado, porquanto representa precisamente - 
consoante seu pensamento - um altíssimo valor moral terreno, 
político-religioso, como única e total expressão da eticidade 
transcendente.
Se
 a natureza do estado é, essencialmente, a de organismo 
ético-transcendente, a sua finalidade primordial é 
pedagógico-espiritual; a educação deve, por isso, estar substancialmente
 nas mãos do estado. O estado deve, então, promover, antes de tudo, o 
bem espiritual dos cidadãos, educá-los para a virtude, e ocupar-se com o
 seu bem estar material apenas secundária e instrumentalmente. Platão 
tende a desvalorizar a grandeza militar e comercial, a dominação e a 
riqueza, idolatrando a grandeza moral. O grande, o verdadeiro político 
não é - diz Platão - o homem prático e empírico, mas o sábio, o 
pensador; não realiza tanto as obras exteriores, mas, sobretudo, se 
preocupa com espiritualizar os homens. Desta maneira é concebido o 
estado educador de homens virtuosos, segundo as virtudes que se referem a
 cada classe, respectivamente. Esta educação é dispensada essencialmente
 às classes superiores - especialmente aos filósofos, a quem cabem as 
virtudes mais elevadas, e, portanto, a direção da república. Ao 
contrário, o estado em nada se interessa - ao menos positivamente - pelo
 povo, pelo vulgo, pela plebe, cuja formação é inteiramente material e 
subordinada, consistindo sua virtude apenas na obediência, visto a alma 
concupiscível estar sujeita à alma racional.
A
 educação das classes superiores importa, fundamentalmente, música e 
ginástica. A música - abrangendo também a poesia, a história, etc., e, 
em geral, todas as atividades presididas pelas Musas - é, todavia, 
cultivada apenas para fins práticos e morais. Deveria ela equilibrar, 
com a sua natureza gentil e civilizadora, a ação oposta, fortificadora, 
da ginástica. Platão reconhece a importância da ginástica, mas não passa
 de uma importância instrumental e parcial, pois o prevalecer da cultura
 física do corpo torna os homens grosseiros e materiais. Daí a sua 
aversão ao culto idolátrico dos exercícios físicos, que foi um dos 
indícios da decadência grega.
A Religião e a Arte
A ideia do Bem seria o centro da religião platônica. Seu culto essencial é representado pela ciência e, portanto, pela virtude que deriva necessariamente da ciência. Ao lado, e subordinadas a esta espécie de Deus supremo, estão as demais ideias, denominadas por Platão, deuses eternos. Entretanto, este absoluto - o Bem e as ideias - embora transcendente, espiritual e ético, não pode tornar-se objeto de religião, nem sequer da religião assim chamada natural, dada a sua impersonalidade e inatividade a respeito do mundo.
Quanto
 à avaliação da religião positiva, Platão hostiliza o antromorfismo, até
 querer banidos de seu estado ideal os poetas, inclusive Homero, pelos 
mitos fantásticos e imorais, narrados em torno dos deuses e dos heróis. 
Apesar de repelir os deuses da mitologia popular e poética, aceita 
francamente o politeísmo. É um politeísmo estranho, cujas divindades são
 os astros e o cosmo, animados e racionais, os assim chamados deuses 
visíveis, subordinados ao Demiurgo, bem como à ideia do Bem e às outras 
ide
ias. Platão pode, pois, conservar - reformada e purificada - a religião helênica, como religião do seu estado ideal.
ias. Platão pode, pois, conservar - reformada e purificada - a religião helênica, como religião do seu estado ideal.
As
 doutrinas estéticas de Platão são algo oscilantes entre uma valorização
 e uma desvalorização da arte. Em todo caso, no conjunto do seu 
pensamento, em oposição ao seu gênio e ao gênio artístico grego, 
prevalece a desvalorização por dois motivos, teorético um, prático 
outro. O motivo teorético é que a arte resultaria como cópia de uma 
cópia: cópia do mundo empírico, que é já uma cópia do mundo ideal; cópia
 não de essências, como a ciência, mas de fenômenos. Por consequência, a
 arte deveria ser, gnosiologicamente, inferior à ciência. O motivo 
prático é que a arte - dada esta sua inferior natureza teorética, impura
 fonte gnosiológica - torna-se outro tanto danosa no campo moral. 
Atuando cegamente sobre o sentimento, a arte nos atrai para o 
verdadeiro, como para o falso, para o bem como para o mal.
Seja
 como for, encontramos em Platão uma tentativa de valorização da arte em
 si, sendo considerada a arte como uma espécie de loucura divina, de 
mania, semelhante à religião e ao amor, ou seja, uma espécie de 
revelação superior. A arte, pois - como o amor, que tem por objeto a 
Beleza eterna e os graus que levam até ela - deveria ser um itinerário 
especial do espírito para o Absoluto e o inteligível, algo como que uma 
filosofia, porquanto deveria atingir intuitivamente, encarnada em formas
 sensíveis, aquele mesmo ideal inteligível que a filosofia atinge 
abstratamente, na sua pureza lógica, conceptual.
A Academia
A
 escola filosófica fundada por Platão, a Academia, sobreviveu-lhe por 
quase um milênio, até o VI século d.C. Costuma-se dividi-la - 
cronologicamente e logicamente - em antiga, média e nova. A antiga 
academia dura até o ano de 260 a.C., mais ou menos, isto é, quase um 
século. É governada por discípulos, reitores, sucessores de Platão. A 
ela pertencem homens insignes e de grande doutrina. Vai-se acentuando a 
importância da experiência, segundo os interesses do último Platão, como
 também uma tendência para uma sempre maior sistematização do pensamento
 platônico, provavelmente também pela influência de Aristóteles.
Segue-se
 na média academia, que toma uma orientação cética, sobretudo graças a 
Carnéades (213-128 a.C.). Finalmente, a nova academia volta ao antigo 
dogmatismo e, depois, orienta-se para o ecletismo, prevalecendo 
simpatias pitagóricas. Chegamos assim ao princípio da era vulgar. No 
entanto, a academia platônica sobreviverá ainda e tomará uma última 
forma e feição com o neoplatonismo. É este o último esforço grandioso do
 pensamento grego para resolver o problema filosófico, desenvolvendo o 
dualismo no panteísmo emanatista, e valorizando o elemento religioso 
positivo, que Platão já tinha valorizado no mito. 
Para Entender Platão
Platão,
 nascido em 428 a.C., é o primeiro grande filósofo da tradição ocidental
 a deixar uma obra escrita considerável. Todavia, a obra de Platão só 
pode ser entendida em função de outros pensamentos, anteriores e 
contemporâneos - de saída, o pensamento de seu mestre Sócrates, como 
também o pensamento dos filósofos anteriores, precisamente denominados 
pré-socráticos.
Tratemos,
 inicialmente, de evocar Pitágoras de Samos, que viveu no século V antes
 de nossa era e que sabemos ter sido um ilustre matemático. Na 
realidade, sua matemática desemboca numa metafísica, já que Pitágoras 
acredita que os números são o princípio e a chave de todo o universo; 
assim como a natureza do som é função do comprimento da corda que vibra,
 as aparências coloridas do universo, infinitamente diversas, dissimulam
 relações numéricas que constituem o fundo das coisas: ideia capital, 
que não só reencontramos em Platão, mas que está na origem da ciência 
moderna. Pitágoras (que teria inventado a palavra filosofia, amor à 
sabedoria), também é um místico, fundador de sociedades iniciáticas que 
visam à salvação de seus membros. A doutrina pitagórica da salvação está
 muito próxima dos mistérios do orfismo. Os pitagóricos acreditam na 
metempsicose. A alma, como punição de faltas passadas, torna-se 
prisioneira de um corpo (soma = sema; corpo = túmulo). A encarnação é 
tão somente um encarceramento provisório para a alma. A morte anuncia o 
renascimento num outro corpo até que a alma, simultaneamente purificada 
pela virtude e pela prática de ritos iniciáticos, mereça ser finalmente 
libertada de toda materialização.
Muitas
 outras doutrinas dessa época tentam explicar o mundo. Empédocles vê na 
matéria quatro elementos (terra, água, ar e fogo), enquanto o ódio que 
dissocia e o amor que unifica seriam os princípios motores do universo. 
Anaxágoras, que foi professor de Péricles, acha que os elementos 
constitutivos do mundo são ordenados por uma Inteligência cósmica, o 
Nous.
Duas
 doutrinas se opõem radicalmente entre si. Para Heráclito de Éfeso, tudo
 muda infinitivamente. "Planta rei", tudo flui: a morte sucede à vida, a
 noite ao dia, a vigília ao sono. "Não nos banhamos duas vezes no mesmo 
rio". O fluxo que faz do universo uma torrente é constantemente 
produzido e destruído por um Fogo cósmico, segundo um ritmo regular. A 
esta filosofia da mobilidade universal se opõem Parmênides e seu 
discípulo Zenão de Eléia: para eles, a mobilidade não passa de uma 
ilusão que engana nossos sentidos; o real é o Ser único, imóvel, eterno.
 "O Ser é, o não-ser não é"; o não-ser é a mudança (mudar é deixar de 
ser o que se é para ser o que não se é). Demócrito tenta conciliar as 
duas doutrinas por intermédio de sua filosofia de átomos, elementos 
eternos, cujas combinações mutáveis são infinitas.
Diremos
 uma palavra sobre os sofistas, cujo ceticismo é engendrado pela 
multiplicidade de doutrinas contraditórias, pelo abuso da retórica (um 
orador hábil pode demonstrar o que quiser) e, de um modo geral, pelo 
incremento do individualismo e decadência dos costumes após Péricles.
Um
 dos mais célebres, Protágoras de Abdera, dizia, segundo o testemunho de
 Platão, que "o homem é a medida de todas as coisas". Em outras 
palavras: não existe verdade absoluta, mas tão somente opiniões 
relativas ao homem (este vinho, delicioso para o amador, é amargo para o
 enfermo).
Platão,
 no entanto, só reencontra a filosofia a partir de preocupações de 
caráter político. É um jovem aristocrata que une aos seus dons 
intelectuais e físicos (duas vezes coroado nos jogos atléticos 
nacionais, é belo e vigoroso: apelidam-no "Platão" em virtude de seus 
ombros largos), o nascimento mais prestigioso: sua mãe descendia de 
Sólon, seus ancestrais paternos, do último rei de Atenas. Estava 
destinado, portanto, a uma brilhante carreira política. Mas Atenas, que 
por ocasião do nascimento de Platão se encontra no apogeu - com 
inigualável poder marítimo - , esboroa-se na época em que Platão atinge a
 idade adulta. Platão tinha quatro anos quando começaram as guerras do 
Peloponeso e trinta e um quando eles terminaram, com a capitulação de 
Atenas. A destruição da frota, a peste, o arrasamento dos famosos muros 
(uniam a cidade ao Pireu) pelos esparciatas vencedores, assinalam a 
importância da catástrofe. Platão vai sonhar com a reconstrução de uma 
cidade, mas uma cidade cuja potência é antes moral e espiritual do que 
material, uma cidade que seja a encarnação da Justiça.
Para
 compreender isto, recordemos o acontecimento fundamental da juventude 
de Platão, seu encontro com Sócrates. Sócrates tem sessenta e três anos 
quando, em 407, Platão a ele se une. Alain falou a propósito desse 
"choque dos contrários": Platão, aristocrata jovem e belo, torna-se 
discípulo de um cidadão de origem modesta, velho e muito feio (seus 
olhos salientes e seu nariz achatado são célebres). E isto é 
significativo e simbólico. A verdade e a justiça (das quais Sócrates 
será o símbolo) não possuem bom aspecto, pertencem a um mundo que não o 
das aparências. Na Atenas vencida, o jovem Platão é convocado por 
parentes e amigos a participar do governo autoritário dos Trinta; ele se
 retrai, porém, e constata que os Trinta acumulam injustiças e 
violências. Devemos agora, portanto, caracterizar os grandes traços da 
filosofia de Sócrates:
1.
 Sócrates não pretende, como Empédocles ou Heráclito, elaborar uma 
cosmologia; segundo ele, deve-se deixar aos deuses o cuidado de se 
ocupar com o universo; devemos nos interessar, de preferência, por 
aquilo que nos concerne diretamente. "Conhece-te a ti mesmo". Esta 
máxima gravada no frontão do templo de Delfos, é a palavra-chave do 
humanismo socrático.
2.
 Sócrates, todavia, não pretende ensinar coisa alguma sobre a natureza 
humana; não quer nos comunicar um saber que não possuiríamos. Ajuda-nos 
tão somente a refletir, isto é, a tomar consciência dos nossos próprios 
pensamentos, dos problemas que eles colocam. Muitas vezes, ele se 
comparava à sua mãe, que era parteira. Nada ensinava e limitava-se a 
partejar os espíritos, ajudá-los a trazer à luz o que já trazem em si 
mesmos. Tal é a maiêutica socrática.
3.
 Ao mesmo tempo que convida o interlocutor a tomar consciência de seu 
próprio pensamento, Sócrates fá-lo compreender que, na verdade, ignora o
 que acreditava saber. Tal é a ironia, que, ao pé da letra, significa a 
arte de interrogar. Sócrates, de fato, faz perguntas e sempre dá a 
impressão de buscar uma lição no interlocutor. Aborda com humildade 
fingida os sofistas inflados de falso-saber. E as perguntas feitas por 
Sócrates levam o interlocutor a descobrir as contradições de seus 
pensamentos e a profundidade de sua ignorância.
4.
 Na realidade, se Sócrates é o primeiro a reconhecer sua própria 
ignorância, ele funda todas as suas esperanças na verdade tão somente. 
Seu método é, antes de tudo, um esforço de definição. Por exemplo: 
partindo dos aspectos os mais diversos da justiça, ele procura 
depreender o conceito de justiça, a ideia geral que contém os caracteres
 constitutivos da justiça. Sócrates possui tal confiança no saber e na 
verdade que está firmemente persuadido que os injustos e os maus não 
passam de ignorantes. Se conhecessem verdadeiramente a justiça, eles a 
praticariam, pois ninguém é "maus voluntariamente". Segundo sua 
perspectiva racionalista, só há salvação pelo saber. O verdadeiro ponto 
de partida da filosofia de Platão é a morte de Sócrates em 399 a.C. 
Acontecimento político: é o partido popular, de novo no poder, que, por 
iniciativa de um certo Anytos (filho de um rico empreiteiro e antigo 
amigo dos Trinta, aos quais traiu para assumir a liderança do outro 
partido), condena Sócrates a beber a cicuta como corruptor da juventude e
 adversário dos deuses da cidade. Condenação injusta e escandalosa que 
exprime uma incompatibilidade trágica entre o poder político e a 
sabedoria do filósofo. Daí as resoluções que Platão nos apresenta na 
sétima carta. "Reconheço que todos os Estados atuais, sem exceção, são 
mal governados... É somente pela filosofia que se pode discernir todas 
as formas de justiça política e individual". Talvez a solução seja a 
evasão do filósofo que "foge daqui debaixo" para se refugiar na 
meditação pura (tal é o filósofo cujo retrato nos é traçado no Teeteto; 
filósofo puramente contemplativo que nem sabe onde se reúne o Conselho e
 cujo corpo está apenas presente na Cidade). Mas uma outra solução seria
 o próprio filósofo encarregar-se do governo da cidade (a Justiça 
reinará, diz Platão, no dia em que os filósofos forem reis ou no dia em 
que os reis forem filósofos).
Tal
 é o sonho que Platão tentaria realizar em Siracusa. Encontrara aí um 
discípulo estusiasta na pessoa de Dion, cunhado do novo tirano, Dionísio
 I. Este último, todavia, não se revelou muito adequado para se tornar o
 rei filósofo que Platão quisera fazer dele. Dionísio I prendeu Platão 
e, na ilha de Egina, fê-lo expor no mercado de escravos para ser 
vendido. Resgatado por Anikeris de Cítera por vinte minas, Platão 
retornou a Atenas.
É
 então que ele funda, aos quarenta anos, uma escola de filosofia à 
portas da cidade, perto de Colona, nos jardins de Academos. Devemos 
representar a Academia como uma espécie de Universidade onde se ensina 
matemáticas (não entra aqui quem não for geômetra), filosofia e a arte 
de governar as cidades segundo a justiça. O ensino esotérico (isto é, 
secreto, reservado aos iniciados) dado por Platão a seus discípulos só 
nos é conhecido atualmente pelas críticas de Aristóteles; restam-nos, 
porém, a obra escrita de Platão, seus diálogos célebres tais como o 
Górgias, o Fedro, o Fédon, o Banquete, a República, o Teeteto, o 
Sofista, o Político, o Parmênides, o Timeu, as Leis. Esses trabalhos 
esotéricos de Platão constituem a mais pura joia da filosofia de todos 
os tempos. Platão morre em 348 a.C.
Se
 quiséssemos resumir a filosofia de Platão em uma palavra, poderíamos 
dizer que ela é fundamentalmente um dualismo. Platão, de certo modo, 
reconcilia Parmênides e Heráclito ao admitir a existência de dois 
mundos: o mundo das ideias imutáveis, eternas, e o mundo das aparências 
sensíveis, perpetuamente mutáveis. Acrescenta-se que o mundo das Ideias 
é, no fundo, o único mundo verdadeiro. Platão concede ao mundo sensível 
uma certa realidade, mas ele só existe porque participa do mundo das 
ideias do qual é uma cópia ou, mais exatamente, uma sombra. Um belo 
efebo, por exemplo, só é belo porque participa da Beleza em si.
Podemos mostrar de duas maneiras que a intuição fundamental de Platão se prende ao ensinamento de Sócrates:
a)
 Recordemos o ensinamento socrático sobre a definição, sobre o conceito;
 para que haja, por exemplo, como Sócrates o estabeleceu, uma definição 
do homem em geral, uma essência universal do homem, é preciso que exista
 algo além dos homens particulares e diferentes entre si que nós 
reconhecemos, um outro mundo onde exista o Homem em si, a Justiça em si,
 isto é, as Ideias. Em suma, Platão dá realidade ao conceito socrático. A
 ideia platônica é uma promoção ontológica do conceito socrático.
b)
 Mas é sobretudo a vida e a morte de Sócrates que suscitam o idealismo 
platônico. Como diz muito bem André Bonnard, a cidade que condena 
Sócrates à morte, a cidade que vê triunfar a injustiça e a mentira é "um
 mundo ao inverso, um mundo de pernas para o ar". Desse modo, o 
idealismo platônico "traz a marca de um grave traumatismo. A morte de 
Sócrates feriu-o mortalmente. É no mundo invisível que a justiça e a 
verdade triunfam". E Sócrates, pela tranqüilidade quase contente de sua 
morte, atesta a existência desse mundo invisível, mostra que, para ele, 
as Ideias contam mais que a vida.
Os
 temas principais do platonismo podem ligar-se à distinção entre o mundo
 das Ideias eternas e o mundo das aparências mutáveis. A ascensão 
dialética, por exemplo, é o itinerário pelo qual nos levamos do mundo 
sensível ao mundo das Ideias: no mais baixo grau, as simples impressões 
sensíveis (eikasia), um pouco mais acima, as opiniões estabelecidas 
(pistis), em seguida, o pensamento discursivo (dianoia) que constrói o 
raciocínio partindo de figuras, como fazem os geômetras, e, finalmente, 
no mais alto grau, o pensamento intuitivo, a iluminação direta pela 
Idéia (noesis).
A
 teoria platônica da alma está ligada à doutrina das Ideias. As almas 
outrora contemplaram às Ideias à vontade. Depois, por punição de alguma 
falta, segundo a doutrina órfico-pitagórica, elas foram aprisionadas no 
corpo. Todavia, elas continuam capazes de reminiscência, uma vez que 
guardaram uma lembrança obscura que, no entanto, pode ser redespertada 
de seu antigo contato com as Ideias. Assim, o jovem escravo que Sócrates
 interroga no Mênon descobre propriedades geométricas quase sem ajuda. 
Platão pensa igualmente que a emoção amorosa, a emoção que rebata a alma
 diante da Beleza - de todas as ideias a mais fácil de reconhecer - é o 
meio de uma conversão dialética: o amor por um belo corpo, em seguida 
pelos belos corpos, depois pelas belas almas e pelas belas virtudes 
conduz à redescoberta do Belo em si (leia-se o Banquete).
À
 doutrina das Ideias também se correlaciona a esperança da imortalidade 
da alma, "esse belo risco a ser corrido". Uma vez que a alma é feita 
para as Ideias - visto que sua união com o corpo é acidental e 
monstruosa - por que não seria eterna como as Ideias que ela tem por 
vocação contemplar?
Do
 mesmo modo, uma vez que as Ideias constituem absolutos referenciais - 
não o homem, mas Deus é que é a medida de todas as coisas, objeta Platão
 a Protágoras - é preciso renunciar do oportunismo e à imoralidade dos 
sofistas. Platão sustenta contra Cálicles (no Górgias), contra Trasímaco
 e Gláucon (na República) o valor absoluto da Ideia de justiça. A 
justiça é a hierarquia harmônica das três partes da alma - a 
sensibilidade, a vontade e o espírito. Ela também se encontra em cada 
uma das virtudes particulares: a temperança nada mais é que uma 
sensibilidade regulamentada segundo a justiça; a coragem é a justiça da 
vontade e a sabedoria é a justiça do espírito.
A
 justiça política é uma harmonia semelhante à justiça do indivíduo, mas 
"escritas em caracteres mais fortes" na escala do Estado... A política 
de Platão distingue, à imagem de todas as sociedades indo-européias 
primitivas, três classes sociais: os artesãos dos quais a Justiça exige a
 temperança, os militares nos quais a Justiça será coragem, os chefes 
cuja Justiça é, antes de tudo, Sabedoria e que são filósofos longamente 
instruídos. Entre todas as formas de governo, Platão prefere a 
aristocracia e, nele, é preciso tomar a palavra em seu sentido 
etimológico: governo dos melhores.
Finalmente, podemos ligar à distinção dos dois mundos algumas observações sobre o mito platônico:
a)
 O mito, procedimento pedagógico paradoxal, traduz uma espécie de 
narração poética legendária, isto é, numa linguagem de imagens uma 
verdade filosófica estranha ao mundo sensível! É o mundo das Ideias 
eternas transposto em imagens sensíveis, sugerido pelo mundo das 
imagens!
b)
 O mito é o único meio de exposição para os problemas de origem 
(acontecimentos sem testemunhos) e dos fins últimos (que ainda não 
existem!), pois a inteligência abstrata só compreende o eterno e não 
pode bastar para evocar o que pertence à história.
c) O mito indica que o pensamento filosófico vem se abeberar nas fontes das crenças religiosas tradicionais.
d)
 Finalmente, o mito ressalta as relações que, segundo Platão, existem 
entre a poesia e a verdade. A poesia mítica é uma mensagem metafísica, o
 belo não é senão o "esplendor do verdadeiro" e a arte está em segundo 
lugar em relação à filosofia. 
ARISTÓTELES
A Vida e as Obras
Este
 grande filósofo grego, filho de Nicômaco, médico de Amintas, rei da 
Macedônia, nasceu em Estagira, colônia grega da Trácia, no litoral 
setentrional do mar Egeu, em 384 a.C. Aos dezoito anos, em 367, foi para
 Atenas e ingressou na academia platônica, onde ficou por vinte anos, 
até à morte do Mestre. Nesse período estudou também os filósofos 
pré-platônicos, que lhe foram úteis na construção do seu grande sistema.
Em
 343 foi convidado pelo Rei Filipe para a corte de Macedônia, como 
preceptor do Príncipe Alexandre, então jovem de treze anos. Aí ficou 
três anos, até à famosa expedição asiática, conseguindo um êxito na sua 
missão educativo-política, que Platão não conseguiu, por certo, em 
Siracusa. De volta a Atenas, em 335, treze anos depois da morte de 
Platão, Aristóteles fundava, perto do templo de Apolo Lício, a sua 
escola. Daí o nome de Liceu dado à sua escola, também chamada 
peripatética devido ao costume de dar lições, em amena palestra, 
passeando nos umbrosos caminhos do ginásio de Apolo. Esta escola seria a
 grande rival e a verdadeira herdeira da velha e gloriosa academia 
platônica. Morto Alexandre em 323, desfez-se politicamente o seu grande 
império e despertaram-se em Atenas os desejos de independência, 
estourando uma reação nacional, chefiada por Demóstenes. Aristóteles, 
malvisto pelos atenienses, foi acusado de ateísmo. Preveniu ele a 
condenação, retirando-se voluntariamente para Eubéia, Aristóteles 
faleceu, após enfermidade, no ano seguinte, no verão de 322. Tinha pouco
 mais de 60 anos de idade. A respeito docaráter de Aristóteles, 
inteiramente recolhido na elaboração crítica do seu sistema filosófico, 
sem se deixar distrair por motivos práticos ou sentimentais, temos 
naturalmente muito menos a revelar do que em torno do caráter de Platão,
 em que, ao contrário, os motivos políticos, éticos, estéticos e 
místicos tiveram grande influência. Do diferente caráter dos dois 
filósofos, dependem também as vicissitudes exteriores das duas vidas, 
mais uniforme e linear a de Aristóteles, variada e romanesca a de 
Platão. Aristóteles foi essencialmente um homem de cultura, de estudo, 
de pesquisas, de pensamento, que se foi isolando da vida prática, social
 e política, para se dedicar à investigação científica. A atividade 
literária de Aristóteles foi vasta e intensa, como a sua cultura e seu 
gênio universal. "Assimilou Aristóteles escreve magistralmente Leonel 
Franca todos os conhecimentos anteriores e acrescentou-lhes o trabalho 
próprio, fruto de muita observação e de profundas meditações. Escreveu 
sobre todas as ciências, constituindo algumas desde os primeiros 
fundamentos, organizando outras em corpo coerente de doutrinas e sobre 
todas espalhando as luzes de sua admirável inteligência. Não lhe faltou 
nenhum dos dotes e requisitos que constituem o verdadeiro filósofo: 
profundidade e firmeza de inteligência, agudeza de penetração, vigor de 
raciocínio, poder admirável de síntese, faculdade de criação e invenção 
aliados a uma vasta erudição histórica e universalidade de conhecimentos
 científicos. O grande estagirita explorou o mundo do pensamento em 
todas as suas direções. Pelo elenco dos principais escritos que dele 
ainda nos restam, poder-se-á avaliar a sua prodigiosa atividade 
literária". A primeira edição completa das obras de Aristóteles é a de 
Andronico de Rodes pela metade do último século a.C. substancialmente 
autêntica, salvo uns apócrifos e umas interpolações. Aqui classificamos 
as obras doutrinais de Aristóteles do modo seguinte, tendo presente a 
edição de Andronico de Rodes.
I.
 Escritos lógicos: cujo conjunto foi denominado Órganon mais tarde, não 
por Aristóteles. O nome, entretanto, corresponde muito bem à intenção do
 autor, que considerava a lógica instrumento da ciência.
II.
 Escritos sobre a física: abrangendo a hodierna cosmologia e a 
antropologia, e pertencentes à filosofia teorética, juntamente com a 
metafísica.
III.
 Escritos metafísicos: a Metafísica famosa, em catorze livros. É uma 
compilação feita depois da morte de Aristóteles mediante seus 
apontamentos manuscritos, referentes à metafísica geral e à teologia. O 
nome de metafísica é devido ao lugar que ela ocupa na coleção de 
Andrônico, que a colocou depois da física.
IV.
 Escritos morais e políticos: a Ética a Nicômaco, em dez livros, 
provavelmente publicada por Nicômaco, seu filho, ao qual é dedicada; a 
Ética a Eudemo, inacabada, refazimento da ética de Aristóteles, devido a
 Eudemo; a Grande Ética, compêndio das duas precedentes, em especial da 
segunda; a Política, em oito livros, incompleta.
V.
 Escritos retóricos e poéticos: a Retórica, em três livros; a Poética, 
em dois livros, que, no seu estado atual, é apenas uma parte da obra de 
Aristóteles. As obras de Aristóteles as doutrinas que nos restam - 
manifestam um grande rigor científico, sem enfeites míticos ou poéticos,
 exposição e expressão breve e aguda, clara e ordenada, perfeição 
maravilhosa da terminologia filosófica, de que foi ele o criador. 
O Pensamento: A Gnosiologia
Segundo
 Aristóteles, a filosofia é essencialmente teorética: deve decifrar o 
enigma do universo, em face do qual a atitude inicial do espírito é o 
assombro do mistério. O seu problema fundamental é o problema do ser, 
não o problema da vida. O objeto próprio da filosofia, em que está a 
solução do seu problema, são as essências imutáveis e a razão última das
 coisas, isto é, o universal e o necessário, as formas e suas relações. 
Entretanto, as formas são imanentes na experiência, nos indivíduos, de 
que constituem a essência. A filosofia aristotélica é, portanto, 
conceptual como a de Platão mas parte da experiência; é dedutiva, mas o 
ponto de partida da dedução é tirado - mediante o intelecto da 
experiência. A filosofia, pois, segundo Aristóteles, dividir-se-ia em 
teorética, prática e poética, abrangendo, destarte, todo o saber humano,
 racional. A teorética, por sua vez, divide-se emfísica, matemática e 
filosofia primeira(metafísica e teologia); a filosofia prática divide-se
 eméticae política; a poética em estética e técnica. Aristóteles é o 
criador da lógica, como ciência especial, sobre a base 
socrático-platônica; é denominada por ele analítica e representa a 
metodologia científica. Trata Aristóteles os problemas lógicos e 
gnosiológicos no conjunto daqueles escritos que tomaram mais tarde o 
nome de Órganon. Limitar-nos-emos mais especialmente aos problemas 
gerais da lógica de Aristóteles, porque aí está a suagnosiologia. Foi 
dito que, em geral, a ciência, a filosofia - conforme Aristóteles, bem 
como segundo Platão - tem como objeto o universal e o necessário; pois 
não pode haver ciência em torno do individual e do contingente, 
conhecidos sensivelmente. Sob o ponto de vista metafísico, o objeto da 
ciência aristotélica é aforma, como ideia era o objeto da ciência 
platônica. A ciência platônica e aristotélica são, portanto, ambas 
objetivas, realistas: tudo que se pode aprender precede a sensação e é 
independente dela. No sentido estrito, a filosofia aristotélica é 
dedução do particular pelo universal, explicação do condicionado 
mediante a condição, porquanto o primeiro elemento depende do segundo. 
Também aqui se segue a ordem da realidade, onde o fenômeno particular 
depende da lei universal e o efeito da causa. Objeto essencial da lógica
 aristotélica é precisamente este processo de derivação ideal, que 
corresponde a uma derivação real. A lógica aristotélica, portanto, bem 
como a platônica, é essencialmente dedutiva, demonstrativa, apodíctica. O
 seu processo característico, clássico, é o silogismo. Os elementos 
primeiros, os princípios supremos, as verdades evidentes, consoante 
Platão, são fruto de uma visão imediata, intuição intelectual, em 
relação com a sua doutrina do contato imediato da alma com as ideias - 
reminiscência. Segundo Aristóteles, entretanto, de cujo sistema é banida
 toda forma de inatismo, também os elementos primeiros do conhecimento -
 conceito e juízos - devem ser, de um modo e de outro, tirados da 
experiência, da representação sensível, cuja verdade imediata ele 
defende, porquanto os sentidos por si nunca nos enganam. O erro começa 
de uma falsa elaboração dos dados dos sentidos: a sensação, como o 
conceito, é sempre verdadeira. Por certo, metafisicamente, 
ontologicamente, o universal, o necessário, o inteligível, é anterior ao
 particular, ao contigente, ao sensível: mas, gnosiologicamente, 
psicologicamente existe primeiro o particular, o contingente, o sensível,
 que constituem precisamente o objeto próprio do nosso conhecimento 
sensível, que é o nosso primeiro conhecimento. Assim sendo, 
compreende-se que Aristóteles, ao lado e em consequência da doutrina de 
dedução, seja constrangido a elaborar, na lógica, uma doutrina da 
indução. Por certo, ela não está efetivamente acabada, mas pode-se 
integrar logicamente segundo o espírito profundo da sua filosofia. 
Quanto aos elementos primeiros do conhecimento racional, a saber, os 
conceitos, a coisa parece simples: a indução nada mais é que a abstração
 do conceito, do inteligível, da representação sensível, isto é, a 
"desindividualização" do universal do particular, em que o universal é 
imanente. A formação do conceito é, a posteriori, tirada da experiência.
 Quanto ao juízo, entretanto, em que unicamente temos ou não temos a 
verdade, e que é o elemento constitutivo da ciência, a coisa parece mais
 complicada. Como é que se formam os princípios da demonstração, os 
juízos imediatamente evidentes, donde temos a ciência? Aristóteles 
reconhece que é impossível uma indução completa, isto é, uma resenha de 
todos os casos os fenômenos particulares para poder tirar com certeza 
absoluta leis universais abrangendo todas as essências. Então só resta 
possível uma indução incompleta, mas certíssima, no sentido de que os 
elementos do juízo os conceitos são tirados da experiência, a 
posteriori, seu nexo, porém, é a priori, analítico, colhido 
imediatamente pelo intelecto humano mediante a sua evidência, 
necessidade objetiva.
Filosofia de Aristóteles
Partindo
 como Platão do mesmo problema acerca do valor objetivo dos conceitos, 
mas abandonando a solução do mestre, Aristóteles constrói um sistema 
inteiramente original. Os caracteres desta grande síntese são:
1.
 Observação fiel da natureza - Platão, idealista, rejeitara a 
experiência como fonte de conhecimento certo. Aristóteles, mais 
positivo, toma sempre o fato como ponto de partida de suas teorias, 
buscando na realidade um apoio sólido às suas mais elevadas especulações
 metafísicas. 
2.
 Rigor no método - Depois de estudas as leis do pensamento, o processo 
dedutivo e indutivo aplica-os, com rara habilidade, em todas as suas 
obras, substituindo à linguagem imaginosa e figurada de Platão, em 
estilo lapidar e conciso e criando uma terminologia filosófica de 
precisão admirável. Pode considerar-se como o autor da metodologia e 
tecnologia científicas. Geralmente, no estudo de uma questão, 
Aristóteles procede por partes: 
a) começa a definir-lhe o objeto;
b)passa a enumerar-lhes as soluções históricas;
c)propõe depois as dúvidas;
d) indica, em seguida, a própria solução;
e) refuta, por último, as sentenças contrárias.
a) começa a definir-lhe o objeto;
b)passa a enumerar-lhes as soluções históricas;
c)propõe depois as dúvidas;
d) indica, em seguida, a própria solução;
e) refuta, por último, as sentenças contrárias.
3.
 Unidade do conjunto - Sua vasta obra filosófica constitui um verdadeiro
 sistema, uma verdadeira síntese. Todas as partes se compõem, se 
correspondem, se confirmam. 
A Teologia
Objeto
 próprio da teologia é o primeiro motor imóvel, ato puro, o pensamento 
do pensamento, isto é, Deus, a quem Aristóteles chega através de uma 
sólida demonstração, baseada sobre a imediata experiência, indiscutível,
 realidade do vir-a-ser, da passagem da potência ao ato. Este vir-a-ser,
 passagem da potência ao ato, requer finalmente um não-vir-a-ser, motor 
imóvel, um motor já em ato, um ato puro enfim, pois, de outra forma 
teria que ser movido por sua vez. A necessidade deste primeiro motor 
imóvel não é absolutamente excluída pela eternidade do vir-a-ser, do 
movimento, do mundo. Com efeito, mesmo admitindo que o mundo seja 
eterno, isto é, que não tem princípio e fim no tempo, enquanto é 
vir-a-ser, passagem da potência ao ato, fica eternamente inexplicável, 
contraditório, sem um primeiro motor imóvel, origem extra-temporal, 
causa absoluta, razão metafísica de todo devir. Deus, o real puro, é 
aquilo que move sem ser movido; a matéria, o possível puro, é aquilo que
 é movido, sem se mover a si mesmo.
Da
 análise do conceito de Deus, concebido como primeiro motor imóvel, 
conquistado através do precedente raciocínio, Aristóteles, pode deduzir 
logicamente a natureza essencial de Deus, concebido, antes de tudo, como
 ato puro, e, consequentemente, como pensamento de si mesmo. Deus é 
unicamente pensamento, atividade teorética, no dizer de Aristóteles, 
enquanto qualquer outra atividade teria fim extrínseco, incompatível com
 o ser perfeito, auto-suficiente. Se o agir, o querer têm objeto diverso
 do sujeito agente e "querente", Deus não pode agir e querer, mas 
unicamente conhecer e pensar, conhecer a si próprio e pensar em si 
mesmo. Deus é, portanto, pensamento de pensamento, pensamento de si, que
 é pensamento puro. E nesta autocontemplação imutável e ativa, está a 
beatitude divina.
Se
 Deus é mera atividade teorética, tendo como objeto unicamente a própria
 perfeição, não conhece o mundo imperfeito, e menos ainda opera sobre 
ele. Deus não atua sobre o mundo, voltando-se para ele, com o pensamento
 e a vontade; mas unicamente como o fim último, atraente, isto é, como 
causa final, e, por consequência, e só assim, como causa eficiente e 
formal (exemplar). De Deus depende a ordem, a vida, a racionalidade do 
mundo; ele, porém, não é criador, nem providência do mundo. Em 
Aristóteles o pensamento grego conquista logicamente a transcendência de
 Deus; mas, no mesmo tempo, permanece o dualismo, que vem anular aquele 
mesmo Absoluto a que logicamente chegara, para dar uma explicação 
filosófica da relatividade do mundo pondo ao seu lado esta realidade 
independente dele.
A Moral
Aristóteles
 trata da moral em três Éticas, de que se falou quando das obras dele. 
Consoante sua doutrina metafísica fundamental, todo ser tende 
necessariamente à realização da sua natureza, à atualização plena da sua
 forma: e nisto está o seu fim, o seu bem, a sua felicidade, e, por 
consequência, a sua lei. Visto ser a razão a essência característica do 
homem, realiza ele a sua natureza vivendo racionalmente e senso disto 
consciente. E assim consegue ele a felicidade e a virtude, isto é, 
consegue a felicidade mediante a virtude, que é precisamente uma 
atividade conforme à razão, isto é, uma atividade que pressupõe o 
conhecimento racional. Logo, o fim do homem é a felicidade, a que é 
necessária à virtude, e a esta é necessária a razão. A característica 
fundamental da moral aristotélica é, portanto, o racionalismo, visto ser
 a virtude ação consciente segundo a razão, que exige o conhecimento 
absoluto, metafísico, da natureza e do universo, natureza segundo a qual
 e na qual o homem deve operar.
As
 virtudes éticas, morais, não são mera atividade racional, como as 
virtudes intelectuais, teoréticas; mas implicam, por natureza, um 
elemento sentimental, afetivo, passional, que deve ser governado pela 
razão, e não pode, todavia, ser completamente resolvido na razão. A 
razão aristotélica governa, domina as paixões, não as aniquila e 
destrói, como queria o ascetismo platônico. A virtude ética não é, pois,
 razão pura, mas uma aplicação da razão; não é unicamente ciência, mas 
uma ação com ciência.
Uma
 doutrina aristotélica a respeito da virtude doutrina que teve muita 
doutrina prática, popular, embora se apresente especulativamente assaz 
discutível é aquela pela qual a virtude é precisamente concebida como um
 justo meio entre dois extremos, isto é, entre duas paixões opostas: 
porquanto o sentido poderia esmagar a razão ou não lhe dar forças 
suficientes. Naturalmente, este justo meio, na ação de um homem, não é 
abstrato, igual para todos e sempre; mas concreto, relativo a cada qual,
 e variável conforme as circunstâncias, as diversas paixões 
predominantes dos vários indivíduos.
Pelo
 que diz respeito à virtude, tem, ao contrário, certamente, maior valor 
uma outra doutrina aristotélica: precisamente a da virtude concebida 
como hábito racional. Se a virtude é, fundamentalmente, uma atividade 
segundo a razão, mais precisamente é ela um hábito segundo a razão, um 
costume moral, uma disposição constante, reta, da vontade, isto é, a 
virtude não é inata, como não é inata a ciência; mas adquiri-se mediante
 a ação, a prática, o exercício e, uma vez adquirida, estabiliza-se, 
mecaniza-se; torna-se quase uma segunda natureza e, logo, torna-se de 
fácil execução - como o vício.
Como
 já foi mencionado, Aristóteles distingue duas categorias fundamentais 
de virtudes: as éticas, que constituem propriamente o objeto da moral, e
 as dianoéticas, que a transcendem. É uma distinção e uma hierarquia, 
que têm uma importância essencial em relação a toda a filosofia e 
especialmente à moral. As virtudes intelectuais, teoréticas, 
contemplativas, são superiores às virtudes éticas, práticas, ativas. 
Noutras palavras, Aristóteles sustenta o primado do conhecimento, do 
intelecto, da filosofia, sobre a ação, a vontade, a política.
A Política
A
 política aristotélica é essencialmente unida à moral, porque o fim 
último do estado é a virtude, isto é, a formação moral dos cidadãos e o 
conjunto dos meios necessários para isso. O estado é um organismo moral,
 condição e complemento da atividade moral individual, e fundamento 
primeiro da suprema atividade contemplativa. A política, contudo, é 
distinta da moral, porquanto esta tem como objetivo o indivíduo, aquela a
 coletividade. A ética é a doutrina moral individual, a política é a 
doutrina moral social. Desta ciência trata Aristóteles precisamente na 
Política, de que acima se falou.
O
 estado, então, é superior ao indivíduo, porquanto a coletividade é 
superior ao indivíduo, o bem comum superior ao bem particular. 
Unicamente no estado efetua-se a satisfação de todas as necessidades, 
pois o homem, sendo naturalmente animal social, político, não pode 
realizar a sua perfeição sem a sociedade do estado.
Visto
 que o estado se compõe de uma comunidade de famílias, assim como estas 
se compõem de muitos indivíduos, antes de tratar propriamente do estado 
será mister falar da família, que precede cronologicamente o estado, 
como as partes precedem o todo. Segundo Aristóteles, a família compõe-se
 de quatro elementos: os filhos, a mulher, os bens, os escravos; além, 
naturalmente, do chefe a que pertence a direção da família. Deve ele 
guiar os filhos e as mulheres, em razão da imperfeição destes. Deve 
fazer frutificar seus bens, porquanto a família, além de um fim 
educativo, tem também um fim econômico. E, como ao estado, é-lhe 
essencial a propriedade, pois os homens têm necessidades materiais. No 
entanto, para que a propriedade seja produtora, são necessários 
instrumentos inanimados e animados; estes últimos seriam os escravos.
Aristóteles
 não nega a natureza humana ao escravo; mas constata que na sociedade 
são necessários também os trabalhos materiais, que exigem indivíduos 
particulares, a que fica assim tirada fatalmente a possibilidade de 
providenciar a cultura da alma, visto ser necessário, para tanto, tempo e
 liberdade, bem como aptas qualidades espirituais, excluídas pelas 
próprias características qualidades materiais de tais indivíduos. Daí a 
escravidão.
Vejamos,
 agora, o estado em particular. O estado surge, pelo fato de ser o homem 
um animal naturalmente social, político. O estado provê, inicialmente, a
 satisfação daquelas necessidades materiais, negativas e positivas, 
defesa e segurança, conservação e engrandecimento, de outro modo 
irrealizáveis. Mas o seu fim essencial é espiritual, isto é, deve 
promover a virtude e, consequentemente, a felicidade dos súditos 
mediante a ciência.
Compreende-se,
 então, como seja tarefa essencial do estado a educação, que deve 
desenvolver harmônica e hierarquicamente todas as faculdades: antes de 
tudo as espirituais, intelectuais e, subordinadamente, as materiais, 
físicas. O fim da educação é formar homens mediante as artes liberais, 
importantíssimas a poesia e a música, e não máquinas, mediante um 
treinamento profissional. Eis porque Aristóteles, como Platão, condena o
 estado que, ao invés de se preocupar com uma pacífica educação 
científica e moral, visa a conquista e a guerra. E critica, dessa forma,
 a educação militar de Esparta, que faz da guerra a tarefa precípua do 
estado, e põe a conquista acima da virtude, enquanto a guerra, como o 
trabalho, são apenas meios para a paz e o lazer sapiente.
Não
 obstante a sua concepção ética do estado, Aristóteles, diversamente de 
Platão, salva o direito privado, a propriedade particular e a família. O
 comunismo como resolução total dos indivíduos e dos valores no estado é
 fantástico e irrealizável. O estado não é uma unidade substancial, e 
sim uma síntese de indivíduos substancialmente distintos. Se se quiser a
 unidade absoluta, será mister reduzir o estado à família e a família ao
 indivíduo; só este último possui aquela unidade substancial que falta 
aos dois precedentes. Reconhece Aristóteles a divisão platônica das 
castas, e, precisamente, duas classes reconhece: a dos homens livres, 
possuidores, isto é, a dos cidadãos e a dos escravos, dos trabalhadores,
 sem direitos políticos.
Quanto
 à forma exterior do estado, Aristóteles distingue três principais: a 
monarquia, que é o governo de um só, cujo caráter e valor estão na 
unidade, e cuja degeneração é a tirania; a aristocracia, que é o governo
 de poucos, cujo caráter e valor estão na qualidade, e cuja degeneração é
 a oligarquia; a democracia, que é o governo de muitos, cujo caráter e 
valor estão na liberdade, e cuja degeneração é a demagogia. As 
preferências de Aristóteles vão para uma forma de república 
democrático-intelectual, a forma de governo clássica da Grécia, 
particularmente de Atenas. No entanto, com o seu profundo realismo, 
reconhece Aristóteles que a melhor forma de governo não é abstrata, e 
sim concreta: deve ser relativa, acomodada às situações históricas, às 
circunstâncias de um determinado povo. De qualquer maneira a condição 
indispensável para uma boa constituição, é que o fim da atividade 
estatal deve ser o bem comum e não a vantagem de quem governa 
despoticamente.
A Religião
Com
 Aristóteles afirma-se o teísmo do ato puro. No entanto, este Deus, pelo
 seu efetivo isolamento do mundo, que ele não conhece, não cria, não 
governa, não está em condições de se tornar objeto de religião, mais do 
que as transcendentes ideias platônicas. E não fica nenhum outro objeto 
religioso. Também Aristóteles, como Platão, se exclui filosoficamente o 
antropomorfismo, não exclui uma espécie de politeísmo, e admite, ao lado
 do Ato Puro e a ele subordinado, os deuses astrais, isto é, admite que 
os corpos celestes são animados por espíritos racionais. Entretanto, 
esses seres divinos não parecem e não podem ter função religiosa e sem 
física.
Não
 obstante esta concepção filosófica da divindade, Aristóteles admite a 
religião positiva do povo, até sem correção alguma. Explica e justifica a
 religião positiva, tradicional, mítica, como obra política para 
moralizar o povo, e como fruto da tendência humana para as 
representações antropomórficas; e não diz que ela teria um fundamento 
racional na verdade filosófica da existência da divindade, a que o homem
 se teria facilmente elevado através do espetáculo da ordem celeste.
Aristóteles
 como Platão considera a arte como imitação, de conformidade com o 
fundamental realismo grego. Não, porém, imitação de uma imitação, como é
 o fenômeno, o sensível, platônicos; e sim imitação direta da própria 
ideia, do inteligível imanente no sensível, imitação da forma imanente 
na matéria. Na arte, esse inteligível, universal é encarnado, 
concretizado num sensível, num particular e, destarte, tornando 
intuitivo, graças ao artista. Por isso, Aristóteles considera a arte a 
poesia de Homero que tem por conteúdo o universal, o imutável, ainda que
 encarnado fantasticamente num particular, como superior à história e 
mais filosófica do que a história de Heródoto que tem como objeto o 
particular, o mutável, seja embora real. O objeto da arte não é o que 
aconteceu uma vez como é o caso da história , mas o que por natureza 
deve, necessária e universalmente, acontecer. Deste seu conteúdo 
inteligível, universal, depende a eficácia espiritual pedagógica, 
purificadora da arte.
Se
 bem que a arte seja imitação da realidade no seu elemento essencial, a 
forma, o inteligível, este inteligível recebe como que uma nova vida 
através da fantasia criadora do artista, isto precisamente porque o 
inteligível, o universal, deve ser encarnado, concretizado pelo artista 
num sensível, num particular. As leis da obra de arte serão, portanto, 
além de imitação do universal verossimilhança e necessidade coerência 
interior dos elementos da representação artística, íntimo sentimento do 
conteúdo, evidência e vivacidade de expressão. A arte é, pois, produção 
mediante a imitação; e a diferença entre as várias artes é estabelecida 
com base no objeto ou no instrumento de tal imitação.
A Metafísica
A
 metafísica aristotélica é "a ciência do ser como ser, ou dos princípios
 e das causas do ser e de seus atributos essenciais". Ela abrange ainda o
 ser imóvel e incorpóreo, princípio dos movimentos e das formas do 
mundo, bem como o mundo mutável e material, mas em seus aspectos 
universais e necessários. Exporemos portanto, antes de tudo, as questões
 gerais da metafísica, para depois chegarmos àquela que foi chamada, 
mais tarde, metafísica especial; tem esta como objeto o mundo que 
vem-a-ser - natureza e homem - e culmina no que não pode vir-a-ser, isto
 é, Deus. Podem-se reduzir fundamentalmente a quatro as questões gerais 
da metafísica aristotélica: potência e ato, matéria e forma, particular e
 universal, movido e motor. A primeira e a última abraçam todo o ser, a 
segunda e a terceira todo o ser em que está presente a matéria.
I.
 A doutrina da potência e do ato é fundamental na metafísica 
aristotélica: potência significa possibilidade, capacidade de ser, 
não-ser atual; e ato significa realidade, perfeição, ser efetivo. Todo 
ser, que não seja o Ser perfeitíssimo, é portanto uma síntese - um 
sínolo - de potência e de ato, em diversas proporções, conforme o grau 
de perfeição, de realidade dos vários seres. Um ser desenvolve-se, 
aperfeiçoa-se, passando da potência ao ato; esta passagem da potência ao
 ato é atualização de uma possibilidade, de uma potencialidade anterior.
 Esta doutrina fundamental da potência e do ato é aplicada - e 
desenvolvida - por Aristóteles especialmente quando da doutrina da 
matéria e da forma, que representam a potência e o ato no mundo, na 
natureza em que vivemos. Desta doutrina da matéria e da forma, vamos 
logo falar.
II.
 Aristóteles não nega o vir-a-ser de Heráclito, nem o ser de Parmênides,
 mas une-os em uma síntese conclusiva, já iniciada pelos últimos 
pré-socráticos e grandemente aperfeiçoada por Demócrito e Platão. 
Segundo Aristóteles, a mudança, que é intuitiva, pressupõe uma realidade
 imutável, que é de duas espécies. Um substrato comum, elemento imutável
 da mudança, em que a mudança se realiza; e as determinações que se 
realizam neste substrato, a essência, a natureza que ele assume. O 
primeiro elemento é chamado matéria (prima), o segundo forma 
(substancial). O primeiro é potência, possibilidade de assumir várias 
formas, imperfeição; o segundo é atualidade - realizadora, 
especificadora da matéria - , perfeição. A síntese - o sinolo - da 
matéria e da forma constitui a substância, e esta, por sua vez, é o 
substrato imutável, em que se sucedem os acidentes, as qualidades 
acidentais. A mudança, portanto, consiste ou na sucessão de várias 
formas na mesma essência, forma concretizada da matéria, que constitui 
precisamente a substância.
A
 matéria sem forma, a pura matéria, chamada matéria-prima, é um mero 
possível, não existe por si, é um absolutamente interminado, em que a 
forma introduz as determinações. A matéria aristotélica, porém, não é o 
puro não-ser de Platão, mero princípio de decadência, pois ela é também 
condição indispensável para concretizar a forma, ingrediente necessário 
para a existência da realidade material, causa concomitante de todos os 
seres reais.
Então
 não existe, propriamente, a forma sem a matéria, ainda que a forma seja
 princípio de atuação e determinação da própria matéria. Com respeito à 
matéria, a forma é, portanto, princípio de ordem e finalidade, racional,
 inteligível. Diversamente da ideia platônica, a forma aristotélica não é
 separada da matéria, e sim imanente e operante nela. Ao contrário, as 
formas aristotélicas são universais, imutáveis, eternas, como as ideias 
platônicas.
Os
 elementos constitutivos da realidade são, portanto, a forma e a 
matéria. A realidade, porém, é composta de indivíduos, substâncias, que 
são uma síntese - umsínolo - de matéria e forma. Por consequência, estes
 dois princípios não são suficientes para explicar o surgir dos 
indivíduos e das substâncias que não podem ser atuados - bem como a 
matéria não pode ser atuada - a não ser por um outro indivíduo, isto é, 
por uma substância em ato. Daí a necessidade de um terceiro princípio, a
 causa eficiente, para poder explicar a realidade efetiva das coisas. A 
causa eficiente, por sua vez, deve operar para um fim, que é 
precisamente a síntese da forma e da matéria, produzindo esta síntese o 
indivíduo. Daí uma quarta causa, a causa final, que dirige a causa 
eficiente para a atualização da matéria mediante a forma.
III.
 Mediante a doutrina da matéria e da forma, Aristóteles explica o 
indivíduo, a substância física, a única realidade efetiva no mundo, que é
 precisamente síntese - sínolo - de matéria e de forma. A essência - 
igual em todos os indivíduos de uma mesma espécie - deriva da forma; a 
individualidade, pela qual toda substância é original e se diferencia de
 todas as demais, depende da matéria. O indivíduo é, portanto, potência 
realizada, matéria enformada, universal particularizado. Mediante esta 
doutrina é explicado o problema do universal e do particular, que tanto 
atormenta Platão; Aristóteles faz o primeiro - a ideia - imanente no 
segundo - a matéria, depois de ter eficazmente criticado o dualismo 
platônico, que fazia os dois elementos transcendentes e exteriores um ao
 outro.
IV.
 Da relação entre a potência e o ato, entre a matéria e a forma, surge o
 movimento, a mudança, o vir-a-ser, a que é submetido tudo que tem 
matéria, potência. A mudança é, portanto, a realização do possível. Esta
 realização do possível, porém, pode ser levada a efeito unicamente por 
um ser que já está em ato, que possui já o que a coisa movida deve 
vir-a-ser, visto ser impossível que o menos produza o mais, o imperfeito
 o perfeito, a potência o ato, mas vice-versa. Mesmo que um ser se mova a
 si mesmo, aquilo que move deve ser diverso daquilo que é movido, deve 
ser composto de um motor e de uma coisa movida. Por exemplo, a alma é 
que move o corpo. O motor pode ser unicamente ato, forma; a coisa movida
 - enquanto tal - pode ser unicamente potência, matéria. Eis a grande 
doutrina aristotélica do motor e da coisa movida, doutrina que culmina 
no motor primeiro, absolutamente imóvel, ato puro, isto é, Deus.
A Psicologia
Objeto
 geral da psicologia aristotélica é o mundo animado, isto é, vivente, 
que tem por princípio a alma e se distingue essencialmente do mundo 
inorgânico, pois, o ser vivo diversamente do ser inorgânico possui 
internamente o princípio da sua atividade, que é precisamente a alma, 
forma do corpo. A característica essencial e diferencial da vida e da 
planta, que tem por princípio a alma vegetativa, é a nutrição e a 
reprodução. A característica da vida animal, que tem por princípio a 
alma sensitiva, é precisamente a sensibilidade e a locomoção. Enfim, a 
característica da vida do homem, que tem por princípio a alma racional, é
 o pensamento. Todas estas três almas são objeto da psicologia 
aristotélica. Aqui nos limitamos à psicologia racional, que tem por 
objeto específico o homem, visto que a alma racional cumpre no homem 
também as funções da vida sensitiva e vegetativa; e, em geral, o 
princípio superior cumpre as funções do princípio inferior. De sorte 
que, segundo Aristóteles diversamente de Platão todo ser vivo tem uma só
 alma, ainda que haja nele funções diversas faculdades diversas 
porquanto se dão atos diversos. E assim, conforme Aristóteles, 
diversamente de Platão, o corpo humano não é obstáculo, mas instrumento 
da alma racional, que é a forma do corpo.
O
 homem é uma unidade substancial de alma e de corpo, em que a primeira 
cumpre as funções de forma em relação à matéria, que é constituída pelo 
segundo. O que caracteriza a alma humana é a racionalidade, a 
inteligência, o pensamento, pelo que ela é espírito. Mas a alma humana 
desempenha também as funções da alma sensitiva e vegetativa, sendo 
superior a estas. Assim, a alma humana, sendo embora uma e única, tem 
várias faculdades, funções, porquanto se manifesta efetivamente com atos
 diversos. As faculdades fundamentais do espírito humano são duas: 
teorética e prática, cognoscitiva e operativa, contemplativa e ativa. 
Cada uma destas, pois, se desdobra em dois graus, sensitivo e 
intelectivo, se se tiver presente que o homem é um animal racional, quer
 dizer, não é um espírito puro, mas um espírito que anima um corpo 
animal.
O
 conhecimento sensível, a sensação, pressupões um fato físico, a saber, a
 ação do objeto sensível sobre o órgão que sente, imediata ou à 
distância, através do movimento de um meio. Mas o fato físico 
transforma-se num fato psíquico, isto é, na sensação propriamente dita, 
em virtude da específica faculdade e atividade sensitivas da alma. O 
sentido recebe as qualidades materiais sem a matéria delas, como a cera 
recebe a impressão do selo sem a sua matéria. A sensação embora limitada
 é objetiva, sempre verdadeira com respeito ao próprio objeto; a 
falsidade, ou a possibilidade da falsidade, começa com a síntese, com o 
juízo. O sensível próprio é percebido por um só sentido, isto é, as 
sensações específicas são percebidas, respectivamente, pelos vários 
sentidos; o sensível comum, as qualidades gerais das coisas tamanho, 
figura, repouso, movimento, etc. são percebidas por mais sentidos. O 
senso comum é uma faculdade interna, tendo a função de coordenar, 
unificar as várias sensações isoladas, que a ele confluem, e se tornam, 
por isso, representações, percepções.
Acima
 do conhecimento sensível está o conhecimento inteligível, 
especificamente diverso do primeiro. Aristóteles aceita a essencial 
distinção platônica entre sensação e pensamento, ainda que rejeite o 
inatismo platônico, contrapondo-lhe a concepção do intelecto como tabula
 rasa, sem ideias inatas. Objeto do sentido é o particular, o 
contingente, o mutável, o material. Objeto do intelecto é o universal, o
 necessário, o imutável, o imaterial, as essências, as formas das coisas
 e os princípios primeiros do ser, o ser absoluto. Por consequência, a 
alma humana, conhecendo o imaterial, deve ser espiritual e, quanto a 
tal, deve ser imperecível.
Analogamente
 às atividades teoréticas, duas são as atividades práticas da alma: 
apetite e vontade. O apetite é a tendência guiada pelo conhecimento 
sensível, e é próprio da alma animal. Esse apetite é concebido 
precisamente como sendo um movimento finalista, dependente do 
sentimento, que, por sua vez depende do conhecimento sensível. A vontade
 é o impulso, o apetite guiado pela razão, e é própria da alma racional.
 Como se vê, segundo Aristóteles, a atividade fundamental da alma é 
teorética, cognoscitiva, e dessa depende a prática, ativa, no grau 
sensível bem como no grau inteligível.
A Cosmologia
Uma
 questão geral da física aristotélica, como filosofia da natureza, é a 
análise dos vários tipos de movimento, mudança, que já sabemos ser 
passagem da potência ao ato, realização de uma possibilidade. 
Aristóteles distingue quatro espécies de movimentos:
1. Movimento substancial - mudança de forma, nascimento e morte;
2. Movimento qualitativo - mudança de propriedade;
3. Movimento quantitativo - acrescimento e diminuição;
4. Movimento espacial - mudança de lugar, condicionando todas as demais espécies de mudança.
Outra
 especial e importantíssima questão da física aristotélica é a 
concernente ao espaço e ao tempo, em torno dos quais fez ele 
investigações profundas. O espaço é definido como sendo o limite do 
corpo, isto é, o limite imóvel do corpo "circundante" com respeito ao 
corpo circundado. O tempo é definido como sendo o número, isto é, a 
medida do movimento segundo a razão, o aspecto, do "antes" e do 
"depois". Admitidas as precedentes concepções de espaço e de tempo - 
como sendo relações de substâncias, de fenômenos - é evidente que fora 
do mundo não há espaço nem tempo: espaço e tempo vazios são impensáveis.
Uma
 terceira questão fundamental da filosofia natural de Aristóteles é a 
concernente ao teleologismo - finalismo - por ele propugnado com base na
 finalidade, que ele descortina em a natureza. "A natureza faz, enquanto
 possível, sempre o que é mais belo". Fim de todo devir é o 
desenvolvimento da potência ao ato, a realização da forma na matéria.
Quanto
 às ciências químicas, físicas e especialmente astronômicas, as 
doutrinas aristotélicas têm apenas um valor histórico, e são logicamente
 separáveis da sua filosofia, que tem um valor teorético. Especialmente 
célebre é a sua doutrina astronômica geocêntrica, que prestará a 
estrutura física à Divina Comédia de Dante Alighieri.
Juízo sobre Aristóteles
É
 difícil aquilatar em sua justa medida o valor de Aristóteles. A 
influência intelectual por ele até hoje exercida sobre o pensamento 
humano e à qual se não pode comparar a de nenhum outro pensador dá-nos, 
porém, uma ideia da envergadura de seu gênio excepcional. Criador da 
lógica, autor do primeiro tratado de psicologia científica, primeiro 
escritor da história da filosofia, patriarca das ciências naturais, 
metafísico, moralista, político, ele é o verdadeiro fundador da ciência 
moderna e "ainda hoje está presente com sua linguagem científica não 
somente às nossas cogitações, senão também à expressão dos sentimentos e
 das ideias na vida comum e habitual".
Nem
 por isso podemos deixar de apontar as lacunas do seu sistema. Sua 
moral, sem obrigação nem sanção, é defeituosa e mais gravemente 
defeituosa ainda que a teodicéia, sobretudo na parte que trata das 
relações de Deus com o mundo. O dualismo primitivo e irredutível entre 
Deus, ato puro, e a matéria, princípio potencial, é, na própria teoria 
aristotélica, uma verdadeira contradição e deixa subsistir, como enigma 
insolúvel e inexplicável, a existência dos seres fora de Deus.
Vista Retrospectiva
Com
 Sócrates entre a filosofia em seu caminho definitivo. O problema do 
objeto e da possibilidade da ciência é posto em seus verdadeiros termos e
 resolvido, nas suas linhas gerais, pela doutrina do conceito.Platão dá 
um passo além, procurando determinar a relação entre o conceito e a 
realidade, mas encalha, dum lado, nas dificuldades insolúveis de um 
realismo exagerado; de outro, nas extravagâncias dum idealismo extremo. 
Aristóteles, com o seu espírito positivo e observador, retoma o mesmo 
problema no pé em que o pusera Platão e dá-lhe, pela teoria da abstração
 e da inteligência ativa, uma solução satisfatória e definitiva nos 
grandes lineamentos. Em torno desta questão fundamental, que entende com
 a metafísica, a psicologia e a lógica, se vão desenvolvendo 
harmoniosamente as outras partes da filosofia até constituírem em 
Aristóteles esta grandiosa síntese do saber universal, o mais precioso 
legado da civilização grega que declinava à civilização ocidental que 
surgia.
O EPICURISMO – CETICISMO - ECLETISMO
Epicuro,
 fundador da escola que tomou o seu nome, nasceu em Atenas, 
provavelmente, em 341 a.C., do ateniense Néocles, e foi criado em Samos.
 A mãe praticava a magia. Cedo dedicou-se à filosofia, sendo iniciado 
por Nausífanes de Teo no sistema de Demócrito. Em 306 abriu a sua famosa
 escola em Atenas, nos jardins da sua vila, que se tornaram centro das 
reuniões aristocráticas dos seus admiradores, discípulos e amigos. 
Epicuro expôs a sua doutrina num grande número de escritos, pela maior 
parte perdidos. Faleceu em 270 a.C. com setenta anos de idade. O 
epicurismo teve, desde logo, rápida e vasta difusão no mundo romano, 
onde encontramos, sobretudo, Tito Lucrécio Caro - I século a.C. - o 
poeta entusiasta, autor de De rerum natura, que venerava Epicuro como 
uma divindade. A ele devemos as melhores notícias sobre o sistema 
epicurista. A escola epicurista durou até o IV século d.C., mas teve 
escasso desenvolvimento, conforme o desejo do mestre, que queria os 
discípulos fiéis até a letra do sistema. A originalidade deveria 
manifestar-se na vida.
Epicuro
 foi pessoa fidalga e refinada, o ideal da fidalguia antiga: fazer da 
formosura o princípio inspirador da vida, e fruir dessa formosura na 
própria existência pessoal. E foi um mestre eficaz de sabedoria 
aristocrática, feita de nobreza de sentimentos, senso refinado, gosto 
para a formosura, para a cultura superior. Em seus jardins, num sereno 
lazer, semelhante ao dos deuses, deu vida a uma sociedade genial, em que
 dominava o vínculo da amizade. As amizades dos epicuristas ficaram 
famosas como as dos pitagóricos. A associação espalhou-se depois, mas 
conservou-se fortemente organizada, mediante uma estável constituição, 
ajudas materiais, cartas, missões. O mestre pareceu aos discípulos como 
que um redentor; a sua filosofia foi considerada como uma religião, a 
sua doutrina, resumida em catecismos, a sua imagem, gravada nas jóias, 
em sua honra celebravam-se festas comemorativas, mensais e anuais. Se 
não houve pensadores epicuristas notáveis depois de Epicuro no mundo 
clássico nem depois, houve todavia, em todos os tempos e lugares, homens
 famosos, pertencentes a classes sociais elevadas, os quais aplicaram a 
sua doutrina à vida e dela fizeram a substância de sua arte.
O Pensamento: Gnosiologia e Metafísica
Também
 o epicurismo - como o estoicismo - divide a filosofia em lógica, física
 e ética; também subordina a teoria à pratica, a ciência à moral, para 
garantir ao homem o bem supremo, a serenidade, a paz, a apatia. A 
filosofia é a arte da vida. Precisamente, é tarefa do conhecimento do 
mundo, da física - diz Epicuro - libertar o homem dos grandes temores 
que ele tem a respeito da sua vida, da morte, do além-túmulo, de Deus e 
fazer com que ele atue de conformidade. Portanto, recorre Epicuro à 
física atomista, mecanicista, democritiana, pela qual também os deuses 
vêm a ser compostos de átomos, e - habitadores felizes de intermundos - 
desinteressam-se por completo dos homens. Aliás, não é excluído o fato 
de que a necessidade universal oprimiria o homem ainda mais do que o 
arbítrio divino. Igualmente, a alma - formada de átomos sutis, mas 
sempre materiais - perece com o corpo; daí, nenhuma preocupação com a 
morte, nem com o além-túmulo: seria igualmente absurdo preocupar-se com 
aquilo que se segue à morte, como com aquilo que precede o nascimento
A
 gnosiologia (lógica, canônica) epicurista é rigorosamente sensista. 
Todo o nosso conhecimento deriva da sensação, é uma complicação de 
sensações. Estas nos dão o ser, indivíduo material, que constitui a 
realidade originária. O processo cognoscitivo da sensação é explicado 
mediante os assim chamados fantasmas, que seriam imagens em miniatura 
das coisas, arrancar-se-iam destas e chegariam até à alma imediatamente,
 ou mediatamente através dos sentidos. Dada tal gnosiologia 
coerentemente sensista, é natural que o critério fundamental e único da 
verdade seja a sensação, a percepção sensível, que é imediata, 
intuitiva, evidente. Como a sensação, a evidência sensível é o único 
critério de verdade no campo teorético, da mesma forma o sentimento 
(prazer e dor) será o critério supremo de valor no campo prático.
Como
 a gnosiologia epicurista é rigorosamente sensista, a metafísica 
epicurista é rigorosamente materialista: quer dizer, resolve-se numa 
física. Epicuro, seguindo as pegadas de Demócrito, concebe os elementos 
últimos constitutivos da realidade como corpúsculos inúmeros, eternos, 
imutáveis, invisíveis, homogêneos, indivisíveis (átomos), iguais 
qualitativamente e diversos quantitativamente - no tamanho, na figura, 
no peso. Também segundo Epicuro, os átomos estão no espaço vazio, 
infinito, indispensável para que seja possível o movimento e, 
consequentemente, a origem e a variedade das coisas. Os átomos são 
animados de movimento necessário para baixo. Entretanto, no movimento 
uniforme retilíneo para baixo introduz Epicuro desvios múltiplos, sem 
causa, espontâneos (clinamen); daí derivam encontros e choques de átomos
 e, por consequência, os vórtices e os mundos. Estes, de fato, não 
teriam explicações se os átomos caíssem todos com movimentos uniforme e 
retilíneos para baixo - como pensava Demócrito. Mediante o clinamen 
Epicuro justifica ainda o livre arbítrio, que é uma simples combinação 
da contingência, do indeterminismo universal. O universo não é concebido
 como finito e uno, mas infinito e resultante de mundos inúmeros 
divididos por intermundos, espalhado pelo espaço infindo, sujeitos ao 
nascimento e à morte. Nesse mundo o homem, sem providência divina, sem 
alma imortal, deve adaptar-se para viver como melhor puder. Nisto estão 
toda a sabedoria, a virtude, a moral epicuristas.
A Moral e a Religião
A
 moral epicurista é uma moral hedonista. O fim supremo da vida é o 
prazer sensível; critério único de moralidade é o sentimento. O único 
bem é o prazer, como o único mal é a dor; nenhum prazer deve ser 
recusado, a não ser por causa de consequências dolorosas, e nenhum 
sofrimento deve ser aceito, a não ser em vista de um prazer, ou de 
nenhum sofrimento menor. No epicurismo não se trata, portanto, do prazer
 imediato, como é desejado pelo homem vulgar; trata-se do prazer 
imediato, refletido, avaliado pela razão, escolhido prudentemente, 
sabiamente, filosoficamente. É mister dominar os prazeres, e não se 
deixar por eles dominar; ter a faculdade de gozar e não a necessidade de
 gozar. A filosofia toda está nesta função prática. Este prazer imediato
 deveria ficar sempre essencialmente sensível, mesmo quando Epicuro fala
 de prazeres espirituais, para os quais não há lugar no seu sistema, e 
nada mais seriam que complicações de prazeres sensíveis. O prazer 
espiritual diferenciar-se-ia do prazer sensível, porquanto o primeiro se
 estenderia também ao passado e ao futuro e transcende o segundo, que é 
unicamente presente. Verdade é que Epicuro mira os prazeres estéticos e 
intelectuais, como os mais altos prazeres. Aqui, porém, se ele faz uma 
afirmação profunda, está certamente em contradição com a sua metafísica 
materialista.
Em
 que consiste, afinal, esse prazer imediato, refletido, racionado? Na 
satisfação de uma necessidade, na remoção do sofrimento, que nasce de 
exigências não satisfeitas. O verdadeiro prazer não é positivo, mas 
negativo, consistindo na ausência do sofrimento, na quietude, na apatia,
 na insensibilidade, no sono, e na morte. Mas precisamente ainda, 
Epicuro divide os desejos em naturais e necessários - por exemplo, o 
instinto da reprodução; não naturais e não necessários - por exemplo, a 
ambição. O sábio satisfaz os primeiros, quando for preciso, os quais 
exigem muito pouco e cessam apenas satisfeito; renuncia os segundos, 
porquanto acarretam fatalmente inquietação e agitação, perturbam a 
serenidade e a paz; mas ainda renuncia os terceiros, pelos mesmos 
motivos. Assim, a vida ideal do sábio, do filósofo, que aspira a 
liberdade e à paz como bens supremos, consistiria na renúncia a todos os
 desejos possíveis, aos prazeres positivos, físicos e espirituais; e, 
por conseguinte, em vigiar-se, no precaver-se contra as surpresas 
irracionais do sentimento, da emoção, da paixão. Não sofrer no corpo, 
satisfazendo suas necessidades essenciais, para estar tranqüilo; não ser
 perturbado no espírito, renunciando a todos os desejos possíveis, visto
 ser o desejo inimigo do sossego: eis as condições fundamentais da 
felicidade, que é precisamente liberdade e paz.
Em
 realidade, Epicuro, se ensina a renúncia, não tem a coragem de ensinar a
 renúncia aos prazeres positivos espirituais, estéticos e intelectuais, a
 amizade genial, que representa o ideal supremo na concepção grega da 
vida. E sustenta isto em contradição com a sua ascética radical, bem 
como contradiz a sua metafísica materialista com a sua moral, que 
encontra precisamente a mais perfeita realização nestes bens 
espirituais. O mundo e a vida são um espetáculo: melhor é ser 
espectadores e atores, melhor é conhecer do que agir. No entanto, o bem 
espiritual não consiste unicamente na contemplação (cfr. a virtude 
dianoética de Aristóteles), mas também na ação (cfr. a virtude ética de 
Aristóteles), e precisamente em uma vida curta e refinada, 
esteticamente, a maneira grega, no isolamento do mundo, do vulgo, na 
unidade da amizade, na conversa arguta e delicada: numa palavra, vivendo
 ocultamente. É de fato, nos jardins de Epicuro, a vida se inspirava nos
 mais requintados costumes, preenchida com as mais nobres ocupações - 
como na Academia e no Liceu. Almejava, no entanto, dar uma unidade 
estética e racional à vida, mais do que ao mundo. O epicurismo, 
portanto, considerado vulgarmente como propulsor de devassidão e 
sensualidade, representa, inversamente, uma norma de vida ordinária e 
espiritual, até um verdadeiro pessimismo e ascetismo, praticamente ateu.
A
 serenidade do sábio não é perturbada pelo medo da morte, pois todo mal e
 todo bem se acham na sensação, e a morte é a ausência de sensibilidade,
 portanto, de sofrimento. Nunca nos encontraremos com a morte, porque 
quando nós somos, ela não é, quando ela é nós não somos mais, Epicuro, 
porém, não defende o suicídio que poderia justificar com maior razão do 
que os estoicos.
Dado
 este conceito da vida concebida como liberdade, paz e contemplação, é 
natural que Epicuro seja hostil ao matrimônio e à família, aliás 
geralmente desvalorizado no mundo grego. Epicuro é também hostil à 
atividade pública, à política considerando a família e a pátria como 
causas de agitações e inimigos da autarquia.
Não
 obstante o seu materialismo teórico e o seu ateísmo prático, Epicuro 
admite a divindade transcendente, diversamente do imanentismo estóico. A
 prova da existência da divindade estaria no fato de que temos na mente 
humana a sua ideia, que não pode ser senão cópia de realidade. Os 
fantasmas dos deuses proviriam dos próprios deuses - como os fantasmas 
de todas as outras coisas - desceriam até nós dos intermundos, 
especialmente durante o sono. Os deuses de Epicuro são muitos, 
constituídos de átomos etéreos, sutis e luzentes, dotados de corpos 
luminosos, tendo forma humana belíssima, imortais - diversamente dos 
deuses estoicos - beatos, contemplados - segundo ideal grego da vida - 
sempre acordados e sentados em jovial convívio, sorvendo ambrósia, 
conversando em grego! Mas - como as ideias transcendentes de Platão e 
ato puro de Aristóteles - não atuam sobre o mundo e a humanidade, para 
não serem contaminados, perturbados. Vivem, portanto, fora do mundo e 
dos mundos, nos espaços entre mundo e mundo, na beata solidão dos 
intermundos, escapando destarte a fatal destruição dos mundos. É uma 
teologia refinada de ateniense e de artista, que vive no mundo de 
estátuas divinas, encarnando na serenidade do mármore o ideal grego 
contemplativo e estético da vida.
Epicuro
 venera os deuses, não para receber auxílio, mas porque eles encarnam o 
ideal estético grego da vida, ideal que tem uma expressão concreta 
precisamente nas belas divindades do panteão helênico. Então, se os 
deuses não proporcionam ao homem nenhuma vantagem prática, 
proporcionam-lhe contudo o bem da elevação, que importa na contemplação 
do ideal. É preciso venerá-los para imitá-los. Deste modo, Epicuro, 
proclamado ateu, teria praticado - entre os limites impostos pelo 
pensamento grego e pelo seu pensamento - o mal da religião, uma religião
 desinteressada, uma espécie de puro amor de Deus dos ascetas e dos 
místicos.
Ceticismo e Ecletismo
O
 ceticismoapresenta-se mais coerente do que as escolas precedentes, 
especialmente do que o estoicismo, com os fins práticos de uma filosofia
 da renúncia, da indiferença, do sossego. É o ceticismo a última palavra
 da sabedoria antiga, desesperada por não ter podido resolver o problema
 da vida mediante a razão. O estoicismo procura realizar a apatia ainda 
mediante uma metafísica positiva, embora imperfeita, incoerente. O 
epicurismo tende a realizar o mesmo fim com uma metafísica negativa, 
negando todo absoluto e transcendente. O ceticismo visa sempre um fim 
último ético-ascético, sem qualquer metafísica, mesmo negativa.
Através
 da mais absoluta indiferença, prática e teorética, procura-se realizar 
finalmente tão almejada paz. A felicidade não é mais uma coisa positiva,
 nem está no saber e não se pode alcançar mediante o saber, mas pode ser
 alcançada unicamente negando o saber. Chega-se, destarte, à destruição 
de todos os valores. Substancialmente, a grande metafísica 
platônico-aristotélica é posta de lado, mas não é atacada pelo 
ceticismo. Persiste nos céticos uma fé nostálgica e realista e o 
conceito da objetividade da ciência: o ser, o objeto, existem, mas não 
se podem conhecer por falta de meios. Diz Argesilau: "Deus unicamente 
conhece a verdade, que é inacessível ao homem".
|  | 
| Pirro de Elis | 
O
 ecletismo apresenta-se como um sistema afim, embora imensamente 
inferior ao ceticismo. Também o ecletismo, como o ceticismo, substitui 
ao critério da verdade o da verossimilhança, embora acriticamente. O 
nem-nem dos céticos é mudado em e-e pelos ecléticos; se nada é 
verdadeiro, tudo vale igualmente. E isto basta aos fins ético-empíricos 
dos ecléticos, semelhantes e diversos ao mesmo tempo dos fins 
éticos-ascéticos dos céticos. É o ecletismo filosofia de espíritos 
pragmáticos ou decadentes, não filosóficos, que concebem a filosofia 
popularmente, moralisticamente, ou não têm a força da crítica, nem a da 
afirmação, que implica sempre numa crítica, pois a filosofia é escolha, 
construção, sistema, organismo especulativo, e não justaposição mecânica
 de peças sem vida.
O
 advento de uma semelhante filosofia foi favorecido pela permanência e 
pela coexistência, no período helenista e depois ainda, de várias 
escolas filosóficas, que surgiram em tempos diferentes, e por demais 
despersonalizadas, esvaziadas do seu conteúdo original, característico -
 como acontece nos períodos de decadência especulativa - de sorte que se
 torna fácil a síntese eclética, feita de abstratas generalidades ou de 
particularidades secundárias. O pragmatismo eclético foi, enfim, 
favorecido pelo contato do pensamento grego com a romanidade dominante, 
inteiramente voltada para a prática e para a ação, cuja grande obra, 
portanto será não a filosofia, e sim o jus.
O
 ecletismo apresenta-se como uma síntese prática ou, melhor ainda, como 
uma suma de elementos estoicos, acadêmicos e também peripatéticos. 
Contém muito menos elementos céticos e epicuristas, dada a natureza 
crítica do ceticismo, e a coerência materialista do epicurismo. Temos 
precisamente, em ordem cronológica, um ecletismo estóico, depois 
acadêmico e, enfim, peripatético, segundo os elementos de uma ou de 
outra escola na síntese prática do próprio ecletismo.
O Período Ético (ESTOICISMO)
Características Gerais
O
 terceiro período do pensamento grego abrange os três séculos que 
decorrem da morte de Aristóteles ao início da era vulgar. Na história da
 civilização e da cultura, este período toma o nome de helenismo, 
significando a expansão da cultura grega, helênica, no mundo civilizado;
 na história da filosofia denomina-se período ético, porquanto o 
interesse filosófico é voltado para os problemas morais. Primeiramente 
(estoicismo e epicurismo), retorna-se à metafísica naturalista dos 
pré-socráticos, bem como à moral das escolas socráticas menores, cínica e
 cirenaica; depois (ceticismo e ecletismo), anula-se toda metafísica e, 
consequentemente, toda moral, voltando-se para a sofística, 
menosprezando o grande desenvolvimento filosófico 
platônico-aristotélico.
Os
 motivos desta filosofia pragmatista devem ser procurados na decadência 
espiritual e moral da época, faltando ao homem interesse e a força para a
 especulação pura, bem como na profunda tristeza dos tempos e na 
profunda sensibilidade diante do mal. Tudo isto torna dolorosa a vida do
 homem, que procura na filosofia um conforto, uma orientação moral, 
encontrando-a na renúncia ao mundo e à própria vida. Do contingente e do
 temporal, o homem volta-se para o transcendente e para o eterno; a 
filosofia torna-se uma preparação para a morte, como julga Platão, e a 
sabedoria é desapego da ação, como opina Aristóteles.
O
 interesse teorético, o vigor especulativo, restringem-se ao particular,
 à erudição e às ciências especiais que se desenvolvem, ao passo que a 
metafísica esmorece. Não filosofia teorética, mas filologia, história, 
literatura; ciências naturais, medicina, geografia, física, astronomia, 
matemática. E, com relação às ciências especiais, desenvolve-se 
naturalmente a técnica, como na idade moderna. A arte resolve-se no 
virtuosismo e na imitação. Em conclusão, a cultura helenista reduz-se à 
erudição e ao virtuosismo, ciência e técnica, filosofia moral e moral 
prática. Nesta civilização cosmopolita encontram-se dois valores 
universais: o pensamento e a arte dos gregos, isto é, o helenismo; o jus
 e a política dos romanos. O primeiro valor dá o conteúdo, o segundo a 
forma - Graecia capta ferum victorem cepit.
No
 terceiro período do pensamento grego não se encontram mais alguns 
poucos e grandes pensadores, como no precedente, mas vastas orientações e
 escolas; não sistemas críticos, mas afirmações dogmáticas. Trataremos, 
antes de tudo, da escola estoica, em que ainda há uma metafísica, 
elementar, porém, e anacrônica, em contradição consigo mesma e com a 
moral; em segundo lugar, da escola epicuréia, em que a metafísica tem 
apenas uma função negativa, a saber, libertar o homem das preocupações 
transcendentais, do temor de além-túmulo; em terceiro lugar, da escola 
cética, em que não há mais metafísica alguma, e, portanto, nem moral, 
como na escola eclética, em que a metafísica e moral são sincretistas, 
e, por consequência, anuladas; enfim exporemos o pensamento latino, o 
qual, pelo que diz respeito à filosofia, depende de cultura grega, e 
precisamente desse terceiro período - ecletismo e estoicismo. A grandeza
 verdadeira e original do pensamento latino é o jus, o direito romano, 
valor universal como a filosofia grega.
O Estoicismo
Em
 seu conjunto, o estoicismo pode-se dividir em três períodos: um período
 antigo ou ético, um período médio ou eclético, um período recente ou 
religioso. Os dois últimos, bastante divergentes do estoicismo clássico.
O
 fundador da antiga escola estoica é Zenão de Citium (334-262 a.C., mais
 ou menos). Seu pai, mercador, leva para ele, de Atenas, uns tratados 
socráticos, que lhe despertam o entusiasmo para com os estudos 
filosóficos. Aos vinte e dois anos vai para Atenas; aí - perdidos seus 
bens - dedica-se à filosofia, frequentando por algum tempo várias 
escolas e mestres, entre os quais o cínico Crates. Finalmente, pelo ano 
300, funda a sua escola, que se chamou estoica, do lugar onde ele 
costumava ensinar: pórtico em grego, stoá. Iniciou, juntamente com a 
atividade didática, a de escritor. Em seus escritos já se encontram a 
clássica divisão estoica da filosofia em lógica, física e ética, a 
primazia da ética e a união de filosofia e vida.
A
 escola estóica média ou eclética, surge pela influência de outras 
escolas e para responder às objeções dessas escolas. Podem-se, pois, 
agrupar na escola estóica nova ou religiosa os que entendiam 
absolutamente a filosofia, o estoicismo, não como ciência, metafísica, 
mas como uma missão e uma prática religiosa, sacerdotal.
O Pensamento: Gnosiologia e Metafísica
O
 estoicismo não apresenta o fenômeno de um grande filósofo, seguido por 
uma série de discípulos mais ou menos originais, mas sim uma turma 
bastante uniforme de pensadores medíocres. No dizer dos estoicos, a 
tarefa essencial da filosofia é a solução do problema da vida; em outras
 palavras, a filosofia é cultivada exclusivamente em vista da moral, 
para firmar a virtude e, logo, para assegurar ao homem a felicidade. 
Entende-se, pois, como a filosofia estoica chega a ser substancialmente 
pragmatista e, por conseguinte, no fundo, acaba não sendo mais 
filosofia. E compreende-se o seu vasto êxito em todos os tempos, amiúde 
apresentando-se como a filosofia dos não filósofos que têm pretensões 
filosóficas, moralizadoras, rigoristas. Não obstante esse absorvente 
moralismo, os estoicos distinguem na filosofia uma lógica, uma física, 
uma ética. Na lógica trata-se da gnosiologia; a física iguala a 
metafísica; a ética é o fim último e único de toda a filosofia, 
inclusive da política e da religião.
Os
 estoicos dividem a lógica em dialética e retórica, em correspondência 
com o discurso interior e exterior. A mente humana é concebida como uma 
tabula rasa. Como em Aristóteles, o conhecimento parte dos dados 
imediatos do sentido; mas, diversamente de Aristóteles, o conhecimento é
 limitado ao âmbito dos sentidos, não obstante as repetidas e múltiplas 
declarações estoicas em louvor da razão. O conhecimento intelectual nada
 mais pode ser que uma combinação, uma complicação quantitativa de 
elementos sensíveis. O conceito, pois, é destruído, seguindo-se o 
aniquilamento da ciência, da metafísica e, logo, também da moral.
A
 metafísica estoica reduz-se à física, porquanto é radicalmente 
materialista: se tudo é material, toda atividade é movimento, devem-se 
conceber materialisticamente também Deus, a alma, as propriedades das 
coisas. Esta matéria está em perpétuo vir-a-ser, conforme a concepção de
 Heráclito; e a lei desse princípio material só pode ser, naturalmente, 
uma necessidade mecânica, à maneira de Demócrito.
Devendo
 os estoicos, todavia, fornecer alguma base à sua ética do dever, e dar 
uma explicação à razão, que se manifesta no mundo, em especial no homem,
 incoerentemente declaram racional o fogo - substância metafísica da 
realidade -, atribuem-lhe arbitrariamente os atributos divinos da 
sabedoria e da providência, imaginam-no como espírito ordenador, razão 
da vida, fazendo emergir todas as qualidades da matéria, como o Sol faz 
brotar da semente a planta, segundo uma ordem teológica. Deus, 
providência, espírito, ordem são afirmados ao lado dos conceitos opostos
 de fado, destino, necessidade, mecanicismo. Como se vê, a metafísica 
dos estoicos é uma metafísica elementar, decadente, contraditória, e os 
estóicos não são filósofos, metafísicos, mas pragmatistas, moralistas, 
inteiramente absorvidos na prática, na ética.
A Moral e a Política
No
 pensamento dos estoicos, o fim supremo, o único bem do homem, não é o 
prazer, a felicidade, mas a virtude; não é concebida como necessária 
condição para alcançar a felicidade, e sim como sendo ela própria um bem
 imediato. Com o desenvolvimento do estoicismo, todavia, a virtude acaba
 por se tornar meio para a felicidade da tranqüilidade, da serenidade, 
que nasce da virtude negativa da apatia, da indiferença universal. A 
felicidade do homem virtuoso é a libertação de toda perturbação, a 
tranquilidade da alma, a independência interior, a autarquia.
Como
 o bem absoluto e único é a virtude, assim o mal único e absoluto é o 
vício. E não tanto pelo dano que pode acarretar ao vicioso, quanto pela 
sua irracionalidade e desordem intrínseca, ainda que se acabe por 
repudiá-lo como perturbador da indiferença, da serenidade, da autarquia 
do sábio. Tudo aquilo que não é virtude nem vício, não é nem bem nem 
mal, mas apenas indiferença; pode tornar-se bem se for unido com a 
virtude, mal se for ligado ao vício; há o vício quando à indiferença se 
ajunta a paixão, isto é, uma emoção, uma tendência irracional, como 
geralmente acontece.
A
 paixão, na filosofia estoica, é sempre e substancialmente má; pois é 
movimento irracional, morbo e vício da alma - quer se trate de ódio, 
quer se trate de piedade. De tal forma, a única atitude do sábio estóico
 deve ser o aniquilamento da paixão, até a apatia. O ideal ético estoico
 não é o domínio racional da paixão, mas a sua destruição total, para 
dar lugar unicamente à razão: maravilhoso ideal de homem sem paixão, que
 anda como um deus entre os homens. Daí a guerra justificada do 
estoicismo contra o sentimento, a emoção, a paixão, donde derivam o 
desejo, o vício, a dor, que devem ser aniquilados.
A virtude
 estoica é, no fundo, a indiferença e a renúncia a todos os bens do 
mundo que não dependem de nós, e cujo curso é fatalmente determinado. 
Por conseguinte, indiferença e renúncia a tudo, salvo e pensamento, a 
sabedoria, a virtude, que constituem os únicos bens verdadeiros: 
indiferença e renúncia à vida e à morte, à saúde e à doença, ao repouso e
 à fadiga, à riqueza e à pobreza, às honras e à obscuridade, numa 
palavra, ao prazer e ao sofrimento - pois o prazer é julgado insana 
vaidade da alma. Dada a indiferença estóica do suicídio como voluntário e
 moral afastamento do mundo; isto não se concilia, porém, com a virtude 
da fortaleza que o estoicismo reconhece e louva, e nem se pode explicar 
racionalmente o suicídio, se a ordem do universo é racional, como 
precisamente afirmam os estoicos.
O
 estóico pratica esta indiferença e renúncia para não ser perturbado, 
magoado pela possível e frequente carência dos bens terrenos, e para não
 perder, de tal maneira, a serenidade, a paz, o sossego, que são o 
verdadeiro, supremo, único bem da alma. O sábio é beato, porque, 
inteiramente fechado na sua torre de marfim, nada lhe acontece que não 
seja por ele querido, e se conforma com o demais, sem saudades e sem 
esperanças; pois sabe que tudo é efeito de um determinismo universal. A 
serenidade, a apatia dos estoicos seria, sem dúvida, fruto de uma 
fatigosa conquista, de uma dura virtude. Mas é uma virtude absolutamente
 negativa. Com efeito, quando o homem se torna indiferente a tudo, e a 
tudo renuncia, salvo o seu pensamento - cujo conteúdo é, em definitivo, 
esta mesma renúncia -, não lhe resta efetivamente mais nada. Não Deus, 
pois no sistema estoico, é uma pura palavra; não a alma, destinada a 
resolver-se na matéria. A sabedoria estoica é ação negadora da expansão 
das forças espirituais, virtude corrosiva, morte moral.
Pelo
 que diz respeito à política, manifesta-se na filosofia estoica um 
racionalismo cosmopolita radical a propósito da sociedade estatal: o 
homem, político por natureza, torna-se cosmopolita por natureza. Diz o 
estoico Musônio: "O mundo é a pátria comum de todos os homens". Tal 
cosmopolitismo foi fecundo em progresso, em civilização humana e moral. 
Abre-se caminho a um sentimento de caridade, de perdão, até para os 
infelizes e os escravos, os estrangeiros e os inimigos, em virtude da 
doutrina que afirma a identidade da natureza humana, sentimento este 
inteiramente desconhecido ao mundo antigo, clássico, onde campeia 
solitária uma justiça, que existe, porém, apenas para os concidadãos, 
livres e íntegros. E até começam a nascer instituições caritativas para 
com os pobres e os doentes. Destarte, esse cosmopolitismo, a que os 
estoicos não podem fornecer uma base racional e metafísica, promove 
todavia os conceitos de sociedade universal, de direito natural, de lei 
racional, conceitos que deveriam ser deduzidos da natureza racional do 
homem.
FILOSOFIA – MEDIEVAL
Características Gerais do Neoplatonismo
O
 neoplatonismo afirma certa transcendência de Deus, em que este é 
imaginado como o supra inteligível. Por isso, é inefável e pode ser 
atingido na sua plenitude unicamente mediante o êxtase, que é uma 
fulguração divina, superior à filosofia. Com esta doutrina do êxtase, em
 que é afirmada uma relação específica com a Divindade, parece abrir-se o
 caminho para uma nova filosofia religiosa, para a valorização da 
religião positiva. E outro caminho parece abrir-se na doutrina dos 
intermediários, que estão entre Deus e o homem, e por Plotino distintos 
em deuses invisíveis e visíveis, a que são assimiladas as divindades das
 religiões tradicionais.
As Características Filosóficas do Cristianismo
|  | 
| Agostinho | 
Pelo
 que diz respeito ao teísmo, salientamos que o cristianismo o deve, 
historicamente, a Israel. Mas entre os hebreus o teísmo não tem uma 
justificação, uma demonstração racional, como, por exemplo, em 
Aristóteles, de sorte que, em definitivo, o pensamento cristão tomará na
 grande tradição especulativa grega esta justificação e a filosofia em 
geral. Isto se realizará graças especialmente à Escolástica e, 
sobretudo, a Tomás de Aquino. Pelo que diz respeito à solução do 
problema do mal, solução que constitui a integração filosófica 
proporcionada pelo cristianismo ao pensamento antigo - que sentiu 
profundamente, dramaticamente, este problema sem o poder solucionar - 
frisamos que essa representa a grande originalidade teórica e prática, 
filosófica e moral, do cristianismo. Soluciona este o problema do mal 
precisamente mediante os dogmas fundamentais do pecado original e da 
redenção da cruz. Finalmente, a justificação da Revelação em geral, e a 
determinação, dilucidação, sistematização racional do conteúdo da mesma,
 têm uma importância indireta com respeito à filosofia, porquanto 
implicam sempre numa intervenção da razão. Foi esta, especialmente, a 
obra da Patrística e, sobretudo, de Agostinho.
Esta
 parte, dedicada à história do pensamento cristão, será, portanto, 
dividida do seguinte modo: o Cristianismo, isto é, o pensamento do Novo 
Testamento, enquanto soluciona o problema filosófico do mal; a 
Patrística, a saber, o pensamento cristão desde o II ao VIII século, a 
que é devida particularmente a construção da teologia, da dogmática 
católica; a Escolástica, a saber, o pensamento cristão desde o século IX
 até o século XV, criadora da filosofia cristã verdadeira e própria.
Características Gerais do Pensamento Cristão
Foi
 conquistada a cidade que conquistou o universo. Assim definiu São 
Jerônimo o momento que marcaria a virada de uma época. Era a invasão de 
Roma pelos germanos e a queda do Império Romano.
A avalancha dos bárbaros arrasou também grande parte das conquistas culturais do mundo antigo.
A
 Idade Média inicia-se com a desorganização da vida política, econômica e
 social do Ocidente, agora transformado num mosaico de reinos bárbaros. 
Depois vieram as guerras, a fome e as grandes epidemias. O cristianismo 
propaga-se por diversos povos. A diminuição da atividade cultural 
transforma o homem comum num ser dominado por crenças e superstições.
O
 período medieval não foi, porém, a "Idade das Trevas", como se 
acreditava. A filosofia clássica sobrevive, confinada nos mosteiros 
religiosos. O aristotelismo dissemina-se pelo Oriente bizantino, fazendo
 florescer os estudos filosóficos e as realizações científicas. No 
Ocidente, fundam-se as primeiras universidades, ocorre a fusão de 
elementos culturais greco-romanos, cristãos e germânicos, e as obras de 
Aristóteles são traduzidas para o latim.
Sob
 a influência da Igreja, as especulações se concentram em questões 
filosófico-teológicas, tentando conciliar a fé e a razão. E é nesse 
esforço que Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino trazem à luz 
reflexões fundamentais para a história do pensamento cristão.
A Filosofia Medieval e o Cristianismo
Ao
 longo do século V d.C., o Império Romano do Ocidente sofreu ataques 
constantes dos povos bárbaros. Do confronto desses povos invasores com a
 civilização romana decadente desenvolveu-se uma nova estruturação 
européia de vida social, política e econômica, que corresponde ao 
período medieval.
Em
 meio ao esfacelamento do Império Romano, decorrente, em grande parte, 
das invasões germânicas, a Igreja católica conseguiu manter-se como 
instituição social mais organizada. Ela consolidou sua estrutura 
religiosa e difundiu o cristianismo entre os povos bárbaros, preservando
 muitos elementos da cultura pagã greco-romana.
Apoiada
 em sua crescente influência religiosa, a Igreja passou a exercer 
importante papel político na sociedade medieval. Desempenhou, por 
exemplo, a função de órgão supranacional, conciliador das elites 
dominantes, contornando os problemas da fragmentação política e das 
rivalidades internas da nobreza feudal. Conquistou, também, vasta 
riqueza material: tornou-se dona de aproximadamente um terço das áreas 
cultiváveis da Europa ocidental, numa época em que a terra era a 
principal base de riqueza. Assim, pôde estender seu manto de poder 
"universalista" sobre diferentes regiões européias.
Conflitos e Conciliação entre a Fé e Saber
No
 plano cultural, a Igreja exerceu amplo domínio, trançando um quadro 
intelectual em que a fé cristã era o pressuposto fundamental de toda 
sabedoria humana.
Em que consistia essa fé?
Consistia
 na crença irrestrita ou na adesão incondicional às verdades reveladas 
por Deus aos homens. Verdades expressas nas Sagradas Escrituras (Bíblia)
 e devidamente interpretadas segundo a autoridade da Igreja.
"A Bíblia era tão preciosa que recebia as mais ricas encadernações”.
De
 acordo com a doutrina católica, a fé representava a fonte mais elevada 
das verdades reveladas - especialmente aquelas verdades essenciais ao 
homem e que dizem respeito à sua salvação. Neste sentido, afirmava Santo
 Ambrósio (340-397, aproximadamente): Toda verdade, dita por quem quer 
que seja, é do Espírito Santo.
 Assim,
 toda investigação filosófica ou científica não poderia, de modo algum, 
contrariar as verdades estabelecidas pela fé católica. Segundo essa 
orientação, os filósofos não precisavam se dedicar à busca da verdade, 
pois ela já havia sido revelada por Deus aos homens. Restava-lhes, 
apenas, demonstrar racionalmente as verdades da fé.
Não
 foram poucos, porém, aqueles que dispensaram até mesmo essa comprovação
 racional da fé. Eram os religiosos que desprezavam a filosofia grega, 
sobretudo porque viam nessa forma pagã de pensamento uma porta aberta 
para o pecado, a dúvida, o descaminho e a heresia (doutrina contrária ao
 estabelecido pela Igreja, em termos de fé).
Por
 outro lado, surgiram pensadores cristãos que defendiam o conhecimento 
da filosofia grega, na medida em que sentiam a possibilidade de 
utilizá-la como instrumento a serviço do cristianismo. Conciliado com a 
fé cristã, o estudo da filosofia grega permitiria à Igreja enfrentar os 
descrentes e demolir os hereges com as armas racionais da argumentação 
lógica. O objetivo era convencer os descrentes, tento quanto possível, 
pela razão, para depois fazê-los aceitar a imensidão dos mistérios 
divinos, somente acessíveis à fé.
Entre
 os grandes nomes da filosofia católica medieval destacam-se Agostinho e
 Tomás de Aquino. Eles foram os responsáveis pelo resgate cristão das 
filosofias de Platão e de Aristóteles, respectivamente.
"Tomai
 cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganadoras 
especulações da "filosofia", segundo a tradição dos homens, segundo os 
elementos do mundo, e não segundo Cristo." (São Paulo).
Patrística
"A fé em busca de argumentos racionais a partir de uma matriz platônica"
Desde
 que surgiu o cristianismo, tornou-se necessário explicar seus 
ensinamentos às autoridades romanas e ao povo em geral. Mesmo com o 
estabelecimento e a consolidação da doutrina cristã, a Igreja católica 
sabia que esses preceitos não podiam simplesmente ser impostos pela 
força. Eles tinham de ser apresentados de maneira convincente, mediante 
um trabalho de conquista espiritual.
Foi
 assim que os primeiros Padres da Igreja se empenharam na elaboração de 
inúmeros textos sobre a fé e a revelação cristãs. O conjunto desses 
textos ficou conhecido como patrística por terem sido escritos 
principalmente pelos grandes Padres da Igreja.
Uma
 das principais correntes da filosofia patrística, inspirada na 
filosofia greco-romana, tentou munir a fé de argumentos racionais. Esse 
projeto de conciliação entre o cristianismo e o pensamento pagão teve 
como principal expoente o Padre Agostinho.
"Compreender para crer, crer para compreender". (Santo Agostinho)
Escolástica
"Os caminhos de inspiração aristotélica levam até Deus".
No
 século VIII, Carlos Magno resolveu organizar o ensino por todo o seu 
império e fundar escolas ligadas às instituições católicas. A cultura 
greco-romana, guardada nos mosteiros até então, voltou a ser divulgada, 
passando a Ter uma influência mais marcante nas reflexões da época. Era a
 renascença carolíngia.
Tendo
 a educação romana como modelo, começaram a ser ensinadas as seguintes 
matérias: gramática, retórica e dialética (o trivium) e geometria, 
aritmética, astronomia e música (o quadrivium). Todas elas estavam, no 
entanto, submetidas à teologia.
A
 fundação dessas escolas e das primeiras universidades do século XI fez 
surgir uma produção filosófico-teológica denominada escolástica (de 
escola).
A
 partir do século XIII, o aristotelismo penetrou de forma profunda no 
pensamento escolástico, marcando-o definitivamente. Isso se deveu à 
descoberta de muitas obras de Aristóteles, descobertas até então, e à 
tradução para o latim de algumas delas, diretamente do grego.
A
 busca da harmonização entre a fé cristã e a razão manteve-se, no 
entanto, como problema básico de especulação filosófica. Nesse sentido, o
 período escolástico pode ser dividido em três fases:
Primeira fase - (do século IX ao fim do século XII): caracterizada pela confiança na perfeita harmonia entre fé e razão.
Segunda fase
 - (do século XIII ao princípio do século XIV): caracterizada pela 
elaboração de grandes sistemas filosóficos, merecendo destaques nas 
obras de Tomás de Aquino. Nesta fase, considera-se que a harmonização 
entre fé e razão pôde ser parcialmente obtida.
Terceira fase
 - (do século XIV até o século XVI): decadência da escolástica, 
caracterizada pela afirmação das diferenças fundamentais entre fé e 
razão.
A Questão dos Universais:
O que há entre as palavras e as coisas
O
 método escolástico de investigação, segundo o historiador francês 
Jacques Le Goff, privilegiava o estudo da linguagem (o trivium) para 
depois passar para o exame das coisas (o quadrivium). Desse modo surgiu a
 seguinte pergunta: qual a relação entre as palavras e as coisas? 
Rosa,
 por exemplo, é o nome de uma flor. Quando a flor morre, a palavra rosa 
continua existindo. Nesse caso, a palavra fala de uma coisa inexistente,
 de uma ideia geral. Mas como isso acontece? O grande inspirador da 
questão foi o inspirador neoplatônico Porfírio, em sua obra Isagoge : 
"Não tentarei enunciar se os gêneros e as espécies existem por si mesmos
 ou na pura inteligência, nem, no caso de subsistirem, se são corpóreos 
ou incorpóreos, nem se existem separados dos objetos sensíveis ou nestes
 objetos, formando parte dos mesmos".
Esse
 problema filosófico gerou muitas disputas. Era a grande discussão sobre
 a existência ou não das ideias gerais , isto é, os chamados universais 
de Aristóteles.
Os Precedentes do Cristianismo
Os
 fatores históricos do cristianismo são: em primeiro lugar, a religião 
israelita; em segundo lugar, o pensamento grego e, enfim, o direito 
romano. De Israel o cristianismo toma o teísmo. É o teísmo um privilégio
 único deste povo pequeno, obscuro e desprezado; os outros povos e 
civilizações, ainda que poderosos e ilustres, são, religiosamente, 
politeístas, ou, no máximo dualistas ou panteístas. De Israel toma o 
cristianismo, também, o conceito de uma revelação e assistência especial
 de Deus. Daí a ideia de uma história, que é desenvolvimento 
providencial da humanidade, ideia peculiar ao cristianismo e 
desconhecida pelo mundo antigo, especialmente pelo mundo grego.
Na
 revelação cristã é filosoficamente fundamental, básico, o conceito de 
uma queda original do homem no começo da sua história, e também o 
conceito de um Messias, um reparador, um redentor. Conceitos 
indispensáveis para explicar o problema do mal, racionalmente premente e
 racionalmente insolúvel. No entanto, o mundano e carnal Israel resistiu
 tenaz e longamente a esta ideia de uma radical miséria humana -, e, por
 consequência, à ideia de uma moral ascética. Idolatrou a vida longa e 
próspera, as riquezas da natureza e a prosperidade dos negócios, as 
satisfações conjugais e domésticas, o estado autônomo e privilegiado, o 
poder e a glória - até esquecer-se de Deus. Perseguiu os Profetas, que o
 chamavam ao temor de Deus e à penitência, e recalcitrou contra os 
flagelos com que Jeová o castigava, até que Israel, ainda que contra a 
sua vontade, foi submetido à sujeição e à renúncia, tendo adquirido, 
através de dolorosas experiências, o triste sentido da vaidade do mundo.
 A solução integral do problema do mal viria unicamente do mistério da 
redenção pela cruz - necessário complemento do mistério do pecado 
original.
Quanto
 ao pensamento grego , deve-se dizer que entrará no cristianismo como 
sistematizador das verdades reveladas, e como justificador dos 
pressupostos metafísicos do cristianismo; não, porém, como elemento 
constitutivo, essencial e característico, porquanto este é hebraico e 
cristão. E quanto ao direito romano, deve-se dizer que entrará no 
cristianismo como sistematizador do novo organismo social, a Igreja, e 
não como constitutivo de seus elementos essenciais e característicos, 
que são próprios e originais do cristianismo.
Jesus Cristo
Entretanto,
 o verdadeiro criador do cristianismo, em sua novidade e originalidade, é
 Jesus Cristo. Pode ele dar plena solução ao problema do mal - solução 
que representa o maior valor filosófico no cristianismo - unicamente se é
 Homem-Deus, o Verbo de Deus encarnado e redentor pela cruz. 
Diferentemente, a solução - ascética - cristã do problema do mal seria 
vã, como a estóica e todas as demais soluções filosóficas de tal 
problema, que ficaria, portanto, sem solução alguma. E, em geral, a 
pessoa de Cristo tornar-se-ia inteiramente ininteligível, se ele não 
fosse Homem-Deus.
Não
 é este o momento de fazer um exame crítico, filosófico e histórico, 
para determinar a personalidade de Cristo. Basta lembrar que, uma vez 
admitido e firmado o teísmo, logo se segue a possibilidade de uma 
revelação divina e da divindade de Cristo, para tanto não precisando, 
propriamente, senão de provas históricas. Os argumentos em contrário não
 são positivos, históricos, mas apriorísticos, filosóficos; quer dizer, 
dependem de uma filosofia racionalista e atéia em geral, humanista e 
imanentista em especial.
Eis
 o esquema lógico da demonstração da divindade de Jesus Cristo. Devem 
ser examinados à luz da crítica histórica, antes de tudo, os documentos 
fundamentais, relativos à revelação cristã - Novo Testamento. E 
achamo-nos diante de uma personalidade extraordinária - Jesus Cristo -, 
que ensina uma grande doutrina, leva uma vida santa, afirma-se a si 
mesma como divina e comprova explicitamente com prodígios e sinais - os 
milagres e as profecias - esta sua divindade. E como Jesus Cristo se 
torna garantia de toda uma tradição que o precedeu - o Velho Testamento 
-, também se responsabiliza por uma instituição que a ele se segue - a 
Igreja católica. A esta, portanto, caberá interpretar infalivelmente a 
revelação judaico-cristã e, evidentemente, também a parte que diz 
respeito à queda original e à relativa reparação, a qual, por certo, 
pode dar origem, humanamente, a várias interpretações.
O Novo Testamento
Como
 é notório, Cristo não deixou nada escrito, de sorte que o nosso 
conhecimento mais imediato em torno da sua personalidade se realiza 
através dos escritos dos seus discípulos. Temos de Cristo testemunhas 
também pagãs, além das testemunhas cristãs; estas são extracanônicas e 
canônicas. Estas últimas, porém, são fundamentais e mais do que 
suficientes para o nosso fim. Cronologicamente, são elas as seguintes: 
Paulo de Tarso, os Evangelhos sinópticos e o Evangelho de São João.
Paulo
 de Tarso, na Cilícia, fôra um inteligente e zeloso israelita. Não 
conheceu Jesus Cristo durante sua vida terrena, mas, convertido ao 
cristianismo e mudado o nome de Saulo para o de Paulo, tornou-se o maior
 apóstolo do cristianismo entre os gentios ou pagãos, revelando-lhes em 
Cristo crucificado o Deus padecente, vítima e Salvador, que eles 
procuravam em suas religiões misteriosóficas - e não acharam. A vida de 
Paulo é caracterizada por muitas e longas viagens, realizadas para 
finalidades apostólicas. Para o mesmo fim escreveu Paulo as famosas 
cartas às comunidades cristãs dos vários centros da Antigüidade, 
relacionados com ele. As grandes viagens apostólicas de Paulo são três e
 têm como ponto de irradiação Antioquia, tocando os centros mais 
importantes do mundo antigo: Jerusalém, Atenas e Roma. Nesta cidade 
encerra a sua vida mortal com o martírio. Destarte ele se pôs em contato
 com todas as formas de civilização do Oriente helenista e do mundo 
greco-romano. Quanto às Epístolas - escritas em grego - devemos dizer 
que não são cartas logicamente orgânicas e ordenadas, nem literariamente
 aprimoradas, tanto assim que podiam desagradar a um helenista refinado 
como Porfírio; são porém, densas de conteúdo, de forma incisiva e 
eficaz. O problema que, sobretudo, preocupa Paulo é o do mal, do 
sofrimento, do pecado, de que acha a solução em Cristo redentor, 
crucificado e ressuscitado. É este o aspecto do cristianismo que mais o 
impressionou, de sorte que é ele, por excelência, o teólogo da Redenção.
 No Velho Testamento Deus tinha dado aos homens a lei que, devido à 
miséria do homem decaído, não tirava o pecado, embora fosse uma lei 
moral; pelo contrário, até o agradava, tornando o homem consciente de 
sua falta. No Novo Testamento, Deus, mediante a graça de Cristo, tira o 
pecado do mundo, embora nos deixando na luta e no sofrimento, que Paulo 
sentia tão profundamente.
Os
 Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas - chamados evangelhos sinópticos -
 formam um grupo à parte, por certa característica histórica e didática,
 que os torna comuns e os distingue do quarto evangelho, o de João, de 
caráter mais especulativo e teológico. O primeiro em ordem de tempo é o 
Evangelho de Mateus , o publicano, tornando em seguida um dos doze 
apóstolos. Escrito, originariamente, em armaico e destinado ao ambiente 
palestino, foi em seguida traduzido para o grego e, nesta língua, 
transmitido. É o mais amplos dos Evangelhos e relata amplamente os 
ensinamentos de Cristo. O segundo é o Evangelho de Marcos, que não foi 
discípulo direto de Cristo, mas nos transmitiu o ensinamento de Pedro. 
Foi escrito em grego e destinado a um público não palestino. O terceiro 
dos Evangelhos sinópticos é, enfim, o de Lucas, companheiro de Paulo, 
que o chamava o caro médico. Também ele não foi discípulo imediato de 
Cristo, e o seu evangelho foi também escrito em grego.
O
 quarto evangelho, inversamente - como o primeiro - foi escrito por um 
discípulo direto de Cristo, um dos doze apóstolos: João, o predileto do 
Mestre, testemunha da sua vida e da sua morte. O quarto Evangelho, 
juntamente com este valor histórico, tem um especial valor especulativo,
 teológico. Como Paulo pode ser considerado o teólogo da Redenção, João 
pode ser considerado o teólogo da Encarnação; Cristo é o Verbo de Deus 
encarnado para a redenção do gênero humano. Também o Evangelho de João 
foi escrito em grego; e, cronologicamente, é o último dos Evangelhos e 
dos escritos do Novo Testamento, os quais - no seu conjunto - podem se 
considerar compostos na Segunda metade do primeiro século, tomada com 
certa amplidão.
A Solução do Problema do Mal
Não
 há dúvida de que o problema do mal foi o escolho contra o qual debalde 
se bateu a grande filosofia grega, como qualquer outra filosofia, visto 
ser o mal um problema racionalmente insolúvel. Que coisa é, pois, 
precisamente este mal, que tem o poder de tornar teoricamente 
inexplicável a realidade, e praticamente dolorosa a vida? Não é, por 
certo, o mal assim chamado metafísico, a saber, a necessária limitação 
de todo ser criado: porquanto esta limitação nada tira à perfeição dos 
vários seres a eles devida por natureza, mas apenas aquela plenitude do 
ser, que pertence unicamente a Deus, rigorosamente, isto é, 
teisticamente concebido como transcendente e criador, pois esse gênero 
de mal, no teísmo, é plenamente explicável.
Não
 resta, então, senão o mal, o chamado físico e moral, porquanto é 
limitação da natureza, verdadeira imperfeição de um determinado ser. O 
mal, físico e moral, é um problema, precisamente se se considerar a 
natureza específica do homem, a qual é a natureza do animal racional, o 
que não significa certamente lhe pertença a racionalidade pura, devida 
ao puro espírito; mas certamente exige a subordinação do sensível ao 
inteligível, do material ao espiritual. Isto significa exigir que os 
sentidos sejam instrumentos do intelecto e o instinto seja instrumento 
da vontade, naquele característico processo que é o conhecimento e a 
operação humana; exige que o corpo humano e a natureza em geral sejam 
submetidos às imposições do espírito, como deveria ser em uma hierarquia
 racional dos valores.
Ora,
 se se considerar, sem preconceitos, o indivíduo e a humanidade, a 
psicologia e a história, as coisas serão bem diferentes. Com efeito, 
demais vezes o sentido - do qual o conhecimento deve no entanto partir -
 sobrepuja o intelecto. E bem poucos homens e só com muitas dificuldades
 e não sem graves erros, chegam ao conhecimento daquelas verdades 
racionais - Deus, a alma, etc. - que são, entretanto, indispensáveis 
para uma solução humana do problema da vida. E, mais frequentemente 
ainda, o instinto assenhoreia-se da vontade, e a maioria dos homens 
viveu e vive cegamente, contra as exigências da própria natureza 
racional, mesmo quando a verdade é conhecida pelo intelecto.
Este
 é o mal moral, espiritual, que domina o mundo humano. Pelo que diz 
respeito ao mal físico, a coisa é ainda mais patente: basta lembrar o 
sofrimento e a morte. Com isto, naturalmente, não se quer dizer que a 
impassibilidade e a imortalidade sejam uma exigência da natureza humana,
 como tal, mas unicamente se quer frisar que a dor e a morte - bem como a
 ignorância e a concupiscência - em sua atual intensidade, se evidenciam
 como um estado inatural com respeito ao nosso ser espiritual e 
racional.
Temos,
 pois, uma natureza, a natureza humana, que nos parece desordenada. A 
filosofia conhece a essência metafísica dessa natureza humana, deve 
reconhecer-lhe também a desordem, mas ignora-lhe a causa. A filosofia é 
certamente construtiva, metafísica; mas, chegada ao seu vértice, deve 
tornar-se crítica, isto é, deve reconhecer os próprios limites, 
porquanto não consegue resolver plenamente o seu problema, o problema da
 vida, precisamente por causa do mal. Não pode, todavia, renunciar 
absolutamente à solução deste problema, já que, desta maneira, 
comprometeria também a sua maior conquista: Deus. É antiga e famosa a 
objeção: de que modo concordar a absoluta sabedoria e poder de Deus com 
todo o mal que há no mundo, por ele criado? Deve-se entender, 
naturalmente, o mal físico e moral, e este propriamente em relação ao 
homem.
O Pecado Original
Se
 a filosofia é impotente para resolver plenamente o seu próprio 
problema, há, porventura, outro meio a que pode o espírito humano 
razoavelmente recorrer para a solução de um problema tão premente? 
Apresenta-se a religião, e especialmente uma religião entre as 
religiões, a qual nos fala de uma queda do homem no começo de sua 
história, e afirma esta verdade - bem como todo o sistema dos seus 
dogmas - como divinamente revelada.
Quanto
 à possibilidade de uma queda do espírito, em geral, isto é, quanto à 
possibilidade do mal moral, do pecado, basta lembrar que o ser criado 
pode, por sua natureza, desviar-se da ordem: porquanto há nele algo de 
não-ser, de potência , precisamente pelo fato de ser ele um ser criado. E
 o livre arbítrio proporciona-lhe o modo de realizar essa possibilidade,
 a saber, proporciona-lhe o modo de desviar-se efetivamente do ser, da 
racionalidade, enveredando pelo não-ser, pela irracionalidade. Quanto à 
realidade de uma queda original do homem, remetemos ao fato da Revelação
 em que é contida.
Da
 Escritura e da Tradição, garantidas pela interpretação da Igreja e 
sistematizadas pela teologia, evidencia-se, fundamentalmente, como o 
homem primigênio não só teria possuído aquela harmonia natural , de que 
agora é privado, mas teria sido outrossim elevado, como que por nova 
criação, à ordem sobrenatural , com um conveniente conjunto de dons 
preternaturais . Noutras palavras, o homem teria participado - com uma 
natureza extraordinariamente dotada - da vida de Deus, teria gozado de 
uma espécie de deificação, não por direito, mas por graça. E 
evidencia-se também que - devido a uma culpa de orgulho contra Deus, 
cometida pelo primeiro homem, do qual, pela natureza humana, devia 
descender toda a humanidade - teria o homem perdido aquela harmonia e a 
dignidade sobrenatural, juntamente com os dons conexos.
Há,
 portanto, uma enfermidade, uma debilitação espiritual e física na 
natureza humana, essencial desde o nosso nascimento, e que deve, por 
conseguinte, ser herdada. Basta, por exemplo, lembrar como, pela lei da 
hereditariedade, se podem transmitir deficiências materiais e, por 
consequência, também morais: deficiências que não dependem dos 
indivíduos, visto que eles a sofrem. O pecado original, pois - que 
importa na privação da ordem sobrenatural, isto é, na privação do único 
fim humano efetivo, até ao sofrimento e à concupiscência, quer dizer, 
até à vulneração da própria natureza - voluntário e culpado em Adão, 
seria culpado em seus descendentes, enquanto não quiserem servir-se das 
misérias provindas do pecado original como estímulo para a Redenção, 
praticando o Cristianismo, ingressando na Igreja.
O
 aspecto da condição primitiva do homem, concernente à elevação 
sobrenatural, por mais supereminente e central que seja no cristianismo,
 aqui não interessa. Com efeito, a elevação à ordem sobrenatural sendo, 
por definição, gratuita, isto é, não devida à natureza humana, bem como a
 nenhuma natureza criada, a privação da mesma, provinda do pecado, não 
podia causar vulneração em a natureza humana, nem a perda dos dons 
praternaturais. E, logo, não podia suscitar o problema do mal, que temos
 considerado insolúvel pela filosofia.
A Redenção pela Cruz
Mas,
 que sentido tem o mal no mundo? Conseguiu o homem, mediante o pecado, 
frustar o plano divino da criação? Ou o próprio mal soube Deus tirar, 
mediante uma divina dialética, o bem e até um bem maior? É o que explica
 um segundo dogma da revelação cristã, o dogma da redenção operada por 
Cristo. Segundo este dogma, Deus, isto é, o Verbo de Deus, a Segunda 
pessoa da Trindade divina, assume natureza humana, precisamente para 
reparar o pecado original e, por conseguinte, suas consequências 
naturais também. Visto a ofensa feita a Deus pelo pecado ser infinita 
com respeito ao Infinito ofendido, Deus precisava de uma reparação 
infinita, que unicamente Deus podia dar. Sendo, porém, o homem que devia
 pagar, entende-se como o verbo de Deus assuma em Cristo a natureza 
humana. Para a Redenção, teria sido suficiente o mínimo ato expiatório 
de Cristo, tendo todo ato seu um valor infinito, devido à dignidade do 
operante. Ao contrário, ele se sacrifica até à morte de cruz. Fez isto 
para dar toda a glória possível à infinita majestade de Deus no reino do
 mal e da dor proveniente do pecado; é, pois, a glória de Deus o fim 
último de toda atividade divina.
Consequente Praxe Ascética
Ascetismo e Teísmo
Das
 precedentes considerações segue-se que o cristianismo importa sempre e 
essencialmente numa praxe ascética com respeito ao mundo, e não pelo 
fato de o sobrenatural oprimir a natureza, mas por causa da desordem 
introduzida na ordem da natureza pelo pecado original.
Em
 verdade, a raiz metafísica desta praxe ascética acha-se no próprio 
teísmo, e, precisamente, no conceito de criação, tomando-se esta palavra
 "ascética" não no sentido rigoroso de renúncia aos bens criados, mas no
 sentido de que o homem, sendo criatura e, portanto dependendo 
totalmente de Deus, deve reconhecer praticamente esta sua dependência 
absoluta, este seu nada ser por si.
A
 razão humana constata, nem pode deixar de constatar, que o mundo, de 
que temos imediatamente experiência, não se pode explicar por si mesmo, 
e, logo, exige absolutamente uma explicação. Entretanto, para que o 
problema do mundo tenha verdadeiramente solução, é preciso chegar até 
Deus. E Deus, para que seja verdadeiramente a explicação do mundo, não 
pode certamente ser imanente, mas deve ser transcendente e criador, o 
que equivale dizer, a relação entre Deus e o mundo deve ser concebida 
segundo o conceito de criação, retamente definido como uma produção das 
coisas do nada por parte de Deus.
Ora,
 tal definição exclui que Deus organize uma pressuposta matéria 
qualquer, com respeito à qual Deus seria passivo e, logo, não mais 
ato-puro, não mais Deus, não mais explicação do mundo. Contrariamente a 
quanto pensava o dualismo grego, Deus cria toda a realidade. Daí nada se
 poder levantar contra ele e proclamar a sua autonomia. Além disso, é 
excluído que o mundo seja, de qualquer modo, formado pela mesma natureza
 de Deus, pois, neste caso, haveria a contradição de que Deus seria da 
mesma natureza do mundo, que não tem em si a sua explicação e, por isso,
 a procura em Deus. Contrariamente ao que pensa o panteísmo, Deus, 
criando, dispõe uma realidade essencialmente distinta de si, de modo que
 nenhum ser criado pode, de modo nenhum, exigir de participar da 
natureza divina e enaltecer como tal a sua natureza.
A
 este segundo princípio é conexa a absoluta liberdade da criação. Com 
efeito, se ela fosse necessária, ter-se-ia uma contradição semelhante à 
precedente, a saber: Deus teria necessidade do mundo que ele deve 
explicar. Deus, portanto, pode ou não pode criar, pode criar este ou um 
outro mundo, entre infinitos mundos possíveis, de modo que Deus, 
querendo criar o mundo, pode única e absolutamente criá-lo para a sua 
glória - embora esta já seja interiormente infinita, sendo Deus a 
atualidade, a perfeição plena. Se se admitisse para a obra de Deus uma 
finalidade diversa, extrínseca, seria também preciso admitir em Deus uma
 indigência, com todas as consequências acima mencionadas. Deus, 
portanto, cria o mundo do nada, e não o tira de sua substância, mas o 
cria livremente e para a sua glória. E o homem faz parte dessa criação.
Compreende-se,
 então, como a atitude prática, fundamental, da criatura racional deva 
ser, em consequência do conceito de criação, uma atitude de 
reconhecimento do próprio nada, não só na ordem do ser, mas também na 
ordem de operar, porque nada de quanto é real pode escapar à absoluta 
causalidade de Deus. Aqui falamos, evidentemente, do operar positivo, 
isto é, do bem, porquanto o mal, sendo negação, privação, não tem causa 
eficiente, mas deficiente, como diz Agostinho. Não Deus, por 
consequência, mas o homem é o autor do mal. Então, a humildade será a 
virtude essencial do sábio, como o orgulho será o pecado essencial do 
estulto; nas relações práticas com Deus - que constituem o objeto da 
religião em geral - e também nas relações com a remanente realidade, não
 em si, mas enquanto querida por Deus.
Ascetismo e Cristianismo
Deus
 quis remir o homem, exigindo ao mesmo tempo que a sua justiça fosse 
dignamente satisfeita mediante uma expiação infinita por parte do Verbo 
humanado. Esta expiação divina, porém, não dispensava, mas apenas 
tornava possível a expiação por parte do homem, precisamente através dos
 sofrimentos provenientes da desordem decorrida do pecado. Unicamente 
deste modo o homem era redimido, unicamente através da justiça se 
manifestava a misericórdia de Deus. Antes, quis Deus que fosse 
juntamente realizada a sua maior glória e o maior bem do homem, através 
do sacrifício mais completo por parte de Cristo, bem como por parte do 
homem, dada sempre a desordem das coisas, proveniente do pecado.
Esta
 - tão significativa - praxe ascética tem a sua primeira e perfeita 
realização em Cristo, redentor pela cruz. Tornando-se ele, deste modo, o
 modelo e o ideal da vida cristã. Mas, para o mundo, esta praxe ascética
 será loucura e escândalo . Os Gentios julgavam naturalmente loucura a 
renúncia cristã. Os próprios israelitas sonhavam o Redentor cercado de 
grandeza e poder, e não de humildade e sofrimento. Cristo, ao contrário,
 menosprezando a prudência e a fortaleza humanas, envereda pelo caminho 
da cruz, que repugna à natureza, mas já é a única via de salvação e de 
santificação. E, assim, Cristo - realizando a sua obra - foi julgado 
justo, mas não lhe foi feita justiça pela majestade do direito; foi 
condenado pelo povo que ele viera remir; foi abandonado pelos próprios e
 mais chegados discípulos, um dos quais - o que devia ser seu vigário - 
até o renegou, e um outro o traiu de morte. E morreu abandonado sobre a 
cruz, assistido por algumas pobres mulheres. Humanamente e também 
racionalmente falando, unicamente desta maneira se realizava a glória de
 Deus e a redenção do homem em toda a sua plenitude.
Cristo
 não apenas realizou na sua pessoa o sacrifício redentor, mas também 
apontou aos homens este caminho como sendo o caminho único para a 
salvação e a perfeição, e confirmou a doutrina com o exemplo, 
propondo-se como modelo de todos os cristãos: Eu sou o caminho, a 
verdade e a vida. A vida cristã será, portanto, a imitação de Cristo 
crucificado - diversamente embora, segundo os graus de perfeição cristã e
 as concretas diferenças individuais. Tal ensinamento ascético de Cristo
 - que, em concreto, se acha em toda a sua vida e, em especial, na sua 
morte - em abstrato se acha em toda a sua doutrina, mas especialmente no
 sermão da montanha, o sermão das bem-aventuranças, que se pode 
considerar o compêndio do espírito do Cristianismo. Aí são invertidos os
 valores terrenos, e exaltados não os ricos, os gozadores, os poderosos,
 que o mundo inveja, mas os pobres, os sofredores, os mesquinhos, 
conforme a sabedoria cristã, o que à orgulhosa razão humana parece 
estultícia. Deste modo Cristo dirá que o busquemos - isto é, que 
procuremos a sua imagem, a sua imitação - não no homem feliz, para 
gozarmos a vida em sua companhia, mas no homem sofredor, com o qual e 
para o qual sofremos e, destarte, acharemos alimento ascético.
Este
 ensinamento, Cristo dirige a todos os seus seguidores, como condição 
necessária para a salvação - se alguém quer vir após mim, renuncia-se a 
si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Entretanto, aos que aspiram à 
santidade, à plenitude da vida cristã, à perfeita imitação dele, impõe 
Cristo a renúncia total aos grandes bens do mundo: renúncia à riqueza, à
 família, à liberdade, para abraçar a pobreza, a castidade, a 
obediência. E esta a chamada via dos conselhos evangélicos, em 
contraposição com a vida comum dos preceitos. E realiza-se na clássica 
praxe cristã dos votos religiosos, sempre idêntica e imutável na 
substância, embora variável nas aplicações concretas.
Ascetismo e Caridade
Esta
 moral ascética cristã é racionalmente fundada sobre o teísmo e a 
Revelação. Garante, pois, ao homem, a consecução da felicidade na vida 
eterna, e de uma felicidade que transcende toda aspiração e capacidade 
humana. Na vida temporal esta moral ascética apresenta-se também como a 
mais sábia, porquanto torna conformada e voluntária a aceitação do 
sofrimento, já que não se apresenta mais como inesperado e trágico, pois
 não fica certamente dispensado da dor quem neste mundo entende de viver
 apenas moralmente e não heroicamente, e nem sequer quem entende de 
gozar livremente dos bens da terra. Provê igualmente esta moral ascética
 o bem dos outros, ou não parece, ao contrário, - por causa da renúncia 
ao mundo devastado pelo mal - isolar fatalmente os homens dos seus 
semelhantes? E este isolamento não é ainda mais acentuado, quando a 
perfeição se eleva dos preceitos aos conselhos?
Poderia
 assim parecer, mas assim não é. Antes de tudo, tal egoísmo está em 
franco contraste com o conceito de caridade, dominante na moral cristã, 
em lugar do clássico conceito de justiça. A caridade cristã purificou a 
civilização antiga da barbárie da exposição das crianças, da escravidão,
 das lutas dos gladiadores, barbárie que se repete, mais ou menos 
intensamente, no egoísmo de toda civilização puramente humana. A 
caridade cristã favoreceu ainda obras numerosas e fecundas para os 
infelizes, os velhos, os pobres, os doentes, mais ou menos desprezados e
 negligenciados na civilização antiga, bem como em toda civilização 
mundana em geral, apesar das aparências contrárias.
Em
 segundo lugar, a convivência social, moral, racional, não é possível 
nas atuais condições de egoísmo e malvadez humana, mas faz-se mister a 
ascética cristã para vencer este egoísmo mediante a paciência, a 
humildade, a caridade. Considere-se, por exemplo, a questão econômica e o
 problema da autoridade, que preocupam tão profundamente a sociedade 
humana. A questão econômica não se pode resolver naturalmente. Com 
efeito - prescindindo do fato de que o trabalho, em seus termos atuais, é
 uma pena, como claramente o prova a dura experiência, e a Revelação 
disto dá explicação e justificação - não somente a justiça não consegue 
abolir a pobreza, mas nem sequer a caridade, a própria caridade cristã, 
consegue tirar a humilhação do receber. Menos ainda conseguem isto a 
filantropia e os demais equivalentes humanistas. Resolve isto 
verdadeiramente só a ascética cristã, valorizando a dor, exaltando o 
sofrimento: bem-aventurados os pobres . E também não se pode resolver 
naturalmente o problema árduo da sujeição à autoridade, no entanto 
necessária para que a sociedade possa sustentar-se. O fato de a 
autoridade ser necessária à existência da sociedade, não é argumento 
suficiente para que todos obedeçam à autoridade; e isto é evidente se se
 examinam as paixões humanas, especialmente o orgulho, a violência, a 
fraude, frequentemente mais fortes em quem domina. E isto acontece não 
apenas na sociedade civil, mas também na religiosa, porquanto formada de
 homens. E, então, não fica senão a obediência no sentido cristão, 
ascético, como renúncia à própria vontade. Tal renúncia não é imoral, 
porque tem como objeto não a pessoa, mas o ofício, nem pode 
objetivamente, de modo nenhum, transpor os confins da ética.
Finalmente,
 a renúncia ascética não é estéril egoísmo, mas o contrário. 
Precisamente pelo fato de que o homem, renunciando a si mesmo e dando-se
 em holocausto a Deus, é disposto, até desejoso, imensamente capaz, 
cheio de boa vontade para sacrificar-se inteiramente para com todos. Não
 considera, todavia, a humanidade como fim último, como divina, mas 
conforme à transcendente vontade de Deus, que criou o homem à sua 
imagem, e o remiu com a Paixão do seu Verbo encarnado. A ética cristã da
 renúncia perfeita ao mundo é a mais proveitosa para a sociedade - 
familiar, nacional, universal. De fato, a prescindir dos demais, mesmo 
razoáveis, motivos de altruísmo, unicamente quem é indiferente às 
qualidades alheias, até solícito dos mais miseráveis, não encontra 
limites no altruísmo, no heroísmo, mas uma oportunidade de 
engrandecimento mediante o sacrifício.
Este
 será o caminho percorrido - embora de modos diferentes - pelos santos, 
os super-homens do cristianismo: o caminho dos conselhos evangélicos, 
que é o caminho mais perfeito do que o dos preceitos . E os santos mais 
facilmente florescem nas Ordens Religiosas, precisamente porque é 
característica das Ordens Religiosas a via dos conselhos, da renúncia ao
 mundo, cada qual realizando este ascetismo cristão com diversa 
intensidade, de modos muito diferentes, conforme os tempos, os lugares, 
os temperamentos pessoais e as necessidades sociais. E é mediante e 
através desta renúncia ascética, que os santos se tornam os grandes 
benfeitores da humanidade.
A Patrística Pré-agostiniana
Características Gerais
Com
 o nome de patrística entende-se o período do pensamento cristão que se 
seguiu à época neotestamentária, e chega até ao começo da Escolástica: 
isto é, os séculos II-VIII da era vulgar. Este período da cultura cristã
 é designado com o nome de Patrística, porquanto representa o pensamento
 dos Padres da Igreja, que são os construtores da teologia católica, 
guias, mestres da doutrina cristã. Portanto, se a Patrística interessa 
sumamente à história do dogma, interessa assaz menos à história, em que 
terá importância fundamental a Escolástica.
A
 Patrística é contemporânea do último período do pensamento grego, o 
período religioso, com o qual tem fecundo contato, entretanto dele 
diferenciado-se profundamente, sobretudo como o teísmo se diferencia do 
panteísmo. E é também contemporâneo do império romano, com o qual também
 polemiza, e que terminará por se cristianizar depois de Constantino. 
Dada a culminante grandeza de Agostinho, a Patrística será dividida em 
três períodos: antes de Agostinho, período em que, filosoficamente, 
interessam especialmente os chamados apologistas e os padres 
alexandrinos; Agostinho, que merece um desenvolvimento à parte, visto 
ser o maior dos Padres; depois de Agostinho vem o período que, logo após
 a sistematização, representa a decadência da Patrística.
O II Século
Os Apologistas e os Controvertistas
A
 Patrística do II século é caracterizada pela defesa que faz do 
cristianismo contra o paganismo, o hebraísmo e as heresias. Os padres 
deste período podem-se dividir em três grupos: os chamados padres 
apostólicos, os apologistas e os controversistas. Interessam-nos 
particularmente os segundos, pela defesa racional do cristianismo contra
 o paganismo; ao passo que os primeiros e os últimos têm uma importância
 religiosa, dogmática, no âmbito do próprio cristianismo.
Chamam-se
 apostólicos os escritos não canônicos, que nos legaram as duas 
primeiras gerações cristãs, desde o fim do primeiro século até a metade 
do segundo. Seus autores, quando conhecidos, recebem o apelido de padres
 apostólicos, porquanto floresceram no templo dos Apóstolos, ou os 
conheceram diretamente, ou foram discípulos imediatos deles.
Costuma-se
 designar como o nome de apologistas os escritores cristãos dos fins do 
segundo século, que procuram de um lado demonstrar a inocência dos 
cristãos para obter em favor deles a tolerância das autoridades 
públicas; e provar do outro lado o valor da religião cristã para lhe 
granjear discípulos. Seus escritos, portanto, são, por vezes, apologias 
propriamente ditas, por vezes, obras de controvérsia, às vezes, teses. E
 são dirigidas às vezes contra os pagãos, outras vezes contra os 
hebreus. Os apologistas, mais cultos do que os padres apostólicos, 
frequentemente são filósofos - por exemplo, São Justino Mártir - ainda 
que não apresentem uma unidade sistemática; continuam filósofos também 
depois da conversão, e se esforçam por defender a fé mediante a 
filosofia. Para bem compreendê-lo, é mister lembrar que o escopo por 
eles visado era, sobretudo, por em focos os pontos de contato existentes
 entre o cristianismo e a razão, entre o cristianismo e a filosofia. E 
apresentavam o cristianismo como uma sabedoria, aliás, como a sabedoria 
mais perfeita, para levarem, gradualmente, até à conversão os pagãos.
O
 maior dos apologistas é certamente São Justino. Flávio Justino Mártir 
nasceu em Siquém na Palestina em princípios do segundo século, e morreu 
mártir no ano 170. Depois de Ter peregrinado pelas mais diversas escolas
 filosóficas - peripatética, estóica, pitagórica - em busca da verdade 
para a solução do problema da vida, abandonando o platonismo, último 
estádio da sua peregrinação filosófica, entrou no cristianismo, onde 
encontrou a paz. Ufana-se ele de ser filósofo e cristão; leigo embora, 
Justino dedicou sua vida à difusão e ao ensino do cristianismo. Imitando
 os filósofos, abriu em Roma uma escola para o ensino da doutrina 
cristã. Suas obras são duas Apologias - contra os pagãos - e um Diálogo 
com o judeu Trifão - contra os hebreus. Escreveu suas obras nos meados 
do segundo século.
Justino
 procura a unidade, a conciliação entre paganismo e cristianismo, entre 
filosofia e revelação. E julga achá-la, primeiro, na crença de que os 
filósofos clássicos - especialmente Platão - dependem de Moisés e dos 
profetas, depois da doutrina famosa dos germes do Verbo, encarnado 
pessoalmente em Cristo, mas difundidos mais ou menos em todos os 
filósofos antigos.
O III Século:
Os Alexandrinos e os Africanos
O
 terceiro século apresenta um interesse particular pelo que diz respeito
 ao pensamento cristão. Tentou-se um renovamento do paganismo com bases 
no panteísmo neoplatônico e nos cultos orientais, fundidos numa 
característica síntese filosófico-religiosa em oposição ao cristianismo,
 que já ia afirmando mesmo culturalmente. Os Padres deste período 
polemizam filosoficamente com os pensadores pagãos, levados a estimarem 
seus adversários.
O
 cristianismo, sem mudar a sua fisionomia original, está em condições de
 desenvolver do seu seio um pensamento, uma filosofia, uma teologia, que
 representarão a sua essência doutrinal. Daí a distinção que então se 
afirmou entre os simples fiéis e os gnósticos - sábios - cristãos. Este 
gnosticismo cristão se afirmou especialmente em Alexandria do Egito, o 
grande centro cultural da época, mesmo do ponto de vista católico. 
Naquele famoso didascaléion, naquela celebrizada escola catequética, 
espécie de faculdade teológica, foram luminares Clemente e Orígenes.
O
 cristianismo filosófico é próprio e característico dos padres 
alexandrinos, que vivem na tradição cultural helenista, enaltecedora e 
potenciadora dos valores intelectuais, teoréticos, especulativos, 
metafísicos, dos quais teremos, em tempo oportuno, o primeiro sistema 
orgânico de teologia cristã, graças a Orígenes. É, entretanto, 
hostilizado pelos padres chamados africanos, pertencentes não à África 
oriental, ao Egito, mas África ocidental, latina, que se ressentem, por 
conseguinte, do espírito prático, pragmatista, jurídico, moralista 
latino - que produziu os estóicos e os cínicos romanos - em oposição ao 
gênio grego. Se bem que entres os padres africano-latinos apareçam vulto
 notáveis, como por exemplo Tertuliano, os padres africanos - bem como 
os padres latinos em geral - não apresentam interesse particular para a 
história da filosofia.
Clemente
 Alexandrino - Tito Flávio Clemente - nasceu no ano 150, provavelmente 
em Atenas, de família pagã. Converteu-se ao cristianismo talvez levado 
por exigências filosóficas; desejoso de um conhecimento mais profundo do
 cristianismo, empreendeu uma série de viagens em busca de mestres 
cristãos. Depois de ter visitado a Magna Grécia, a Síria e a Palestina, 
foi, pelo ano 180, para Alexandria do Egito, onde o seu espírito achou 
finalmente paz junto do eminente mestre Panteno. Falecido este no ano 
200, Clemente foi chamado para dirigir a famosa escola catequética, 
cabendo-lhe a glória de ter o grande Orígines entre seus discípulos. 
Devido às perseguições anticristãs do imperador Setímio Severo, que 
mandou fechar a escola, Clemente teve de suspender o seu ensino alguns 
anos depois. Retirou-se para a Ásia Menor, junto de um seu antigo 
discípulo, o bispo Alexandre de Capadócia, e morreu nessa cidade entre 
211 e 216.
Embora
 as preocupações de Clemente sejam, sobretudo, morais e pedagógicas, e 
os meios empregados, satisfatoriamente, religiosos e cristãos, 
sobretudo, valoriza ele também, e grandemente, a filosofia, à maneira de
 Justino, sendo ademais dotado de uma erudição prodigiosa e de uma 
cultura incomparável. As obras principais de Clemente são: o Protréptico
 - isto é, o Verbo promotor da vida cristã - pequena apologia em doze 
capítulos, perfeitamente acabada na forma e no conteúdo; o Pedagogo, em 
três livros, apresentado no primeiro o Verbo como educador das almas, e 
indicando nos demais dois livros os vícios mais graves, que os cristãos 
devem evitar; os Strômata - tapetes - que é uma coleção de pensamentos, 
considerações, dissertações filosóficas, morais e religiosas, de 
interesse especialmente ético.
Filosoficamente
 importante e característica é a distinção que faz Clemente dos cristãos
 em simples fiéis e gnósticos, isto é, sábios, perfeitos. O gnóstico 
cristão, diversamente do simples fiel ou crente, é consciente de sua fé,
 justificando-a e organizando-a racionalmente, filosoficamente. 
"Querendo harmonizar a doutrina cristã com a filosofia pagã, acentuava 
demasiadamente a última, negligenciando um tanto a Sagrada Escritura e a
 Tradição".
Discípulo
 de Clemente, Orígenes, chamado adamantino por sua energia incomparável,
 é o maior expoente filosófico da escola alexandrina. Nasceu em 
Alexandria do Egito, pelo ano 185, de família cristã. O precoce menino 
recebeu do pai, Leônidas, a primeira formação literária e, sobretudo, 
religiosa. Durante a perseguição de Septímio Severo, Orígenes, 
desprezando os mais graves perigos, foi encarregado pelo bispo de 
Alexandria, Demétrio, da direção da famosa escola didascaléion, que o 
seu mestre Clemente teve que abandonar. Tinha então Orígenes dezoito 
anos. Aos vinte e cinco, sentindo a necessidade de conhecer 
profundamente as doutrinas que desejava combater e querendo completar a 
sua formação, escutou - como Plotino - as lições de Amônio Saca. 
Empreendeu então longas viagens para se instruir, sobretudo, 
religiosamente, e para atender aos desejos de grandes personagens que 
queriam consultá-lo. Ordenado sacerdote no ano 230 pelos bispos de 
Cesaréia e de Jerusalém, contra a vontade de seu bispo, de volta à 
pátria, foi proibido por este de ensinar e foi condenado, devido também a
 algumas opiniões heterodoxas contidas na sua grande obra Sobre os 
Princípios, e também por ciúme, talvez, no dizer de São Jerônimo. 
Retirou-se então Orígenes para a Palestina, abrindo em Cesaréia uma 
escola teológica ( chamada depois neo-alexandrina - , que superou a de 
Alexandria pelo seu caráter científico. Aí lecionou ainda durante vinte 
anos, falecendo em Tiro pelo ano 254.
A
 atividade literária de Orígenes não conhece igual, atribuindo-se-lhe 
milhares de obras. Prescindindo dos escritos exegéticos e as céticos, 
que não nos interessam, mencionamos a obra Sobre os Princípios e os oito
 livros Contra Celso . Por princípios Orígenes entende os artigos 
principais do ensino da Igreja, e as verdades primordiais deduzidas 
mediante a razão teológica das premissas reveladas, por falta de 
revelação formal. A obra Sobre os Princípios nos proporciona a ciência 
baseada na Revelação, e representa uma suma teológica verdadeira e 
própria. Representa, talvez, a primeira grande síntese doutrinal da 
Igreja, segundo a tendência metafísica dos doutores orientais. Granjeou 
ao autor grande nomeada e contém o origenismo, que depois suscitou a 
grande polêmica origenista. A obra Contra Celso é a mais célebre de 
Orígenes sob o aspecto apologético. É uma resposta à obra Sermão 
Verdadeiro de Celso, filósofo pagão. Antes de tudo, declara Orígenes que
 a melhor apologia do cristianismo é constituída pela vitalidade divina 
da Igreja, isto é, pela sua força e virtude para a reforma moral dos 
homens e pela sua difusão universal, apesar dos ataques dos adversários.
 A maior parte do escrito é, todavia, dedicada ao exame atento e 
pormenorizado das profecias, dos milagres e das afirmações solenes de 
Cristo, visto que Celso, que tinha estudado as fontes do cristianismo, o
 ataca em todos os pontos. Nesta obra, Orígenes ostenta uma erudição 
extraordinária, uma serenidade nobre e inigualável, bem como uma fé 
inabalável. Orígenes pode ser considerado o verdadeiro fundador da 
teologia científica, bem como o primeiro sistematizador do pensamento 
cristão em uma vasta síntese filosófica.
O IV Século:
Os Luminares de Capadócia
O
 século quarto, especialmente a Segunda metade, representa a idade de 
ouro da Patrística. Basta lembrar, para a igreja oriental, Atanásio, o 
malho do arianismo, os luminares de Capadócia - Basílio, Gregório 
Nazianzeno e Gregório de Nissa -, e João Crisóstomo, o mais celebrado 
representante da escola de Antioquia; para a igreja ocidental, Ambrósio 
de Milão e Jerônimo. Os padres dessa época se exprimem em aprimorada 
forma clássica e possuem uma profunda cultura filosófica. Os maiores 
dentre eles são solidamente formados na solidão monástica e ascética e 
pertencem, geralmente, às altas classes sociais. A igreja católica, 
declarada livre pelo Edito de Milão, protegida por Constantino, torna-se
 religião do estado com Teodósio. Estas condições de paz e de 
privilégio, eram certamente favoráveis à cultura cristã.
Entretanto,
 a grandeza da Patrística, no quarto século, não é tanto científica, 
quanto dogmática, teológica. A teologia, sobretudo graças aos luminares 
de Capadócia, torna-se uma construção intelectual sistemática, 
imponente, devido naturalmente à filosofia, à lógica aristotélica, que 
proporcionam o instrumento, o método, para a precisão e a organização do
 dogma. As grandes heresias da época obrigaram os padres a defender 
racionalmente, filosoficamente, a doutrina católica, atacada 
especialmente por Ário (256-336), padre alexandrino oriundo da Líbia, 
negador da divindade do Verbo. A heresia ariana - arianismo - foi 
condenada pelo concílio de Nicéia (325), sendo Atanásio o mais destacado
 e forte opositor.
São
 João Crisóstomo, de Antioquia, nasceu de família ilustre, pelo ano 344.
 Recebeu uma educação clássica aprimorada, estudando retórica, 
filosofia, direito, que, depois de batizado, valorizou cristãmente na 
solidão e no ascetismo. Padre em Antioquia, e depois bispo de 
Constantinopla, faleceu, degredado pela fé, em 407. É significativo 
neste grande prelado o senso profundo da vaidade do mundo, e a grande 
estima do cristianismo, concebido como ascética.
Também
 os grandes representantes da escola neo-alexandrina, os luminares de 
Capadócia, foram grandes testemunhas do caráter fundamentalmente 
ascético do Cristianismo. São Basílio, nascido em Cesaréia de Capadócia 
pelo ano de 330 de família rica e cristã, fez longos e aprofundados 
estudos, aperfeiçoando-se em Atenas. Recebido o batismo, abandona o 
mundo e se retira para a vida ascética, organizando a vida solitária dos
 que o seguiram, e escrevendo uma Grande Regra e uma Pequena Regra , 
para a vida monástica, em que a atividade dos monges é distribuída entre
 o trabalho, o estudo, a oração, pelo que será considerado o legislador 
do monaquismo oriental. Trata-se, porém, de regras morais, e não 
jurídicas, destinadas a um monaquismo culto, aristocrático. Grande 
admirador de Orígenes, insigne promotor da beneficência cristã quando 
bispo de Cesaréia, e organizador da vida monástica na Capadócia, faleceu
 em 379. Também São Gregório, chamado Nizianzeno, nasceu pelo ano 330 em
 Capadócia, de família cristã, fez estudos aprofundados, que aperfeiçoou
 em Atenas. Também ele admirou e praticou a vida ascética com o amigo 
Basílio, compartilhando com ele a admiração para com Orígenes. Bispo de 
Sásima antes e, em seguida, de Constantinopla, inflamou os fiéis com a 
sua pregação brilhante e comovedora. Aristocrático e delicado, pouco 
afeito à vida prática, retirou-se depois para a solidão, em conformidade
 com o seu ideal ascético e contemplativo, falecendo pelo ano 390.
São
 Gregório de Nissa foi o maior dos luminares de Capadócia e, talvez, de 
todos os padres gregos sob o aspecto especulativo e filosófico. Irmão de
 Basílio, nasceu pelo ano 355 em Cesaréia e recebida uma informação 
cultural aprimorada, foi destinado ao estado eclesiástico; entretanto, 
deixou-se desviar da sua vocação, foi professor de retórica e casou-se. 
As exortações do irmão e de Gregório Nazianzeno persuadiram-no da 
vaidade do mundo, até que afinal, abandonando a cátedra de retórica, 
retirou-se para a vida ascética contemplativa. Em seguida, foi feito 
bispo de Nissa, cidadezinha da Capadócia, primando pela sua cultura 
teológica e filosófica. Faleceu, provavelmente, em 395. Gregório de 
Nissa é o maior filósofo dos padres gregos. Esforça-se para mostrar que 
os dados da razão e os ensinamentos da fé não se hostilizam, mas se 
harmonizam reciprocamente. Possui, como verdadeiro filósofo, o gosto das
 definições claras e das classificações metódicas. Como em teologia é 
origenista, em filosofia é neoplatônico.
SANTO AGOSTINHO
A Vida e as Obras
Aurélio
 Agostinho destaca-se entre os Padres como Tomás de Aquino se destaca 
entre os Escolásticos. E como Tomás de Aquino se inspira na filosofia de
 Aristóteles, e será o maior vulto da filosofia metafísica cristã, 
Agostinho inspira-se em Platão, ou melhor, no neoplatonismo. Agostinho, 
pela profundidade do seu sentir e pelo seu gênio compreensivo, fundiu em
 si mesmo o caráter especulativo da patrística grega com o caráter 
prático da patrística latina, ainda que os problemas que 
fundamentalmente o preocupam sejam sempre os problemas práticos e 
morais: o mal, a liberdade, a graça, a predestinação.
Aurélio
 Agostinho nasceu em Tagasta, cidade da Numídia, de uma família 
burguesa, a 13 de novembro do ano 354. Seu pai, Patrício, era pagão, 
recebido o batismo pouco antes de morrer; sua mãe, Mônica, pelo 
contrário, era uma cristã fervorosa, e exercia sobre o filho uma notável
 influência religiosa. Indo para Cartago, a fim de aperfeiçoar seus 
estudos, começados na pátria, desviou-se moralmente. Caiu em uma 
profunda sensualidade, que, segundo ele, é uma das maiores consequências
 do pecado original; dominou-o longamente, moral e intelectualmente, 
fazendo com que aderisse ao maniqueísmo, que atribuía realidade 
substancial tanto ao bem como ao mal, julgando achar neste dualismo 
maniqueu a solução do problema do mal e, por consequência, uma 
justificação da sua vida. Tendo terminado os estudos, abriu uma escola 
em Cartago, donde partiu para Roma e, em seguida, para Milão. Afastou-se
 definitivamente do ensino em 386, aos trinta e dois anos, por razões de
 saúde e, mais ainda, por razões de ordem espiritual.
Entrementes
 - depois de maduro exame crítico - abandonara o maniqueísmo, abraçando a
 filosofia neoplatônica que lhe ensinou a espiritualidade de Deus e a 
negatividade do mal. Destarte chegara a uma concepção cristã da vida - 
no começo do ano 386. Entretanto a conversão moral demorou ainda, por 
razões de luxúria. Finalmente, como por uma fulguração do céu, sobreveio
 a conversão moral e absoluta, no mês de setembro do ano 386. Agostinho 
renuncia inteiramente ao mundo, à carreira, ao matrimônio; retira-se, 
durante alguns meses, para a solidão e o recolhimento, em companhia da 
mãe, do filho e dalguns discípulos, perto de Milão. Aí escreveu seus 
diálogos filosóficos, e, na Páscoa do ano 387, juntamente com o filho 
Adeodato e o amigo Alípio, recebeu o batismo em Milão das mãos de Santo 
Ambrósio, cuja doutrina e eloquência muito contribuíram para a sua 
conversão. Tinha trinta e três anos de idade.
Depois
 da conversão, Agostinho abandona Milão, e, falecida a mãe em Óstia, 
volta para Tagasta. Aí vendeu todos os haveres e, distribuído o dinheiro
 entre os pobres, funda um mosteiro numa das suas propriedades 
alienadas. Ordenado padre em 391, e consagrado bispo em 395, governou a 
igreja de Hipona até à morte, que se deu durante o assédio da cidade 
pelos vândalos, a 28 de agosto do ano 430. Tinha setenta e cinco anos de
 idade.
Após
 a sua conversão, Agostinho dedicou-se inteiramente ao estudo da Sagrada
 Escritura, da teologia revelada, e à redação de suas obras, entre as 
quais têm lugar de destaque as filosóficas. As obras de Agostinho que 
apresentam interesse filosófico são, sobretudo, os diálogos filosóficos:
 Contra os acadêmicos, Da vida beata, Os solilóquios, Sobre a 
imortalidade da alma, Sobre a quantidade da alma, Sobre o mestre, Sobre a
 música. Interessam também à filosofia os escritos contra os maniqueus: 
Sobre os costumes, Do livre arbítrio, Sobre as duas almas, Da natureza 
do bem.
Dada,
 porém, a mentalidade agostiniana, em que a filosofia e a teologia andam
 juntas, compreende-se que interessam à filosofia também as obras 
teológicas e religiosas, especialmente: Da Verdadeira Religião, As 
Confissões, A Cidade de Deus, Da Trindade, Da Mentira.
O Pensamento: A Gnosiologia
Agostinho
 considera a filosofia praticamente, platonicamente, como solucionadora 
do problema da vida, ao qual só o cristianismo pode dar uma solução 
integral. Todo o seu interesse central está, portanto, circunscrito aos 
problemas de Deus e da alma, visto serem os mais importantes e os mais 
imediatos para a solução integral do problema da vida.
O
 problema gnosiológico é profundamente sentido por Agostinho, que o 
resolve, superando o ceticismo acadêmico mediante o iluminismo 
platônico. Inicialmente, ele conquista uma certeza: a certeza da própria
 existência espiritual; daí tira uma verdade superior, imutável, 
condição e origem de toda verdade particular. Embora desvalorizando, 
platonicamente, o conhecimento sensível em relação ao conhecimento 
intelectual, admite Agostinho que os sentidos, como o intelecto, são 
fontes de conhecimento. E como para a visão sensível além do olho e da 
coisa, é necessária a luz física, do mesmo modo, para o conhecimento 
intelectual, seria necessária uma luz espiritual. Esta vem de Deus, é a 
Verdade de Deus, o Verbo de Deus, para o qual são transferidas as ideias
 platônicas. No Verbo de Deus existem as verdades eternas, as ideias, as
 espécies, os princípios formais das coisas, e são os modelos dos seres 
criados; e conhecemos as verdades eternas e as ideias das coisas reais 
por meio da luz intelectual a nós participada pelo Verbo de Deus. Como 
se vê, é a transformação do inatismo, da reminiscência platônica, em 
sentido teísta e cristão. Permanece, porém, a característica 
fundamental, que distingue a gnosiologia platônica da aristotélica e 
tomista, pois, segundo a gnosiologia platônica-agostiniana, não bastam, 
para que se realize o conhecimento intelectual humano, as forças 
naturais do espírito, mas é mister uma particular e direta iluminação de
 Deus.
A Metafísica
Em
 relação com esta gnosiologia, e dependente dela, a existência de Deus é
 provada, fundamentalmente, a priori, enquanto no espírito humano 
haveria uma presença particular de Deus. Ao lado desta prova a priori, 
não nega Agostinho as provas a posteriori da existência de Deus, em 
especial a que se afirma sobre a mudança e a imperfeição de todas as 
coisas. Quanto à natureza de Deus, Agostinho possui uma noção exata, 
ortodoxa, cristã: Deus é poder racional infinito, eterno, imutável, 
simples, espírito, pessoa, consciência, o que era excluído pelo 
platonismo. Deus é ainda ser, saber, amor. Quanto, enfim, às relações 
com o mundo, Deus é concebido exatamente como livre criador. No 
pensamento clássico grego, tínhamos um dualismo metafísico; no 
pensamento cristão - agostiniano - temos ainda um dualismo, porém moral,
 pelo pecado dos espíritos livres, insurgidos orgulhosamente contra Deus
 e, portanto, preferindo o mundo a Deus. No cristianismo, o mal é, 
metafisicamente, negação, privação; moralmente, porém, tem uma realidade
 na vontade má, aberrante de Deus. O problema que Agostinho tratou, em 
especial, é o das relações entre Deus e o tempo. Deus não é no tempo, o 
qual é uma criatura de Deus: o tempo começa com a criação. Antes da 
criação não há tempo, dependendo o tempo da existência de coisas que 
vem-a-ser e são, portanto, criadas.
Também
 a psicologia agostiniana harmonizou-se com o seu platonismo cristão. 
Por certo, o corpo não é mau por natureza, porquanto a matéria não pode 
ser essencialmente má, sendo criada por Deus, que fez boas todas as 
coisas. Mas a união do corpo com a alma é, de certo modo, extrínseca, 
acidental: alma e corpo não formam aquela unidade metafísica, 
substancial, como na concepção aristotélico-tomista, em virtude da 
doutrina da forma e da matéria. A alma nasce com o indivíduo humano e, 
absolutamente, é uma específica criatura divina, como todas as demais. 
Entretanto, Agostinho fica indeciso entre o criacionismo e o 
traducionismo, isto é, se a alma é criada diretamente por Deus, ou 
provém da alma dos pais. Certo é que a alma é imortal, pela sua 
simplicidade. Agostinho, pois, distingue, platonicamente, a alma em 
vegetativa, sensitiva e intelectiva, mas afirma que elas são fundidas em
 uma substância humana. A inteligência é divina em intelecto intuitivo e
 razão discursiva; e é atribuída a primazia à vontade. No homem a 
vontade é amor, no animal é instinto, nos seres inferiores cego apetite.
Quanto
 à cosmologia, pouco temos a dizer. Como já mais acima se salientou, a 
natureza não entra nos interesses filosóficos de Agostinho, preso pelos 
problemas éticos, religiosos, Deus e a alma. Mencionaremos a sua famosa 
doutrina dos germes específicos dos seres - rationes seminales. Deus, a 
princípio, criou alguns seres já completamente realizados; de outros 
criou as causas que, mais tarde, desenvolvendo-se, deram origem às 
existências dos seres específicos. Esta concepção nada tem que ver com o
 moderno evolucionismo , como alguns erroneamente pensaram, porquanto 
Agostinho admite a imutabilidade das espécies, negada pelo moderno 
evolucionismo. 
A Moral
Evidentemente,
 a moral agostiniana é teísta e cristã e, logo, transcendente e 
ascética. Nota característica da sua moral é o voluntarismo, a saber, a 
primazia do prático, da ação - própria do pensamento latino -, 
contrariamente ao primado do teorético, do conhecimento - próprio do 
pensamento grego. A vontade não é determinada pelo intelecto, mas 
precede-o. Não obstante, Agostinho tem também atitudes teoréticas como, 
por exemplo, quando afirma que Deus, fim último das criaturas, é 
possuído por um ato de inteligência. A virtude não é uma ordem de razão,
 hábito conforme à razão, como dizia Aristóteles, mas uma ordem do amor.
Entretanto
 a vontade é livre, e pode querer o mal, pois é um ser limitado, podendo
 agir desordenadamente, imoralmente, contra a vontade de Deus. E deve-se
 considerar não causa eficiente, mas deficiente da sua ação viciosa, 
porquanto o mal não tem realidade metafísica. O pecado, pois, tem em si 
mesmo imanente a pena da sua desordem, porquanto a criatura, não podendo
 lesar a Deus, prejudica a si mesma, determinando a dilaceração da sua 
natureza. A fórmula agostiniana em torno da liberdade em Adão - antes do
 pecado original - é: poder não pecar; depois do pecado original é: não 
poder não pecar; nos bem-aventurados será: não poder pecar . A vontade 
humana, portanto, já é impotente sem a graça. O problema da graça - que 
tanto preocupa Agostinho - tem, além de um interesse teológico, também 
um interesse filosófico, porquanto se trata de conciliar a causalidade 
absoluta de Deus com o livre arbítrio do homem. Como é sabido, 
Agostinho, para salvar o primeiro elemento, tende a descurar o segundo.
Quanto
 à família , Agostinho, como Paulo apóstolo, considera o celibato 
superior ao matrimônio; se o mundo terminasse por causa do celibato, ele
 alegrar-se-ia, como da passagem do tempo para a eternidade. Quanto à 
política, ele tem uma concepção negativa da função estatal; se não 
houvesse pecado e os homens fossem todos justos, o Estado seria inútil. 
Consoante Agostinho, a propriedade seria de direito positivo, e não 
natural. Nem a escravidão é de direito natural, mas consequência do 
pecado original, que perturbou a natureza humana, individual e social. 
Ela não pode ser superada naturalmente, racionalmente, porquanto a 
natureza humana já é corrompida; pode ser superada sobrenaturalmente, 
asceticamente, mediante a conformação cristã de quem é escravo e a 
caridade de quem é amo.
O Mal
Agostinho
 foi profundamente impressionado pelo problema do mal - de que dá uma 
vasta e viva fenomenologia. Foi também longamente desviado pela solução 
dualista dos maniqueus, que lhe impediu o conhecimento do justo conceito
 de Deus e da possibilidade da vida moral. A solução deste problema por 
ele achada foi a sua libertação e a sua grande descoberta 
filosófico-teológica, e marca uma diferença fundamental entre o 
pensamento grego e o pensamento cristão. Antes de tudo, nega a realidade
 metafísica do mal. O mal não é ser, mas privação de ser, como a 
obscuridade é ausência de luz. Tal privação é imprescindível em todo ser
 que não seja Deus, enquanto criado, limitado. Destarte é explicado o 
assim chamado mal metafísico, que não é verdadeiro mal, porquanto não 
tira aos seres o lhes é devido por natureza. Quanto ao mal físico, que 
atinge também a perfeição natural dos seres, Agostinho procura 
justificá-lo mediante um velho argumento, digamos assim, estético: o 
contraste dos seres contribuiria para a harmonia do conjunto. Mas é esta
 a parte menos afortunada da doutrina agostiniana do mal.
Quanto
 ao mal moral, finalmente existe realmente a má vontade que livremente 
faz o mal; ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o 
mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do homem, livre e 
limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. O mal
 moral entrou no mundo humano pelo pecado original e atual; por isso, a 
humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral, além de o ter 
sido com a perda dos dons gratuitos de Deus. Como se vê, o mal físico 
tem, deste modo, uma outra explicação mais profunda. Remediou este mal 
moral a redenção de Cristo, Homem-Deus, que restituiu à humanidade os 
dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral; mas deixou permanecer
 o sofrimento, consequência do pecado, como meio de purificação e 
expiação. E a explicação última de tudo isso - do mal moral e de suas 
consequências - estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o
 bem do mal, do que não permitir o mal. Resumindo a doutrina agostiniana
 a respeito do mal, diremos: o mal é, fundamentalmente, privação de bem 
(de ser); este bem pode ser não devido (mal metafísico) ou devido (mal 
físico e moral) a uma determinada natureza; se o bem é devido nasce o 
verdadeiro problema do mal; a solução deste problema é estética para o 
mal físico, moral (pecado original e Redenção) para o mal moral (e 
físico).
A História
Como
 é notório, Agostinho trata do problema da história na Cidade de Deus, e
 resolve-o ainda com os conceitos de criação, de pecado original e de 
Redenção. A Cidade de Deus representa, talvez, o maior monumento da 
antigüidade cristã e, certamente, a obra prima de Agostinho. Nesta obra é
 contida a metafísica original do cristianismo, que é uma visão orgânica
 e inteligível da história humana. O conceito de criação é indispensável
 para o conceito de providência, que é o governo divino do mundo; este 
conceito de providência é, por sua vez, necessário, a fim de que a 
história seja suscetível de racionalidade. O conceito de providência era
 impossível no pensamento clássico, por causa do basilar dualismo 
metafísico. Entretanto, para entender realmente, plenamente, o plano da 
história, é mister a Redenção, graças aos quais é explicado o enigma da 
existência do mal no mundo e a sua função. Cristo tornara-se o centro 
sobrenatural da história: o seu reino, a cidade de Deus , é representada
 pelo povo de Israel antes da sua vinda sobre a terra, e pela Igreja 
depois de seu advento. Contra este cidade se ergue a cidade terrena, 
mundana, satânica, que será absolutamente separada e eternamente punida 
nos fins dos tempos.
Agostinho
 distingue em três grandes seções a história antes de Cristo. A primeira
 concerne à história das duas cidades, após o pecado original, até que 
ficaram confundidas em um único caos humano, e chega até a Abraão, época
 em que começou a separação. Na Segunda descreve Agostinho a história da
 cidade de Deus , recolhida e configurada em Israel, de Abraão até 
Cristo. A terceira retoma, em separado, a narrativa do ponto em que 
começa a história da Cidade de Deus separada, isto é, desde Abraão, para
 tratar paralela e separadamente da Cidade do mundo, que culmina no 
império romano. Esta história, pois, fragmentária e dividida, onde 
parece que Satanás e o mal têm o seu reino, representa, no fundo, uma 
unidade e um progresso. É o progresso para Cristo, sempre mais 
claramente, conscientemente e divinamente esperado e profetizado em 
Israel; e profetizado também, a seu modo, pelos povos pagãos, que, 
consciente ou inconscientemente, lhe preparavam diretamente o caminho. 
Depois de Cristo cessa a divisão política entre as duas cidades; elas se
 confundem como nos primeiros tempos da humanidade, com a diferença, 
porém, de que já não é mais união caótica, mas configurada na unidade da
 Igreja. Esta não é limitada por nenhuma divisão política, mas supera 
todas as sociedades políticas na universal unidade dos homens e na 
unidade dos homens com Deus. A Igreja, pois, é acessível, 
invisivelmente, também às almas de boa vontade que, exteriormente, dela 
não podem participar. A Igreja transcende, ainda, os confins do mundo 
terreno, além do qual está a pátria verdadeira. Entretanto, visto que 
todos, predestinados e ímpios, se encontram empiricamente confundidos na
 Igreja - ainda que só na unidade dialética das duas cidades, para o 
triunfo da Cidade de Deus - a divisão definitiva, eterna, absoluta, 
justíssima, realizar-se-á nos fins dos tempos, depois da morte, depois 
do juízo universal, no paraíso e no inferno. É uma grande visão unitária
 da história, não é uma visão filosófica, mas teológica: é uma teologia,
 não uma filosofia da história.
ESCOLÁSTICA PRÉ- TOMISTA
Características Gerais
A
 Escolástica representa o último período do pensamento cristão, que vai 
do começo do século IX até o fim do século XVI, isto é, da constituição 
do sacro romano império bárbaro, ao fim da Idade Média, que se assinala 
geralmente com a descoberta da América (1492). Este período do 
pensamento cristão se designa com o nome de escolástica, porquanto era a
 filosofia ensinada nas escolas da época, pelos mestres, chamados, por 
isso, escolásticos. As matérias ensinadas nas escolas medievais eram 
representadas pelas chamadas artes liberais, divididas em trívio - 
gramática, retórica, dialética - e quadrívio - aritmética, geometria, 
astronomia, música. A escolástica surge, historicamente, do especial 
desenvolvimento da dialética.
A
 falta dessa distinção - específica do pensamento agostiniano - 
manifesta-se não apenas na corrente chamada mística, mas também na 
orientação denominada dialética do pensamento medieval pré-tomista. 
Misticismo e dialeticismo, todavia, se diferenciam profundamente entre 
si. O segundo, com efeito, embora parta da revelação e do sobrenatural, 
toma-os como dados e pretende penetrá-los mediante a filosofia, até 
procurar as razões necessárias dos mistérios, finalizando uma espécie de
 racionalismo (Anselmo de Aosta e Pedro Abelardo). É, porém, um 
racionalismo inconsciente, proveniente da ignorância da verdadeira 
natureza e dos verdadeiros limites da razão. E, mesmo que os resultados 
lógicos pudessem ser os mesmos do racionalismo verdadeiro e próprio, o 
escopo não era reduzir a religião aos limites da razão humana, mas 
levantar esta à compreensão do supra-inteligível, a uma espécie de 
intuição mística.
A
 tendência mística, pelo contrário, (São Pedro Damião e São Bernardo de 
Claraval) põe, acima e contra a razão e o intelecto, uma outra forma de 
conhecimento, de experiência do Divino: o sentimento, a fé, a vontade, o
 amor, culminando na união mística, no êxtase. 
Depois
 destas premissas, podemos dividir a escolástica em três períodos, 
colocando o período central da escolástica a figura soberana de Tomás de
 Aquino. Teremos, assim, um período pré-tomista em que persiste a 
tendência teológica-agostiniana. Este primeiro período da escolástica 
vai do começo do século IX (Carlos Magno) até à metade do século XIII 
(Tomás de Aquino), e pode ser assim dividido: séculos IX e X (Scoto 
Erígena e a questão dos universais ); séculos XI e XII (místicos e 
dialéticos); século XIII (o triunfo do aristotelismo).
O
 segundo período da escolástica é dominado pela figura soberana de Tomás
 de Aquino, o Aristóteles do pensamento filosófico cristão; este período
 coincide com a Segunda metade do século XIII.
Depois
 de Tomás de Aquino, a escolástica declina como metafísica (séculos XIV e
 XV), devido a um anacrônico e ilógico retorno ao agostinianismo. 
Afirmam-se, entretanto, ao mesmo tempo, tendências novas para a 
experiência e a concretidade, representando como que o prelúdio do 
pensamento moderno. Tal desenvolvimento da escolástica no sentido da 
experiência e da concretidade, é devido em especial aos franciscanos 
ingleses de Osford - Rogério Bacon, Duns Scoto, Guilherme de Occam -, em
 conformidade com as tendências positivas e práticas do espírito 
anglo-saxônio.
Educação e Cultura na Idade Média
Carlos
 Magno pretendia dar uma unidade interior, espiritual, ao seu vasto e 
vário império e, portanto, educar intelectual, moral e religiosamente os
 povos bárbaros que o constituíam. Deste modo restauraria a civilização e
 a religião, a cultura clássica e o catolicismo e lhes daria incremento.
 Para tanto, o meio natural eram as escolas, e o clero se apresentava 
como o mais apto e preparado docente, quer pelo seu imanente caráter de 
mestre do povo, quer pela cultura de que era dotado. Na intenção de 
Carlos Magno, complexo devia ser o papel das escolas, que ele ia 
fundando e desenvolvendo: formar, antes de tudo, mestres adequados para 
as escolas, isto é, um clero culto; educar, em seguida, a massa popular,
 seu escopo final; preparar uma classe dirigente em geral e, em 
especial, os funcionários do império.
Havia
 nos mosteiros beneditinos escolas monásticas, surgidas da própria 
exigência de uma observância adequada da Regra de São Bento. 
Paulatinamente espalharam-se também as escolas episcopais, imitações 
atualizadas das escolas catequéticas do cristianismo primitivo. As 
escolas monásticas dos mosteiros visavam, antes de tudo, a formação dos 
monges futuros (escolas internas), e, depois, a formação dos leigos 
cultos (escolas externas), proporcionando, ao mesmo tempo, o ensino 
religioso e os rudimentos das ciências profanas. O programa de ensino 
era, inicialmente, bastante elementar: leitura, aprender a escrever, 
canto orfeônico e um tanto de aritmética. As escolas episcopais - que 
surgem nas cidades, ao passo que as escolas monásticas surgem nos 
mosteiros afastados das cidades - visavam, em especial, a formação do 
clero secular e também de leigos instruídos, para a vida civil. Presidia
 a estas escolas um eclesiástico chamado scholasticus, dependente 
diretamente do bispo, donde o nome de escolástica à doutrina e, por 
conseguinte, à filosofia ensinadas. Os docentes eram também 
eclesiásticos e denominados também scholastici. Carlos Magno dará muito 
incremento a ambas as escolas e, ademais, fundará junto da corte 
imperial a assim chamada escola palatina, que pode ser considerada como a
 primeira universidade medieval. Mencionamos também como, com o correr 
do tempo, no âmbito das paróquias, as escolas paroquiais, destinadas a 
ensinar ao povo os primeiros elementos do saber.
Para
 elaborar o seu vasto plano de política escolar, Carlos Magno chamou à 
corte Alcuíno (735-804, mais ou menos), que veio da Inglaterra, o 
viveiro da cultura naquela época. E sob a sua inspiração, a partir do 
ano 787, foram emanados os decretos capitulares para a organização das 
escolas, enquanto o douto inglês ditava-lhes o programa relativo, que se
 espalhou pelo vasto império e perdurou invariado, podemos dizer, 
durante toda a Idade Média.
O
 programa de Alcuíno abraçava as sete artes liberais, de que acima 
falamos, repartidas no trívio e no quadrívio. O trívio abraçava as 
disciplinas formais: gramática, retórica, dialética, esta última 
desenvolvendo-se, mais tarde, na filosofia; o quadrívio abraçava as 
disciplinas reais: aritmética, geometria, astronomia, música, e, mais 
tarde, a medicina. 
Sob
 a direção de Alcuíno, foi constituída junto da corte de Carlos Magno a 
famosa escola palatina . Nela ensinaram os homens mais famosos da época,
 como, por exemplo, o historiador Paulo Diácono, o gramático Pedro de 
Pisa, o teólogo Paulino de Aquiléia. Frequentavam esta escolas o próprio
 imperador, os príncipes e os jovens da nobreza. Outras escolas 
surgiram, em seguida, especialmente na França, modeladas na escola 
palatina.
Ao
 lado desta instrução e educação eclesiásticas, ministradas por 
eclesiásticos e, sobretudo, a eclesiásticos, temos na Idade Média uma 
educação militar, ministrada por militares e a militares; a Igreja, bem 
cedo, imprimiu também a esta educação uma orientação ética, religiosa, 
católica. Como é sabido, o feudalismo é uma organização social, 
política, econômica, militar, inicialmente baseada na força, segundo o 
espírito dos bárbaros dominadores. 
A Escolástica Pré-Tomista
Os Séculos IX e X:
Scoto Erígena e o Problema dos Universais
A
 história da filosofia escolástica começa propriamente com o nome de 
Scoto Erígena. João Scoto Erígena nasceu na Irlanda, dita Scotia maior ,
 Eriu em língua céltica, donde o nome de Scoto Erígena. Pelo ano de 874 é
 chamado à corte culta e brilhante de Carlos o Calvo, para presidir e 
lecionar na escola palatina. Parece Ter falecido em França pelo ano 877.
 A sua obra principal é Da Divisão da Natureza (847), em cinco livros; é
 um diálogo entre mestre e discípulo e se inspira no neoplatonismo do 
pseudo Dionísio Areopagita, que Erígena traduziu do grego para o latim. 
Foi condenada pela Igreja (1225), e pode-se dizer que representa a 
falência definitiva das tentativas de síntese entre neoplatonismo 
emanatista e criacionismo cristão.
Erígena
 parte da revelação divina para, depois, penetrar os mistérios mediante a
 razão iluminada por Deus. Tal pretensão de penetrar racionalmente os 
mistérios revelados devia acabar logicamente no racionalismo e, por 
consequência, na supressão do sobrenatural, por mais ortodoxa que fosse a
 intenção do autor.
Eminentemente
 neoplatônico é o esquema especulativo de Da Divisão da Natureza: a 
descida da Unidade à multiplicidade, e retorno da multiplicidade à 
Unidade. De Deus desce-se às ideias supremas, aos gêneros, às espécies, 
aos indivíduos, e vice-versa. Deste modo, a divisão da natureza, da 
realidade, fica assim configurada:
1°. - A natureza que não é criada e cria (Deus Padre);
2°. - A natureza que é criada e cria (o Verbo de Deus, em que são contidas as ideias eternas, exemplares e causas das coisas);
3°. - A natureza que é criada e não cria (as coisas, realizadas mediante o Espírito de Deus);
4°.
 - A natureza que não é criada e não cria (isto é, Deus, concebido, 
porém, como ômega, termo, fim da realidade, e não como alfa, princípio).
 Como se vê, as fases primeira e quarta coincidem (Deus = não criado), 
bem como coincidem as fases segunda e terceira (mundo = criado).
O
 problema dos universais, isto é, do valor dos conceitos, das ideias, 
problema que tão cedo e tão longamente interessou a escolástica, teve 
uma solução radical no pensamento escotista. Que valor têm os conceitos,
 que são universais, em relação e enquanto representativos das coisas, 
que são, ao contrário, particulares? O problema tem uma importância 
fundamental filosófica, não apenas lógica e dialética, mas também 
gnosiológica e metafísica. 
As
 soluções desse problema oferecidas pela escolástica são 
substancialmente, três: a solução chamada do realismo transcendente 
(platônica); a solução do realismo moderado, imanente (aristotélica); a 
solução nominalista.
Segundo
 a solução do realismo transcendente, o universal, a ideia de uma 
realidade em si, não existe apenas fora da mente, mas também fora do 
objeto (universal ante rem ): - é a solução platônica, geralmente 
adotada pela escolástica incipiente. Segundo a solução do realismo 
moderado , imanente, o universal tem em si uma realidade objetiva, fora 
da mente, mas é imanente nos objetos singulares de que é essência, 
forma, princípio ativo (universal in re): - corresponde à posição 
aristotélica, com a doutrina da forma que determina a matéria. A solução
 conceptualista-nominalista sustenta que o universal não tem nenhuma 
existência objetiva, mas apenas mental (universal post rem), ou até 
puramente nominal (nominalismo) - no mundo clássico esta posição é 
defendida pelos sofistas, estóicos, epicuristas, céticos, isto é, pelas 
gnosiologias empirista e sensitista.
Os Séculos XI e XII:
Místicos e Dialéticos
Depois
 da decadência cultural que se seguiu à renascença carolíngia, começa e 
se manifesta nos séculos XI e XII um renascimento especulativo. E isto 
não obstante a luta dos teólogos, dos místicos, contra a ciência (a 
filosofia) por eles considerada um resíduo pagão, uma distração mundana,
 vaidade e orgulho; e, portanto, contra os filósofos, e os dialéticos 
que a cultivavam. Os maiores representantes da corrente mística são: São
 Pedro Damião no século XI, São Bernardo de Claraval no século XII; da 
corrente dialética os maiores expoentes são: Santo Anselmo de Aosta no 
século XI e Pedro Abelardo no século XII.
São
 Pedro Damião, cardeal e arcebispo ostiense, conselheiro do monge 
Hildebrando, mais tarde Papa Gregório VII, escreveu Da Divina 
Onipotência. Nesta obra enaltece a onipotência de Deus, até colocá-la 
acima de toda lei racional, inclusive o princípio de contradição; daí a 
vaidade da ciência, da filosofia para entender Deus e as suas obras. São
 Bernardo de Claraval rejeita, asceticamente, o saber profano como um 
perigo e um luxo. A verdadeira sabedoria consiste no conhecimento da 
própria miséria, na compaixão para com a miséria do próximo, na 
contemplação de Deus, dos divinos mistérios, de Cristo crucificado, e 
culmina no êxtase. O caminho da sabedoria é a humildade.
Santo
 Anselmo (1033-1109) nasceu em Aosta; foi monge prior e abade do 
mosteiro beneditino de Bec na Normandia e, depois, arcebispo de 
Canterbury na Inglaterra. As suas obras principais são: O Monologium, 
onde se propõe demonstrar a existência de Deus com um argumento simples e
 evidente, capaz de convencer imediatamente o ateu. Anselmo de Aosta é o
 primeiro grande filósofo medieval, após Scoto Erígena. Também ele é um 
platônico-agostiniano. O seu lema é: creio para compreender, o que 
significa partir da revelação divina, da fé e não da razão; mas é 
preciso penetrar depois a fé mediante a razão.
O
 nome de Anselmo de Aosta é ligado ao famoso argumento ontológico , a 
priori , para demonstrar a existência de Deus; este argumento é contido 
no Proslogium . Pretende ele demonstrar a existência de Deus, partindo 
do mero conceito de Deus. O conceito que temos de Deus é o de um ser 
perfeitíssimo e, logo, Deus deve também existir realmente, do contrário 
não mais seria perfeitíssimo, faltando-lhe a existência. Em realidade, o
 argumento ontológico não vale: porquanto não podemos, no nosso 
conhecimento, passar da ordem lógica para a ordem ontológica, das ideias
 aos fatos, mas deve-se passar das coisas às ideias, da ordem real à 
ordem ideal.
Pedro
 Abelardo (1097-1142), natural de Bretanha, estudante e, mais tarde, 
professor famoso em Paris, centro cultural do mundo católico, tornou-se 
religioso e foi peregrinando por muitos mosteiros e cátedras, após uma 
aventura amorosa com Heloísa, que lhe acarretou trágicas consequências. 
Acusado de heresia, foi condenado por dois concílios. Abelardo é uma das
 mais originais figuras do mundo medieval, mesmo faltando-lhe a 
profundidade e a capacidade sistemática de Santo Anselmo. Em conclusão, 
Abelardo é, ao mesmo tempo, filósofo e teólogo, grego e cristão, cético e
 sistemático, com um grande pendor para a crítica e a dialética.
Escreveu
 as obras seguintes: História das Calamidades, conto biográfico da sua 
aventura com Heloísa; Dialética; Conhece-te a ti mesmo; Sic et non. No 
ensaio ético Conhece-te a ti mesmo valoriza, na vida moral, o elemento 
subjetivo, intencional, - elemento descurado na Idade Média - em 
confronto com o elemento objetivo, legal. Reconhecendo embora que são 
necessários os dois elementos, a fim de que haja ação plenamente moral, 
Abelardo sustenta ser mais moral um ato executado com reta intenção, 
ainda que objetivamente mau, do que um ato executado conforme a lei, mas
 com intenção má. Também interessante é a sua posição crítica na 
pesquisa filosófica: a dúvida nos leva para a investigação, a 
investigação nos leva à ciência. Na obra Sic et non - coleção de 
sentenças contrastantes dos padres sobre assuntos da Escritura e da 
teologia - Abelardo se integra nas fileiras dos sentenciários, isto é, 
dos autores dos libri sententiarum entre os quais o mais famoso é Pedro 
Lombardo, (século XII), chamado precisamente magister sententiarum. Os 
livros das sentenças eram coleções sistemáticas - mais ou menos críticas
 - das doutrinas das Padres, ordenadas segundo o esquema: Deus, criação,
 queda, redenção, meios de salvação. Preparam as grandes sumas 
medievais, especialmente as tomistas, que são construções sistemáticas 
elaboradas criticamente.
Encerra-se
 assim o século XII e está nos albores o século XIII, o século de ouro 
da escolástica e do pensamento filosófico cristão.
ESCOLÁSTICA PÓS-TOMISTA
O Século XIII: O Triunfo de Aristóteles
A
 atividade filosófica da escolástica pré-tomista foi essencialmente 
lógico-dialética e, logo, formal. Esta atividade formal, intensa e 
penetrante, esperava um conteúdo adequado, racional, filosófico. E tal 
conteúdo lhe foi proporcionado pela descoberta do sistema aristotélico 
integral, que representa o ápice do pensamento helênico. O mundo 
latino-cristão, escolástico, depois de conhecido Aristóteles através da 
cultura árabe, apaixonou-se pela filosofia aristotélica, que estudou 
intensamente. Este movimento cultural e filosófico se desenvolveu 
especialmente no âmbito das universidades, então surgidas e organizadas 
eficientemente, graças aos pensadores pertencentes às ordens religiosas,
 os quais a tudo renunciaram, salvo à ciência e à caridade.
A
 atitude do mundo latino-cristão perante Aristóteles foi tríplice: uma 
decidida aversão à filosofia que queria constituir-se unicamente com 
meios racionais, e um retorno ao agostianismo (São Boaventura); um culto
 idolátrico para com o Estagirita, que foi identificado com a própria 
razão humana e preferido, no fundo, à revelação cristã, quando não 
concordava com a razão (averroísmo latino); uma aceitação e valorização 
do sistema aristotélico, mas crítica e racional, pelo qual se chegou à 
construção de uma filosofia distinta e autônoma, mas em harmonia 
hierárquica com a fé (Tomás de Aquino). 
Como
 dissemos, foram os árabes - e secundariamente os hebreus - que levaram 
ao conhecimento do mundo latino-cristão a filosofia de Aristóteles. Os 
árabes, após terem conquistado o oriente helenista, entraram em contato 
com a cultura grega, especialmente na Síria. Em seguida, estendendo suas
 conquistas até o ocidente europeu, trouxeram-lhe a própria cultura 
impregnada de aristotelismo. Os árabes foram admiradores de Aristóteles e
 da sua filosofia, que salvaram das invasões bárbaras durante as trevas 
medievais do Ocidente latino. E assim, originariamente bárbaros eles 
mesmos, os árabes, por sua vez, foram civilizados pelo pensamento grego,
 aristotélico. Os maiores filósofos árabes conhecedores de Aristóteles e
 que influíram profundamente sobre o Ocidente latino-cristão, foram 
Avicena e Averroés. Avicena tentou harmonizar a filosofia aristotélica 
com a religião islâmica. Averroés, - o famoso comentador de Aristóteles -
 afirmava ao invés a subordinação da religião a filosofia quando as 
argumentações delas fossem contrastantes, e considerava a religião como 
uma filosofia simbólica para o vulgo.
Era
 preciso traduzir do árabe para o latim as obras de Aristóteles e os 
comentários árabes. Foi o que fez, nos meados do século XII, uma 
sociedade de homens cultos surgida em Toledo, na Espanha. Mais tarde 
sentiu-se a necessidade de traduzir diretamente do grego as obras de 
Aristóteles, e, por conselho de Tomás de Aquino, Guilherme de Maerbeke 
(falecido em 1286) fez essa tradução, que proporcionou aos latinos o 
conhecimento do genuíno pensamento do Estagirita.
Ao
 mesmo tempo se desenvolveram as universidades, as grandes universidades
 medievais, surgidas geralmente das escolas episcopais; famosas mais que
 todas as outras, foram as universidades de Paris e de Oxford. A 
universidade de Paris, a mais ilustre universidade da Idade Média, 
desenvolveu especialmente a filosofia e a teologia, inspirando-se na 
mentalidade aristotélica, ao passo que a universidade de Oxford 
dedicou-se especialmente às ciências naturais, inspirando-se na 
mentalidade agostiniana. O conjunto dos professores e dos alunos da 
universidade de Paris, em princípios do século XII, constituiu um corpo 
único, uma universitas única, e obteve das autoridades civis e 
religiosas reconhecimento jurídico e grandes privilégios. Especialmente 
os papas protegeram a universidade de Paris, devido à importância que 
tinha naquele estabelecimento do ensino superior universitário a 
teologia. Desta sorte, tal universidade se tornou como que a cidadela 
cultural da ortodoxia católica, o seminário dos filósofos e dos teólogos
 de todo mundo.
Nessas
 universidades recém-organizadas, bem cedo, contra a vontade dos leigos e
 por desejo dos papas, entraram e tiveram preponderância professores 
pertencentes as duas ordens religiosas surgidas no século XIII: os 
Dominicanos , fundados por São Domingos de Gusmão, espanhol, e os 
Franciscanos , fundados por São Francisco de Assis, italiano. A 
característica nova e comum destas duas ordens religiosas foi a pobreza 
individual e coletiva, donde o nome de mendicantes a elas atribuído, e 
também certa liberdade a respeito das obrigações conventuais, para 
melhor facultar o cultivo do estudo e a pregação apostólica entre o 
povo. Os dominicanos dedicaram-se mais ao estudo, à ciência, 
inspirando-se no pensamento aristotélico, exercendo, destarte, sua maior
 influência entre as classes sociais elevadas; os franciscanos, ao 
contrário, propuseram-se como finalidade principal a caridade ativa e 
tiveram uma enorme influência sobre o povo, inspirando-se na mentalidade
 agostiniana. 
Os Filósofos Franciscanos
Os
 filósofos franciscanos julgaram fosse mister dar uma forma teórica à 
atitude prática, afetiva, sentimental do Pobrezinho de Assis que 
entrevia Deus e Jesus Cristo em todas as coisas. E julgaram os filósofos
 franciscanos que, para tanto, se prestasse o agostinianismo, com o seu 
misticismo e voluntarismo - julgando inapto para esse fim o 
racionalismo, o empirismo e o intelectualismo aristotélicos.
O
 maior representante do agostinianismo antiaristotélico foi São 
Boaventura (1221-1274); nasceu na Itália, estudou em Paris e, mais 
tarde, foi geral da sua ordem e depois cardeal de Albano. Suas obras 
principais são: os Comentários a Pedro Lombardo, o Itinerário da Mente 
para Deus, sobre a Redução das Artes à Teologia.
Segundo
 São Boaventura, a tarefa da filosofia não é teórica e racional, mas 
prática e religiosa, isto é, a filosofia deve levar a Deus, que se 
atinge imediatamente em todas as coisas e se possui pela união mística, 
como ele descreve no Itinerário. A gnosiologia de Boaventura inspira-se 
no iluminismo agostiniano, que lhe sugeriu a prova intuitiva da 
existência de Deus, enquanto ele é imediatamente presente ao espírito 
humano. A metafísica de Boaventura, pois, afirma três princípios 
diretamente opostos ao aristotelismo tomista: a existência de uma 
matéria geral sem as formas específicas; a pluralidade das formas em um 
mesmo ser, tantas quantas são as suas propriedades essenciais; a 
universalidade da matéria fora de Deus, porque todos os seres são 
compostos de matéria e de forma, inclusive as essências angélicas e as 
almas humanas. A psicologia de Boaventura, pois, sustenta que a alma 
humana é uma substância completa independentemente do corpo, composta de
 forma e matéria, auto-suficiente.
Diametralmente
 oposto a este aristotelismo agostiniano, é o aristotelismo exagerado 
averroísta, que aceita o sistema aristotélico sem crítica nenhuma, e, 
por consequência, será inteiramente infecundo. Esta orientação 
filosófica é chamada averroísta, porquanto admite - como admitia 
Averroés - que haja teses filosóficas em contraste com o teísmo da 
religião, ainda que pareça limitar-se a sustentar a existência de duas 
verdades paralelas e contrastantes, e não chegar até subordinar a 
religião à filosofia. O maior representante do averroísmo latino é Siger
 de Brabante (falecido pelo ano de 1284), professor na universidade 
parisiense, condenado mais tarde pela Igreja. A sua obra principal é Da 
Alma Intelectiva. As teses mais notáveis de Siger em contraste com o 
cristianismo são: a negação da providência divina; a afirmação da 
eternidade do mundo; a afirmação da unidade do intelecto na espécie 
humana e a consequente negação da imortalidade pessoal do homem. Entre 
estas duas posições extremadas - de idolatria ou de irredutível 
hostilidade - a respeito de Aristóteles, medeia Tomás de Aquino, que 
realizará a justificação da filosofia e da teologia.
A Escolástica Pós-Tomista
O
 tomismo era, talvez, um movimento excessivamente novo e arrojado, para 
poder súbita e definitivamente impor-se no âmbito do pensamento cristão 
medieval. Houve, portanto, no mesmo século XIII, logo depois de uma 
reação violenta contra o tomismo, um retorno especulativo ao 
agostinianismo, que julgou encobrir o seu anacronismo, tentando uma 
superação do racionalismo tomista. Entretanto esse movimento terminará 
nas posições fideístas do pré-tomismo, acentuadas e tornadas piores após
 a poderosa construção crítica e racional do Aquinate; e terminará, 
consequentemente, na ruína da metafísica, da filosofia, da ciência. A 
escolástica pós-tomista, contudo, sentiu profundamente o problema da 
concretidade e da experiência, indubitavelmente negligenciado pela 
escolástica clássica, donde surgirão a história e a ciência modernas - 
com suas técnicas - que constituem o valor do pensamento moderno.
O
 centro desta escolástica pós-tomista é a universidade de Oxford, na 
Inglaterra, cujas características tendências empiristas, experimentais, 
positivas, práticas, são conhecidas.
Rogério Bacon
Rogério
 Bacon (1210-1294), nascido na Inglaterra, entrou na ordem franciscana e
 estudou nas universidades de Oxford e de Paris. Após Ter lecionado 
algum tempo em Oxford, foi obrigado a deixar a cátedra. Estabeleceu-se 
então em Paris, onde levou uma vida agitada e foi condenado à prisão 
pelos próprios superiores da sua ordem. Crítico agressivo das maiores 
autoridades da sua época, foi um temperamento genial e original, 
enciclopédico e místico, cientista e supersticioso. A sua obra mais 
importante é a chamada Obra Maior; publicou ainda a Obra Menor e a 
Terceira Obra . 
Segundo
 Bacon, três são as fontes do saber: a autoridade, a razão, a 
experiência. A autoridade dá-nos a crença, a fé não, porém, a ciência, 
porquanto não nos fornece a compreensão das coisas que formam o objeto 
da crença. A razão proporciona essa compreensão, quer dizer, a ciência; 
no entanto, não consegue distinguir o sofisma da demonstração 
verdadeira, se não achar fundamento e confirmação na experiência. A 
ciência experimental constitui a fonte mais sólida da certeza. Conforme 
Bacon, todavia, deve-se entender por experiência não apenas a que se 
alcança pelos sentidos externos e nos oferece o mundo corpóreo, mas 
também a experiência proporcionada pela iluminação interior de Deus. É, 
como se vê, um vestígio do agostinianismo tradicional. Do 
agostinianismo, Bacon aceita também a unidade entre filosofia e 
teologia, que Tomás tinha distinguido. 
João Duns Scoto
  
O
 maior expoente da escolástica pós-tomista é, sem dúvida, João Duns 
Scoto, o doutor sutil. Também ele, inglês e franciscano, foi aluno e 
professor nas universidades de Oxford e de Paris. Faleceu em 1308. Suas 
obras principais são: a Obra Oxoniense, isto é, o tradicional comentário
 das sentenças de Pedro Lombardo; os Teoremas Sutilíssimos , as Questões
 Várias , a Obra Parisiense. Nestas obras revela-se um crítico e um 
pensador de muito superior a São Boaventura.
O
 agostinianismo de Scoto manifesta-se, antes de tudo, no conceito de 
filosofia, entendida como instrumento para entender a fé e não como obra
 autônoma do espírito, como julga Tomás de Aquino. E, por sua vez, a 
teologia não é - segundo Scoto - disciplina essencialmente especulativa -
 como julga Aquinate - mas unicamente prática, em conformidade com o 
espírito do voluntarismo agostiniano.
A
 gnosiologia iluminista-intuicionista agostiniana firma-se no escotismo 
não tanto como participação da inteligência humana na luz divina, quanto
 como sendo a espontaneidade e a independência do intelecto com respeito
 ao sentido. Em todo caso, está contra o chamado empirismo 
aristotélico-tomista, conforme o qual o nosso conhecimento começa pela 
sensibilidade. Scoto concede, em linha de fato, o empirismo do nosso 
conhecimento; não o admite em linha de direito, como exige o tomismo. E 
isso seria devido - segundo o doutor sutil - à escravidão da alma com 
respeito ao corpo, decorrente do pecado. Pelo contrário, deveria a alma,
 por sua natureza, conhecer diretamente as essências, não só as 
materiais mas também as espirituais. 
Na
 teodicéia, Scoto (contra a corrente agostiniana e em harmonia com o 
tomismo) ensina que Deus não é conhecido por intuição; a existência de 
Deus é demonstrável apenas com argumentos a posteriori , embora procure 
também combinar esta demonstração com o argumento ontológico, a priori .
 Quanto à natureza divina, o atributo essencial de Deus seria a 
infinidade.
Na
 psicologia escotista aparece ainda uma doutrina inspirada no 
agostinianismo. É a doutrina do conhecimento intuitivo da essência da 
alma, princípio de todos os demais conhecimentos. E também inspira-se no
 agostinianismo a doutrina de certa independência da alma com respeito 
ao corpo; seria a alma, por natureza, uma substância completa.
Com
 efeito, segundo Scoto, todos os seres, mesmos os espirituais, são 
compostos de matéria e de forma. A matéria não é mera potência, 
inexistente sem a forma, mas tem uma realidade sua própria; a forma não é
 única, mas há multiplicidade de formas em cada indivíduo. A 
individuação não depende da matéria (pelo que o indivíduo fica 
incognoscível intelectualmente), mas de um elemento formal individual, 
chamado haecceitas (que se sobrepõe à matéria por si subsistente e à 
hierarquia das formas); destarte, o indivíduo se tornaria 
intelectualmente cognoscível. 
Contra
 o intelectualismo tomista, Scoto sustenta a primazia da vontade: a 
vontade não depende do intelecto, mas o intelecto depende da vontade. A 
tarefa do homem é conhecer para querer e amar; na vida eterna, Deus 
seria atingido, na visão beatífica, pela vontade, pelo amor e não pelo 
intelecto. Scoto põe também em Deus esse primado de vontade sobre o 
intelecto. Desse modo, as coisas criadas por Deus não dependem 
fundamentalmente da razão divina, e sim da vontade divina. E a própria 
ordem ética não é intrinsecamente boa por motivo racional, mas 
unicamente porquanto é querida por Deus, que poderia impor uma ordem 
moral oposta, em que, por exemplo, a mentira, o adultério, o furto, o 
homicídio, etc., seriam ações morais, e imorais as ações opostas. 
Guilherme de Occam
Guilherme
 de Occam é, ao mesmo tempo, um opositor e um discípulo de Scoto: 
discípulo, no sentido de que desenvolve o individualismo de haecceitas 
escotista no nominalismo, que ele fez reviver no ambiente experimental 
da universidade de Oxford, depois do realismo imanente 
aristotélico-tomista. Guilherme nasceu em Occam na Inglaterra pouco 
antes do ano de 1300; fez-se franciscano, estudou e lecionou na 
Universidade de Oxford. Processado por heresia pela Santa Sé, 
refugiou-se junto do Imperador, então em luta contra o Papa, e escreveu 
várias obras para defender o imperador contra a Santa Sé. Faleceu pelo 
ano 1350. Suas obras especulativas são, além do Comentário às Sentenças 
de Pedro Lombardo: Sete Várias Questões , Suma de Toda a Lógica , 
Centilóquio Teológico.
Segundo
 Occam, o conhecimento sensível é superior ao conhecimento intelectual, 
porquanto o primeiro é intuitivo, ao passo que o segundo é abstrato; o 
primeiro dá-nos a realidade, concreta e individual, ao passo que o 
segundo nos dá apenas as semelhanças entre seres reais (as ideias 
gerais), e, por conseguinte, um conhecimento vago e confuso deles, que 
não nos permite distingui-los um do outro. O conhecimento sensível 
dá-nos as relações reais entre as coisas reais (o nexo causal, que se 
conhece só pela experiência), ao passo que o conhecimento intelectual 
nos proporciona conhecer as relações lógicas entre conceitos abstratos, 
sem nada nos dizer em torno da realidade das coisas. Em conclusão, a 
sensação é o sinal de um objeto na alma; o conceito é sinal de mais 
objetos percebidos como semelhantes. O conceito, pois, é um sinal 
natural, representado pelo nome que é, porém, um sinal artificial, 
variável segundo as diversas línguas.
Estamos
 na linha do experimentalismo inglês da Universidade de Oxford; desse 
experimentalismo deriva o empirismo, e deste deriva logicamente a ruína 
do conceito e, consequentemente, da ciência, da filosofia, da moral, 
etc. E deriva também a ruína das próprias noções de substância e causa, 
indispensáveis à própria ciência natural, porquanto essas noções de 
substância e causa não são experimentáveis. Pelo fato de a alma e Deus 
não serem sensíveis, segue-se que não são cognoscíveis. Deus não se pode
 provar a posteriori mediante o princípio de causalidade, válido 
empiricamente; e também não se pode provar - pela via de causalidade - a
 alma, de que é impossível demonstrar cientificamente a imortalidade.
Dado
 que em torno de Deus nada conhecemos filosoficamente, e dado outrossim o
 voluntarismo divino escotista, a vontade de Deus é absolutamente livre 
para criar uma moral mesmo oposta à presente, e para estabelecer uma 
outra ordem sobrenatural (por exemplo, se Deus quisesse, o Verbo poderia
 Ter-se encarnado num burro). Destarte, a ciência humana reduz-se à 
física, que nos faz conhecer os seres materiais, sensíveis, a lógica que
 nos ilustra as relações entre os conceitos. Portanto, nenhuma 
metafísica: o conhecimento de Deus, da alma, da moral, etc., é 
abandonado inteiramente à Revelação, à fé (fideísmo). Esta absoluta 
divisão entre a razão e a fé, coloca o ocamismo em uma posição afim à do
 averroísmo da dupla verdade. Com o diminuir da fé medieval e com o 
firmar-se do humanismo moderno, bem cedo a razão se porá contra a fé e a
 substituirá. O ocamismo tem um êxito vasto e imediato nos séculos XIV e
 XV; mas logo declina, degenerando num formalismo lógico. Com ele 
declina e, historicamente, termina a escolástica medieval.
SÃO TOMAZ DE AQUINO
A Vida e as Obras
Após
 uma longa preparação e um desenvolvimento promissor, a escolástica 
chega ao seu ápice com Tomás de Aquino. Adquire plena consciência dos 
poderes da razão, e proporciona finalmente ao pensamento cristão uma 
filosofia. Assim, converge para Tomás de Aquino não apenas o pensamento 
escolástico, mas também o pensamento patrístico, que culminou com 
Agostinho, rico de elementos helenistas e neoplatônicos, além do 
patrimônio de revelação judaico-cristã, bem mais importante.
Para
 Tomás de Aquino, porém, converge diretamente o pensamento helênico, na 
sistematização imponente de Aristóteles. O pensamento de Aristóteles, 
pois, chega a Tomás de Aquino enriquecido com os comentários 
pormenorizados, especialmente árabes.
Nasceu
 Tomás em 1225, no castelo de Roccasecca, na Campânia, da família feudal
 dos condes de Aquino. Era unido pelos laços de sangue à família 
imperial e às famílias reais de França, Sicília e Aragão. Recebeu a 
primeira educação no grande mosteiro de Montecassino, passando a 
mocidade em Nápoles como aluno daquela universidade. Depois de ter 
estudado as artes liberais, entrou na ordem dominicana, renunciando a 
tudo, salvo à ciência. Tal acontecimento determinou uma forte reação por
 parte de sua família; entretanto, Tomás triunfou da oposição e se 
dedicou ao estudo assíduo da teologia, tendo como mestre Alberto Magno, 
primeiro na universidade de Paris (1245-1248) e depois em Colônia.
Também
 Alberto, filho da nobre família de duques de Bollstädt (1207-1280), 
abandonou o mundo e entrou na ordem dominicana. Ensinou em Colônia, 
Friburgo, Estrasburgo, lecionou teologia na universidade de Paris, onde 
teve entre os seus discípulos também Tomás de Aquino, que o acompanhou a
 Colônia, aonde Alberto foi chamado para lecionar no estudo geral de sua
 ordem. A atividade científica de Alberto Magno é vastíssima: trinta e 
oito volumes tratando dos assuntos mais variados - ciências naturais, 
filosofia, teologia, exegese, ascética. 
Em
 1252 Tomás voltou para a universidade de Paris, onde ensinou até 1269, 
quando regressou à Itália, chamado à corte papal. Em 1269 foi de novo à 
universidade de Paris, onde lutou contra o averroísmo de Siger de 
Brabante; em 1272, voltou a Nápoles, onde lecionou teologia. Dois anos 
depois, em 1274, viajando para tomar parte no Concílio de Lião, por 
ordem de Gregório X, faleceu no mosteiro de Fossanova, entre Nápoles e 
Roma. Tinha apenas quarenta e nove anos de idade.
As obras do Aquinate podem-se dividir em quatro grupos:
1.
 Comentários: à lógica, à física, à metafísica, à ética de Aristóteles; à
 Sagrada Escritura; a Dionísio pseudo-areopagita; aos quatro livros das 
sentenças de Pedro Lombardo.
2.
 Sumas: Suma Contra os Gentios, baseada substancialmente em 
demonstrações racionais; Suma Teológica, começada em 1265, ficando 
inacabada devido à morte prematura do autor.
3. Questões: Questões Disputadas (Da verdade, Da alma, Do mal, etc.); Questões várias.
4. Opúsculos: Da Unidade do Intelecto Contra os Averroístas; Da Eternidade do Mundo, etc.
O Pensamento: A Gnosiologia
Diversamente
 do agostinianismo, e em harmonia com o pensamento aristotélico, Tomás 
considera a filosofia como uma disciplina essencialmente teorética, para
 resolver o problema do mundo. Considera também a filosofia como 
absolutamente distinta da teologia, - não oposta - visto ser o conteúdo 
da teologia arcano e revelado, o da filosofia evidente e racional.
A
 gnosiologia tomista - diversamente da agostiniana e em harmonia com a 
aristotélica - é empírica e racional, sem inatismos e iluminações 
divinas. O conhecimento humano tem dois momentos, sensível e 
intelectual, e o segundo pressupõe o primeiro. O conhecimento sensível 
do objeto, que está fora de nós, realiza-se mediante a assim chamada 
espécie sensível . Esta é a impressão, a imagem, a forma do objeto 
material na alma, isto é, o objeto sem a matéria: como a impressão do 
sinete na cera, sem a materialidade do sinete; a cor do ouro percebido 
pelo olho, sem a materialidade do ouro.
O
 conhecimento intelectual depende do conhecimento sensível, mas 
transcende-o. O intelecto vê em a natureza das coisas - intus legit - 
mais profundamente do que os sentidos, sobre os quais exerce a sua 
atividade. Na espécie sensível - que representa o objeto material na sua
 individualidade, temporalidade, espacialidade, etc., mas sem a matéria -
 o inteligível, o universal, a essência das coisas é contida apenas 
implicitamente, potencialmente. Para que tal inteligível se torne 
explícito, atual, é preciso extraí-lo, abstraí-lo, isto é, 
desindividualizá-lo das condições materiais. Tem-se, deste modo, a 
espécie inteligível , representando precisamente o elemento essencial, a
 forma universal das coisas.
Pelo
 fato de que o inteligível é contido apenas potencialmente no sensível, é
 mister um intelecto agente que abstraia, desmaterialize, 
desindividualize o inteligível do fantasma ou representação sensível. 
Este intelecto agente é como que uma luz espiritual da alma, mediante a 
qual ilumina ela o mundo sensível para conhecê-lo; no entanto, é 
absolutamente desprovido de conteúdo ideal, sem conceitos diferentemente
 de quanto pretendia o inatismo agostiniano. E, ademais, é uma faculdade
 da alma individual, e não noa advém de fora, como pretendiam ainda i 
iluminismo agostiniano e o panteísmo averroísta. O intelecto que 
propriamente entende o inteligível, a essência, a ideia, feita 
explícita, desindividualizada pelo intelecto agente, é o intelecto 
passivo , a que pertencem as operações racionais humanas: conceber, 
julgar, raciocinar, elaborar as ciências até à filosofia.
Como
 no conhecimento sensível, a coisa sentida e o sujeito que sente, formam
 uma unidade mediante a espécie sensível, do mesmo modo e ainda mais 
perfeitamente, acontece no conhecimento intelectual, mediante a espécie 
inteligível, entre o objeto conhecido e o sujeito que conhece. 
Compreendendo as coisas, o espírito se torna todas as coisas, possui em 
si, tem em si mesmo imanentes todas as coisas, compreendendo-lhes as 
essências, as formas. 
É
 preciso claramente salientar que, na filosofia de Tomás de Aquino, a 
espécie inteligível não é a coisa entendida, quer dizer, a representação
 da coisa (id quod intelligitur), pois, neste caso, conheceríamos não as
 coisas, mas os conhecimentos das coisas, acabando, destarte, no 
fenomenismo. Mas, a espécie inteligível é o meio pelo qual a mente 
entende as coisas extramentais (é, logo, id quo intelligitur). E isto 
corresponde perfeitamente aos dados do conhecimento, que nos garante 
conhecermos coisas e não idéias; mas as coisas podem ser conhecidas 
apenas através das espécies e das imagens, e não podem entrar 
fisicamente no nosso cérebro.
O
 conceito tomista de verdade é perfeitamente harmonizado com esta 
concepção realista do mundo, e é justificado experimentalmente e 
racionalmente. A verdade lógica não está nas coisas e nem sequer no mero
 intelecto, mas na adequação entre a coisa e o intelecto: veritas est 
adaequatio speculativa mentis et rei. E tal adequação é possível pela 
semelhança entre o intelecto e as coisas, que contêm um elemento 
inteligível, a essência, a forma, a ideia. O sinal pelo qual a verdade 
se manifesta à nossa mente, é a evidência; e, visto que muitos 
conhecimentos nossos não são evidentes, intuitivos, tornam-se 
verdadeiros quando levados à evidência mediante a demonstração.
Todos
 os conhecimentos sensíveis são evidentes, intuitivos, e, por 
consequência, todos os conhecimentos sensíveis são, por si, verdadeiros.
 Os chamados erros dos sentidos nada mais são que falsas interpretações 
dos dados sensíveis, devidas ao intelecto. Pelo contrário, no campo 
intelectual, poucos são os nossos conhecimentos evidentes. São 
certamente evidentes os princípios primeiros (identidade, contradição, 
etc.). Os conhecimentos não evidentes são reconduzidos à evidência 
mediante a demonstração, como já dissemos. É neste processo 
demonstrativo que se pode insinuar o erro, consistindo em uma falsa 
passagem na demonstração, e levando, destarte, à discrepância entre o 
intelecto e as coisas.
A
 demonstração é um processo dedutivo, isto é, uma passagem necessária do
 universal para o particular. No entanto, os universais, os conceitos, 
as ideias, não são inatas na mente humana, como pretendia o 
agostinianismo, e nem sequer são inatas suas relações lógicas, mas se 
tiram fundamentalmente da experiência, mediante a indução, que colhe a 
essência das coisas. A ciência tem como objeto esta essência das coisas,
 universal e necessária.
A Metafísica
A
 metafísica tomista pode-se dividir em geral e especial. A metafísica 
geral - ou ontologia - tem como objeto o ser em geral e as atribuições e
 leis relativas. A metafísica especial estuda o ser em suas grandes 
especificações: Deus, o espírito, o mundo. Daí temos a teologia racional
 - assim chamada, para distingui-la da teologia revelada; a psicologia 
racional (racional, porquanto é filosofia e se deve distinguir da 
moderna psicologia empírica, que é ciência experimental); a cosmologia 
ou filosofia da natureza (que estuda a natureza em suas causas 
primeiras, ao passo que a ciência experimental estuda a natureza em suas
 causas segundas).
O
 princípio básico da ontologia tomista é a especificação do ser em 
potência e ato. Ato significa realidade, perfeição; potência quer dizer 
não-realidade, imperfeição. Não significa, porém, irrealidade absoluta, 
mas imperfeição relativa de mente e capacidade de conseguir uma 
determinada perfeição, capacidade de concretizar-se. Tal passagem da 
potência ao ato é o vir-a-ser , que depende do ser que é ato puro; este 
não muda e faz com que tudo exista e venha-a-ser. Opõe-se ao ato puro a 
potência pura que, de per si, naturalmente é irreal, é nada, mas pode 
tornar-se todas as coisas, e chama-se matéria.
A Natureza
Uma
 determinação, especificação do princípio de potência e ato, válida para
 toda a realidade, é o princípio da matéria e de forma. Este princípio 
vale unicamente para a realidade material, para o mundo físico, e 
interessa, portanto, especialmente à cosmologia tomista. A matéria não é
 absoluto, não-ente; é, porém, irreal sem a forma, pela qual é 
determinada, como a potência é determinada, como a potência é 
determinada pelo ato. É necessária para a forma, a fim de que possa 
existir um ser completo e real (substância). A forma é a essência das 
coisas (água, ouro, vidro) e é universal. A individuação, a 
concretização da forma, essência, em vários indivíduos, que só realmente
 existem (esta água, este ouro, este vidro), depende da matéria, que 
portanto representa o princípio de individuação no mundo físico. Resume 
claramente Maritain esta doutrina com as palavras seguintes: "Na 
filosofia de Aristóteles e Tomás de Aquino, toda substância corpórea é 
um composto de duas partes substanciais complementares, uma passiva e em
 si mesma absolutamente indeterminada (a matéria), outra ativa e 
determinante (a forma)”.
Além
 destas duas causas constitutivas (matéria e forma), os seres materiais 
têm outras duas causas: a causa eficiente e a causa final. A causa 
eficiente é a que faz surgir um determinado ser na realidade, é a que 
realiza o sínolo, a saber, a síntese daquela determinada matéria com a 
forma que a especifica. A causa final é o fim para que opera a causa 
eficiente; é esta causa final que determina a ordem observada no 
universo. Em conclusão: todo ser material existe pelo concurso de quatro
 causas - material , formal , eficiente , final; estas causas constituem
 todo ser na realidade e na ordem com os demais seres do universo 
físico.
O Espírito
Quando
 a forma é princípio da vida, que é uma atividade cuja origem está 
dentro do ser, chama-se alma. Portanto, têm uma alma as plantas (alma 
vegetativa: que se alimenta, cresce e se reproduz), e os animais (alma 
sensitiva: que, a mais da alma vegetativa, sente e se move). Entretanto,
 a psicologia racional, que diz respeito ao homem, interessa apenas a 
alma racional. Além de desempenhar as funções da alma vegetativa e 
sensitiva, a alma racional entende e quer, pois segundo Tomás de Aquino,
 existe uma forma só e, por conseguinte, uma alma só em cada indivíduo; e
 a alma superior cumpre as funções da alma inferior, como a mais contém o
 menos.
No
 homem existe uma alma espiritual - unida com o corpo, mas 
transcendendo-o - porquanto além das atividades vegetativa e sensitiva, 
que são materiais, se manifestam nele também atividades espirituais, 
como o ato do intelecto e o ato da vontade. A atividade intelectiva é 
orientada para entidades imateriais, como os conceitos; e, por 
consequência, esta atividade tem que depender de um princípio imaterial,
 espiritual, que é precisamente a alma racional. Assim, a vontade humana
 é livre, indeterminada - ao passo que o mundo material é regido por 
leis necessárias. E, portanto, a vontade não pode ser senão a faculdade 
de um princípio imaterial, espiritual, ou seja, da alma racional, que 
pelo fato de ser imaterial, isto é, espiritual, não é composta de partes
 e, por conseguinte, é imortal.
Como
 a alma espiritual transcende a vida do corpo depois da morte deste, 
isto é, é imortal, assim transcende a origem material do corpo e é 
criada imediatamente por Deus, com relação ao respectivo corpo já 
formado, que a individualiza. Mas, diversamente do dualismo 
platônico-agostiniano, Tomás sustenta que a alma, espiritual embora, é 
unida substancialmente ao corpo material, de que é a forma. Desse modo o
 corpo não pode existir sem a alma, nem viver, e também a alma, por sua 
vez, ainda que imortal, não tem uma vida plena sem o corpo, que é o seu 
instrumento indispensável.
Deus
Como
 a cosmologia e a psicologia tomistas dependem da doutrina fundamental 
da potência e do ato, mediante a doutrina da matéria e da forma, assim a
 teologia racional tomista depende - e mais intimamente ainda - da 
doutrina da potência e do ato. Contrariamente à doutrina agostiniana que
 pretendia ser Deus conhecido imediatamente por intuição, Tomás sustenta
 que Deus não é conhecido por intuição, mas é cognoscível unicamente por
 demonstração; entretanto esta demonstração é sólida e racional, não 
recorre a argumentações a priori, mas unicamente a posteriori , partindo
 da experiência, que sem Deus seria contraditória.
As
 provas tomistas da experiência de Deus são cinco: mas todas têm em 
comum a característica de se firmar em evidência (sensível e racional), 
para proceder à demonstração, como a lógica exige. E a primeira dessas 
provas - que é fundamental e como que norma para as outras - baseia-se 
diretamente na doutrina da potência e do ato. "Cada uma delas se firma 
em dois elementos, cuja solidez e evidência são igualmente 
incontestáveis: uma experiência sensível, que pode ser a constatação do 
movimento, das causas, do contingente, dos graus de perfeição das coisas
 ou da ordem que entre elas reina; e uma aplicação do princípio de 
causalidade, que suspende o movimento ao imóvel, as causas segundas à 
causa primeira, o contingente ao necessário, o imperfeito ao perfeito, a
 ordem à inteligência ordenadora".
Se
 conhecermos apenas indiretamente, pelas provas, a existência de Deus, 
ainda mais limitado é o conhecimento que temos da essência divina, como 
sendo a que transcende infinitamente o intelecto humano. Segundo o 
Aquinate, antes de tudo sabemos o que Deus não é (teologia negativa), 
entretanto conhecemos também algo de positivo em torno da natureza de 
Deus, graças precisamente à famosa doutrina da analogia. Esta doutrina é
 solidamente baseada no fato de que o conhecimento certo de Deus se deve
 realizar partindo das criaturas, porquanto o efeito deve Ter semelhança
 com a causa. A doutrina da analogia consiste precisamente em atribuir a
 Deus as perfeições criadas positivas, tirando, porém, as imperfeições, 
isto é, toda limitação e toda potencialidade. O que conhecemos a 
respeito de Deus é, portanto, um conjunto de negações e de analogias; e 
não é falso, mas apenas incompleto.
Quanto
 aos problemas das relações entre Deus e o mundo, é resolvido com base 
no conceito de criação, que consiste numa produção do mundo por parte de
 Deus, total, livre e do nada.
A Moral
Também
 no campo da moral, Tomás se distingue do agostinianismo, pois a moral 
tomista é essencialmente intelectualista, ao passo que a moral 
agostiniana é voluntarista, quer dizer, a vontade não é condição de 
conhecimento, mas tem como fim o conhecimento. A ordem moral, pois, não 
depende da vontade arbitrária de Deus, e sim da necessidade racional da 
divina essência, isto é, a ordem moral é imanente, essencial, 
inseparável da natureza humana, que é uma determinada imagem da essência
 divina, que Deus quis realizar no mundo. Desta sorte, agir moralmente 
significa agir racionalmente, em harmonia com a natureza racional do 
homem.
Entretanto,
 se a vontade não determina a ordem moral, é a vontade todavia que 
executa livremente esta ordem moral. Tomás afirma e demonstra a 
liberdade da vontade, recorrendo a um argumento metafísico fundamental. A
 vontade tende necessariamente para o bem em geral. Se o intelecto 
tivesse a intuição do bem absoluto, isto é, de Deus, a vontade seria 
determinada por este bem infinito, conhecido intuitivamente pelo 
intelecto. Ao invés, no mundo a vontade está em relação imediata apenas 
com seres e bens finitos que, portanto, não podem determinar a sua 
infinita capacidade de bem; logo, é livre. Não é mister acrescentar que,
 para a integridade do ato moral, são necessários dois elementos: o 
elemento objetivo, a lei, que se atinge mediante a razão; e o elemento 
subjetivo, a intenção, que depende da vontade.
Analisando
 a natureza humana, resulta que o homem é um animal social (político) e 
portanto forçado a viver em sociedade com os outros homens. A primeira 
forma da sociedade humana é a família, de que depende a conservação do 
gênero humano; a Segunda forma é o estado, de que depende o bem comum 
dos indivíduos. Sendo que apenas o indivíduo tem realidade substancial e
 transcendente, se compreende como o indivíduo não é um meio para o 
estado, mas o estado um meio para o indivíduo. Segundo Tomás de Aquino, o
 estado não tem apenas função negativa (repressiva) e material 
(econômica), mas também positiva (organizadora) e espiritual (moral). 
Embora o estado seja completo em seu gênero, fica, porém, subordinado, 
em tudo quanto diz respeito à religião e à moral, à Igreja, que tem como
 escopo o bem eterno das almas, ao passo que o estado tem apenas como 
escopo o bem temporal dos indivíduos.
Filosofia e Teologia
Em
 torno do problema das relações entre filosofia e teologia, ciência e 
fé, razão e revelação, e mais precisamente em torno do problema da 
função da razão no âmbito da fé, Tomás de Aquino dá uma solução precisa e
 definitiva mediante uma distinção clara entre as duas ordens. Com base 
no sólido sistema aristotélico, é eliminada a doutrina da iluminação, 
agostiniana, que levava inevitavelmente a uma confusão da teologia com a
 filosofia. Destarte, é finalmente conquistada a consciência do que é 
conhecimento racional e demonstração racional, ciência e filosofia: é um
 lógico procedimento de princípios evidentes para conclusões 
inteligíveis. E compreende-se, portanto, que não é possível demonstração
 racional em matéria de fé, onde os princípios são, para nós, não 
evidentes, transcendentes à razão, mistérios, e igualmente 
ininteligíveis suas condições lógicas.
Em
 todo caso, segundo o sistema tomista, a razão não é estranha à fé, 
porquanto procede da mesma Verdade eterna. E, com relação à fé, deve a 
razão desempenhar os papéis seguintes:
1.
 A demonstração da fé, não com argumentos intrínsecos, de evidência, o 
que é impossível, mas com argumentos extrínsecos, de credibilidade 
(profecias, milagres, etc.), que garantem a autenticidade divina da 
Revelação.
2. A demonstração da não irracionalidade do mistério e da sua conveniência, mediante argumentos prováveis.
3.
 A determinação, enucleação e sistematização das verdades de fé, pelo 
que a sacra teologia é ciência, e ciência em grau eminente, porquanto 
essencialmente especulativa, ao passo que, para os agostinianos, é 
essencialmente prática.
Tomás,
 portanto, não confunde - como faz o agostinianismo - nem opõe - como 
faz o averroísmo - razão e fé, mas distingue-as e as harmoniza. De modo 
que nasce uma unidade dialética profunda entre a razão e a fé; tal 
unidade dialética nasce da determinação tomista do conceito metafísico 
de natureza humana; esta determinação tomista do conceito metafísico de 
natureza humana tornou possível a averiguação das reais, efetivas 
vulnerações da natureza humana; estas vulnerações são filosoficamente, 
racionalmente, inexplicáveis. E demandam, por conseguinte, a Revelação 
e, precisamente, os dogmas do pecado original e da redenção pela cruz.
O Tomismo
O
 tomismo afirma-se e caracteriza-se como uma crítica que valoriza a 
orientação do pensamento platônico-agostiniano em nome do racionalismo 
aristotélico, que pareceu um escândalo, no campo católico, ao misticismo
 agostiniano. Ademais, o tomismo se afirma e se caracteriza como o 
início da filosofia no pensamento cristão e, por conseguinte, como o 
início do pensamento moderno, enquanto a filosofia é concebida qual 
construção autônoma e crítica da razão humana.
Sabemos
 que, segundo a concepção platônico-agostiniana, o conhecimento humano 
depende de uma particular iluminação divina; segundo esta doutrina, 
portanto, o espírito humano está em relação imediata com o inteligível, e
 tem, de certo modo, intuição do inteligível. A esta gnosiologia 
inatista, Tomás opõe francamente a gnosiologia empírica aristotélica, em
 virtude da qual o campo do conhecimento humano verdadeiro e próprio é 
limitado ao mundo sensível. Acima do sentido há, sim, no homem, um 
intelecto; este intelecto atinge, sim, um inteligível; mas é um 
intelecto concebido como uma faculdade vazia, sem ideias inatas - é uma 
tabula rasa, segundo a famosa expressão - ; e o inteligível nada mais é 
que a forma imanente às coisas materiais. Essa forma é enucleada, 
abstraída pelo intelecto das coisas materiais sensíveis.
Essa
 gnosiologia é naturalmente conexa a uma metafísica e, em especial, a 
uma antropologia, assim como a gnosiologia platônico-agostiniana era 
conexa a uma correspondente metafísica e antropologia. Por isso a alma 
era concebida quase como um ser autônomo, uma espécie de natureza 
angélica, unida extrinsecamente a um corpo, e a materialidade do corpo 
era-lhe mais de obstáculo do que instrumento. Por conseguinte, o 
conhecimento humano se realizava não através dos sentidos, mas ao lado e
 acima dos sentidos, mediante contato direto com o mundo inteligível; 
precisamente como as inteligências angélicas, que conhecem mediante as 
espécies impressas , ideias inatas. Vice-versa, segundo a antropologia 
aristotélico-tomista, sobre a base metafísica geral da grande doutrina 
da forma, a alma é concebida como a forma substancial do corpo. A alma 
é, portanto, incompleta sem o corpo, ainda que destinada a 
sobreviver-lhe pela sua natureza racional; logo, o corpo é um 
instrumento indispensável ao conhecimento humano, que, por consequência,
 tem o seu ponto de partida nos sentidos.
Terceira
 característica do agostinianismo é o assim chamado voluntarismo, com 
todas as consequências de correntes da primazia da vontade sobre o 
intelecto. A característica do tomismo, ao contrário, é o 
intelectualismo, com a primazia do intelecto sobre a vontade, com todas 
as relativas consequências. O conhecimento, pois, é mais perfeito do que
 a ação, porquanto o intelecto possui o próprio objeto, ao passo que a 
vontade o persegue sem conquistá-lo. Esta doutrina é aplicada tanto na 
ordem natural como na ordem sobrenatural, de sorte que a bem-aventurança
 não consiste no gozo afetivo de Deus, mas na visão beatífica da 
Essência divina. 
A Existência de Deus é Evidente?
Sobre a existência de Deus, três questões se colocam:
1. A existência de Deus é uma verdade evidente?
2. Ela pode ser demonstrada?
3. Deus existe?
1.
 - Parece que a existência de Deus é evidente. Com efeito, chamamos 
verdades evidentes aquelas cujo conhecimento está em nós naturalmente, 
como é o caso dos primeiros princípios. Ora, de acordo com o que diz 
Damasceno: "O conhecimento da existência de Deus é inato em todos". Por 
conseguinte, a existência de Deus é evidente.
2.
 - Por outro lado, são ditas evidentes as verdades que conhecemos desde 
que compreendamos os termos que as exprimem. É o que o Filósofo (Últimos
 Analíticos, I, 3) atribui aos primeiros princípios da demonstração. De 
fato, quando sabemos o significado de todo o significado da parte, 
sabemos, de imediato, que o todo é maior que a parte. Ora, desde que 
tenhamos compreendido o sentido da palavra "Deus", estabelece-se, de 
imediato, que Deus existe. De fato, essa palavra designa uma coisa de 
tal ordem que não podemos conceber algo que lhe seja maior. Ora, o que 
existe na realidade e no pensamento é maior do que o que existe apenas 
no pensamento. Daí resulta que o objeto designado pela palavra Deus, que
 existe no pensamento, desde que se compreenda a palavra, também existe 
na realidade. Por conseguinte, a existência de Deus é evidente.
3.
 - Além disso, a existência da verdade é evidente. Pois, aquele que nega
 a existência da verdade, concorda que a verdade não existe. Mas se a 
verdade não existe, a não-existência da verdade é uma afirmação 
verdadeira. E se alguma coisa há de verdadeira, a verdade existe. Ora, 
Deus é a própria verdade, segundo o que diz São João, 14, 6: "Eu sou o 
caminho, a verdade e a vida". Por conseguinte, a existência de Deus é 
evidente.
Mas,
 em compensação, ninguém pode pensar o oposto do que é evidente, 
conforme nos mostra o Filósofo (Metafísica, 4 e Últimos Analíticos, I, 
10), a propósito dos primeiros princípios da demonstração. Ora, o oposto
 da existência de Deus pode ser pensado, conforme diz o salmo 52, 1: "O 
insensato diz em seu coração que não há Deus". Logo, a existência de 
Deus não é evidente.
Resposta
 - Temos duas maneiras para dizer que uma coisa é evidente. Ela o pode 
ser em si mesma e não por nós; ela o pode ser em si mesma e por nós. De 
fato, uma proposição é evidente quanto o atributo está incluído no 
sujeito, por exemplo: o homem é um animal. Animal, de fato, pertence à 
noção de homem. Se, portanto, todos sabem o que são o sujeito e o 
atributo de uma proposição, essa proposição será conhecida de todos. É 
verdadeiro, pelos princípios das demonstrações, que os termos são coisas
 gerais que todos conhecem, como o ser e o não-ser, o todo e a parte, 
etc. Mas, se alguns não sabem o que são o atributo e o sujeito de uma 
proposição, é certo que a proposição será evidente em si mesma, mas não 
para aqueles que ignoram o que são sujeito e atributo. É por isso que 
Boécio diz: "Certos juízos só são conhecidos pelos sábios, por exemplo, 
aquele segundo o qual os seres incorpóreos não estão num mesmo lugar". 
Por conseguinte, eu afirmo que a proposição "Deus é", considerada em si 
mesma, é evidente por si mesma, uma vez que o atributo é idêntico ao 
sujeito. Deus, de fato, é seu ser. Mas como não sabemos o que é Deus, 
ela não é evidente para nós; tem necessidade de ser demonstrada pelas 
coisas que, menos conhecidas na realidade, o são mais para nós, isto é, 
pelos efeitos.
A primeira
 objeção devemos responder que, em estado vago e confuso, o conhecimento
 da existência é naturalmente inato em nós, uma vez que Deus é a 
felicidade do homem. De fato, o homem deseja naturalmente a felicidade 
e, aquilo que ele deseja naturalmente, ele conhece naturalmente. Mas 
isto não é, propriamente falando, conhecer a existência de Deus; 
exatamente como se pudéssemos saber que alguém chega, sem conhecer 
Pedro, quando é o próprio Pedro que chega. Muitos, de fato, colocam o 
supremo bem do homem nas riquezas, outros o colocam nos prazeres, outros
 alhures.
À
 segunda, podemos responder que aquele que ouve pronunciar a palavra 
Deus pode ignorar que essa palavra designa uma coisa tal que não se 
possa conceber algo que lhe seja maior. Alguns, com efeito, acreditaram 
que Deus fosse um corpo. Mesmo que sustentemos que todos entendem a 
palavra Deus nesse sentido, isto é, no sentido de uma coisa tal que não 
se possa conceber algo que lhe seja maior, isto não significa que todos 
representam a existência dessa coisa como real e não como representação 
da inteligência. E não se pode concluir sua existência real salvo se se 
admite que essa coisa existe realmente. Ora, isso não é admitido por 
aqueles que rejeitam a existência de Deus.
À
 terceira, devemos responder que a existência da verdade indeterminada é
 evidente por si mesma, mas que a existência da primeira verdade não é 
evidente em si mesma para nós.
A Vontade Quer Necessariamente Tudo o Que Deseja?
Dificuldades:
 Isso parece exato; de fato Dionísio diz que o mal está fora do objeto 
da vontade. Por conseguinte, ela tende necessariamente para o bem que 
lhe é proposto.
O
 objeto está para a vontade assim como o motor está para o móvel. Ora, o
 movimento do móvel segue, necessariamente, o impulso do motor. Por 
conseguinte, o objeto da vontade move-a necessariamente. Assim como o 
que é conhecido pelos sentidos é objeto da afetividade sensível, assim o
 que é conhecido pela inteligência é objeto do apetite intelectual ou 
vontade. Mas o objeto dos sentidos move, necessariamente, a afetividade 
sensível; segundo Santo Agostinho, os animais são arrastados pelo que 
vêem. Por conseguinte, parece que o objeto conhecido pela inteligência 
move a vontade necessariamente.
Entretanto:
 Santo Agostinho diz que a vontade é a faculdade pela qual pecamos ou 
vivemos segundo a justiça. Desse modo, ela é capaz de desejar coisas 
contrárias. Por conseguinte, ela não quer, por necessidade, tudo o que 
deseja.
Conclusão:
 Eis como podemos prová-lo. Assim como a inteligência adere, necessária e
 naturalmente, aos primeiros princípios, assim a vontade adere ao fim 
último. Ora, existem verdades que não possuem relação necessária com os 
primeiros princípios; tais são as proposições contingentes cuja negação 
não implica na negação desses princípios. A inteligência não concede, 
necessariamente, seu assentimento a tais verdades. Mas existem 
proposições necessárias que possuem esta relação necessária; tais são as
 conclusões demonstrativas cuja negação significa a negação dos 
princípios. A estas últimas a inteligência concede seu assentimento 
necessariamente, na medida em que reconhece a conexão das conclusões com
 os princípios por meio de uma demonstração. Faltando isto, o 
assentimento não é necessário.
O
 mesmo acontece com relação à vontade. Existem bens particulares que não
 possuem relação necessária com a felicidade, visto que se pode ser 
feliz sem eles. A tais bens, a vontade não adere necessariamente. Mas 
existem outros bens que implicam nessa relação; são aqueles pelos quais o
 homem adere a Deus, pois é só nele que se acha a verdadeira felicidade.
 Todavia, antes que essa conexão seja demonstrada como necessária pela 
certeza da visão divina, a vontade não adere necessariamente a Deus nem 
aos bens que a ele se relacionam. Mas a vontade daquele que vê Deus em 
sua essência adere necessariamente a Ele, do mesmo modo como agora nós 
queremos, necessariamente, ser felizes. Por conseguinte, é evidente que a
 vontade não quer, por necessidade, tudo o que deseja.
Solução:
 A vontade não pode tender para nenhum objeto, se este não se lhe 
apresenta como um bem. Mas como existe uma infinidade de bens, ela não é
 necessariamente determinada por um só.
A
 causa motora produz, necessariamente, o movimento do móvel, no caso em 
que a força dessa causa ultrapassa de tal maneira o móvel que toda 
capacidade que este tem de agir fica submetida à causa. Mas a capacidade
 da vontade, na medida em que se dirige para o bem universal e perfeito,
 não pode estar inteiramente subordinada a qualquer bem particular. 
Desse modo, ela não é, necessariamente, acionada por ele.
FILOSOFIA – PERÍODO MODERNO
Transcendência Cristã e Imanência Moderna
Achamos
 a característica específica do pensamento clássico na solução dualista 
do problema metafísico. Existem o mundo e Deus, mas são separados entre 
si: Deus não conhece, não cria, não governa o mundo. Tal dualismo não 
será negado, mas desenvolvido no pensamento cristão mediante o conceito 
de criação, em virtude da qual é ainda afirmada a realidade e a 
distinção entre o mundo e Deus, mas Deus é feito criador e regedor do 
mundo: o mundo não pode ter explicação a não ser em um Deus que 
transcende o mundo. O pensamento moderno, ao contrário, finaliza em uma 
concepção monista-imanentista do mundo e da vida: não somente Deus e o 
mundo são a mesma coisa, mas Deus é resolvido num mundo natural e 
humano. Consequentemente, não se pode mais falar em transcendência de 
valores teoréticos e morais, religiosos e políticos, pois "ser" e "dever
 ser" são a mesma coisa, o "dever ser" coincide com o "ser".
É
 evidente que a passagem da concepção dualista (clássica) à concepção 
teísta (cristã) é um desenvolvimento lógico, que se manifesta 
especulativamente no desenvolvimento tomista de Aristóteles. Pelo 
contrário, a passagem da concepção tradicional, teísta, à concepção 
moderna, imanentista, representa teoricamente uma ruptura. O pensamento 
moderno, todavia, especialmente o pensamento da Renascença, tem seu 
precedente lógico no panteísmo neoplatônico, que - após ter-se afirmado 
como extrema expressão do pensamento clássico - permanece através de 
todo o pensamento cristão em tentativas mais ou menos ortodoxas de 
síntese entre cristianismo e neoplatonismo (Pseudo Dionísio, Scoto 
Erígena, Mestre Eckart, etc.). E, por outra parte, o pensamento 
tradicional, helênico-escolástico, aristotélico-tomista, encontrará nos 
grandes valores da civilização moderna (a ciência natural, a técnica, a 
história, a política) sua integração lógica.
Não
 se julgue demolir a filosofia medieval, a metafísica tomista, opondo à 
sua elementar e fantástica ciência da natureza a ciência moderna com 
suas grandes aplicações técnicas, pois não é a ciência natural - capaz 
apenas de resolver os problemas da vida material, mas incapaz de 
resolver os problemas máximos da vida, espirituais, morais, religiosos -
 que pode decidir do valor de uma civilização. E a ciência natural da 
Idade Média não está absolutamente em conexão com o pensamento 
filosófico medieval; o próprio Tomás de Aquino julgava logicamente que a
 filosofia podia ser uma só, em adequação à realidade, ao passo que 
admitia a possibilidade de uma ciência natural diversa daquela do seu 
tempo. Além disso, se, de fato, a escolástica pós-tomista, decadente, 
alimentou suspeitas e combateu longamente contra a nascente ciência 
moderna, a favor da velha ciência natural aristotélica, a nova 
escolástica, isto é, o novo tomismo, não teve dificuldade alguma em 
aceitar toda a ciência natural moderna, e, como tal, porquanto esta 
representa uma valor infra-filosófico, e, como tal, indiferente à 
filosofia, à metafísica.
O
 valor da ciência moderna não é teorético, especulativo, metafísico, mas
 empírico e técnico. Tal era também o pensamento do grande fundador da 
ciência moderna, Galileu Galilei, que afirmava ser o objeto da ciência 
não as essências metafísicas das coisas, e sim os fenômenos naturais, 
experimentalmente provados e matematicamente conexos. E destes 
conhecimentos experimentais e matemáticos de fenômenos naturais derivava
 ele as primeiras grandes aplicações técnicas da ciência moderna. 
Aplicações técnicas que possuem também um valor espiritual, o do domínio
 natural do homem sobre a natureza: contanto que o homem reconheça, 
naturalmente, acima de si e de tudo, Deus.
O
 que dissemos da ciência, podemos dizê-lo analogamente da história. A 
historiografia medieval é, sem dúvida, insuficiente, ingênua, 
descuidada, pois, era escasso na mentalidade medieval o senso da 
concretidade e da individualidade, sem o qual não é possível a história 
verdadeira e própria. Mas a concepção medieval da história, que é a 
cristã e já teve a sua expressão clássica na Cidade de Deus de Agostinho
 é perfeitamente conciliável com a indagação histórica moderna, devendo 
esta última fornecer à primeira a sua rica contribuição de fatos, o seu 
profundo senso histórico, o seu interesse pela concretidade. 
Costuma-se
 inculpar a civilização medieval por ter aniquilado o estado nacional 
concreto, orgânico, para construir uma unidade política grandiosa, mas 
abstrata, uma utopia universalista, como o Sacro Império Romano. No 
entanto, isto não foi senão uma expressão exterior daquela estrutura 
profunda que se chama a cristandade: equivalente civil da igreja 
católica, capaz de abraçar os mais diversos organismos políticos. Nem se
 deve esquecer que precisamente na comuna medieval se encontra a 
primeira origem do estado moderno, interiormente organizado e 
politicamente soberano. E é na Idade Média que se formam as grandes 
nações modernas. Noutras palavras, é na Idade Média que se formou o 
Estado distinto da Igreja, mas não leigo, imanentista, ateu, bem como o 
laicado distinto do clero e organizado civilmente em graus de 
corporações, mas cristão, católico, romano.
Poder-se-ia
 fazer notar que tal efetiva distinção e relativa autonomia do Estado (e
 do laicado) com respeito à Igreja (e ao clero) foram alcançadas através
 de uma longa luta contra o predomínio e a invasão destes últimos. Mas 
cumpre ter presente que, na alta Idade Média, no período bárbaro, nos 
séculos de ferro, a igreja romana e o clero católico desempenharam 
funções também leigas e profanas, como, por exemplo, a instrução 
cultural, a assistência hospitalar, e até a agricultura, a indústria, o 
comércio, as comunicações, etc., pelo fato de que ninguém estava em 
condições de fazê-lo. E é devido a isso que a civilização não pereceu, e
 foi conservada para a idade moderna. Aliás, a Igreja católica estava 
apta e disposta - a prescindir-se das intenções dos homens e de suas 
fraquezas fatais - a livrar-se desses cuidados estranhos gravosos e 
perigosos para o seu ministério transcendente e sobrenatural, quando os 
homens e os tempos estivessem maduros. Basta lembrar, a este respeito, a
 atitude da Igreja, praticamente liberal, compreensiva e ativa com 
respeito ao Estado, desde os comunas medievais até às grandes monarquias
 européias do século XVII e ainda além.
Os Precedentes do Pensamento Moderno
Dada
 a ruptura lógica entre o pensamento tradicional, teísta, e o pensamento
 moderno, imanentista, não se podem achar causas racionais dessa 
mudança, mas apenas práticas e morais. Em seguida virá a justificação 
teórica da nova atitude espiritual, que será constituída por todo o 
pensamento moderno em seu desenvolvimento lógico.
O
 grandioso edifício ideal da Idade Média, em que a religião e 
civilização, teologia e filosofia, Igreja e Estado, clero e laicado, 
estavam harmonizados na transcendente unidade cristã, foi, de fato, 
destruído pelo humanismo imanentista, que constitui o espírito 
característico do pensamento moderno. Este pensamento começa com a 
prevalência dada aos interesses e aos ideais materiais e terrenos, com o
 consequente esquecimento dos interesses e ideais espirituais e 
religiosos; e torna-se completo com a justificação dos primeiros e a 
exclusão dos segundos. É precisamente o que acontece com os homens 
inteiramente entregues aos cuidados mundanos: primeiro se esquecem das 
coisas transcendentes, e, em seguida, querendo ser coerentes, negam-nas.
Entretanto,
 se não há causas lógicas do pensamento moderno, há, porém, precedentes 
especulativos, que, valorizados pela nova atitude espiritual, se 
tornarão fontes especulativas do próprio pensamento moderno. Tais 
precedentes especulativos podem ser resumidos desta forma: o panteísmo 
neoplatônico, o aristotelismo averroísta e o nominalismo ocamista, os 
quais foram-se afirmando contemporaneamente a uma gradual decadência do 
genuíno pensamento escolástico (racional, teísta, cristão), 
especialmente tomista, com que se acham em oposição. E tal decadência 
cultural é acompanhada, por sua vez, pela decadência da Igreja e do 
Papado - o exílio avinhonês e o cisma do ocidente.
O
 panteísmo neoplatônico teve a sua primeira grande manifestação, no 
âmbito do cristianismo, com Scoto Erígena. Tentará afirmar-se de novo na
 própria época de Tomás de Aquino com Mestre Eckart, o iniciador da 
mística alemã. E receberá uma nova original elaboração do Humanismo com 
Nicolau de Cusa, que não pouco deve aos precedentes; e, sobretudo, com 
Giordano Bruno, o maior pensador da Renascença, o qual depende, por sua 
vez, de Nicolau de Cusa. O averroísmo latino afirmara na Idade Média a 
sua famosa doutrina das duas verdades: o que não é verdadeiro em 
filosofia pode ser verdadeiro em religião e vice-versa. Em uma idade 
cristã, como a Idade Média, a afirmação religiosa podia Ter a 
prevalência sobre a negação filosófica; obscurecendo-se a fé, como na 
Renascença, devia prevalecer uma concepção anti-cristã, aristotélica ou 
não. O occamismo marca a conclusão lógica da decadente escolástica 
pós-tomista, apesar de seus partidários se comprazerem em denominá-la 
via modernorum. E, ao mesmo tempo, apresenta um elemento fundamental da 
filosofia moderna com o seu empirismo e nominalismo. Nicolau de Cusa, 
Telésio, Bruno, Campanella serão também herdeiros do nominalismo 
empirista de Occam, que se combina, nos sistemas deles, com uma 
metafísica aventurosa de cunho particularmente neoplatônico.
Como
 é sabido, segundo Occam, o conhecimento humano é reduzido ao 
conhecimento sensível do singular e, portanto, ao nominalismo. 
Consequência lógica e consciente é a destruição da metafísica, que 
transcende o mundo empírico, sensível, bem como da ciência, que é 
entretecida de conceitos, impossíveis de nominalismo, de sorte que se 
esvai da teodicéia, porquanto não se pode provar racionalmente a 
existência de Deus, nem conhecer a sua natureza; e a psicologia 
racional, pelo mesmo motivo. E, consequentemente, torna-se impossível a 
ética racional, porque - sendo desconhecida a essência de Deus e 
destruída a do homem - a moral fica reduzida a um conjunto de preceitos 
arbitrários de Deus, que o homem tem que observar por fé. Occam 
procurará salvar-se do ceticismo - conclusão do seu sistema, com todas 
as consequências práticas - mediante a fé. Entretanto é uma posição 
insustentável, porquanto a fé - não podendo mais ser um racional 
obséquio - torna-se uma adesão cega. Em época de religiosidade ainda 
viva, esse fideísmo ocamista pôde praticamente ficar de pé. Mas ruirá 
quando a fé vier a faltar, deixando o terreno livre ao empirismo, ao 
naturalismo, ao nominalismo, ao ceticismo, imanentes ao ocamismo, e que 
constituirão tão grande parte do pensamento da Renascença, da Reforma e 
também do pensamento posterior.
Os Períodos do Pensamento Moderno
Este
 grande movimento especulativo, que é o pensamento moderno, naturalmente
 não se manifesta na sua significação imanentista senão na plenitude do 
seu desenvolvimento. Portanto, manifesta-se através de uma série de 
períodos, que se podem historicamente (e dialeticamente) indicar assim:
1.
 - Antes de tudo a Renascença, em que a concepção imanentista, humanista
 ou naturalista, é potentemente afirmada e vivida. Trata-se, porém, de 
uma afirmação ainda não plenamente consciente e sistemática, em que o 
novo é misturado com o velho. Este, muitas vezes, prevalece, ao menos na
 exterioridade da forma lógica e literária. A Renascença é preparada 
pelo Humanismo, e tem como seu equivalente religioso a reforma 
protestante.
2.
 - A este primeiro período do pensamento moderno, que, substancialmente,
 abrange os séculos XV e XVI, se seguem o racionalismo e o empirismo, 
que abrangem os séculos XVII e XVIII. Após a revolução renascentista e 
protestante, sente-se a necessidade de uma séria indagação crítica, não 
para demolir aquelas intuições revolucionárias, mas, ao contrário, para 
dar-lhes uma sistematização lógica. É o que fará especialmente o 
racionalismo em relação ao conhecimento racional.
3.
 - E outro tanto fará e empirismo em relação ao conhecimento sensível. 
Empirismo e racionalismo são tendências especulativas, gnosiológicas, 
opostas entre si, como a gnosiologia sensista está certamente em 
oposição à gnosiologia intelectualista. Entretanto, concordam em um 
comum fenomenismo, pois, em ambos, o sujeito é isolado do ser e fechado 
no mundo das suas representações. Não se conhecem as coisas e sim o 
nosso conhecimento das coisas.
4.
 - Empirismo e racionalismo, após uma lenta, gradual e silenciosa 
maturação, encontrarão uma saída prática, social, política, moral, 
religiosa no iluminismo e, portanto, na revolução francesa (Segunda 
metade do século XVIII); esta representa a concreta realização do 
pensamento moderno na civilização moderna. Esse movimento começa na 
Inglaterra, triunfa na França e se espalha, em seguida, na Alemanha e na
 Itália.
Características Gerais
A
 Renascença é uma poderosa afirmação, particularmente no campo da 
prática, de humanismo e de imanentismo, o que é manifestado pelo seu 
individualismo, pelo seu estetismo, pelo seu ardente interesse pelo 
mundo a conquistar, dominar, gozar com meios humanos; pelo seu 
naturalismo que diviniza o homem material - como já aconteceu no 
paganismo antigo, para o qual o Humanismo, de fato, apela, e de que 
parece um retorno. Entretanto, falta ao Humanismo moderno a 
espontaneidade e a serenidade do paganismo antigo: o Humanismo moderno 
não descansará em um tranqüilo gozo da vida, mas procurará alimento no 
ativismo agitado e sem meta, característico da idade moderna.
O
 Humanismo pode, com razão, definir-se pela palavra: o homem potenciado,
 celebrado, exaltado até à divindade, livre de si mesmo, dominador da 
natureza, senhor do mundo. É, logo, um paganismo ainda mais radical que o
 antigo, porquanto espiritual e interior. Dar uma documentação formal 
desse caráter pagão, imanentista, do Humanismo e da Renascença não é 
coisa fácil, pois trata-se de um período inicial, em que se entretecem 
motivos multíplices, e, sobretudo, o velho persiste ao lado do novo, 
dando origem àquela duplicidade especulativa e prática, tão 
característica dos homens da época.
Mas
 o início do Humanismo e da Renascença é rico de todos os germes que se 
desenvolverão no sucessivo período moderno, imanentista, em que se 
poderá claramente conhecer a árvore pelos frutos. É uma multiplicidade 
de motivos indiscutivelmente dominada pelo espírito panteísta do 
neoplatonismo, que atravessou toda a Idade Média; entretanto, na Idade 
Média, tal espírito era corrigido, religiosamente, pela teologia 
católica e, racionalmente, pela escolástica tomista. É uma dualidade 
composta de velho e de novo, em que não será difícil separar o elemento 
interior do elemento exterior: se se considerar, em geral, o ideal da 
vida daquela época, que chamava virtude a força, e enaltecia não o 
Pobrezinho de Assis e sim o Príncipe Valentino; se se tiver presente 
Nicolau Machiavelli, que - sem possuir uma metafísica consciente - está 
persuadido de que o Estado, mera obra do homem, é o vértice da 
humanidade, estando acima da religião e da moral transcendente, e 
prefere o paganismo ao cristianismo; se se pensar em Giordano Bruno, o 
maior filósofo da época, o qual parece reconhecer a obscuridade e a 
incoerência do seu pensamento, mas tem consciência de que a sua doutrina
 - racionalista, monista e humanista - é um crepúsculo preludiando o dia
 e não a noite.
Essa
 é a alma, o significado, não o valor, do Humanismo e da Renascença: uma
 alma pagã. Não há, ao lado do humanismo pagão, um humanismo cristão, 
que seria uma contradição em termos. Esses elementos são essencialmente 
formais e estéticos porque a grande valorização cristã da civilização 
clássica - do pensamento grego e do jus romano - era já um fato 
consumado. E os elementos novos do humanismo - a ciência, a técnica, a 
história, a política - não se podem dizer imanentistas antes que 
cristãos, pois, em si mesmos, são infrafilosóficos, e, portanto, 
indiferentes a qualquer concepção da realidade.
O
 renascimento cristão, a unidade real e potencial dos grandes valores da
 civilização no valor sumo da religião, não é obra dos séculos XV e XVI,
 mas do século que se abre com Inocêncio III e se encerra com Dante, e 
viu Francisco de Assis e Antonio de Lisboa, Domingos de Gusmão e Tomás 
de Aquino. 
O Renovamento das Antigas Escolas Filosóficas
Uma
 das manifestações características da Renascença é o renovamento das 
antigas escolas filosóficas, clássicas, gregas. Na Idade Média o 
pensamento clássico foi bem conhecido e valorizado. No entanto, tal 
conhecimento e valorização diziam respeito aos maiores filósofos gregos,
 em especial a Aristóteles. 
Na
 Renascença, ao contrário, volta-se à sancta antiquitas, em oposição ao 
espírito cristão. E valorizam-se as antigas escolas filosóficas, 
realçando-lhes o conteúdo de humanidade, presente em todas elas, não 
obstante a variedade de suas orientações. Naturalmente não são, nem 
podiam ser, as escolas filosóficas clássicas em sua espontaneidade 
original, pois, entre a classicidade e a Renascença, medeiam quinze 
séculos, profundamente influenciados pela mensagem cristã. E, após o 
aparecimento da Cruz, já não é mais possível o retorno à serenidade 
clássica de Aristóteles ou ao ascetismo imanentista dos estóicos.
Na
 Renascença são representadas, mais ou menos, todas as escolas 
filosóficas antigas: o platonismo, o aristotelismo, o estoicismo, o 
epicurismo, o ceticismo e o ecletismo. Especialmente as duas primeiras 
e, entre estas, precipuamente a primeira. O aristotelismo da Renascença 
exclui, naturalmente, a interpretação de Aristóteles dada por Tomás de 
Aquino, e sustenta ou a interpretação naturalista de Alexandre de 
Afrodísia, ou a panteísta de Averroés. O platonismo é, mais 
propriamente, neoplatonismo: já porque assim se tinha fixado na 
antigüidade e neste sentido influenciara toda a Idade Média (pseudo 
Dionísio Areopagita, Scoto Erígena, Mestre Eckart); já porque a sua 
fundamental concepção panteísta e o seu potenciamento do espírito humano
 podiam melhor corresponder ao imanentismo e humanismo da Renascença. 
O Platonismo
O
 ídolo da Renascença é Platão: artista e dialético, teórico do amor e da
 beleza, iniciador da ciência matemática da natureza. Em 1404 Leonardo 
Bruni aretino (1369-1440) publicava a primeira tradução parcial de 
Platão, iniciando, destarte, a renascença platônica. Em 1429 o 
camaldulense frei Ambrósio Traversari, de volta de Constantinopla, 
levava para a Itália o conjunto completo dos escritos platônicos.
Entretanto
 foi o Concílio de Florença (1439) que deu um impulso decisivo aos 
estudos platônicos na Itália ¾ bem como aos estudos aristotélicos e dos 
filósofos clássicos, em geral. Esse Concílio foi convocado para a união 
da igreja grega com a igreja latina, e chamou para a Itália vários 
doutores orientais, conhecedores profundos de Platão. Outros vieram 
pouco depois, devido à queda de Constantinopla (1453) em mãos dos 
turcos. Famoso é Jorge Gemistos Pleton (1355-1450), autor da obra Sobre a
 Diferença da Filosofia Platônica e Aristotélica, que, realmente, é uma 
polêmica antiaristotélica.
Esse
 escrito provocou uma resposta violenta ao aristotélico Jorge de 
Trebizonda (Comparatio Platonis et Aristotelis). Este filósofo - 
apelando também para Tomás de Aquino - sustenta a superioridade de 
Aristóteles sobre Platão pelo seu espírito científico, pela sua doutrina
 em torno de Deus e da alma, e pela consequente possibilidade de 
concordar a sua filosofia com o cristianismo.
Da
 parte platônica, replicou contra Jorge de Trebizonda o seu concidadão 
Basílio Bessarione (1403-1472) com o escrito In calumniatorem Platonis. 
Bessarione, eminente prelado da igreja oriental, veio para a Itália com o
 séqüito do imperador João VII Paleólogo, para tratar da unificação da 
igreja grega com a igreja latina. Foi feito cardeal pelo Papa Eugênio IV
 e permaneceu na Itália, cooperando eficazmente para o incremento do 
ressuscitado helenismo.
Depois
 desse platonismo de importação oriental, na Segunda metade do século XV
 surge e firma-se um platonismo italiano. O centro foi precisamente 
Florença, onde foi celebrado o famoso Concílio. Seu principal 
representante foi Marsílio Ficino, animador da célebre academia 
platônica florentina. Esta academia nasceu graças a um cenáculo de 
literatos, artistas e pensadores, amigos da casa De Médicis. Fizeram 
parte deste cenáculo Poliziano, Pulci, João Pico della Mirandola e o 
próprio Lourenço, o Magnífico.
Marcílio
 Ficino nasceu em 1433 em Figline Valdarno. Protegido por Cosme De 
Médices, que o presenteou com uma Quinta, onde teve sua sede a academia 
platônica, pode consagrar toda a sua vida aos prediletos estudos 
filosóficos. Em 1473 foi ordenado padre e a sua vida foi muito austera 
no meio de Florença do século XV. Faleceu em 1499.
Sua
 atividade principal foi traduzir. Traduziu elegantemente, para o latim,
 Platão (1477) e Plotino (1485), além de outros neoplatônicos. Expôs o 
seu pensamento em uma grande obra (Theologia platonica de immortalitate 
animorum - 1491), em que procura concordar o platonismo, de que era 
entusiasta, com o cristianismo, em que acreditava seriamente. Entretanto
 não foi um metafísico, mas um eclético e suas finalidades eram morais. 
Sua ideia animadora é a exaltação do homem como microcosmo, síntese do 
universo: conceito antigo, neoplatônico, mas que teve no humanismo do 
Renascimento um valor e um significado particulares. Outra ideia sua 
inspiradora é o conceito de uma continuidade do desenvolvimento 
religioso, que vai desde os antigos sábios e filósofos - Zoroastro, 
Orfeu, Pitágoras, Platão - até o cristianismo: expressão do 
universalismo religioso da Renascença.
Depois
 de Marsílio Ficino, o mais famoso platônico pode ser considerado João 
Pico della Mirandolla (1463-1494), autor de De dignitate hominis, que 
professa verdadeiramente um ecletismo baseado no platonismo e no 
cabalismo. Dotado da mais vasta e heterogênea cultura, após várias 
peregrinações, estabeleceu-se em Florença junto de Lourenço, o 
Magnífico. Aí entrou em contato com Marsílio Ficino, que influiu no seu 
temperamento exuberante e passional, equilibrando-o filosófica e 
religiosamente. "Blasonava de poder disputar de omni rescibili - escreve
 Franca - e foi tido por seus contemporâneos como um prodígio de 
memória. Aos 18 anos sabia 22 línguas"!
O Aristotelismo
Não
 é sempre fácil distinguir o aristotelismo do platonismo da Renascença, 
porquanto, frequentemente, aparecem confusos no sincretismo 
neoplatônico, que é a tendência especulativa dominante na época. Também o
 aristotelismo, como o platonismo, teve impulso, graças aos sábios 
gregos vindos para a Itália, tradutores de Aristóteles e dos seus 
comentadores, entre os quais lembramos, no século XV, Teodoro de Gaza e o
 já mencionado Jorge de Trebizonda.
Como
 já foi dito, o aristotelismo da Renascença se distingue em duas 
correntes principais: a naturalista inspirando-se em Alexandre 
Afrodísio, e a panteísta-neoplatônica, inspirando-se em Averroés, ambas 
contrárias à interpretação tomista-cristã. Prevalece a escola 
alexandrina, cujo imanentismo naturalista é mais conforme ao espírito do
 Renascimento. A escola averroísta, entretanto, considerando o intelecto
 humano como sendo a atividade de uma essência transcendente e divina, 
contrasta o humanismo imanentista da mesma Renascença.
O
 mais famoso entre esses novos aristotélicos é Pedro Pomponazzi , 
alexandrista, nascido em Mântua em 1462, professor de filosofia nas 
universidades de Pádua, Ferrara e Bolonha, onde faleceu em 1525. É 
célebre o seu opúsculo Sobre a Imortalidade da Alma, publicado em 
Bolonha em 1516. Neste opúsculo conclui em favor da mortalidade da alma,
 sustentando que esta realiza o seu fim último na vida terrena. Para 
conciliar, pois, esse seu racionalismo com a religião cristã, recorre a 
certas distinções que relembram a velha teoria averroísta das duas 
verdades: a religião é, no fundo, justificada como sendo a filosofia do 
vulgo, para finalidade prática e pedagógica.
Respondiam
 a Pomponazzi, Nifo (averroísta) e Contarini (tomista) com dois ensaios 
tendo o mesmo título (Sobre a Imortalidade da Alma); e Pomponazzi 
replica como uma Apologia (contra Contarini) e com um Defensorium 
(contra Nifo). Nem a morte pôs termo àquela polêmica.
O
 aristotelismo teve, na Renascença, uma fortuna especial no campo da 
estética, da poética, em torno de que se disputou longa e fervidamente, 
em especial por parte dos literatos. Parte-se da Poética de Aristóteles,
 cuja primeira tradução remonta ao ano de 1498, por obra de Jorge Valla.
 Aristóteles sustentara ser a arte - bem como a história - uma imitação 
da realidade. Entretanto, a arte é superior à história, porquanto tem 
como objeto o universal, o necessário, a essência das coisas; ao passo 
que a história tem como objeto o particular, o contingente, o acidental.
 Em torno deste tema se travam as disputas mais variadas.
O Estoicismo
O
 espírito autônomo da Renascença devia provar viva simpatia para o sábio
 estóico, impassível, dominador das coisas e dos eventos. O estoicismo 
não foi apenas objeto de admiração cultural, literária, mas tornou-se 
ideal de vida moral em lugar do cristianismo, escola de energia e de 
conforto.
O
 estoicismo da Renascença, porém, é preso pela ação, diversamente do 
estoicismo clássico, negador da ação, considerada causa de perturbação. O
 estoicismo renascentista enaltece o homem, a vida, o mundo, contra a 
concepção transcendente e ascética cristã. Seja como for, a moral 
estóica, mais ou menos ajustada ao cristianismo, desfrutou de grande 
favor junto dos filósofos das mais diferentes tendências nos séculos XVI
 e XVII. O estóico mais notável da Renascença foi o belga Justo Lípsio 
(1547-1606), professor em Lovaina, autor de De Constantia, e de 
Manuductio ad stoicam philosophiam.
O Epicurismo
O
 epicurismo, melhor do que o estoicismo, condizia com o espírito 
humanista, imanentista e mundano da Renascença, em especial na vida 
gozadora e requintada, voluptuosa e artística da cortes esplêndidas da 
época, e também na literatura e no pensamento. João Boccaccio, autor do 
Decamerone, em o século XIV, e Lourenço, o Magnífico, no século XV, são 
duas expressões práticas desse espírito epicurista.
O
 expoente mais notável dessa tendência epicurista é Lourenço Valla 
(1407-1459), autor do famoso livro De voluptate ac de vero bono, onde o 
autor compara a moral estóica e a epicurista, simpatizando, 
naturalmente, com esta última. Quanto à vida futura, Valla oscila entre a
 sua negação e uma representação no sentido hedonista, e tente, uma 
certa conciliação entre epicurismo e cristianismo; mas fica 
decididamente hostil ao ascetismo, quer cristão, quer estóico.
O Ceticismo
Também
 o ceticismo da Renascença foi inspirado pelo ceticismo clássico. E 
também este novo ceticismo renascentista surgiu mais por fins práticos 
do que por motivos teoréticos. Os motivos mais específicos que deram 
origem ao ceticismo da Renascença foram: a sede do individual, da 
concretidade; a paixão pela observação detalhada própria do pensamento 
moderno em geral, em oposição ao pensamento antigo e medieval, voltados 
para o universo e o abstrato; a variedade e o contraste das diversas 
escolas e tradições (filosóficas e religiosas); a mentalidade literária 
da época, apaixonada pela estética, e incapaz de levantar grandes 
construções sistemáticas; a religiosidade persistente, que julgava 
salvar a fé deprimindo a razão, tendo esta atacado, frequente e 
violentamente, a religião; o contraste entre a exigência religiosa e o 
paganismo da vida que surgia de novo. O ceticismo da Renascença tem seus
 maiores expoentes fora da Itália, e o maior é Montaigne. 
Miguel
 de Montaigne (1533-1592), francês, é o autor dos famosos Essais: "Que 
sais-je"? O seu interesse é voltado para o estudo do eu, não como 
substância espiritual, e sim como caráter, centro unitário das mais 
variadas experiências humanas. Tudo o mais lhe parece incerto: os 
sentidos enganam-nos, a razão perde-se num labirinto infindo, a moral 
varia conforme os tempos e os lugares. Daí a necessidade da fé, mas de 
uma fé em que Deus serve ao homem. Este - como já pensavam os céticos 
antigos - atinge a paz abandonando-se à diretriz da natureza. O que 
especialmente emerge em Montaigne é o individualismo da Renascença.
Quando
 Esparta bloqueou e derrotou Atenas em fins do século V a.C., a 
supremacia política saiu das mãos da mãe da filosofia e da arte gregas, e
 o vigor e a independência da inteligência ateniense decaíram. Quando, 
em 399 a.C., Sócrates foi executado, a alma de Atenas morreu com ele, 
sobrevivendo apenas em seu orgulhoso discípulo, Platão. E quando Felipe 
da Macedônia derrotou os atenienses em Queronéia em 388 a.C. e Alexandre
 incendiou a grande cidade de Tebas por completo três anos depois, nem 
mesmo o fato de a casa de Píndaro ter sido ostensivamente poupada 
conseguiu encobrir a realidade de que a independência ateniense, no que 
se referia a governo e pensamento, estava destruída de maneira 
irrevogável. O domínio da filosofia grega pelo macedônio Aristóteles 
refletia a sujeição política da Grécia pelos povos viris e mais jovens 
do norte.
A
 morte de Alexandre (323 a.C.) acelerou esse processo de decadência. O 
menino-imperador, ainda que continuasse bárbaro depois de toda educação 
recebida de Aristóteles, havia aprendido a reverenciar a rica cultura da
 Grécia e sonhara em divulgar essa cultura pelo Oriente, na onda de seus
 exércitos vitoriosos. O desenvolvimento do comércio grego e a 
multiplicação dos postos de comercialização gregos por toda a Ásia Menor
 haviam proporcionado uma base econômica para a unificação daquela 
região como parte de um império helênico; e Alexandre tinha a esperança 
de que, a partir daqueles movimentados postos, tanto o pensamento grego 
como os produtos gregos fossem irradiar-se e conquistar o mundo. Mas ele
 subestimara a inércia e a resistência da mentalidade oriental, e a 
massa e a profundidade da cultura oriental. Não passava de um sonho 
juvenil, afinal, supor que uma civilização tão imatura e instável quanto
 a da Grécia pudesse ser imposta a uma civilização incomensuravelmente 
mais dufundida e enraizada nas mais veneráveis tradições. A quantidade 
da Ásia mostrou-se demasiada para a qualidade da Grécia. O próprio 
Alexandre, na hora de seu triunfo, foi conquistado pela alma do Oriente;
 casou-se (dentre várias damas) com a filha de Dario; adotou o diadema e
 o manto de gala persas; introduziu na Europa a ideia oriental do divino
 direito dos reis; e por fim assombrou uma Grécia cética ao anunciar, 
num magnífico estilo oriental, que ele era um deus. A Grécia caiu na 
gargalhada; e Alexandre bebeu até morrer.
Essa
 sultil infusão de uma alma asiática no corpo fatigado do senhor dos 
gregos foi seguida rapidamente da abundante entrada de cultos e fés 
orientais na Grécia, pelas mesmas linhas de comunicação que o jovem 
conquistador havia aberto; os diques rompidos deixaram o oceano do 
pensamento ocidental inundar as terras baixas da ainda adolescente mente
 européia. As crenças místicas e supersticiosas que haviam adquirido 
raízes entre os povos mais pobres de Hélade foram reforçadas e 
divulgadas; e o espírito oriental de apatia e resignação encontrou um 
solo pronto na Grécia decadente e abatida. A introdução da filosofia 
estóica em Atenas, pelo mercador fenício Zenon (cerca de 310 a.C.), foi 
apenas uma das inúmeras infiltrações orientais. Tanto o estoicismo como o
 epicurismo - a apática aceitação da derrota e o esforço para esquecer a
 derrota nos braços do prazer - eram teorias sobre como o indivíduo 
ainda poderia ser feliz, embora subjugado ou escravizado; precisamente 
como o pessimista estoicismo oriental de Schopenhauer e o desalentado 
epicurismo de Renan foram, no século XIX, os símbolos de uma Revolução 
despedaçada e uma França quebrada.
Não
 que essas antíteses naturais da teoria ética fossem de todo novas para a
 Grécia. Nós a encontramos no sombrio Heráclito e no "filósofo que ri", 
Demócrito; e vemos os discípulos de Sócrates dividindo-se em cínicos e 
cirenaicos sob a chefia de Antístenes e Aristipo e exaltando, uma 
escola, a apatia, e a outra, a felicidade. No entanto, mesmo naquela 
época tratava-se de modos quase exóticos de pensamento: a Atenas 
imperial não aderiu a eles. Mas quando a Grécia havia visto Queronéia em
 sangue e Tebas em cinzas, passou a ouvir Diógenes; e quando a glória 
havia partido de Atenas, ela estava no ponto para Zenon e Epicuro.
Zenon
 ergueu sua filosofia da apatheia sobre um determinismo que um estóico 
posterior, Crisipo, achou difícil distinguir do fatalismo oriental. 
Quando Zenon, que não acreditava na escravidão, estava batendo num 
escravo seu por causa de algum delito, o escravo alegou como atenuante 
que, segundo a filosofia de seu senhor, ele tinha sido destinado, por 
toda a aternidade, a cometer aquela falta; ao que Zenon replicou, com a 
calma de um sábio, que, de acordo com a mesma filosofia, ele, Zenon, 
tinha sido destinado a bater nele por causa dela. Assim como 
Schopenhauer achava inútil a vontade individual lutar contra a vontade 
universal, os estóicos alegavam que a indiferença filosófica era a única
 atitude razoável para com uma vida na qual a luta pela existência está 
tão injustamente condenada a uma derrota inevitável. Se a vitória for 
inteiramente impossível, deve ser desdenhada. O segredo da paz não é 
tornar nossas realizações iguais aos nossos desejos, mas baixar nossos 
desejos ao nível de nossas realizações. "Se o que você possui lhe parece
 insuficiente, então, mesmo que você possua o mundo, ainda irá sentir-se
 infeliz", disse o estóico romano Sêneca (m. 65 d.C.).
Um
 princípio desses bradava aos céus pelo seu oposto, e Epicuro, embora 
tão estóico em vida quanto Zenon, forneceu-o. Epicuro, diz Fenelon, 
"comprou um belo jardim, que ele mesmo cultivava. Foi lá que instalou 
sua escola, e ali vivia uma vida tranqüila e agradável com seus 
discípulos, aos quais ensinava enquanto andava e trabalhava. (...) Era 
delicado e afável para com todos os homens... Afirmava que nada havia de
 mais nobre do que uma pessoa dedicar-se à filosofia". Seu ponto de 
partida é uma convicção de que a apatia é impossível, e que o prazer - 
embora não necessariamente o prazer sensual - é a única finalidade 
concebível, e perfeitamente legítima, da vida e da atividade. "A 
natureza faz com que cada organismo prefira o seu próprio bem a qualquer
 outro"; até mesmo o estóico sente um prazer sutil na renúncia. "Não 
devemos evitar os prazeres, mas selecioná-los." Epicuro, então, não é 
epicurista; ele exalta os prazeres do intelecto, mais do que os dos 
sentidos; previne contra os prazeres que excitem e disturbem a alma, à 
qual, ao contrário, deveriam acalmar e tranqülizar. No fim, propõe que 
se procure não o prazer no seu sentido usual, mas a ataraxia - 
tranqülidade, equanimidade, a paz do espírito; todos os quais oscilam à 
beira da "apatia" de Zenon.
Os
 romanos, quando foram saquear Heléia em 146 a.C., encontraram essas 
escolas rivais dividindo o campo filosófico; e, sem terem tempo nem 
sutileza para especulações, levaram de volta para Roma essas filosofias,
 juntamente com outros produtos do seu saque. Os grandes organizadores, 
tanto quanto os escravos inevitáveis, tendem a estados de espírito 
estóicos: é difícil ser senhor ou servo se a pessoa for sensível. Por 
isso, a filosofia que Roma adotava era, em sua maioria, da escola de 
Zenon, seja em Marco Aurélio, o imperador, ou em Epíteto, o escravo; e 
até Lucrécio difundia estoicamente o epicurismo (como o inglês de Heine,
 divertindo-se melancolicamente), e concluiu sua vigorosa pregação do 
prazer cometendo suicídio. Sua nobre epopéia, Sobre a Natureza das 
Coisas, acompanha Epicuro em condenar o prazer ao elogiá-lo sem 
entusiasmo. Quase contemporâneo de César e Pompéia, ele viveu em meio a 
torverlinhos e alarmes; sua pena nervosa está eternamente compondo 
orações à tranqülidade e à paz. Nós o imaginamos como uma alma tímida 
cuja juventude havia sido obscurecida por temores religiosos; porque ele
 nunca se cansa de dizer a seus leitores que não existe inferno, exceto 
aqui, e que não existem deuses, exceto deuses cavalheirescos, que vivem 
em um jardim de Epicuro nas nuvens e nunca se intrometem nos negócios 
dos homens. Ao crescente culto do céu e do inferno entre o povo de Roma,
 ele opõe um materialismo implacável. Alma e mente desenvolvem-se com o 
corpo, crescem com o seu crescimento, sofrem com seus sofrimentos, e 
morrem com a sua morte. Nada existe a não ser átomos, espaço e lei, e a 
lei das leis é a da evolução e da dissolução em toda parte
Coisa alguma perdura, mas todas as coisas fluem. 
Fragmento se agarra a fragmento; as coisas crescem assim, 
Até que ficamos conhecendo-as e lhes damos nomes. Aos poucos 
Elas se dissolvem e já não são mais as coisas que conhecemos. 
Englobados por átomos, caindo devagar ou depressa, 
Vejo os sóis, vejo os sistemas erguerem 
Suas formas; e até os sistemas e seus sóis 
Irão voltar lentamente à eterna deriva. 
Tu também, ó Terra - teus impérios, terras e mares - 
A menor, com tuas estrelas, de todas as galáxias, 
Englobada da deriva como aquelas, como aquelas também tu 
Irás. Estás indo, a cada hora, como aquelas. 
Nada perdura. Teus mares, em suave neblina, 
Desaparecem; aquelas areias lunares abandonam seu lugar, 
E onde estão, outros mares irão, por sua vez, 
Cortar com suas alvas foices outras baías. 
À evolução e à dissolução astronômicas, acrescentem a origem e a eliminação das espécies.
Muitos
 monstros também a Terra de antigamente tentou produzir, coisas de 
estranhas caras e membros; (...) alguns sem pés, alguns sem mãos, outros
 sem bocas, outros mais sem olhos. (...) Mais e mais monstros (...) 
desse tipo a Terra tentou produzir, mas em vão; porque a natureza 
proibiu o aumento do número deles, eles não podiam alcançar a cobiçada 
flor da idade, nem procurar comida, nem ser unidos em casamento; (...) e
 muitas raças de coisas vivas devem ter se extinguido, ficado 
impossibilitadas de procriar e continuar e continuar a linhagem. Porque 
no caso de todas as coisas que vós vedes respirando o sopro da vida, a 
astúcia, a coragem ou a velocidade vêm desde o início protegendo e 
preservando cada raça. (...) Aqueles aos quais a natureza não concedeu 
nenhuma dessas qualidades ficavam expostos para servirem de vítima e 
presa de outros, até que a natureza extinguisse a sua espécie. 
Também
 as nações, como os indivíduos, crescem lentamente e, com toda certeza, 
morrem: "algumas nações prosperam, outras decaem, e em pouco tempo as 
raças das coisas vivas são alteradas e, como corredores, passam adiante a
 lâmpada da vida". Diante da guerra e da morte inevitável, não há 
sabedoria a não ser a ataraxia - "encarar todas as coisas com serenidade
 de espírito". Aqui, evidentemente, toda a velha alegria pagã de viver 
desapareceu, e um espírito quase exótico toca uma lira quebrada. A 
história, que nada é a não ser humorista, nunca foi tão brincalhona como
 quando deu a esse abstêmio e épico pessimista o nome de epicurista.
E se
 for esse o espírito do adepto de Epicuro, imaginem o inebriante 
otimismo de estóicos declarados como Aurélio ou Epíteto. Nada, em toda a
 literatura, é tão deprimente quanto as Dissertações do escravo, a menos
 que se trate das Meditações do imperador. "Não procure fazer com que as
 coisas aconteçam segundo a sua preferência, mas prefira que elas 
aconteçam como têm de acontecer, e assim viverá com prosperidade." Não 
há dúvida de que é possível assim, ditar o futuro e fingir que dominamos
 o universo. Segundo consta o senhor de Epíteto, que o tratava com uma 
crueldade inalterável, certo dia decidiu torcer-lhe a perna para passar o
 tempo. "Se continuar", disse Epíteto com calma, "vai quebrar a minha 
perna." O senhor continuou, e a perna se quebrou. "Eu não lhe disse", 
observou Epíteto mansamente, "que o senhor iria quebrar minha perna?" No
 entanto, há uma certa nobilidade mística nessa filosofia, como na 
tranqülia coragem de um pacifista dostoievskiano. "Nunca diga, de 
qualquer modo, 'perdi isso assim, assim'; e sim, 'eu restituí tal 
coisa'. Tua filha morreu? Foi restituída. Tua mulher morreu? Foi 
restituída. Perdeste os teus bens? Também não foram restituídos?" Em 
trechos assim, sentimos a proximidade do cristianismo e seus intrépidos 
mártires; de fato, não eram a ética cristã da abnegação, o ideal 
político cristão de uma fraternidade quase comunista do homem, e a 
escatologia cristã da conflagração final do mundo inteiro, fragmentos da
 doutrina estóica flutuando na corrente do pensamento? Em Epíteto, a 
alma greco-romana perdeu o seu paganismo e está pronta para uma nova fé.
 Seu livro teve a distinção de ser adotado como manual religioso pela 
primitiva Igrja Cristã. Dessas Dissertações e das Meditações de Aurélio 
há apenas um passo para A Imitação de Cristo.
Enquanto
 isso, o ambiente histórico derretia-se para formar cenas mais novas. Há
 um notável trecho em Lucrécio que descreve a decadência da agricultura 
no Estado romano e a atribui à exaustão do solo. Seja qual for a causa, a
 riqueza de Roma transformou-se em pobreza, a organização em 
desintegração, o poder e o orgulho em decadência e apatia. Cidades 
voltaram a fundir-se com o interior sem distinção; as estradas ficaram 
sem manutenção e já não ecoavam a agitação do comércio; as pequenas 
famílias dos romanos de instrução eram ultrapassadas, em número, pelos 
vigorosos alemães sem instrução que cruzavam, ano após ano, a fronteira;
 a cultura pagã cedeu aos cultos orientais; e, quase que 
imperceptivelmente, o império se transformou em papado.
A
 Igreja, apoiada nos primeiros séculos pelos imperadores cujos poderes 
ela absorveu aos poucos, teve um aumento rápido no número de adeptos, na
 riqueza e no raio de influência. No século XIII, já possuía um terço do
 solo da Europa, e seus cofres estavam inchados com donativos de ricos e
 pobres. Durante mil anos, ela uniu, com a magia de uma crença 
invariável, a maior parte dos povos de um continente; nunca houve, antes
 ou depois, uma organização tão difundida e tão pacífica. Mas essa 
unidade exigia, como pensava a Igreja, uma fé comum exaltada por sanções
 sobrenaturais acima das mudanças e das corrosões do tempo; portanto, o 
dogma, definitivo e definido, foi colocado como uma concha sobre a 
mentalidade adolescente da Europa medieval. Era dentro dessa concha que a
 filosofia escolástica se deslocava acanhadamente entre fé e razão e 
vice-versa, num desconcertante circuito de pressupostos não criticados e
 conclusões pré-ordenadas. No século XIII, toda a cristandade ficou 
assustada e estimulada por traduções árabes e judaicas de Aristóteles; 
mas o poder da Igreja ainda era suficiente para garantir, através de 
Tomás de Aquino e outros, a transformação de Aristóteles em um teólogo 
medieval. O resultado foi a sutileza, mas não a sabedoria. "A 
inteligência e a mentalidade do homem", como disse Bacon, "se 
trabalharem com a matéria, trabalham segundo a substância desta e por 
ela ficarão limitados; mas se trabalharem consigo mesmo, serão 
intermináveis e produzirão realmente teias de saber, admiráveis pela 
delicadeza do fio e do trabalho, mas sem substância ou proveito." Mais 
cedo ou mais tarde, o intelecto da Europa iria irromper de dentro dessa 
concha.
Depois
 de mil anos de cultivo, o solo voltou a florescer; os bens se 
multiplicaram, criando excedentes que levaram ao comércio; e o comércio 
em suas encruzilhadas voltou a construir grandes cidades nas quais os 
homens podiam cooperar para estimular a cultura e reconstruir a 
civilização. As Cruzadas abriram os caminhos para o Oriente e permitiram
 a entrada de uma torrente de artigos de luxo e heresias que condenaram à
 morte e ascetismo e o dogma. O papel, agora, chegava barato do Egito, 
substituindo o caro pergaminho que tornara o saber um monopólio dos 
sacerdotes; a imprensa, que durante muito tempo esperava por um meio 
barato, estourou como um explosivo libertado e espalhou sua influência 
destruidora e esclarecedora por toda parte. Bravos navegantes, armados 
agora de bússolas, aventuraram-se na imensidão dos mares e conquistaram a
 ignorância do homem a respeito da Terra; observadores pacientes, 
armados de telescópios, aventuraram-se para além dos confins do dogma e 
conquistaram a ignorância do homem quanto ao céu. Aqui e ali, em 
universidades, mosteiros e retiros escondidos, homens deixaram de 
disputar e começaram a investigar; por via indireta, graças aos esforços
 no sentido de transformar metais inferiores em ouro, a alquimia foi 
transformada em química; da astrologia, os homens foram tateando com 
tímida ousadia para a astronomia; e das fábulas dos animais que falavam 
veio a ciência da zoologia. O despertar começou com Roger Bacon (m. 
1294); aumentou com o ilimitado Leonardo (1452-1519); alcançou sua 
plenitude na astronomia de Copérnico (1473-1543) e Galileu (1564-1642), 
nas pesquisas de Gilbert (1544-1603) sobre magnetismo e eletricidade, de
 Vesálio (1514-1564) em anatomia, e de Harvey (1578-1657) sobre a 
circulação do sangue. À medida que aumentava o conhecimento, diminuía o 
medo; os homens pensavam menos em adorar o desconhecido, e mais em 
dominá-lo. Todo espírito vital foi estimulado por uma nova confiança; 
barreiras foram derrubadas; não havia limites, agora, para o que o homem
 poderia fazer. "O fato de pequenos navios, como os corpos celestes, 
navegarem à volta do mundo inteiro, é a felicidade da nossa era. Esta 
época pode usar, com toda justiça, plus ultra" (mais além) "onde os 
antigos usavam non plus ultra." Foi uma era de realizações, esperança e 
vigor; de novos começos e empreendimentos em todos os campos; era uma 
era que esperava por uma voz, uma alma sintética para resumir o seu 
espírito e decidir. Foi Francis Bacon, "a mais poderosa inteligência dos
 tempos modernos, que tocou a sineta que reuniu as inteligências" e 
anunciou que a Europa havia atingido a maioridade.
OS PENSADORES
Do
 fundo eclético-neoplatônico do pensamento da Renascença se destacavam 
algumas figuras de maior vulto, cuja série começa com Nicolau de Cusa e 
termina com Giordano Bruno. É uma nova concepção filosófica do mundo e 
da vida, ainda não bem claramente esboçada, de que seus próprios 
autores, às vezes, não têm clara consciência. É uma época de transição, 
em que novo e velho se entretecem mutuamente.
Os
 sistemas filosóficos da época conservam a linguagem (latim) e a 
estrutura (silogística) da idade precedente. As intuições e afirmações 
naturalistas, humanistas e imanentistas estão ao lado das profissões de 
fé católica, feitas por motivos práticos, éticos e utilitários. 
Entretanto, debaixo dessas aparências, germina o pensamento moderno. É o
 crepúsculo que prenuncia a alvorada de um novo dia.
Nicolau de Cusa   
As
 obras fundamentais de Nicolau de Cusa são três: De docta ignorantia, De
 conjecturis, Apologia doctae ignorantiae. As fontes prediletas e 
principais são o misticismo alemão (Mestre Eckart), o platonismo e o 
neoplatonismo cristão (Santo Agostinho, Pseudo Dionísio, Scoto Erígena, 
São Boaventura), e os autores de tendência neoplatônica, em geral.
Nicolau
 de Cusa admite, acima dos sentidos, dois graus do saber humano; a ratio
 e o intellectus. A ratio - ou intelecto discursivo - é a faculdade que 
abstrai das noções particulares os conceitos universais, e forma, em 
seguida, os juízos e os raciocínios. O seu objeto próprio é o 
conhecimento da multíplice e do finito. No entanto, também a coisas 
finitas são imperfeitamente representadas pela ratio, cujo conhecimento 
se realiza mediante conceitos universais, ao passo que a realidade é 
constituída por seres individuais. Deus, uno e infinito, não pode 
certamente ser conhecido pela ratio, cujo objeto é o multíplice e o 
finito.
Acima
 da ratio está o intellectus, atividade supra-racional iluminada pela fé
 ou pela mística, cujo objeto próprio é o Uno e o infinito, Deus. O 
agnosticismo de Nicolau de Cusa é, portanto, corrigido pelo fideísmo e 
pelo misticismo. A docta ignorantia consiste precisamente na consciência
 dos limites e da relatividade da ratio, cujas deficiências são supridas
 pelo intellectus. Entretanto, esta iluminação é sobrenatural e nada tem
 que ver com a filosofia, nem é de modo nenhum fundamentada por Cusano. 
Admitindo, pois, ele, que a razão não nos dá a realidade, segue-se 
logicamente que a sua filosofia deve finalizar no agnosticismo 
gnosiológico, e no panteísmo metafísico. 
Por
 certo, o piedoso cardeal foi, na intenção, ortodoxo, teísta, católico. 
Entretanto, o seu sistema encerra fatalmente uma tendência para o 
panteísmo. De fato, foi ele acusado de panteísmo emanatista, quando 
ainda vivia.
Bernardino Telésio   
O
 mundo natural é constituído de matéria e de força. A matéria é 
homogênea, preenche o espaço (que existe antes da matéria) e é por si 
mesma inerte. A força anima, penetra, move, transforma continuamente 
toda a matéria.
O
 intelecto é reduzido aos sentidos, bem como o conceito universal é 
reduzido à sensação. Como é naturalizado o pensamento, é também 
naturalizada a vontade, no sentido materialista e hedonista. 
Entretanto,
 haveria no homem também uma alma que transcende a natureza e o mundo 
material, criada e infundida por Deus. Por conseguinte, o homem pode 
pensar e querer o supra-sensível, o eterno, e dominar com a vontade 
livre as tendências naturais. Desse modo, acima da ciência é posta e 
justificada a fé e a revelação.
Giordano Bruno   
As
 obras principais de Bruno são: De la causa principio e uno; De 
l'infinito, universo e mondi; Eroici furori; De immenso et 
innumerabilibus. As fontes de Bruno são: o monismo eleático e 
heraclíteo; o atomismo democríteo; o panteísmo estóico; o emanatismo 
neoplatônico; o naturalismo telesiano.
A
 metafísica de Bruno é decididamente monista, pampsiquista e 
pan-materialista. A realidade é una e infinita, constituída por dois 
princípios fundamentais, ativo um - a alma do mundo -, passivo o outro -
 a matéria. São dois aspectos da mesma substância. A alma do mundo é 
concebida como sendo inteligente, ordenadora do mundo; mas não é 
transcendente, como o motor primeiro de Aristóteles e o Deus do 
cristianismo, e sim imanente ao mundo, de que é precisamente a alma. O 
Deus de Bruno é, pois, esta alma do mundo, concebida como imutável e 
infinita, gerando eternamente o mundo finito e que se acha em perpétuo 
vir-a-ser. As almas particulares não passam de individuações passageiras
 dessa alma cósmica. Acima desse Deus imanente, também Bruno afirma a 
existência de um Deus transcendente, apreendido só por fé, trata-se, 
porém, de uma fé imanente naturalista, bem diversa da fé cristã.
Com
 a metafísica de Bruno estão em conexão a sua gnosiologia e a sua moral.
 Na sua teoria do conhecimento Bruno distingue - neoplatonicamente - 
quatro graus, em ordem hierárquica ascendente. São eles: 
• os sentidos, cujo objeto é o sensível, e a verdade que manifesta é mera aparência;
• a razão, mediante a qual a verdade é atingida por processo dialético, discursivo, sucessivo;
• o intelecto, que tem a intuição imediata da verdade;
• a mente, que atinge a verdade na sua unidade e simplicidade absoluta.
Quanto
 à moral deve-se dizer o seguinte: na moral de Bruno aparece de um modo 
característico o imanentismo e o humanismo do pensador. Bruno, em 
oposição à moral ascética e transcendente do cristianismo, sustenta que o
 homem realiza a sua natureza, atinge a sua perfeição no furor heróico, a
 saber, na sua imanente e jubilosa participação racional na vida do 
Todo-um. É, pois, natural, que Bruno considere toda religião histórica, 
positiva (inclusive o cristianismo), como um saber infra-racional, 
mítico, simbólico, útil para dirigir moralmente o vulgo ignorante, e não
 como uma revelação supra-racional de um Deus transcendente. Pois não é 
isto possível no seu sistema imanentista.
Tomás Campanella   
As
 fontes principais do seu pensamento são: o naturalismo telesiano e o 
idealismo neoplatônico. Mais do que os pensadores precedentes, 
Campanella parece oscilar entre imanentismo e catolicismo, devido ao 
fato de que se acha ele já no clima espiritual da contra reforma 
católica. E como Giordano Bruno prenuncia a Spinoza, assim Campanella 
prenuncia a Descartes, Malenbranche e Leibniz, marcando destarte a 
passagem da Renascença à Idade Moderna.
Quanto
 à gnosiologia, Campanella diz o seguinte: Admite ele um sensus inditus e
 um sensus additus. O primeiro oferece um conhecimento imediato de si 
mesmo; é um conhecimento fundamental, certíssimo, visto que o objeto 
coincide com o sujeito. Entretanto, o conhecimento do eu, a consciência,
 revela imediatamente as limitações do eu e, logo, a existência as 
coisas que limitam o eu. Estas coisas são conhecidas pela percepção 
externa, isto é, pelo sensus additus que nos dá um conhecimento mediato 
das coisas. Este, porém, não nos revela a natureza das coisas, e sim o 
sujeito modificado pelas coisas.
Ainda
 inferiores ao sensus additus, pela certeza, são o intelecto e a razão, 
porque ainda mais se afastam do sensus inditus, da imediata intuição de 
si mesmo. A razão, a saber, o poder de inferir o semelhante do 
semelhante, é um sentido imperfeito; o intelecto, a saber, o 
conhecimento do universal é um sentido elanguescido, pois o universal é 
uma noção genérica e confusa, cujo valor é unicamente prático, cômodo 
para resumir vários particulares. Campanella, como Telésio, desvaloriza a
 razão e o intelecto e admite, ao lado e acima deles, um princípio 
divino, uma mente, o pensamento, que desempenha a função de garantir o 
nosso conhecimento e libertar-nos do ceticismo.
Quanto
 à metafísica, salientamos que Campanella afirma de novo e acentua a 
animação universal, o pampsiquismo telesiano. Propriamente, a metafísica
 de Campanella é a doutrina dos primeiros princípios do ser; são eles o 
poder, a sabedoria, o amor. Tais princípios são absolutos e puros em 
Deus, relativos e imperfeitos nas criaturas. Daí as coisas e o espírito 
serem uma mistura de ser e de não-ser (ser limitado), ao passo que Deus é
 puro ser (ser infinito).
Sobre
 essa nossa limitação ontológica, Campanella alicerça a religião, que é 
aspiração do ser limitado para o ser infinito. Para Campanella, a 
religião fundamental é a religião natural, racional; as religiões 
positivas, históricas, seriam expressões empíricas da religião natural. A
 característica essencial da própria revelação cristã e da igreja 
católica seria a restauração da religião natural, racional, universal, 
obscurecida pela ignorância e pela concupiscência. Portanto, o 
cristianismo seria reduzido à religião natural, a que a Renascença em 
geral aspira.
Tal
 concepção filosófico-religiosa de Campanella teve uma expressão 
prática, política e pedagógica, na Cidade do Sol (Civitas solis), em que
 é exposta a sua utopia teocrático-comunista. Imagina ele uma república 
ideal, professando uma religião natural, governada por leis universais, 
em que, à maneira de Platão, o sábio é, ao mesmo tempo, monarca e 
sacerdote. Mais tarde, essa sua utopia teocrático-filosófica tomará uma 
forma teocrático-católica, com o papa à frente. Entretanto, o papa é 
concebido mais como chefe concreto de uma religião natural, do que como 
chefe de uma religião positiva e sobrenatural, como o cristianismo. 
Campanella viveu longamente na prisão, afastado da vida real; suas 
obras, escritas no cárcere, manifestam uma mentalidade fantástica, 
idealista, utópica, em que falta a experiência de uma vida 
social-concreta. "Tumultuária e aventurosa em muitos pontos - escreve 
Leonel Franca - a obra de Campanella encerra não poucas ideias 
aproveitáveis. Cabe-lhe a prioridade de várias teorias, atribuídas 
depois a Descartes e Bacon".
RENÉ DESCARTES
Sua Vida
De
 1604 a 1614, estuda no colégio jesuíta de La Flèche. Aí gozará de um 
regime de privilégio, pois levanta-se quando quer, o que o leva a 
adquirir um hábito que o acompanhará por toda sua vida: meditar no 
próprio leito. Apesar de apreciado por seus professores, ele se declara,
 no "Discurso sobre o Método", decepcionado com o ensino que lhe foi 
ministrado: a filosofia escolástica não conduz a nenhuma verdade 
indiscutível, "Não encontramos aí nenhuma coisa sobre a qual não se 
dispute". Só as matemáticas demonstram o que afirmam: "As matemáticas 
agradavam-me sobretudo por causa da certeza e da evidência de seus 
raciocínios". Mas as matemáticas são uma exceção, uma vez que ainda não 
se tentou aplicar seu rigoroso método a outros domínios. Eis por que o 
jovem Descartes, decepcionado com a escola, parte à procura de novas 
fontes de conhecimento, a saber, longe dos livros e dos regentes de 
colégio, a experiência da vida e a reflexão pessoal: "Assim que a idade 
me permitiu sair da sujeição a meus preceptores, abandonei inteiramente o
 estudo das letras; e resolvendo não procurar outra ciência que aquela 
que poderia ser encontrada em mim mesmo ou no grande livro do mundo, 
empreguei o resto de minha juventude em viajar, em ver cortes e 
exércitos, conviver com pessoas de diversos temperamentos e condições".
Após
 alguns meses de elegante lazer com sua família em Rennes, onde se ocupa
 com equitação e esgrima (chega mesmo a redigir um tratado de esgrima, 
hoje perdido), vamos encontrá-lo na Holanda engajado no exército do 
príncipe Maurício de Nassau. Mas é um estranho oficial que recusa 
qualquer soldo, que mantém seus equipamentos e suas despesas e que se 
declara menos um "ator" do que um "espectador": antes ouvinte numa 
escola de guerra do que verdadeiro militar. Na Holanda, ocupa-se 
sobretudo com matemática, ao lado de Isaac Beeckman. É dessa época (tem 
cerca de 23 anos) que data sua misteriosa divisa "Larvatus prodeo". Eu 
caminho mascarado. Segundo Pierre Frederix, Descartes quer apenas 
significar que é um jovem sábio disfarçado de soldado.
Em
 1619, ei-lo a serviço do Duque de Baviera. Em virtude do inverno, 
aquartela-se às margens do Danúbio. Podemos facilmente imaginá-lo 
alojado "numa estufa", isto é, num quarto bem aquecido por um desses 
fogareiros de porcelana cujo uso começa a se difundir, servido por um 
criado e inteiramente entregue à meditação. A 10 de novembro de 1619, 
sonhos maravilhosos advertem que está destinado a unificar todos os 
conhecimentos humanos por meio de uma "ciência admirável" da qual será o
 inventor. Mas ele aguardará até 1628 para escrever um pequeno livro em 
latim, as "Regras para a direção do espírito" (Regulae ad directionem 
ingenii). A ideéia fundamental que aí se encontra é a de que a unidade do
 espírito humano (qualquer que seja a diversidade dos objetos da 
pesquisa) deve permitir a invenção de um método universal. Em seguida, 
Descartes prepara uma obra de física, o Tratado do Mundo, a cuja 
publicação ele renuncia visto que em 1633 toma conhecimento da 
condenação de Galileu. É certo que ele nada tem a temer da Inquisição. 
Entre 1629 e 1649, ele vive na Holanda, país protestante. Mas Descartes,
 de um lado é católico sincero (embora pouco devoto), de outro, ele 
antes de tudo quer fugir às querelas e preservar a própria paz.
Finalmente,
 em 1637, ele se decide a publicar três pequenos resumos de sua obra 
científica: A Dióptrica, Os Meteoros e A Geometria. Esses resumos, que 
quase não são lidos atualmente, são acompanhados por um prefácio e esse 
prefácio foi que se tornou famoso: é o Discurso sobre o Método. Ele faz 
ver que o seu método, inspirado nas matemáticas, é capaz de provar 
rigorosamente a existência de Deus e o primado da alma sobre o corpo. 
Desse modo, ele quer preparar os espíritos para, um dia, aceitarem todas
 as consequências do método - inclusive o movimento da Terra em torno do
 Sol! Isto não quer dizer que a metafísica seja, para Descartes, um 
simples acessório. Muito pelo contrário! Em 1641, aparecem as Meditações
 Metafísicas, sua obra-prima, acompanhadas de respostas às objeções. Em 
1644, ele publica uma espécie de manual cartesiano. Os Princípios de 
Filosofia, dedicado à princesa palatina Elisabeth, de quem ele é, em 
certo sentido, o diretor de consciência e com quem troca importante 
correspondência. Em 1644, por ocasião da rápida viagem a Paris, 
Descartes encontra o embaixador da frança junto à corte sueca, Chanut, 
que o põe em contato com a rainha Cristina.
Esta
 última chama Descartes para junto de si. Após muitas tergiversações, o 
filósofo, não antes de encarregar seu editor de imprimir, para antes do 
outono, seu Tratado das Paixões - embarca para Amsterdã e chega a 
Estocolmo em outubro de 1649. É ao surgir da aurora (5 da manhã!) que 
ele dá lições de filosofia cartesiana à sua real discípula. Descartes, 
que sofre atrozmente com o frio, logo se arrepende, ele que "nasceu nos 
jardins da Touraine", de ter vindo "viver no país dos ursos, entre 
rochedos e geleiras". Mas é demasiado tarde. Contrai uma pneumonia e se 
recusa a ingerir as drogas dos charlatões e a sofrer sangrias 
sistemáticas ("Poupai o sangue francês, senhores"), morrendo a 9 de 
fevereiro de 1650. Seu ataúde, alguns anos mais tarde, será transportado
 para a França. Luís XIV proibirá os funerais solenes e o elogio público
 do defunto: desde 1662 a Igreja Católica Romana, à qual ele parece 
Ter-se submetido sempre e com humildade, colocará todas as suas obras no
 Index.
O Método
Descartes quer estabelecer um método universal, inspirado no rigor matemático e em suas "longas cadeias de razão".
1.
 - A primeira regra é a evidência: não admitir "nenhuma coisa como 
verdadeira se não a reconheço evidentemente como tal". Em outras 
palavras, evitar toda "precipitação" e toda "prevenção" (preconceitos) e
 só ter por verdadeiro o que for claro e distinto, isto é, o que "eu não
 tenho a menor oportunidade de duvidar". Por conseguinte, a evidência é o
 que salta aos olhos, é aquilo de que não posso duvidar, apesar de todos
 os meus esforços, é o que resiste a todos os assaltos da dúvida, apesar
 de todos os resíduos, o produto do espírito crítico. Não, como diz bem 
Jankélévitch, "uma evidência juvenil, mas quadragenária".
2. - A segunda, é a regra da análise: "dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quantas forem possíveis".
3.
 - A terceira, é a regra da síntese: "concluir por ordem meus 
pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de 
conhecer para, aos poucos, ascender, como que por meio de degraus, aos 
mais complexos".
4. - A última á a dos "desmembramentos tão complexos... a ponto de estar certo de nada ter omitido".
Se
 esse método tornou-se muito célebre, foi porque os séculos posteriores 
viram nele uma manifestação do livre exame e do racionalismo.
a)
 Ele não afirma a independência da razão e a rejeição de qualquer 
autoridade? "Aristóteles disse" não é mais um argumento sem réplica! Só 
contam a clareza e a distinção das ideias. Os filósofos do século XVIII 
estenderão esse método a dois domínios de que Descartes, é importante 
ressaltar, o excluiu expressamente: o político e o religioso (Descartes é
 conservador em política e coloca as "verdades da fé" ao abrigo de seu 
método).
b)
 O método é racionalista porque a evidência de que Descartes parte não 
é, de modo algum, a evidência sensível e empírica. Os sentidos nos 
enganam, suas indicações são confusas e obscuras, só as ideias da razão 
são claras e distintas. O ato da razão que percebe diretamente os 
primeiros princípios é a intuição. A dedução limita-se a veicular, ao 
longo das belas cadeias da razão, a evidência intuitiva das "naturezas 
simples". A dedução nada mais é do que uma intuição continuada.
A Metafísica
No
 Discurso sobre o Método, Descartes pensa sobretudo na ciência. Para bem
 compreender sua metafísica, é necessário ler as Meditações.
1.
 - Todos sabem que Descartes inicia seu itinerário espiritual com a 
dúvida. Mas é necessário compreender que essa dúvida tem um outro 
alcance que a dúvida metódica do cientista. Descartes duvida voluntária e
 sistematicamente de tudo, desde que possa encontrar um argumento, por 
mais frágil que seja. Por conseguinte, os instrumentos da dúvida nada 
mais são do que os auxiliares psicológicos, de uma ascese, os 
instrumentos de um verdadeiro "exército espiritual". Duvidemos dos 
sentidos, uma vez que eles frequentemente nos enganam, pois, diz 
Descartes, nunca tenho certeza de estar sonhando ou de estar desperto! 
(Quantas vezes acreditei-me vestido com o "robe de chambre", ocupado em 
escrever algo junto à lareira; na verdade, "estava despido em meu 
leito").
Duvidemos
 também das próprias evidências científicas e das verdades matemáticas! 
Mas quê? Não é verdade - quer eu sonhe ou esteja desperto - que 2 + 2 = 
4? Mas se um gênio maligno me enganasse, se Deus fosse mau e me iludisse
 quanto às minhas evidências matemáticas e físicas? Tanto quanto duvido 
do Ser, sempre posso duvidar do objeto (permitam-me retomar os termos do
 mais lúcido intérprete de Descartes, Ferdinand Alquié). 
2.
 - Existe, porém, uma coisa de que não posso duvidar, mesmo que o 
demônio queira sempre me enganar. Mesmo que tudo o que penso seja falso,
 resta a certeza de que eu penso. Nenhum objeto de pensamento resiste à 
dúvida, mas o próprio ato de duvidar é indubitável. "Penso, cogito, logo
 existo, ergo sum" . Não é um raciocínio (apesar do logo, do ergo), mas 
uma intuição, e mais sólida que a do matemático, pois é uma intuição 
metafísica, metamatemática. Ela trata não de um objeto, mas de um ser. 
Eu penso, Ego cogito (e o ego, sem aborrecer Brunschvicg, é muito mais 
que um simples acidente gramatical do verbo cogitare). O cogito de 
Descartes, portanto, não é, como já se disse, o ato de nascimento do 
que, em filosofia, chamamos de idealismo (o sujeito pensante e suas 
ideias como o fundamento de todo conhecimento), mas a descoberta do 
domínio ontológico (estes objetos que são as evidências matemáticas 
remetem a este ser que é meu pensamento).
3.
 - Nesse nível, entretanto, nesse momento de seu itinerário espiritual, 
Descartes é solipsista. Ele só tem certeza de seu ser, isto é, de seu 
ser pensante (pois, sempre duvido desse objeto que é meu corpo; a alma, 
diz Descartes nesse sentido, "é mais fácil de ser conhecida que o 
corpo").
É
 pelo aprofundamento de sua solidão que Descartes escapará dessa 
solidão. Dentre as ideias do meu cogito existe uma inteiramente 
extraordinária. É a ideia de perfeição, de infinito. Não posso tê-la 
tirado de mim mesmo, visto que sou finito e imperfeito. Eu, tão 
imperfeito, que tenho a ideia de Perfeição, só posso tê-la recebido de 
um Ser perfeito que me ultrapassa e que é o autor do meu ser. Por 
conseguinte, eis demonstrada a existência de Deus. E nota-se que se 
trata de um Deus perfeito, que, por conseguinte, é todo bondade. Eis o 
fantasma do gênio maligno exorcizado. Se Deus é perfeito, ele não pode 
ter querido enganar-me e todas as minhas ideias claras e distintas são 
garantidas pela veracidade divina. Uma vez que Deus existe, eu então 
posso crer na existência do mundo. O caminho é exatamente o inverso do 
seguido por São Tomás. Compreenda-se que, para tanto, não tenho o 
direito de guiar-me pelos sentidos (cujas mensagens permanecem confusas e
 que só têm um valor de sinal para os instintos do ser vivo). Só posso 
crer no que me é claro e distinto (por exemplo: na matéria, o que existe
 verdadeiramente é o que é claramente pensável, isto é, a extensão e o 
movimento). Alguns acham que Descartes fazia um circulo vicioso: a 
evidência me conduz a Deus e Deus me garante a evidência! Mas não se 
trata da mesma evidência. A evidência ontológica que, pelo cogito, me 
conduz a Deus fundamenta a evidência dos objetos matemáticos. Por 
conseguinte, a metafísica tem, para Descartes, uma evidência mais 
profunda que a ciência. É ela que fundamenta a ciência (um ateu, dirá 
Descartes, não pode ser geômetra!). 
4.
 - A Quinta meditação apresenta uma outra maneira de provar a existência
 de Deus. Não mais se trata de partir de mim, que tenho a ideia de Deus,
 mas antes da ideia de Deus que há em mim. Apreender a ideia de 
perfeição e afirmar a existência do ser perfeito é a mesma coisa. Pois 
uma perfeição não-existente não seria uma perfeição. É o argumento 
ontológico, o argumento de Santo Anselmo que Descartes (que não leu 
Santo Anselmo) reencontra: trata-se, ainda aqui, mais de uma intuição, 
de uma experiência espiritual (a de um infinito que me ultrapassa) do 
que de um raciocínio.
FRANCIS BACON   
Vida e Obras
Francis
 Bacon nasceu no dia 22 de janeiro de 1561 na York House, Londres, 
residência de seu pai sir Nicholas Bacon, que nos primeiros vinte anos 
do reinado de Elizabeth tinha sido o Guardião do Sinete. "A fama do 
pai", diz Maucaulay, "foi ofuscada pela do filh". Mas sir Nicholas não 
era um homem comum." A mãe de Bacon foi lady Anne Cooke, cunhada de sir 
William Cecil, lorde Burghley, que foi tesoureiro-mor de Elizabeth e um 
dos homens mais poderosos da Inglaterra. O pai dela tinha sido o 
tutor-chefe do rei Eduardo VI; ela mesma era lingüista e teóloga, e não 
tinha dificuldade em se corresponder em grego com bispos. Tornou-se 
instrutora do filho e não poupou esforços para que ele tivesse 
instrução. Bacon frequentou a Universidade de Cambridge, e viveu também 
em Paris. Começou a sua carreira de homem político e jurista, antes sob a
 rainha Isabel, e, depois, sob Jaime I, subindo até aos mais altos 
cargos: advogado geral em 1613, membro do Conselho particular em 1616, 
chanceler do reino em 1618. Foi agraciado por Jaime I com os títulos de 
Barão de Verulamo e Visconde de S. Albano. Entretanto foi acusado de 
concussão e condenado pelo Parlamento a uma multa avultuada. Perdoado 
pelo rei, retirou-se para as suas terras, dedicando-se inteiramente aos 
estudos. Faleceu em 1626. Teve uma inteligência muito esclarecida, 
convencido da sua missão de cientista, segundo o espírito positivo e 
prático da mentalidade anglo-saxônia.
A
 obra principal de Bacon é a Instauratio magna scientiarum, vasta 
síntese que deveria ter compreendido seis grandes partes. Mas terminou 
apenas duas, deixando sobre o resto esboços e fragmentos. As duas partes
 acabadas são precisamente: I - De dignitate et argumentis scientiarum; 
II - Novum organum scientiarum. Como se vê pelos títulos, e mais ainda 
pelo conteúdo, trata-se de pesquisas gnosiológicas, críticas e 
metodológicas, para lançar as bases lógicas da nova ciência, da nova 
filosofia, que deveria dar ao homem o domínio da realidade.
Os Ensaios
Sua
 ascensão parecia tornar realidade os sonhos de Platão de um 
rei-filósofo. Porque, passo a passo com a sua subida para o poder 
político, Bacon estivera escalando os píncaros da filosofia. É quase 
inacreditável que o imenso saber e as realizações literárias desse homem
 fossem apenas os incidentes e as digressões de uma turbulenta carreira 
política. Era seu lema que se vivia melhor na vida oculta - bene vixit 
qui bene latuit. Não conseguia chegar a uma conclusão sobre se gostava 
mais da vida contemplativa ou da ativa. Sua esperança era de ser 
filósofo e estadista, também, como Sêneca; embora desconfiasse de que 
essa dupla direção de sua vida fosse encurtar o seu alcance e reduzir 
suas realizações. "É difícil dizer", escreve ele, e "se a mistura de 
contemplações com uma vida ativa ou o retiro inteiramente dedicado a 
contemplações é o que mais incapacita ou prejudica a ment." Achava que 
os estudos não podiam ser um fim ou a sabedoria por si sós, e que o 
conhecimento não aplicado em ação era uma pálida vaidade acadêmica. 
"Dedicar-se em demasia aos estudos é indolência; usá-los em demasia como
 ornamento é afetação; fazer julgamentos seguindo inteiramente suas 
regras é o capricho de um scholar. (...) Os homens astutos condenam os 
estudos, os homens simples os admiram, e os homens sábios se utilizam 
deles, obtida graças à observação." Eis uma nova nota que marca o fim da
 escolástica - isto é, o divórcio entre o conhecimento e o uso e a 
observação - e coloca aquela ênfase na experiência e nos resultados que 
distingue a filosofia inglesa, e culmina no pragmatismo. Não que Bacon 
tivesse, por um instante, deixado de amar os livros e a meditação; em 
palavras que lembram Sócrates, ele escreve: "sem filosofia, não quero 
viver", e descreve a si mesmo como, afinal de contas, "um homem 
naturalmente mais propenso à literatura do que a qualquer outra coisa, e
 levado por algum destino, contra a inclinação de seu gênio" (isto é 
caráter), "a vida ativa". Quase que a sua primeira publicação recebeu o 
título de O Elogio do Conhecimento (1592); o entusiasmo do trabalho pela
 filosofia nos obriga a uma citação.
"Meu
 elogio será dedicado à própria mente. A mente é o homem, e o 
conhecimento é a mente; um homem é apenas aquilo que ele sabe. (...) Não
 são os prazeres das afeições maiores do que os prazeres dos sentidos, e
 não são os prazeres do intelecto maiores do que os prazeres das 
afeições? Não se trata, apenas, de um verdadeiro e natural prazer do 
qual não há saciedade? Não é só esse conhecimento que livra a mente de 
todas as perturbações? Quantas coisas existem que imaginamos não 
existirem? Quantas coisas estimamos e valorizamos mais do que são? Essas
 vãs imaginações, essas avaliações desproporcionadas, são as nuvens do 
erro que se transformam nas tempestades das perturbações. Existirá, 
então, felicidade igual à possibilidade da mente do homem elevar-se 
acima da confusão das coisas de onde ele possa ter uma atenção especial 
para com a ordem da natureza e o erro dos homens? De contentamento e não
 de benefício? Será que não devemos perceber tanto a riqueza do armazém 
da natureza quanto a beleza de sua loja? Será estéril a verdade? Não 
poderemos, através dela, produzir efeitos dignos e dotar a vida do homem
 com uma infinidade de coisas úteis?"
Sua
 mais bela produção literária, os Ensaios (1597-1623), mostram-no ainda 
indeciso entre dois amores, a política e a filosofia. No Ensaio sobre a 
Honra e a Reputação, ele dá todos os graus de honra a realizações 
políticas e militares, nenhum a literárias e filosóficas. Mas no ensaio 
Da Verdade, ele escreve: "A indagação da verdade, que é namorá-la ou 
cortejá-la; o conhecimento da verdade, que é o elogio a ela; e a crença 
na verdade, que é gozá-la, são o bem soberano das naturezas humanas." 
Nos livros, "conversamos com os sábios, como na ação conversamos com 
tolos". Isto é, se soubermos escolher os nossos livros. "Certos livros 
são para serem provados", outros para serem engolidos, e alguns poucos 
para serem mastigados e digeridos"; todos esses grupos formam, sem 
dúvida, uma porção infinitesimal dos oceanos e cataratas de tinta nos 
quais o mundo é diariamente banhado, envenenado e afogado.
Não
 há dúvida de que os >Ensaios devem ser incluídos entre os poucos
 livros que merecem ser mastigados e digeridos. Raramente se encontrará 
uma refeição tão substanciosa, tão admiravelmente preparada e temperada,
 em um prato tão pequeno. Bacon abomina os recheios e detesta 
desperdiçar uma palavra; ele nos oferece uma infinita riqueza numa 
pequena frase; cada um desses ensaios fornece, em uma ou duas páginas, a
 destilada sutileza de uma mente de mestre sobre um importante aspecto 
da vida. É difícil dizer o que é mais excelente, se a matéria ou o 
estilo; porque ali se acha uma linguagem de tão alta qualidade na prosa 
quanto é a de Shakespeare em verso. É um estilo como o do vigoroso 
Tácito, compacto mas refinado; e na verdade uma parte de sua concisão se
 deve a uma habilidosa adaptação do idioma e do frasear latinos. Mas a 
sua riqueza no que se refere a metáforas é caracteristicamente 
elizabetana e reflete a exuberância da Renascença; nenhum homem, na 
literatura inglesa, é tão fértil em comparações significativas e 
substanciosas. A excessiva sucessão dessas comparações constitui o único
 defeito do estilo de Bacon: as intermináveis metáforas, alegorias e 
alusões caem como chicotes sobre os nossos nervos e acabam por nos 
exaurir. Os Ensaios são como um alimento rico e pesado, que não pode ser
 digerido em grandes quantidades de uma só vez; mas tomados quatro ou 
cinco de cada vez, constituem o melhor alimento intelectual.
No
 ensaio"Da Juventude e da Idade"ele condensa um livro em um parágrafo. 
"Os jovens são mais aptos para inventar do que para julgar, mais aptos 
para a execução do que para o assessoramento, e mais aptos para novos 
projetos do que para atividades já estabelecidas; porque a experiência 
da idade em coisas que estejam ao alcance dessa idade os dirige; mas em 
coisas novas, os maltrata. (...) Os jovens, na conduta e na 
administração dos atos, abraçam mais do que podem segurar, agitam mais 
do que podem acalmar; voam para o fim sem consideração para com os meios
 e os graus; perseguem absurdamente alguns princípios com que toparam 
por acaso; não se importam em "(isto é, em como)" inovar, o que provoca 
transtornos desconhecidos. (...) Os homens maduros fazem objeções 
demais, demoram-se demais em consultas, arriscam-se muito pouco, 
arrependem-se cedo demais e raramente levam o empreendimento até o fim, 
mas se contentam com uma mediocridade de sucesso. Não há dúvida de que é
 bom forçar o emprego de ambos (...), porque as virtudes de qualquer um 
deles poderão corrigir os defeitos dos dois." Bacon acha, apesar de 
tudo, que a juventude e a infância podem ter uma liberdade demasiada e, 
assim, crescer desordenadas e relaxadas. "Que os pais escolhem cedo as 
vocações e os cursos que pretendem que seus filhos sigam, pois é nessa 
fase que eles são mais flexíveis; e que não se concentrem demais no 
pensor dos filhos, pensando que estes irão dedicar-se melhor àquilo para
 que estejam mais inclinados. É verdade que se os pendores ou a aptidão 
dos filhos forem extraordinários, é bom não contrariá-los; mas em geral,
 é bom o preceito" dos pitagóricos: "Optimum lege, suave et facile illud
 faciet consuetudo" - escolha o melhor; o hábito irá torná-lo agradável e
 fácil. Porque "o hábito é o principal magistrado da vida do homem."
A
 política dos Ensaios prega um conservantismo natural em que aspira ao 
governo. Bacon quer um forte poder central. A monarquia é a melhor forma
 de governo; e em geral, a eficiência de um Estado varia com a 
concentração do poder. "Deve haver três pontos essenciais nas 
atividades" do governo: "a preparação; o debate, ou exame; e a 
conclusão" (ou execução). "Se quiserdes presteza, que só o do meio fique
 a cargo de muitos, com o primeiro e o último ficando a cargo de uns 
poucos." Ele é um militarista confesso; deplora o crescimento da 
indústria por considerar que isso deixa os homens despreparados para a 
guerra, e lamenta uma paz prolongada, por aplacar o guerreiro que existe
 no homem. Apesar disso, reconhece a importância das matérias-primas: 
"Sólon disse a Creso (quando, por ostentação, Creso lhe mostrou o seu 
ouro): "Senhor, se chegar qualquer outro que tenha melhor ferro do que 
vós, ele será dono de todo esse ouro."
Tal
 como Aristóteles, Bacon dá alguns conselhos para se evitarem 
revoluções. "O meio mais seguro de evitar sedições (...) é afastar a 
causa; porque se o combustível estiver preparado, é difícil dizer de 
onde virá a fagulha que irá atear-lhe fogo. (...) Tampouco se segue que a
 supressão dos rumores" (isto é, da discussão) "com demasiada severidade
 deva ser o remédio para os problemas; porque muitas vezes o desprezo é a
 melhor forma de contê-los, e as providências para reprimi-los só fazem 
dar vida longa à especulação. (...) A substância da sedição é de dois 
tipos: muita pobreza e muito descontentamento. (...) As causas e motivos
 das sedições são as inovações na religião; os impostos; as modificações
 de leis e costumes; o cancelamento de privilégios; a opressão 
generalizada; o progresso de pessoas indignas, estranhas, as privações; 
soldados desmobilizados; facções desesperadas; e tudo aquilo que, ao 
ofender um povo, faz com que ele se una em uma casa comum." A sugestão 
de todos os líderes, claro, é dividir seus inimigos e unir os amigos. 
"De modo geral, é dividir e enfraquecer todas as facções (...) 
contrárias ao Estado, e colocá-las longe uma das outras, ou pelo menos 
semear a desconfiança entre elas, não é um dos piores remédios; porque é
 desesperador o caso em que aqueles que apóiam o governo estão cheios de
 discórdia e cisões, e os que estão contra ele estão inteiros e unidos."
 Uma receita melhor para evitar as revoluções é uma distribuição 
eqüitativa da riqueza: "O dinheiro é como o esterco, só é bom se for 
espalhado."Mas isso não significa socialismo ou, mesmo, democracia; 
Bacon não confia no povo, que na sua época praticamente não tinha acesso
 à educação; "a mais baixa das lisonjas é a lisonja do homem do povo", e
 "Fócion compreendeu bem quando, ao ser aplaudido pela multidão, 
perguntou o que tinha feito de errado." O que Bacon quer é, primeiro, 
uma pequena burguesia de proprietários rurais; depois, uma aristocracia 
para a administração; e acima de todos, um rei-filósofo. "Quando não há 
exemplos de que um governo não tenha prosperado com governos cultos." 
Ele cita Sêneca, Antonio Pio e Aurélio; tinha a esperança de que aos 
nomes deles a posteridade acrescentasse o seu.
O Pensamento: A "Instauratio Magna"
A
 Instauratio magna scientiarum deveria ter precisamente representado a 
reforma do saber, deveria ter constituído a summa philosophica dos 
tempos novos, e lançado o fundamento do regnum hominis, tão audazmente 
iniciado pela ciência e pela política da Renascença. Essa obra deveria 
ter abraçado a enciclopédia das ciências e compreendido também as 
técnicas, segundo o novo ideal humano e prático e imanentista. 
Começa-se, portanto, com a classificação geral das disciplinas humanas, 
baseada no respectivo predomínio das três faculdades que presidem à 
organização do saber: memória, fantasia, razão. Essa classificação é 
baseada não no objeto do conhecimento, e sim no sujeito que conhece. 1) 
História tanto civil quanto natural, que registra (memória) os dados de 
fato; 2) Poesia, elaboração imaginativa desses dados; 3) Ciência ou 
filosofia, isto é, conhecimento racional de Deus, do homem e da 
natureza.
A
 teologia natural de Bacon não exclui, mas prescinde da revelação cristã
 e da religião positiva. A ciência do homem divide-se em ciência do 
homem individual (philosophia humanitatis), e em ciência da sociedade 
humana (philosophia civilis). A primeira diz respeito ao homem todo, 
espírito e matéria. A segunda diz respeito à arte de governar e às 
relações sociais e aos negócios. A filosofia natural ou física, 
divide-se em especulativa e operativa. A primeira, por sua vez, se 
divide emfísica especial ("que procura a causa eficiente e material"), e
 em metafísica ("que procura a causa final e a forma"). Pertencem pois à
 física operativa as artes mecânicas. Acima das ciências filosóficas 
particulares, Bacon põe uma ciência filosófica comum, denominando-a 
philosophia prima. Esta não é a ontologia tradicional, a ciência do ser 
em geral, mas a ciência dos princípios comuns às várias ciências.
O "Novum Organum"
Entretanto,
 o que interessa mais a Bacon não é esta ciência dos princípios comuns, e
 sim a ciência da natureza, e, portanto, o Novum organum, que deveria 
conter precisamente as regras para a construção da ciência da natureza. 
Como é sabido, Bacon reivindica, contra Aristóteles e a Escolática, o 
método indutivo. Aristóteles e Tomás de Aquino afirmaram claramente este
 método, e até o reconheceram como único procedimento inicial do 
conhecimento humano; entretanto a eles interessavam muito mais as causas
 do que a experiência, o que transcende a experiência do que a 
experiência; muito mais a metafísica do que a ciência.
Segundo
 Bacon, o verdadeiro método da indução científica compreende uma parte 
negativa ou crítica, e uma parte positiva ou construtiva. A parte 
negativa consiste, antes de tudo, em alertar a mente contra os erros 
comuns, quando procura a conquista da ciência verdadeira. Na sua 
linguagem imaginosa Bacon chama as causas destes erros comuns, fantasmas
 - idola - e os divide em quatro grupos fundamentais. 
1)
 Idola tribus, a saber, os erroa da raça humana "fundamentados em a 
natureza como tal" (não se sabe, pois, o verdadeiro porquê);
2) Idola specus (por alusão à caverna de Platão) determinados pelas disposições subjetivas de cada um; 
3) Idola fori, erros da praça, provenientes do comércio social ou da linguagem imperfeita;
4)
 Idola theatri, isto é, os erros provenientes das escolas filosóficas, 
que substituem o mundo real por um mundo fantástico, por um jogo cênico.
Desembaraçado
 o terreno destes erros, Bacon passa a tratar da natureza positiva, 
construtiva, da genuína interpretação da natureza para dominá-la. Mas, 
para tanto, é mister conhecer as que Bacon chama de >formas, isto
 é, os princípios imanentes, causa e lei da ação e da ordem das 
naturezas. As naturezas são precisamente os fenômenos experimentais, 
objeto da física especial (luz, calor, pêso, etc.); as formas são leis 
genéticas e organizadoras das naturezas, as essências ou causas formais,
 objeto da metafísica de Bacon.
Esta
 pesquisa, esta passagem das naturezas às formas, dos fenômenos às 
essências - bem conhecida pela filosofia tradicional - é determinada por
 Bacon, segundo um método preciso, desconhecido dos predecessores, nas 
famosas tabulae baconianas. Para determinar de um modo certo as causas e
 as leis dos fenômenos - isto é, as formas das naturezas - Bacon 
recolhe, antes de tudo, o maior número possível de exemplos, em que um 
determinado fenômeno aparece; depois enumera os casos que mais se 
assemelham às primeiras, em que, porém, o mesmo fenômeno não aparece. 
Enfim registra o aumentar ou o diminuir do fenômeno em questão, quer no 
mesmo objeto, quer em objetos diferentes. Têm-se, desta maneira, três 
espécies de registros ou tabelas: 1) tabelas de presença; 2) tabelas de 
ausência; 3) tabelas de gradações. É evidente que nos casos onde uma 
determinada natureza ou fenômeno aparecem, aí se encontrará também a sua
 causa e lei; nos casos em que o fenômeno não se manifesta, aí faltará 
também a sua causa e lei; e nos casos onde o fenômeno aumenta ou 
diminui, aí aumentará ou diminuirá também a sua causa e lei. A causa 
(forma) dos fenômenos (naturezas) será procurada, portanto, com base nos
 fenômenos presentes na primeira tabela; não sendo fácil, a princípio, 
ter-se tabelas completas e isolar as naturezas simples, e desta maneira 
pôr em evidência a causa, é mister estabelecê-la por hipótese, que será,
 em seguida, averiguada pelas experimentações.
Essa
 gnosiologia, metodologia (empírica) é baseada em uma metafísica, uma 
física materialista e, mais precisamente, atomista, bastante semelhante à
 de Demócrito. O mundo material é constituído de corpúsculos, 
qualitativamente idênticos, diversos apenas por grandeza, forma e 
posição. Estes corpúsculos são animados por uma força, em virtude da 
qual se agrupam em determinados complexos, que constituem as formas 
baconianas.
FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
Immanuel Kant
Kant
 sofreu duas influências contraditórias: a influência do pietismo, 
protestantismo luterano de tendência mística e pessimista (que põe em 
relevo o poder do pecado e a necessidade de regeneração), que foi a 
religião da mãe de Kant e de vários de seus mestres, e a influência do 
racionalismo: o de Leibnitz, que Wolf ensinara brilhantemente, e o da 
Aufklärung (a Universidade de Koenigsberg mantinha relações com a 
Academia Real de Berlim, tomada pelas novas ideias). Acrescentemos a 
literatura de Hume que "despertou Kant de seu sono dogmático" e a 
literatura de Russeau, que o sensibilizou em relação do poder interior 
da consciência moral.
A
 primeira obra importante de Immanuel Kant - assim como uma das últimas,
 o Ensaio sobre o mal radical - consagra-o ao problema do mal: o Ensaio 
para introduzir em filosofia a noção de grandeza negativa (1763) opõe-se
 ao otimismo de Leibnitz, herdeiro do otimismo dos escoláticos, assim 
como do da Aufklärung. O mal não é a simples "privatio bone", mas o 
objeto muito positivo de uma liberdade malfazeja. Após uma obra em que 
Kant critica as ilusões de "visionário" de Swedenborg (que pretende tudo
 saber sobre o além), segue-se a Dissertação de 1770, que vale a seu 
autor a nomeação para o cargo de professor titular (professor 
"ordinário", como se diz nas universidades alemãs).
Nela,
 Kant distingue o conhecimento sensível (que abrange as instituições 
sensíveis) e o conhecimento inteligível (que trata das ideias 
metafísicas). Em seguida, surgem as grandes obras da maturidade, onde o 
criticismo kantiano é exposto. Em 1781, temos a Crítica da Razão Pura, 
cuja segunda edição, em 1787, explicará suas intenções "críticas" (um 
estudo sobre os limites do conhecimento). Os prolegômenos a toda 
metafísica futura (1783) estão para a Crítica da Razão Pura assim como a
 Investigação sobre o entendimento de Hume está para o Tratado da 
Natureza Humana: uma simplificação brilhante para o uso de um público 
mais amplo. A Crítica da Razão Pura explica essencialmente porque as 
metafísicas são voltadas ao fracasso e porque a razão humana é impotente
 para conhecer o fundo das coisas. A moral de Kant é exposta nas obras 
que se seguem: o Fundamento da Metafísica dos Costumes (1785) e a 
Crítica da Razão Prática (1788). Finalmente, a Crítica do Juízo (1790) 
trata das noções de beleza (e da arte) e de finalidade, buscando, desse 
modo, uma passagem que una o mundo da natureza, submetido à necessidade,
 ao mundo moral onde reina a liberdade.
Kant
 encontrara proteção e admiração em Frederico II. Seu sucessor, 
Frederico-Guilherme II, menos independente dos meios devotos, 
inquietou-se com a obra publicada por Kant em 1793 e que, apesar do 
título, era profundamente espiritualista e anti-Aufklärung: A religião 
nos limites da simples razão. Ele fez com que Kant se obrigasse a nunca 
mais escrever sobre religião, "como súdito fiel de Sua Majestade". Kant,
 por mais inimigo que fosse da restrição mental, achou que essa promessa
 só o obrigaria durante o reinado desse príncipe! E, após o advento de 
Frederico-Guilherme III, não hesitou em tratar, no Conflito das 
Faculdades (1798), do problema das relações entre a religião natural e a
 religião revelada! Dentre suas últimas obras citamos A doutrina do 
direito, A doutrina da virtude e seu Ensaio filosófico sobre a paz 
perpétua (1795).
A Ciência e a Metafísica
O
 método de Immanuel Kant é a "crítica", isto é, a análise reflexiva. 
Consiste em remontar do conhecimento às condições que o tornam 
eventualmente legítimo. Em nenhum momento Kant duvida da verdade da 
física de Newton, assim como do valor das regras morais que sua mãe e 
seus mestres lhe haviam ensinado. Não estão, todos os bons espíritos, de
 acordo quanto à verdade das leis de Newton? Do mesmo modo todos 
concordam que é preciso ser justo, que a coragem vale mais do que do que
 a covardia, que não se deve mentir, etc... As verdades da ciência 
newtoniana, assim como as verdades morais, são necessárias (não podem 
não ser) e universais (valem para todos os homens e em todos os tempos).
 Mas, sobre que se fundam tais verdades? Em que condições são elas 
racionalmente justificadas? Em compensação, as verdades da metafísica 
são objeto de incessantes discussões. Os maiores pensadores estão em 
desacordo quanto às proposições da metafísica. Por que esse fracasso?
Os
 juízos rigorosamente verdadeiros, isto é, necessários e universais, são
 a priori, isto é independentes dos azares da experiência, sempre 
particular e contigente. À primeira vista, parece evidente que esses 
juízos a priori são juízos analíticos. Juízo analítico é aquele cujo 
predicado está contido no sujeito. Um triângulo é uma figura de três 
ângulos: basta-me analisar a própria definição desse termo para dizê-lo.
 Em compensação, os juízos sintéticos, aqueles cujo atributo enriquece o
 sujeito (por exemplo: esta régua é verde), são naturalmente a 
posteriori; só sei que a régua é verde porque a vi. Eis um conhecimento 
sintético a posteirori que nada tem de necessário (pois sei que a régua 
poderia não ser verde) nem de universal (pois todas as réguas não são 
verdes).
Entretanto,
 também existem (este enigma é o ponto de partida de Kant) juízos que 
são, ao mesmo tempo, sintéticos e a priori! Por exemplo:a soma dos 
ângulos de um triângulo equivale a dois retos. Eis um juízo sintético (o
 valor dessa soma de ângulos acrescenta algo à ideia de triângulo) que, 
no entanto, é a priori. De fato eu não tenho necessidade de uma 
constatação experimental para conhecer essa propriedade. Tomo 
conhecimento dela sem ter necessidade de medir os ângulos com um 
transferidor. Faço-o por intermédio de uma demonstração rigorosa. Também
 em física, eu digo que o aquecimento da água é a causa necessária de 
sua ebulição (se não houvesse aí senão uma constatação empírica, como 
acreditou Hume, toda ciência, enquanto verdade necessária e universal, 
estaria anulada). Como se explica que tais juízos sintéticos e a priori 
sejam possíveis?
Eu
 demonstro o valor da soma dos ângulos do triângulo fazendo uma 
construção no espaço. Mas por que a demonstração se opera tão bem em 
minha folha de papel quanto no quadro negro... ou quanto no solo em que 
Sócrates traçava figuras geométricas para um escravo? É porque o espaço,
 assim como o tempo, é um quadro que faz parte da própria estrutura de 
meu espírito. O espaço e o tempo são quadros a priori, necessários e 
universais de minha percepção (o que Kant mostra na primeira parte da 
Crítica da Razão Pura, denominada Estética transcendental. Estética 
significa teoria da percepção, enquanto transcendental significa a 
priori, isto é, simultaneamente anterior à experiência e condição da 
experiência). O espaço e o tempo não são, para mim, aquisições da 
experiência. São quadros a priori de meu espírito, nos quais a 
experiência vem se depositar. Eis por que as construções espaciais do 
geômetra, por mais sintéticas que sejam, são a priori, necessárias e 
universais. Mas o caso da física é mais complexo. Aqui, eu falo não só 
do quadro a priori da experiência, mas, ainda, dos próprios fenômenos 
que nela ocorrem. Para dizer que o calor faz ferver a água, é preciso 
que eu constate. Como, então, os juízos do físico podem ser a priori, 
necessários e universais?
É
 porque, responde Kant, as regras, as categorias, pelas quais unificamos
 os fenômenos esparsos na experiência, são exigências a priori do nosso 
espírito. Os fenômenos, eles próprios, são dados a posteriori, mas o 
espírito possui, antes de toda experiência concreta, uma exigência de 
unificação dos fenômenos entre si, uma exigência de explicação por meio 
de causas e efeitos. Essas categorias são necessárias e universais. O 
próprio Hume, ao pretender que o hábito é a causa de nossa crença na 
causalidade, não emprega necessariamente a categoria a priori de causa 
na crítica que nos oferece? "Todas as intuições sensíveis estão 
submetidas às categorias como às únicas condições sob as quais a 
diversidade da intuição pode unificar-se em uma consciência". Assim 
sendo, a experiência nos fornece a matéria de nosso conhecimento, mas é 
nosso espírito que, por um lado, dispõe a experiência em seu quadro 
espacio-temporal (o que Kant mostrará na Estética transcendental) e, por
 outro, imprime-lhe ordem e coerência por intermédio de suas categorias 
(o que Kant mostra na Analítica transcendental). Aquilo a que 
denominamos experiência não é algo que o espírito, tal como cera mole, 
receberia passivamente. É o próprio espírito que, graças às suas 
estruturas a priori, constrói a ordem do universo. Tudo o que nos 
aparece bem relacionado na natureza, foi relacionado pelo espírito 
humano. É a isto que Kant chama de sua revolução copernicana. Não é o 
Sol, dissera Copérnico, que gira em torno da Terra, mas é esta que gira 
em torno daquele. O conhecimento, diz Kant, não é o reflexo do objeto 
exterior. É o próprio espírito humano que constrói - com os dados do 
conhecimento sensível - o objeto do seu saber.
Na
 terceira parte de sua Crítica da Razão Pura, na dialética 
transcendental, Kant se interroga sobre o valor do conhecimento 
metafísico. As análises precedentes, ao fundamentar solidamente o 
conhecimento, limitam o seu alcance. O que é fundamentado é o 
conhecimento científico, que se limita a por em ordem, graças às 
categorias, os materiais que lhe são fornecidos pela intuição sensível.
No
 entanto, diz Immanuel Kant, é por isso que não conhecemos o fundo das 
coisas. Só conhecemos o mundo refratado através dos quadros subjetivos 
do espaço e do tempo. Só conhecemos os fenômenos e não as coisas em si 
ou noumenos. As únicas intuições de que dispomos são as intuições 
sensíveis. Sem as categorias, as intuições sensíveis seriam "cegas", 
isto é, desordenadas e confusas, mas sem as intuições sensíveis 
concretas as categorias seriam "vazias", isto é, não teriam nada para 
unificar. Pretender como Platão, Descartes ou Spinoza que a razão humana
 tem intuições fora e acima do mundo sensível, é passar por "visionário"
 e se iludir com quimeras: "A pomba ligeira, que em seu vôo livre fende 
os ares de cuja resistência se ressente, poderia imaginar que voaria 
ainda melhor no vácuo. Foi assim que Platão se aventurou nas asas das 
ideias, nos espaços vazios da razão pura. Não se apercebia que, apesar 
de todos os seus esforços, não abria nenhum caminho, uma vez que não 
tinha ponto de apoio em que pudesse aplicar suas forças".
Entretanto,
 a razão não deixa de construir sistemas metafísicos porque sua vocação 
própria é buscar unificar incessantemente, mesmo além de toda 
experiência possível. Ela inventa o mito de uma "alma-substância" porque
 supõe realizada a unificação completa dos meus estados d'alma no tempo e
 o mito de um Deus criador porque busca um fundamento do mundo que seja a
 unificação total do que se passa neste mundo... Mas privada de qualquer
 ponto de apoio na experiência, a razão, como louca, perde-se nas 
antinomias, demonstrando, contrária e favoravelmente, tanto a tese 
quanto a antítese (por exemplo: o universo tem um começo? Sim pois o 
infinito para trás é impossível, daí a necessidade de um ponto de 
partida. Não, pois eu sempre posso me perguntar: que havia antes do 
começo do universo?). Enquanto o cientista faz um uso legítimo da 
causalidade, que ele emprega para unificar fenômenos dados na 
experiência (aquecimento e ebulição), o metafísico abusa da causalidade 
na medida em que se afasta deliberadamente da experiência concreta 
(quando imagino um Deus como causa do mundo, afasto-me da experiência, 
pois so o mundo é objeto de minha experiência). O princípio da 
causalidade, convite à descoberta, não deve servir de permissão para 
inventar.
Thomás Hobbes   
 Thomás
 Hobbes nasceu em Westport, em 1588. Filho de clérigo, Hobbes, em 1608, 
sai da Universidade de Oxford e se torna preceptor do filho de Lord 
Cavendish. Durante toda sua vida, ele será o amigo devotado dos Stuarts.
 Antes mesmo da revolução de 1648, que vai suprimir o poder real, ele 
foge da Inglaterra, onde se sente ameaçado por causa de suas convicções 
monarquistas. Viajará por diversos países da Europa, notadamente pela 
Itália (encontrará Galileu em Florença) e sobretudo pela França 
(encontrará o padre Mersenne em Paris). Retornará à Inglaterra por 
ocasião da restauração de Carlos II em 1660.
Thomás
 Hobbes nasceu em Westport, em 1588. Filho de clérigo, Hobbes, em 1608, 
sai da Universidade de Oxford e se torna preceptor do filho de Lord 
Cavendish. Durante toda sua vida, ele será o amigo devotado dos Stuarts.
 Antes mesmo da revolução de 1648, que vai suprimir o poder real, ele 
foge da Inglaterra, onde se sente ameaçado por causa de suas convicções 
monarquistas. Viajará por diversos países da Europa, notadamente pela 
Itália (encontrará Galileu em Florença) e sobretudo pela França 
(encontrará o padre Mersenne em Paris). Retornará à Inglaterra por 
ocasião da restauração de Carlos II em 1660. 
Em 1642, ele publica em Paris o De Cive e, em 1651, faz publicar em Londres o Leviatã ou matéria, forma e autoridade de uma comunidade eclesiástica e civil. O Leviatã será traduzido para o latim em 1688, em Amsterdam, mas nunca foi integralmente traduzido para o francês.
Hobbes é um empirista inglês e nele encontramos os temas fundamentais que serão sempre os da escola. A origem de todo conhecimento é a sensação, princípio original do conhecimento dos próprios princípios: a imaginação é um agrupamento inédito de fragmentos de sensação e a memória nada mais é do que o reflexo de antigas sensações.
Todavia, Hobbes crê na possibilidade de uma lógica pura, de um raciocínio demonstrativo muito rigoroso. Ao lado de uma indução empírica aproximativa, que da experiência passada conclui, sem prova decisiva, o que se passará amanhã (e que não tem outro fundamento além da associação de ideias, the trayan of imagination), Hobbes admite a existência de uma lógica pura, perfeitamente racional. Mas a essa lógica só concernem símbolos, palavras (Hobbes é nominalista). Se definirmos rigorosamente as palavras e as regras do emprego dos signos, podemos chegar a conclusões rigorosas, isto é, idênticas aos princípios de que partimos. Mas trata-se de um jogo do pensamento, estranho às realidades concretas.
A filosofia de Hobbes é materialista e mecanicista. Assim como a percepção é explicada mecanicamente a partir das excitações transmitidas pelo cérebro, assim a moral se reduz ao interesse e à paixão. Na fonte de todos os nossos valores, há o que Hobbes denomina endeavour, em inglês, e conatus, em latim, isto é, o instinto de conservação ou, mais exatamente, de afirmação e de crescimento de si próprio; esforço próprio a todos os seres para unir-se ao que lhes agrada e fugir do que lhes desagrada (esse tema do conatus será reencontrado no spinozismo).
É partindo de tais fundamentos psicológicos que Hobbes elabora sua justificação do despotismo. O absolutismo da época de Hobbes geralmente se apóia na teologia (Deus teria investido os reis de seu poder absoluto). Hobbes, ao justificar o poder absoluto do soberano, descobre-lhe uma origem natural.
Para ele, o direito, em todos os casos, reduz-se à força; mas distingue dois momentos na história da humanidade: o estado natural e o estado político. No estado natural, o poder de cada um é medido por seu poder real; cada um tem exatamente tanto de direito quanto de força e todos só pensam na própria conservação e nos interesses pessoais. Para Hobbes, o homem se distingue dos insetos sociais, como as abelhas e as formigas; por isso, o homem não possui instinto social. Ele não é sociável por natureza e só o será por acidente.
Para compreender como o homem se resolve a criar a instituição artificial do governo, basta descrever o que se passa no estado natural; o homem, por natureza, procura ultrapassar todos os seus semelhantes: ele não busca apenas a satisfação de suas necessidades naturais, mas sobretudo as alegrias da vaidade (pride). O maior sofrimento é ser desprezado. Assim sendo, o ofendido procura vingar-se, mas - observa Hobbes, antecipando aqui os temas hegelianos - comumente não deseja a morte de seu adversário e deseja seu cativeiro a fim de poder ler, em seu olhar atemorizado e submisso, o reconhecimento de sua própria superioridade.
É claro que esse estado, em que cada um procura senão a morte, ao menos a sujeição do outro, é um estado extremamente infeliz. As expressões pelas quais Hobbes o descreve são célebres: "Homo homini lupus", o homem é o lobo do homem; "Bellum omnium contra omnes", é a guerra de todos contra todos. Não pensemos que mesmo os homens mais robustos desfrutem tranqüilamente as vitórias que sua força lhe assegura. Aquele que possui grande força muscular não está ao abrigo da astúcia do mais fraco. Este último - por maquinação secreta ou a partir de hábeis alianças - sempre é o suficientemente forte para vencer o mais forte. Por conseguinte, ao invés de uma desigualdade, é uma espécie de igualdade dos homens no estado natural que faz sua infelicidade. Pois, em definitivo, ninguém está protegido; o estado natural é, para todos, um estado de insegurança e de angústia.
Assim sendo, o homem sempre tem medo de ser morto ou escravizado e esse temor, em última instância mais poderoso do que o orgulho, é a paixão que vai dar a palavra à razão. (Essa psicologia da vaidade e do medo é, em Hobbes, uma espécie de laicização da oposição teológica entre o orgulho espiritual e o temor a Deus ou humildade.) É o medo, portanto, que vai obrigar os homens a fundarem um estado social e a autoridade política.
Os homens, portanto, vão se encarregar de estabelecer a paz e a segurança. Só haverá paz concretizável se cada um renunciar ao direito absoluto que tem sobre todas as coisas. Isto só será possível se cada um abdicar de seus direitos absolutos em favor de um soberano que, ao herdar os direitos de todos, terá um poder absoluto. Não existe aí a intervenção de uma exigência moral. Simplesmente o medo é maior do que a vaidade e os homens concordam em transmitir todos os seus poderes a um soberano. Quanto a este último, notemo-lo bem, ele é o senhor absoluto desde então, mas não possui o menor compromisso em relação a seus súditos.
Seu direito não tem outro limite que seu poder e sua vontade. No estado de sociedade, como no de natureza, a força é a única medida do direito. No estado social, o monopólio da força pertence ao soberano. Houve, da parte de cada indivíduo, uma atemorizada renúncia do seu próprio poder. Mas não houve pacto nem contrato, o que houve, como diz Halbwachs, foi "uma alienação e não uma delegação de poderes". O efeito comum do poder consistirá, para todos, na segurança, uma vez que o soberano terá, de fato, o maior interesse em fazer reinar a ordem se quiser permanecer no poder. Apesar de tudo, esse poder absoluto permanece um poder de fato que encontrará seus limites no dia em que os súditos preferirem morrer do que obedecer. Em todo caso, esta á a origem psicológica que Hobbes atribui ao poder despótico. Ele chama de Leviatã ao seu estado totalitário em lembrança de uma passagem da Bíblia (Jó XLI) em que tal palavra designa um animal monstruoso, cruel e invencível que é o rei dos orgulhosos.
Finalmente, o totalitarismo de Hobbes submete - apesar de prudentes reservas - o poder religioso ao poder político. Assim é que ele exclui o "papismo" e o "presbiterianismo" por causa "dessa autoridade que alguns concedem ao papa em reinos que não lhe pertencem ou que alguns bispos, em suas dioceses, querem usurpar".
O Estado Natural e o Pacto Social
Leviatã, 1.ª parte: Do Homem
Cap. XIII
... O Estado de natureza, essa guerra de todos contra todos tem por consequência o fato de nada ser injusto. As noções de certo e errado, de justiça e de injustiça não têm lugar nessa situação. Onde não há Poder comum, não há lei; onde não há lei, não há injustiça: força e astúcia são virtudes cardeais na guerra. Justiça e injustiça não pertencem à lista das faculdades naturais do Espírito ou do Corpo; pois, nesse caso, elas poderiam ser encontradas num homem que estivesse sozinho no mundo (como acontece com seus sentidos ou suas paixões). Na realidade, justiça e injustiça são qualidades relativas aos homens em sociedade, não ao homem solitário. A mesma situação de guerra não implica na existência da propriedade... nem na distinção entre o Meu e o Teu, mas apenas no fato de que a cada um pertence aquilo que for capaz de o guardar. Eis então, e por muito tempo, a triste condição em que o homem é colocado pela natureza com a possibilidade, é bem verdade, de sair dela, possibilidade que, por um lado, se apóia na Paixões e, por outro, em sua Razão. As paixões que inclinam o homem para a paz são o temor à morte violenta e o desejo de tudo o que é necessário a uma vida confortável... E a Razão sugere artigos de paz convenientes sobre os quais os homens podem ser levados a concordar.
Cap. XIV
... O direito natural que os escritores comumente chamam de Jus naturale é a Liberdade que tem cada um de se servir da própria força segundo sua vontade, para salvaguardar sua própria natureza, isto é, sua própria vida. E porque a condição humana é uma condição de guerra de cada um contra cada um... daí resulta que, nessa situação, cada um tem direito sobre todas as coisas, mesmo até o corpo dos outros... Enquanto dura esse direito natural de cada um sobre tudo e todos, não pode existir para nenhum homem (por mais forte ou astucioso que seja) a menor segurança...
Cap. XV
... Antes que se possa utilizar das palavras justo e injusto, é preciso que haja um Poder constrangedor; inicialmente, para forçar os homens a executar seus pactos pelo temor de uma punição maior do que o benefício que poderiam esperar se os violassem, em seguida, para garantir-lhes a propriedade do que adquirem por Contrato mútuo em substituição e no lugar do Direito universal que perdem. E não existe tal poder constrangedor antes da instituição de um Estado. É o que também resulta da definição que as Escolas dão geralmente da justiça, a saber, que a justiça é a vontade de atribuir a cada um o que lhe cabe pertencer; pois, quando nada é próprio, ou seja, quando não há propriedade, não há injustiça; e onde não há Poder Constrangedor estabelecido, em outras palavras, onde não há Estado, não há Propriedade e cada homem tem direito a todas as coisas. Por conseguinte, enquanto não há Estado, nada há que seja Injusto.
JEAN-JAQUE ROUSSEAU
 Filósofo
 e romancista suíço de língua francesa (28/6/1712-2/7/1778). Considerado
 o representante mais radical do iluminismo e um dos ideólogos da 
Revolução Francesa. Nasce em Genebra. Órfão de mãe, é abandonado pelo 
pai aos 10 anos e entregue aos cuidados de um pastor. Em 1728 vai para 
Annecy, na França. Muda-se para Paris 13 anos depois, onde se torna 
amigo do filósofo Denis Diderot e escreve para a Enciclopédia. Em 
Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens (1755), afirma 
que o homem nasce bom e sem vícios – o bom selvagem –, mas é pervertido 
pela sociedade civilizada. Em sua obra mais conhecida, O Contrato Social
 (1762), defende um Estado baseado na democracia e voltado para o bem 
comum e para a vontade geral. É o primeiro a atribuir soberania ao povo.
 Prega liberdade, igualdade e fraternidade, lema assumido pela Revolução
 Francesa. Escreve também romances, como Júlia ou a Nova Heloísa, que 
obtêm grande sucesso, tratados sobre música e uma ópera, O Adivinho da 
Aldeia. Suas ideias causam polêmica com outros pensadores e com as 
autoridades francesas. Obrigado a sair do país, exila-se na Inglaterra, 
mas volta para Paris em 1770. Mais tarde se muda para o castelo do 
marquês de Girardin, em Ermenonville, onde morre.
Filósofo
 e romancista suíço de língua francesa (28/6/1712-2/7/1778). Considerado
 o representante mais radical do iluminismo e um dos ideólogos da 
Revolução Francesa. Nasce em Genebra. Órfão de mãe, é abandonado pelo 
pai aos 10 anos e entregue aos cuidados de um pastor. Em 1728 vai para 
Annecy, na França. Muda-se para Paris 13 anos depois, onde se torna 
amigo do filósofo Denis Diderot e escreve para a Enciclopédia. Em 
Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens (1755), afirma 
que o homem nasce bom e sem vícios – o bom selvagem –, mas é pervertido 
pela sociedade civilizada. Em sua obra mais conhecida, O Contrato Social
 (1762), defende um Estado baseado na democracia e voltado para o bem 
comum e para a vontade geral. É o primeiro a atribuir soberania ao povo.
 Prega liberdade, igualdade e fraternidade, lema assumido pela Revolução
 Francesa. Escreve também romances, como Júlia ou a Nova Heloísa, que 
obtêm grande sucesso, tratados sobre música e uma ópera, O Adivinho da 
Aldeia. Suas ideias causam polêmica com outros pensadores e com as 
autoridades francesas. Obrigado a sair do país, exila-se na Inglaterra, 
mas volta para Paris em 1770. Mais tarde se muda para o castelo do 
marquês de Girardin, em Ermenonville, onde morre. 
John Locke
 Sobre
 a linha do desenvolvimento do empirismo, Locke representa um progresso 
em confronto com os precedentes: no sentido de que a sua gnosiologia 
fenomenista-empirista não é dogmaticamente acompanhada de uma metafísica
 mais ou menos materialista. Limita-se a nos oferecer, filosoficamente, 
uma teoria do conhecimento, mesmo aceitando a metafísica tradicional, e 
do senso comum pelo que concerne a Deus, à alma, à moral e à religião. 
Com relação à religião natural, não muito diferente do deísmo abstrato 
da época; o poder político tem o direito de impor essa religião, 
porquanto é baseada na razão. Locke professa a tolerância e o respeito 
às religiões particulares, históricas, positivas.
Sobre
 a linha do desenvolvimento do empirismo, Locke representa um progresso 
em confronto com os precedentes: no sentido de que a sua gnosiologia 
fenomenista-empirista não é dogmaticamente acompanhada de uma metafísica
 mais ou menos materialista. Limita-se a nos oferecer, filosoficamente, 
uma teoria do conhecimento, mesmo aceitando a metafísica tradicional, e 
do senso comum pelo que concerne a Deus, à alma, à moral e à religião. 
Com relação à religião natural, não muito diferente do deísmo abstrato 
da época; o poder político tem o direito de impor essa religião, 
porquanto é baseada na razão. Locke professa a tolerância e o respeito 
às religiões particulares, históricas, positivas. 
Locke viajou fora da Inglaterra, especialmente em França, onde ampliou o seu horizonte cultural, entrou em contato com movimentos filosóficos diversos, em especial com o racionalismo. Tornou-se mais consciente do seu empirismo, que procurou completar com elementos racionalistas (o que, entretanto, representa um desvio na linha do desenvolvimento do empirismo, procedente de Bacon até Hume).
Vida e Obras
João Locke nasceu em Wrington, em 1632. Estudou na Universidade de Oxford filosofia, ciências naturais e medicina. Em 1665 foi enviado para Brandenburgo como secretário de legação. Passou, em seguida, ao serviço de Loed Ashley, futuro conde de Shaftesbury, a quem ficou fiel também nas desgraças políticas. Foi, portanto, para a França, onde conheceu as personalidades mais destacadas da cultura francesa do "grand siècle". Em 1683 refugiou-se na Holanda, aí participando no movimento político que levou ao trono da Inglaterra Guilherme de Orange. De volta à pátria, recusou o cargo de embaixador e dedicou-se inteiramente aos estudos filosóficos, morais, políticos. Passou seus últimos anos de vida no castelo de Oates (Essex), junto de Sir Francisco Masham. Faleceu em 1704.
As suas obras filosóficas mais notáveis são: o Tratado do Governo Civil (1689); o Ensaio sobre o Intelecto Humano (1690); os Pensamentos sobre a Educação (1693). As dontes principais do pensamento de Locke são: o nominalismo escolástico, cujo centro famoso era Oxford; o empirismo inglês da época; o racionalismo cartesiano e a filosofia de Malebranche.
O Pensamento: A Gnosiologia
Locke julga, como Bacon, que o fim da filosofia é prático. Entretanto - diversamente de Bacon, que julgava fim da filosofia o conhecimento da natureza para dominá-la (fim econômico) - Locke pensa que o fim da filosofia é essencialmente moral; quer dizer: a filosofia deve proporcionar uma norma racional para a vida do homem. E, como os seus predecessores empiristas, ele sente, antes de mais nada, a necessidade de instituir uma investigação sobre o conhecimento humano, elaborar uma gnosiologia, para achar um critério de verdade. Podemos dizer que a sua filosofia se limita a este problema gnosiológico, para logo passar a uma filosofia moral (e política, pedagógica, religiosa), sem uma adequada e intermédia metafísica.
Locke não parte, realisticamente, do ser, e sim, fenomenisticamente, do pensamento. No nosso pensamento acham-se apenas idéias (no sentido genérico das representações): qual é a sua origem e o seu valor? Locke exclui absolutamente as idéias e os princípios que deles se formam, derivam da experiência; antes da experiência o espírito é como uma folha em branco, uma tabula rasa.
No entanto, a experiência é dúplice: externa e interna. A primeira realiza-se através da sensação, e nos proporciona a representação dos objetos (chamados) externos: cores, sons, odores, sabores, extensão, forma, movimento, etc. A segunda realiza-se através da reflexão, que nos proporciona a representação das próprias operações exercidas pelo espírito sobre os objetos da sensação, como: conhecer, crer, lembrar, duvidar, querer, etc. Nas idéias proporcionadas pela sensibilidade externa, Locke distingue as qualidades primárias, absolutamente objetivas, e as qualidades secundárias, subjetivas (objetivas apenas em sua causa).
As idéias ou representações dividem-se em idéias simples e idéias complexas, que são uma combinação das primeiras. Perante as idéias simples - que constituem o material primitivo e fundamental do conhecimento - o espírito é puramente passivo; pelo contrário, é ele ativo na formação das idéias complexas. Entre estas últimas, a mais importante é a substância: que nada mais seria que uma coleção constante de idéias simples, referida pelo espírito a um misterioso substrato unificador. O espírito é também ativo nas sínteses que são as idéias de relação, e nas análises que são as idéias gerais. Às idéias de ralação pertencem as relações temporais e espaciais e de idéias simples dos complexos a que pertencem e da universalização da idéia assim isolada, obtendo-se, desse modo, a idéia abstrata (por exemplo, a brancura). Locke é, mais ou menos, nominalista: existem, propriamente, só indivíduos com uma essência individual, e as idéias gerais não passam de nomes, que designam caracteres comuns a muitos indivíduos. Entretanto, os nomes que designam uma idéia abstrata, isto é, uma propriedade semelhante em muitas coisas, têm um valor e um escopo práticos: auxiliar os homens a se conduzirem na vida.
Dado o nominalismo de Locke, compreende-se como, para ele, é impossível a ciência verdadeira da natureza, considerada como conhecimento das leis universais e necessárias. Locke julga também inaplicável à natureza a matemática - reconhecendo-lhe embora o caráter de verdadeira ciência - isto é, não acredita na físico-matemática, à maneira de Galileu. Entretanto, mesmo que a ciência da natureza não nos desse senão a probabilidade, a opinião, seria útil enquanto prática.
Até aqui foram analisados e descritos os conteúdos de consciência. É mister agora propor a questão do seu valor lógico. Costuma-se dizer que as idéias são "verdadeiras ou falsas"; melhor seria chamá-las "justas ou erradas", porque, propriamente, "a verdade e a falsidade pertencem às proposições", em que se afirma ou se nega uma relação entre duas idéias. E esta relação, afirmada ou negada, pode ser precisamente falsa ou verdadeira. O conhecimento da relação positiva ou negativa entre as ideias é, segundo Locke, de dois tipos: intuitivo e demonstrativo. No primeiro caso a relação é colhida intuitiva, imediata e evidentemente. Por exemplo: 3 = 2 + 1. No segundo caso a relação é colhida mediatamente, recorrendo às ideias intermediárias, ao raciocínio. Por exemplo: a existência de Deus demonstrada pela nossa existência e pelo princípio de causalidade. Naturalmente, a demonstração é inferior à intuição.
Ideias Metafísicas
Estamos, porém, ainda fechados no mundo subjetivo, fenomênico; de fato, tratou-se, até agora, de relações positivas ou negativas, concordes ou desacordes com as ideias. Podemos nós sair desse mundo subjetivo e atingir o mundo objetivo, isto é, podemos conhecê-lo imediatamente ou mediatamente na sua existência e na sua natureza? Locke afirma-o, sem mostrar, entretanto, como este conhecimento do mundo externo possa concordar com a sua geral (fenomenista) concepção e definição do conhecimento. É a sólita posição de um fenomenismo ainda não plenamente consciente de si mesmo. Corta as relações com o ser e vai para o fenomenismo absoluto, mas tem ainda saudade desse ser do qual se isolou.
Em todo caso, Locke acredita poder atingir, antes de tudo, o nosso ser, depois o de Deus, e, finalmente, o das coisas. O nosso ser seria intuitivamente percebido através da reflexão. A existência de Deus seria racionalmente demonstrada mediante o princípio de causa, partindo do conhecimento imediato de uma outra existência (a nossa). A existência das coisas, alfim, seria sentida invencivelmente, porque nos sentimos passivos em nossas sensações, que deveriam ser causadas por seres externos a nós.
Entretanto, pelo que diz respeito ao nosso ser, é mister ter presente que nós não conhecemos intuitivamente a substância da alma, e sim as suas atividades. Pelo que diz respeito a Deus, a prova da sua existência vale, se vale absolutamente o princípio de causa - o que Locke não demonstrou. Enfim, pelo que diz respeito às coisas externas, mesmo admitida a prova aduzida por Locke - segundo a confissão do próprio filósofo - tal prova vale apenas pelo que concerne à existência das coisas, e não pelo que concerne à natureza delas. De fato, segundo a filosofia de Locke, não sabemos se as ideias da natureza das coisas correspondem à realidade das coisas.
Moral e Política
Locke não admite, naturalmente, ideias e princípios inatos nem sequer no campo da moral. A sua moral, todavia, é muito mais intelectualista do que empirista, pois ele lhe reconhece o caráter de verdadeira ciência, universal e necessária.
Entretanto, não basta ter construído uma moral em abstrato, embora racional. É preciso torná-la praticamente eficaz, isto é, faz-se mister uma obrigação moral, que se imponha à nossa vontade. Ora, visto que é natural, no homem, a tendência para o próprio bem-estar, é natural que ele seja atingido pelas penas, pelas sanções, que precisamente lhe impedem tal realização. Que parte tem a liberdade da vontade em tudo isto? Locke nega, propriamente, o livre arbítrio, porquanto nós nos inclinamos necessariamente para um bem determinado e devemos desejar o bem maior.
Quanto à política, Locke deriva a lei civil da lei natural, racional, moral, em virtude da qual todos os homens - como seres racionais - são livre iguais, têm direito à vida e à propriedade; e, entretanto na vida política, não podem renunciar a estes direitos, sem renunciar à própria dignidade, à natureza humana. Locke admite um originário estado de natureza antes do estado civilizado. Não, porém, no sentido brutal e egoísta de inimizade universal, como dizia Hobbes; mas em um sentido moral, em virtude do qual cada um sente o dever racional de respeitar nos outros a mesma personalidade que nele se encontra.
Também Locke admite a passagem do estado de natureza ao estado civilizado, porquanto, no primeiro, falta a certeza e a regularidade da defesa e da punição, que existe no segundo, graças à autoridade do superior. Entretanto, estipulando este contrato social, os indivíduos não renunciam a todos os direitos, porquanto os direitos que constituem a natureza humana (vida, liberdade, bens), são inalienáveis; mas renunciam unicamente ao direito de defesa e de fazer justiça, para conseguir que os direitos inalienáveis sejam melhor garantidos. Antes, se o estado violasse esses direitos inalienáveis, os indivíduos teriam o direito e o dever de a ele resistir e de se revoltar contra o poder usurpador. A doutrina política de Locke, contida no seu Tratado sobre o Governo Civil, é a expressão teórica do constitucionalismo liberal inglês, em contraste com a doutrina do absolutismo naturalista de Hobbes.
Ideias pedagógicas
Com respeito à religião, Locke toma uma atitude racionalista moderada. Admite uma religião natural, exigível também politicamente, porquanto fundamentada na razão. E professa a tolerância a respeito das religiões particulares, históricas, positivas.
Locke interessou-se especialmente pelos problemas pedagógicos, escrevendo os Pensamentos sobre a Educação. Aí afirma a nossa passividade, pois nascemos todos ignorantes e recebemos tudo da experiência; mas, ao mesmo tempo, afirma a nossa parte ativa, enquanto o intelecto constrói a experiência, elaborando as ideias simples.
Afirma-se que todos nascemos iguais, dotados de razão; mas, ao mesmo tempo, todos temos temperamentos diferentes, que devem ser desenvolvidos de conformidade com o temperamento de cada um. Esta educação individual não exclui, mas implica a educação, a formação social, para ampliar, enriquecer a própria personalidade. Tem muita importância a obra do educador, mas é fundamental a colaboração do discípulo, pois trata-se da formação do intelecto, da razão, que é, necessariamente, autônoma. A formação educacional consiste, portanto, fundamentalmente, no desenvolvimento do intelecto mediante a moral, precisamente pelo fato de que se trata de formar seres conscientes, livres, senhores de si mesmos. Por conseguinte, a educação deve ser formativa, desenvolvendo o intelecto, e não informativa, erudita, mnemônica. Igualmente Locke é fautor de educação física, mas como o meio para o domínio de si mesmo.
O Idealismo Lógico: Hegel
Em 1642, ele publica em Paris o De Cive e, em 1651, faz publicar em Londres o Leviatã ou matéria, forma e autoridade de uma comunidade eclesiástica e civil. O Leviatã será traduzido para o latim em 1688, em Amsterdam, mas nunca foi integralmente traduzido para o francês.
Hobbes é um empirista inglês e nele encontramos os temas fundamentais que serão sempre os da escola. A origem de todo conhecimento é a sensação, princípio original do conhecimento dos próprios princípios: a imaginação é um agrupamento inédito de fragmentos de sensação e a memória nada mais é do que o reflexo de antigas sensações.
Todavia, Hobbes crê na possibilidade de uma lógica pura, de um raciocínio demonstrativo muito rigoroso. Ao lado de uma indução empírica aproximativa, que da experiência passada conclui, sem prova decisiva, o que se passará amanhã (e que não tem outro fundamento além da associação de ideias, the trayan of imagination), Hobbes admite a existência de uma lógica pura, perfeitamente racional. Mas a essa lógica só concernem símbolos, palavras (Hobbes é nominalista). Se definirmos rigorosamente as palavras e as regras do emprego dos signos, podemos chegar a conclusões rigorosas, isto é, idênticas aos princípios de que partimos. Mas trata-se de um jogo do pensamento, estranho às realidades concretas.
A filosofia de Hobbes é materialista e mecanicista. Assim como a percepção é explicada mecanicamente a partir das excitações transmitidas pelo cérebro, assim a moral se reduz ao interesse e à paixão. Na fonte de todos os nossos valores, há o que Hobbes denomina endeavour, em inglês, e conatus, em latim, isto é, o instinto de conservação ou, mais exatamente, de afirmação e de crescimento de si próprio; esforço próprio a todos os seres para unir-se ao que lhes agrada e fugir do que lhes desagrada (esse tema do conatus será reencontrado no spinozismo).
É partindo de tais fundamentos psicológicos que Hobbes elabora sua justificação do despotismo. O absolutismo da época de Hobbes geralmente se apóia na teologia (Deus teria investido os reis de seu poder absoluto). Hobbes, ao justificar o poder absoluto do soberano, descobre-lhe uma origem natural.
Para ele, o direito, em todos os casos, reduz-se à força; mas distingue dois momentos na história da humanidade: o estado natural e o estado político. No estado natural, o poder de cada um é medido por seu poder real; cada um tem exatamente tanto de direito quanto de força e todos só pensam na própria conservação e nos interesses pessoais. Para Hobbes, o homem se distingue dos insetos sociais, como as abelhas e as formigas; por isso, o homem não possui instinto social. Ele não é sociável por natureza e só o será por acidente.
Para compreender como o homem se resolve a criar a instituição artificial do governo, basta descrever o que se passa no estado natural; o homem, por natureza, procura ultrapassar todos os seus semelhantes: ele não busca apenas a satisfação de suas necessidades naturais, mas sobretudo as alegrias da vaidade (pride). O maior sofrimento é ser desprezado. Assim sendo, o ofendido procura vingar-se, mas - observa Hobbes, antecipando aqui os temas hegelianos - comumente não deseja a morte de seu adversário e deseja seu cativeiro a fim de poder ler, em seu olhar atemorizado e submisso, o reconhecimento de sua própria superioridade.
É claro que esse estado, em que cada um procura senão a morte, ao menos a sujeição do outro, é um estado extremamente infeliz. As expressões pelas quais Hobbes o descreve são célebres: "Homo homini lupus", o homem é o lobo do homem; "Bellum omnium contra omnes", é a guerra de todos contra todos. Não pensemos que mesmo os homens mais robustos desfrutem tranqüilamente as vitórias que sua força lhe assegura. Aquele que possui grande força muscular não está ao abrigo da astúcia do mais fraco. Este último - por maquinação secreta ou a partir de hábeis alianças - sempre é o suficientemente forte para vencer o mais forte. Por conseguinte, ao invés de uma desigualdade, é uma espécie de igualdade dos homens no estado natural que faz sua infelicidade. Pois, em definitivo, ninguém está protegido; o estado natural é, para todos, um estado de insegurança e de angústia.
Assim sendo, o homem sempre tem medo de ser morto ou escravizado e esse temor, em última instância mais poderoso do que o orgulho, é a paixão que vai dar a palavra à razão. (Essa psicologia da vaidade e do medo é, em Hobbes, uma espécie de laicização da oposição teológica entre o orgulho espiritual e o temor a Deus ou humildade.) É o medo, portanto, que vai obrigar os homens a fundarem um estado social e a autoridade política.
Os homens, portanto, vão se encarregar de estabelecer a paz e a segurança. Só haverá paz concretizável se cada um renunciar ao direito absoluto que tem sobre todas as coisas. Isto só será possível se cada um abdicar de seus direitos absolutos em favor de um soberano que, ao herdar os direitos de todos, terá um poder absoluto. Não existe aí a intervenção de uma exigência moral. Simplesmente o medo é maior do que a vaidade e os homens concordam em transmitir todos os seus poderes a um soberano. Quanto a este último, notemo-lo bem, ele é o senhor absoluto desde então, mas não possui o menor compromisso em relação a seus súditos.
Seu direito não tem outro limite que seu poder e sua vontade. No estado de sociedade, como no de natureza, a força é a única medida do direito. No estado social, o monopólio da força pertence ao soberano. Houve, da parte de cada indivíduo, uma atemorizada renúncia do seu próprio poder. Mas não houve pacto nem contrato, o que houve, como diz Halbwachs, foi "uma alienação e não uma delegação de poderes". O efeito comum do poder consistirá, para todos, na segurança, uma vez que o soberano terá, de fato, o maior interesse em fazer reinar a ordem se quiser permanecer no poder. Apesar de tudo, esse poder absoluto permanece um poder de fato que encontrará seus limites no dia em que os súditos preferirem morrer do que obedecer. Em todo caso, esta á a origem psicológica que Hobbes atribui ao poder despótico. Ele chama de Leviatã ao seu estado totalitário em lembrança de uma passagem da Bíblia (Jó XLI) em que tal palavra designa um animal monstruoso, cruel e invencível que é o rei dos orgulhosos.
Finalmente, o totalitarismo de Hobbes submete - apesar de prudentes reservas - o poder religioso ao poder político. Assim é que ele exclui o "papismo" e o "presbiterianismo" por causa "dessa autoridade que alguns concedem ao papa em reinos que não lhe pertencem ou que alguns bispos, em suas dioceses, querem usurpar".
O Estado Natural e o Pacto Social
Leviatã, 1.ª parte: Do Homem
Cap. XIII
... O Estado de natureza, essa guerra de todos contra todos tem por consequência o fato de nada ser injusto. As noções de certo e errado, de justiça e de injustiça não têm lugar nessa situação. Onde não há Poder comum, não há lei; onde não há lei, não há injustiça: força e astúcia são virtudes cardeais na guerra. Justiça e injustiça não pertencem à lista das faculdades naturais do Espírito ou do Corpo; pois, nesse caso, elas poderiam ser encontradas num homem que estivesse sozinho no mundo (como acontece com seus sentidos ou suas paixões). Na realidade, justiça e injustiça são qualidades relativas aos homens em sociedade, não ao homem solitário. A mesma situação de guerra não implica na existência da propriedade... nem na distinção entre o Meu e o Teu, mas apenas no fato de que a cada um pertence aquilo que for capaz de o guardar. Eis então, e por muito tempo, a triste condição em que o homem é colocado pela natureza com a possibilidade, é bem verdade, de sair dela, possibilidade que, por um lado, se apóia na Paixões e, por outro, em sua Razão. As paixões que inclinam o homem para a paz são o temor à morte violenta e o desejo de tudo o que é necessário a uma vida confortável... E a Razão sugere artigos de paz convenientes sobre os quais os homens podem ser levados a concordar.
Cap. XIV
... O direito natural que os escritores comumente chamam de Jus naturale é a Liberdade que tem cada um de se servir da própria força segundo sua vontade, para salvaguardar sua própria natureza, isto é, sua própria vida. E porque a condição humana é uma condição de guerra de cada um contra cada um... daí resulta que, nessa situação, cada um tem direito sobre todas as coisas, mesmo até o corpo dos outros... Enquanto dura esse direito natural de cada um sobre tudo e todos, não pode existir para nenhum homem (por mais forte ou astucioso que seja) a menor segurança...
Cap. XV
... Antes que se possa utilizar das palavras justo e injusto, é preciso que haja um Poder constrangedor; inicialmente, para forçar os homens a executar seus pactos pelo temor de uma punição maior do que o benefício que poderiam esperar se os violassem, em seguida, para garantir-lhes a propriedade do que adquirem por Contrato mútuo em substituição e no lugar do Direito universal que perdem. E não existe tal poder constrangedor antes da instituição de um Estado. É o que também resulta da definição que as Escolas dão geralmente da justiça, a saber, que a justiça é a vontade de atribuir a cada um o que lhe cabe pertencer; pois, quando nada é próprio, ou seja, quando não há propriedade, não há injustiça; e onde não há Poder Constrangedor estabelecido, em outras palavras, onde não há Estado, não há Propriedade e cada homem tem direito a todas as coisas. Por conseguinte, enquanto não há Estado, nada há que seja Injusto.
JEAN-JAQUE ROUSSEAU
John Locke
Locke viajou fora da Inglaterra, especialmente em França, onde ampliou o seu horizonte cultural, entrou em contato com movimentos filosóficos diversos, em especial com o racionalismo. Tornou-se mais consciente do seu empirismo, que procurou completar com elementos racionalistas (o que, entretanto, representa um desvio na linha do desenvolvimento do empirismo, procedente de Bacon até Hume).
Vida e Obras
João Locke nasceu em Wrington, em 1632. Estudou na Universidade de Oxford filosofia, ciências naturais e medicina. Em 1665 foi enviado para Brandenburgo como secretário de legação. Passou, em seguida, ao serviço de Loed Ashley, futuro conde de Shaftesbury, a quem ficou fiel também nas desgraças políticas. Foi, portanto, para a França, onde conheceu as personalidades mais destacadas da cultura francesa do "grand siècle". Em 1683 refugiou-se na Holanda, aí participando no movimento político que levou ao trono da Inglaterra Guilherme de Orange. De volta à pátria, recusou o cargo de embaixador e dedicou-se inteiramente aos estudos filosóficos, morais, políticos. Passou seus últimos anos de vida no castelo de Oates (Essex), junto de Sir Francisco Masham. Faleceu em 1704.
As suas obras filosóficas mais notáveis são: o Tratado do Governo Civil (1689); o Ensaio sobre o Intelecto Humano (1690); os Pensamentos sobre a Educação (1693). As dontes principais do pensamento de Locke são: o nominalismo escolástico, cujo centro famoso era Oxford; o empirismo inglês da época; o racionalismo cartesiano e a filosofia de Malebranche.
O Pensamento: A Gnosiologia
Locke julga, como Bacon, que o fim da filosofia é prático. Entretanto - diversamente de Bacon, que julgava fim da filosofia o conhecimento da natureza para dominá-la (fim econômico) - Locke pensa que o fim da filosofia é essencialmente moral; quer dizer: a filosofia deve proporcionar uma norma racional para a vida do homem. E, como os seus predecessores empiristas, ele sente, antes de mais nada, a necessidade de instituir uma investigação sobre o conhecimento humano, elaborar uma gnosiologia, para achar um critério de verdade. Podemos dizer que a sua filosofia se limita a este problema gnosiológico, para logo passar a uma filosofia moral (e política, pedagógica, religiosa), sem uma adequada e intermédia metafísica.
Locke não parte, realisticamente, do ser, e sim, fenomenisticamente, do pensamento. No nosso pensamento acham-se apenas idéias (no sentido genérico das representações): qual é a sua origem e o seu valor? Locke exclui absolutamente as idéias e os princípios que deles se formam, derivam da experiência; antes da experiência o espírito é como uma folha em branco, uma tabula rasa.
No entanto, a experiência é dúplice: externa e interna. A primeira realiza-se através da sensação, e nos proporciona a representação dos objetos (chamados) externos: cores, sons, odores, sabores, extensão, forma, movimento, etc. A segunda realiza-se através da reflexão, que nos proporciona a representação das próprias operações exercidas pelo espírito sobre os objetos da sensação, como: conhecer, crer, lembrar, duvidar, querer, etc. Nas idéias proporcionadas pela sensibilidade externa, Locke distingue as qualidades primárias, absolutamente objetivas, e as qualidades secundárias, subjetivas (objetivas apenas em sua causa).
As idéias ou representações dividem-se em idéias simples e idéias complexas, que são uma combinação das primeiras. Perante as idéias simples - que constituem o material primitivo e fundamental do conhecimento - o espírito é puramente passivo; pelo contrário, é ele ativo na formação das idéias complexas. Entre estas últimas, a mais importante é a substância: que nada mais seria que uma coleção constante de idéias simples, referida pelo espírito a um misterioso substrato unificador. O espírito é também ativo nas sínteses que são as idéias de relação, e nas análises que são as idéias gerais. Às idéias de ralação pertencem as relações temporais e espaciais e de idéias simples dos complexos a que pertencem e da universalização da idéia assim isolada, obtendo-se, desse modo, a idéia abstrata (por exemplo, a brancura). Locke é, mais ou menos, nominalista: existem, propriamente, só indivíduos com uma essência individual, e as idéias gerais não passam de nomes, que designam caracteres comuns a muitos indivíduos. Entretanto, os nomes que designam uma idéia abstrata, isto é, uma propriedade semelhante em muitas coisas, têm um valor e um escopo práticos: auxiliar os homens a se conduzirem na vida.
Dado o nominalismo de Locke, compreende-se como, para ele, é impossível a ciência verdadeira da natureza, considerada como conhecimento das leis universais e necessárias. Locke julga também inaplicável à natureza a matemática - reconhecendo-lhe embora o caráter de verdadeira ciência - isto é, não acredita na físico-matemática, à maneira de Galileu. Entretanto, mesmo que a ciência da natureza não nos desse senão a probabilidade, a opinião, seria útil enquanto prática.
Até aqui foram analisados e descritos os conteúdos de consciência. É mister agora propor a questão do seu valor lógico. Costuma-se dizer que as idéias são "verdadeiras ou falsas"; melhor seria chamá-las "justas ou erradas", porque, propriamente, "a verdade e a falsidade pertencem às proposições", em que se afirma ou se nega uma relação entre duas idéias. E esta relação, afirmada ou negada, pode ser precisamente falsa ou verdadeira. O conhecimento da relação positiva ou negativa entre as ideias é, segundo Locke, de dois tipos: intuitivo e demonstrativo. No primeiro caso a relação é colhida intuitiva, imediata e evidentemente. Por exemplo: 3 = 2 + 1. No segundo caso a relação é colhida mediatamente, recorrendo às ideias intermediárias, ao raciocínio. Por exemplo: a existência de Deus demonstrada pela nossa existência e pelo princípio de causalidade. Naturalmente, a demonstração é inferior à intuição.
Ideias Metafísicas
Estamos, porém, ainda fechados no mundo subjetivo, fenomênico; de fato, tratou-se, até agora, de relações positivas ou negativas, concordes ou desacordes com as ideias. Podemos nós sair desse mundo subjetivo e atingir o mundo objetivo, isto é, podemos conhecê-lo imediatamente ou mediatamente na sua existência e na sua natureza? Locke afirma-o, sem mostrar, entretanto, como este conhecimento do mundo externo possa concordar com a sua geral (fenomenista) concepção e definição do conhecimento. É a sólita posição de um fenomenismo ainda não plenamente consciente de si mesmo. Corta as relações com o ser e vai para o fenomenismo absoluto, mas tem ainda saudade desse ser do qual se isolou.
Em todo caso, Locke acredita poder atingir, antes de tudo, o nosso ser, depois o de Deus, e, finalmente, o das coisas. O nosso ser seria intuitivamente percebido através da reflexão. A existência de Deus seria racionalmente demonstrada mediante o princípio de causa, partindo do conhecimento imediato de uma outra existência (a nossa). A existência das coisas, alfim, seria sentida invencivelmente, porque nos sentimos passivos em nossas sensações, que deveriam ser causadas por seres externos a nós.
Entretanto, pelo que diz respeito ao nosso ser, é mister ter presente que nós não conhecemos intuitivamente a substância da alma, e sim as suas atividades. Pelo que diz respeito a Deus, a prova da sua existência vale, se vale absolutamente o princípio de causa - o que Locke não demonstrou. Enfim, pelo que diz respeito às coisas externas, mesmo admitida a prova aduzida por Locke - segundo a confissão do próprio filósofo - tal prova vale apenas pelo que concerne à existência das coisas, e não pelo que concerne à natureza delas. De fato, segundo a filosofia de Locke, não sabemos se as ideias da natureza das coisas correspondem à realidade das coisas.
Moral e Política
Locke não admite, naturalmente, ideias e princípios inatos nem sequer no campo da moral. A sua moral, todavia, é muito mais intelectualista do que empirista, pois ele lhe reconhece o caráter de verdadeira ciência, universal e necessária.
Entretanto, não basta ter construído uma moral em abstrato, embora racional. É preciso torná-la praticamente eficaz, isto é, faz-se mister uma obrigação moral, que se imponha à nossa vontade. Ora, visto que é natural, no homem, a tendência para o próprio bem-estar, é natural que ele seja atingido pelas penas, pelas sanções, que precisamente lhe impedem tal realização. Que parte tem a liberdade da vontade em tudo isto? Locke nega, propriamente, o livre arbítrio, porquanto nós nos inclinamos necessariamente para um bem determinado e devemos desejar o bem maior.
Quanto à política, Locke deriva a lei civil da lei natural, racional, moral, em virtude da qual todos os homens - como seres racionais - são livre iguais, têm direito à vida e à propriedade; e, entretanto na vida política, não podem renunciar a estes direitos, sem renunciar à própria dignidade, à natureza humana. Locke admite um originário estado de natureza antes do estado civilizado. Não, porém, no sentido brutal e egoísta de inimizade universal, como dizia Hobbes; mas em um sentido moral, em virtude do qual cada um sente o dever racional de respeitar nos outros a mesma personalidade que nele se encontra.
Também Locke admite a passagem do estado de natureza ao estado civilizado, porquanto, no primeiro, falta a certeza e a regularidade da defesa e da punição, que existe no segundo, graças à autoridade do superior. Entretanto, estipulando este contrato social, os indivíduos não renunciam a todos os direitos, porquanto os direitos que constituem a natureza humana (vida, liberdade, bens), são inalienáveis; mas renunciam unicamente ao direito de defesa e de fazer justiça, para conseguir que os direitos inalienáveis sejam melhor garantidos. Antes, se o estado violasse esses direitos inalienáveis, os indivíduos teriam o direito e o dever de a ele resistir e de se revoltar contra o poder usurpador. A doutrina política de Locke, contida no seu Tratado sobre o Governo Civil, é a expressão teórica do constitucionalismo liberal inglês, em contraste com a doutrina do absolutismo naturalista de Hobbes.
Ideias pedagógicas
Com respeito à religião, Locke toma uma atitude racionalista moderada. Admite uma religião natural, exigível também politicamente, porquanto fundamentada na razão. E professa a tolerância a respeito das religiões particulares, históricas, positivas.
Locke interessou-se especialmente pelos problemas pedagógicos, escrevendo os Pensamentos sobre a Educação. Aí afirma a nossa passividade, pois nascemos todos ignorantes e recebemos tudo da experiência; mas, ao mesmo tempo, afirma a nossa parte ativa, enquanto o intelecto constrói a experiência, elaborando as ideias simples.
Afirma-se que todos nascemos iguais, dotados de razão; mas, ao mesmo tempo, todos temos temperamentos diferentes, que devem ser desenvolvidos de conformidade com o temperamento de cada um. Esta educação individual não exclui, mas implica a educação, a formação social, para ampliar, enriquecer a própria personalidade. Tem muita importância a obra do educador, mas é fundamental a colaboração do discípulo, pois trata-se da formação do intelecto, da razão, que é, necessariamente, autônoma. A formação educacional consiste, portanto, fundamentalmente, no desenvolvimento do intelecto mediante a moral, precisamente pelo fato de que se trata de formar seres conscientes, livres, senhores de si mesmos. Por conseguinte, a educação deve ser formativa, desenvolvendo o intelecto, e não informativa, erudita, mnemônica. Igualmente Locke é fautor de educação física, mas como o meio para o domínio de si mesmo.
O Idealismo Lógico: Hegel
Jorge
 Guilherme Frederico Hegel nasceu em Stutgart, em 1770. Estudou teologia
 e filosofia. Interessou-se pelos problemas religiosos e políticos, 
simpatizando-se pelo criticismo e pelo iluminismo; em seguida se dedicou
 ao historicismo romântico. Aproximou-se dos sistemas de Fichte e de 
Schelling, afastando-se deles em seguida até combatê-los quando 
professor nas universidades de Jena, Heidelberg e Berlim. Nessa última 
universidade lecionou até há morte, adquirindo grande renome e exercendo
 vasta influência. Faleceu em 1831 vítima de cólera. Renunciara, 
entrementes, aos ideais revolucionários e críticos, para favorecer as 
tendências absolutistas e intransigentes do estado prussiano. 
Em
 seus últimos anos, torna-se suspeito de panteísmo; alguns o 
ridicularizaram (apelidando-o de Absolutus von Hegelingen); corre o 
boato de que ele duvida da imortalidade da alma. Na realidade, Hegel era
 ao mesmo tempo suficientemente prudente e sufucientemente hermético 
para que se tornasse muito difícil fazer-lhe acusações precisas dessa 
ordem! O poeta Heinrich Heine, que seguiu seus cursos de 1821 a 1823, 
conta, no entanto, que ele, um dia, respondeu bruscamente a um estudante
 que lhe falava do Paraíso: "O senhor então precisa de uma gorjeta 
porque cuidou de sua mãe enferma e porque não envenenou ninguém!" Em 
todo caso, o futuro mostraria amplamente que a filosofia do pensador 
oficial da monarquia escondia um grande poder explosivo!
Como
 a filosofia de Spinoza, a de Hegel é uma filosofia da inteligibilidade 
total, da imanência absoluta. A razão aqui não é apenas, como em Kant, o
 entendimento humano, o conjunto dos princípios e das regras segundo as 
quais pensamos o mundo. Ela é igualmente a realidade profunda das 
coisas, a essência do próprio Ser. Ela é não só um modo de pensar as 
coisas, mas o próprio modo de ser das coisas: "O racional é real e o 
real é racional". Podemos, portanto, considerar Hegel como o filósofo 
idealista por excelência, uma vez que, para ele, o fundo do Ser (longe 
de ser uma coisa em si inacessível) é, em definitivo, Ideia, Espírito. 
Sua filosofia representa, ao mesmo tempo, com relação à crítica kantiana
 do conhecimento, um retorno à ontologia. É o ser em sua totalidade que é
 significativo e cada acontecimento particular no mundo só tem sentido 
finalmente em função do Absoluto do qual não é mais do que um aspecto ou
 um momento.
Hegel
 porém se distingue de Spinoza e surge para nós como um filósofo 
essencialmente moderno, pois, para ele, o mundo que manifesta a Idéia 
não é uma natureza semelhante a si mesma em todos os tempos, que dizia 
que a leitura dos jornais era "sua prece matinal cotidiana", como todos 
os seus contemporâneos, muito meditou sobre a Revolução Francesa, e esta
 lhe mostra que as estruturas sociais, assim como os pensamentos dos 
homens, podem ser modificadas, subvertidas no decurso da história. O que
 há de original em seu idealismo é que, para Hegel, a idéia se manifesta
 como processo histórico: "A história universal nada mais é do que a 
manifestação da razão".
As
 principais obras de Hegel são: A Fenomenologia do Espírito; A Lógica; A
 Enciclopédia das Ciências Filosóficas; A Filosofia do Direito. Foi um 
gênio poderoso; sua cultura foi vastíssima, bem como a sua capacidade 
sistemática, tanto assim que se pode considerar o Aristóteles e o Tomás 
de Aquino do pensamento contemporâneo. No entanto, frequentemente 
deforma os fatos para enquadrá-los no esquema lógico do seu sistema 
racionalista-dialético, bem como altera este por interesses práticos e 
políticos.
É
 preciso compreender também que a história é um progresso. O vir-a-ser 
de muitas peripécias não é senão a história do Espírito universal que se
 desenvolve e se realiza por etapas sucessivas para atingir, no final, a
 plena posse, a plena consciência de si mesmo. "O absoluto, diz Hegel, 
só no final será o que ele é na realidade". O panteísmo de Spinoza 
identificava Deus com a natureza: Deus sive natura. O panteísmo 
hegeliano identifica Deus com a História. Deus não é o que é - ao menos 
só é parcial e muito provisoriamente o que atualmente é - Deus é o que 
se realizará na História. (Neste sentido, ainda há algo de hegeliano na 
filosofia de Teilhard de Chardin). Por conseguinte, a história, para 
Hegel, é uma odisséia do Espírito Universal", em suma, se nos permitem o
 jogo de palavras, uma "teodisséia". Consideremos a história da terra. 
De início só existem minerais, depois, vegetais e, em seguida, animais. 
Não temos a impressão de que seres cada vez mais complexos, cada vez 
mais organizados, cada vez mais autônomos surgem no Universo? O 
Espírito, de início adormecido, dissimulado e como que estranho a si 
mesmo, "alienado" no universo, surge cada vez mais manifestamente como 
ordem, como liberdade, logo como consciência. Esse progresso do Espírito
 continua e se concluirá através da história dos homens. Cada povo cada 
civilização, de certo modo, tem por missão realizar uma etapa desse 
progresso do Espírito. O Espírito humano é de início uma consciência 
confusa, um espírito puramente subjetivo, é a sensação imediata. Depois,
 ele consegue encarnar-se, objetivar-se sob a forma de civilizações, de 
instituições organizadas. Tal é o espírito objetivo que se realiza 
naquilo que Hegel chama de "o mundo da cultura". Enfim, o Espírito se 
descobre mais claramente na consciência artística e na consciência 
religiosa para finalmente apreender-se na Filosofia (notadamente na 
filosofia de Hegel, que pretende totalizar sob sua alçada todas as 
outras filosofias) como Saber Absoluto. Desse modo, a filosofia é o 
saber de todos os saberes: a sabedoria suprema que, no final, totaliza 
todas as obras da cultura (é só no crepúsculo, diz Hegel, que o pássaro 
de Minerva levanta vôo). Compreendemos bem, em todo caso, que, nessa 
filosofia puramente imanentista, Deus só se realiza na história. Em 
outras palavras, a forma de civilização que triunfa a cada etapa da 
história é aquela que, naquele momento, melhor exprime o Espírito. Após 
ter saudado em Napoleão "o espírito universal a cavalo", Hegel verá no 
estado prussiano de seu tempo a expressão mais perfeita do Espírito 
Absoluto. Por conseguinte, Hegel é daqueles que acham que a força não 
"oprime" o direito (essa fórmula, abusivamente atribuída a Bismarck, 
nada significa), mas que o exprime, que aquele que é vitorioso na 
História é, simultaneamente, o mais dotado de valor e que a virtude, 
como ele diz, "exprime o curso do mundo".
Segundo
 as normas da lógica clássica, essa identificação da Razão com o Devir 
histórico é absolutamente paradoxal. De fato, a lógica clássica 
considera que uma proposição fica demonstrada quando é reduzida, 
identificada a uma proposição já admitida. A lógica vai do idêntico ao 
idêntico. A história, ao contrário, é o domínio do mutável. O 
acontecimento de hoje é diferente do de ontem. Ele o contradiz. Aplicar a
 razão à história, por conseguinte, seria mostrar que a mudança é 
aparente, que no fundo tudo permanece idêntico. Aplicar a razão à 
história seria negar a história, recusar o tempo. Ora, contrariando tudo
 isso, o racionalismo de Hegel coloca o devir, a história, em primeiro 
plano. Como isso é possível?
É
 possível porque Hegel concebe um processo racional original - o 
processo dialético - no qual a contradição não mais é o que deve ser 
evitado a qualquer preço, mas, ao contrário, se transforma no próprio 
motor do pensamento, ao mesmo tempo em que é o motor da história, já que
 esta última não é senão o Pensamento que se realiza. Repudiando o 
princípio da contradição de Aristóteles e de Leibnitz, em virtude do 
qual uma coisa não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser, Hegel põe a 
contradição no próprio núcleo do pensamento e das coisas 
simultaneamente. O pensamento não é mais estático, ele procede por meio 
de contradições superadas, da tese à antítese e, daí, à sintese, como 
num diálogo em que a verdade surge a partir da discussão e das 
contradições. Uma proposição (tese) não pode se pôr sem se opor a outra 
(antítese) em que a primeira é negada, transformada em outra que não ela
 mesma ("alienada"). A primeira proposição encontrar-se-á finalmente 
transformada e enriquecida numa nova fórmula que era, entre as duas 
precedentes, uma ligação, uma "mediação" (síntese).
A Dialética
A
 dialética para Hegel é o procedimento superior do pensamento é, ao 
mesmo tempo, repetimo-la, "a marcha e o ritmo das próprias coisas". 
Vejamos, por exemplo, como o conceito fundamental de ser se enriquece 
dialeticamente. Como é que o ser, essa noção simultaneamente a mais 
abstrata e a mais real, a mais vazia e a mais compreensiva (essa noção 
em que o velho Parmênides se fechava: o ser é, nada mais podemos dizer),
 transforma-se em outra coisa? É em virtude da contradição que esse 
conceito envolve. O conceito de ser é o mais geral, mas também o mais 
pobre. Ser, sem qualquer qualidade ou determinação - é, em última 
análise, não ser absolutamente nada, é não ser! O ser, puro e simples, 
equivale ao não-ser (eis a antítese). É fácil ver que essa contradição 
se resolve no vir-a-ser (posto que vir-a-ser é não mais ser o que se 
era). Os dois contrários que engendram o devir (síntese), aí se 
reencontram fundidos, reconciliados.
Vejamos
 um exemplo muito célebre da dialética hegeliana que será um dos pontos 
de partida da reflexão de Karl Marx. Trata-se de um episódio dialético 
tirado da Fenomenologia do Espírito, o do senhor e o escravo. Dois 
homens lutam entre si. Um deles é pleno de coragem. Aceita arriscar sua 
vida no combate, mostrando assim que é um homem livre, superior à sua 
vida. O outro, que não ousa arriscar a vida, é vencido. O vencedor não 
mata o prisioneiro, ao contrário, conserva-o cuidadosamente como 
testemunha e espelho de sua vitória. Tal é o escravo, o "servus", aquele
 que, ao pé da letra, foi conservado.
a)
 O senhor obriga o escravo, ao passo que ele próprio goza os prazeres da
 vida. O senhor não cultiva seu jardim, não faz cozer seus alimentos, 
não acende seu fogo: ele tem o escravo para isso. O senhor não conhece 
mais os rigores do mundo material, uma vez que interpôs um escravo entre
 ele e o mundo. O senhor, porque lê o reconhecimento de sua 
superioridade no olhar submisso de seu escravo, é livre, ao passo que 
este último se vê despojado dos frutos de seu trabalho, numa situação de
 submissão absoluta.
b)
 Entretanto, essa situação vai se transformar dialeticamente porque a 
posição do senhor abriga uma contradição interna: o senhor só o é em 
função da existência do escravo, que condiciona a sua. O senhor só o é 
porque é reconhecido como tal pela consciência do escravo e também 
porque vive do trabalho desse escravo. Nesse sentido, ele é uma espécie 
de escravo de seu escravo.
c)
 De fato, o escravo, que era mais ainda o escravo da vida do que o 
escravo de seu senhor (foi por medo de morrer que se submeteu), vai 
encontrar uma nova forma de liberdade. Colocado numa situação infeliz em
 que só conhece provações, aprende a se afastar de todos os eventos 
exteriores, a libertar-se de tudo o que o oprime, desenvolvendo uma 
consciência pessoal. Mas, sobretudo, o escravo incessantemente ocupado 
com o trabalho, aprende a vencer a natureza ao utilizar as leis da 
matéria e recupera uma certa forma de liberdade (o domínio da natureza) 
por intermédio de seu trabalho. Por uma conversão dialética exemplar, o 
trabalho servil devolve-lhe a liberdade. Desse modo, o escravo, 
transformado pelas provações e pelo próprio trabalho, ensina a seu 
senhor a verdadeira liberdade que é o domínio de si mesmo. Assim, a 
liberdade estóica se apresenta a Hegel como a reconciliação entre o 
domínio e a servidão.
Hegel
 parte, fundamentalmente, da síntese a priori de Kant, em que o espírito
 é constituído substancialmente como sendo o construtor da realidade e 
toda a sua atividade é reduzida ao âmbito da experiência, porquanto é da
 íntima natureza da síntese a priori não poder, de modo nenhum, 
transcender a experiência, de sorte que Hegel se achava fatalmente 
impelido a um monismo imanentista, que devia necessariamente tornar-se 
panlogista, dialético. Assim, deviam se achar na realidade única da 
experiência as características divinas do antigo Deus transcendente, 
destruído por Kant. Hegel devia, portanto, chegar ao panteísmo 
imanentista, que Schopenhauer, o grande crítico do idealismo 
racionalista e otimista, declarará nada mais ser que ateísmo 
imanentista.
No
 entanto, para poder elevar a realidade da experiência à ordem da 
realidade absoluta, divina, Hegel se achava obrigado a mostrar a 
racionalidade absoluta da realidade da experiência, a qual, sendo o 
mundo da experiência limitado e deficiente, por causa do assim chamado 
mal metafísico, físico e moral, não podia, por certo, ser concebida 
mediante o ser (da filosofia aristotélica), idêntico a si mesmo e 
excluindo o seu oposto, e onde a limitação, a negação, o mal, não podem,
 de modo nenhum, gerar naturalmente valores positivos de bem verdadeiro.
 Mas essa racionalidade absoluta da realidade da experiência devia ser 
concebida mediante o vir-a-ser absoluto (de Heráclito), onde um elemento
 gera o seu oposto, e a negação e o mal são condições de positividade e 
de bem.
Apresentava-se,
 portanto, a necessidade da invenção de uma nova lógica, para poder 
racionalizar o elemento potencial e negativo da experiência, isto é, 
tudo que há no mundo de arracional e de irracional. E por isso Hegel 
inventou a dialética dos opostos, cuja característica fundamental é a 
negação, em que a positividade se realiza através da negatividade, do 
ritmo famoso de tese, antítese e síntese. Essa dialética dos opostos 
resolve e compõe em si mesma o elemento positivo da tese e da antítese. 
Isto é, todo elemento da realidade, estabelecendo-se a si mesmo 
absolutamente (tese) e não esgotando o Absoluto de que é um momento, 
demanda o seu oposto (antítese), que nega e o qual integra, em uma 
realidade mais rica (síntese), para daqui começar de novo o processo 
dialético. A nova lógica hegeliana difere da antiga, não somente pela 
negação do princípio de identidade e de contradição - como eram 
concebidos na lógica antiga - mas também porquanto a nova lógica é 
considerada como sendo a própria lei do ser. Quer dizer, coincide com a 
ontologia, em que o próprio objeto já não é mais o ser, mas o devir 
absoluto.
Dispensa-se
 acrescentar como, a experiência sendo a realidade absoluta, e sendo 
também vir-a-ser, a história em geral se valoriza na filosofia; 
igualmente não é preciso salientar como o conceito concreto, isto é, o 
particular conexo historicamente com o todo, toma o lugar do conceito 
abstrato, que representa o elemento universal e comum dos particulares. 
Estamos, logo, perante um panlogismo, não estático, como o de Spinoza, e
 sim dinâmico, em que - através do idealismo absoluto - o monismo, que 
Hegel considerava panteísmo, é levado às suas extremas consequências 
metafísicas imanentistas.
Podemos resumir assim: 
1.°
 - A lógica tradicional afirma que o ser é idêntico a si mesmo e exclui o
 seu oposto (princípio de identidade e de contradição); ao passo que a 
lógica hegeliana sustenta que a realidade é essencialmente mudança, 
devir, passagem de um elemento ao seu oposto;
2.°
 - A lógica tradicional afirma que o conceito é universal abstrato, 
enquanto apreende o ser imutável, realmente, ainda que não totalmente; 
ao passo que a lógica hegeliana sustenta que o conceito é universal 
concreto, isto é, conexão histórica do particular com a totalidade do 
real, onde tudo é essencialmente conexo com tudo;
3.°
 - A lógica tradicional distingue substancialmente a filosofia, cujo 
objeto é o universal e o imutável, da história, cujo objeto é o 
particular e o mutável; ao passo que a lógica hegeliana assimila a 
filosofia com a história, enquanto o ser é vir-a-ser;
4.°
 - A lógica tradicional distingue-se da ontologia, enquanto o nosso 
pensamento, se apreende o ser, não o esgota totalmente - como faz o 
pensamento de Deus; ao passo que a lógica hegeliana coincide com a 
ontologia, porquanto a realidade é o desenvolvimento dialético do 
próprio "logos" divino, que no espírito humano adquire plena consciência
 de si mesmo.
Visto
 que a realidade é o vir-a-ser dialético da Idéia, a autoconsciência 
racional de Deus, Hegel julgou dever deduzir a priori o desenvolvimento 
lógico da idéia, e demonstrar a necessidade racional da história natural
 e humana, segundo a conhecida tríade de tese, antítese e síntese, não 
só nos aspectos gerais, nos momentos essenciais, mas em toda 
particularidade da história. E, com efeito, a realidade deveria 
transformar-se rigorosamente na racionalidade em um sistema coerente de 
pensamento idealista e imanentista.
Não
 é mister dizer que essa história dialética nada mais é que a história 
empírica, arbitrariamente potenciada segundo a não menos arbitrária 
lógica hegeliana, em uma possível assimilação do devir empírico do 
desenvolvimento lógico - ainda que entendido dialeticamente, 
dinamicamente. Tal história dialética deveria, enfim, terminar com o 
advento da filosofia hegeliana, em que a Idéia teria acabado a sua 
odisséia, adquirindo consciência de si mesma, isto é, da sua divindade, 
no espírito humano, como absoluto. Mas, desse modo, viria a ser negada a
 própria essência da filosofia hegeliana, para a qual o ser, isto é, o 
pensamento, nada mais é que o infinito vir-a-ser dialético.
A Idéia, A Natureza, O Espírito
Os
 três grandes momentos hegelianos no devir dialético da realidade são a 
idéia, a natureza, o espírito. A idéia constitui o princípio inteligível
 da realidade; a natureza é a exteriorização da idéia no espaço e no 
tempo; o espírito é o retorno da idéia para si mesma. A primeira grande 
fase no absoluto devir do espírito é representada pela idéia, que, por 
sua vez, se desenvolve interiormente em um processo dialético, segundo o
 sólito esquema triádico (tese, antítese, síntese), cujo complexo é 
objeto da Lógica; a saber, a idéia é o sistema dos conceitos puros, que 
representam os esquemas do mundo natural e do espiritual. É, portanto, 
anterior a estes, mas apenas logicamente.
NIETZSCHE   
Vida e Obra
Em
 1849, seu pai e seu irmão faleceram; por causa disso a mãe mudou-se com
 a família para Naumburg, pequena cidade às margens do Saale, onde 
Nietzsche cresceu, em companhia da mãe, duas tias e da avó. Criança 
feliz, aluno modelo, dócil e leal, seus colegas de escola o chamavam 
"pequeno pastor"; com eles criou uma pequena sociedade artística e 
literária, para a qual compôs melodias e escreveu seus primeiros versos.
Em
 1858, Nietzsche obteve uma bolsa de estudos na então famosa escola de 
Pforta, onde haviam estudado o poeta Novalis o filósofo Fichte 
(1762-1814). Datam dessa época suas leituras de Schiller (1759-1805), 
Hölderlin (1770-1843) e Byron (1788-1824); sob essa influência e a de 
alguns professores, Nietzsche começou a afastar-se do cristianismo. 
Excelente aluno em grego e brilhante em estudos bíblicos, alemão e 
latim, seus autores favoritos, entre os clássicos, foram Platão (428-348
 a.C.) e Ésquilo (525-456 a.C.). Durante o último ano em Pforta, 
escreveu um trabalho sobre o poeta Teógnis (séc. VI a.C.). Partiu em 
seguida para Bonn, onde se dedicou aos estudos de teologia e filosofia, 
mas, influenciado por seu professor predileto, Ritschl, desistiu desses 
estudos e passou a residir em Leipzig, dedicando-se à filologia. Ritschl
 considerava a filologia não apenas história das formas literárias, mas 
estudos das instituições e do pensamento. Nietzsche seguiu-lhe as 
pegadas e realizou investigações originais sobre Diógenes Laércio (séc. 
III), Hesíodo (séc. VIII a.C.) e Homero. A partir desses trabalhos foi 
nomeado, em 1869, professor de filologia em Basiléia, onde permaneceu 
por dez anos. A filosofia somente passou a interessá-lo a partir da 
leitura de O Mundo como Vontade e Representação, de Schopenhauer 
(1788-1860). Nietzsche foi atraído pelo ateísmo de Schopenhauer, assim 
como pela posição essencial que a experiência estética ocupa em sua 
filosofia, sobretudo pelo significado metafísico que atribui à música.
Em
 1867, Nietzsche foi chamado para prestar o serviço militar, mas um 
acidente em exercício de montaria livrou-o dessa obrigação. Voltou então
 aos estudos na cidade de Leipzig. Nessa época teve início sua amizade 
com Richard Wagner (1813-1883), que tinha quase 55 anos e vivia então 
com Cosima, filha de Liszt (1811-1886). Nietzsche encantou-se com a 
música de Wagner e com seu drama musical, principalmente com Tristão e 
Isolda e com Os Mestres Cantores. A casa de campo de Tribschen, às 
margens do lago de Lucerna, onde Wagner morava, tornou-se para Nietzsche
 lugar d "refúgio e consolação". Na mesma época, apaixonou-se por 
Cosima, que viria a ser, em obra posterior, a "sonhada Ariane". Em 
cartas ao amigo Erwin Rohde, escrevia: "Minha Itália chama-se Tribschen e
 sinto-me ali como em minha própria casa". Na universidade, passou a 
tratar das relações entre a música e a tragédia grega, esboçando seu 
livro O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música.
O Filósofo e o Músico
Em
 1870, a Alemanha entrou em guerra com a França; nessa ocasião, 
Nietzsche serviu o exército como enfermeiro, mas por pouco tempo, pois 
logo adoeceu, contraindo difteria e disenteria. Essa doença parece ter 
sido a origem das dores de cabeça e de estômago que acompanharam o 
filósofo durante toda a vida. Nietzsche restabeleceu-se lentamente e 
voltou a Basiléia a fim de prosseguir seus cursos.
Em
 1871, publicou O Nascimento da Tragédia, a respeito da qual se costuma 
dizer que o verdadeiro Nietzsche fala através das figuras de 
Schopenhauer e de Wagner. Nessa obra, considera Sócrates (470 ou 469 
a.C.-399 a.C.) um "sedutor", por ter feito triunfar junto à juventude 
ateniense o mundo abstrato do pensamento. A tragédia grega, diz 
Nietzsche, depois de ter atingido sua perfeição pela reconciliação da 
"embriaguez e da forma", de Dioniso e Apolo, começou a declinar quando, 
aos poucos, foi invadida pelo racionalismo, sob a influência "decadente"
 de Sócrates. Assim, Nietzsche estabeleceu uma distinção entre o 
apolíneo e o dionisíaco: Apolo é o deus da clareza, da harmonia e da 
ordem; Dioniso, o deus da exuberância, da desordem e da música. Segundo 
Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco, complementares entre si, foram 
separados pela civilização. Nietzsche trata da Grécia antes da separação
 entre o trabalho manual e o intelectual, entre o cidadão e o político, 
entre o poeta e o filósofo, entre Eros e Logos. Para ele a Grécia 
socrática, a do Logos e da lógica, a da cidade-Estado, assinalou o fim 
da Grécia antiga e de sua força criadora. Nietzsche pergunta como, num 
povo amante da beleza, Sócrates pôde atrair os jovens com a dialética, 
isto é, uma nova forma de disputa (ágon), coisa tão querida pelos 
gregos. Nietzsche responde que isso aconteceu porque a existência grega 
já tinha perdido sua "bela imediatez", e tornou-se necessário que a vida
 ameaçada de dissolução lançasse mão de uma "razão tirânica", a fim de 
dominar os instintos contraditórios.
Seu
 livro foi mal acolhido pela crítica, o que o impeliu a refletir sobre a
 incompatibilidade entre o "pensador privado" e o "professor público". 
Ao mesmo tempo, esperava-se com seu estado de saúde: dores de cabeça, 
perturbações oculares, dificuldades na fala. Interrompeu assim sua 
carreira universitária por um ano. Mesmo doente foi até Bayreuth, para 
assistir à apresentação de O Anel dos Nibelungos, de Wagner. Mas o 
"entusiasmo grosseiro" da multidão e a atitude de Wagner embriagado pelo
 sucesso o irritaram.
Terminada
 a licença da universidade para que tratasse da saúde, Nietzsche voltou à
 cátedra. Mas sua voz agora era tão imperceptível que os ouvintes 
deixaram de frequentar seus cursos, outrora tão brilhantes. Em 1879, 
pediu demissão do cargo. Nessa ocasião, iniciou sua grande crítica dos 
valores, escrevendo Humano, Demasiado Humano; seus amigos não o 
compreenderam. Rompeu as relações de amizade que o ligavam a Wagner e, 
ao mesmo tempo, afastou-se da filosofia de Schopenhauer, recusando sua 
noção de "vontade culpada" e substituindo-a pela de "vontade alegre"; 
isso lhe parecia necessário para destruir os obstáculos da moral e da 
metafísica. O homem, dizia Nietzsche, é o criador dos valores, mas 
esquece sua própria criação e vê neles algo de "transcendente", de 
"eterno" e "verdadeiro", quando os valores não são mais do que algo 
"humano, demasiado humano".
Nietzsche,
 que até então interpretara a música de Wagner como o "renascimento da 
grande arte da Grécia", mudou de opinião, achando que Wagner 
inclinava-se ao pessimismo sob a influência de Schopenhauer. Nessa época
 Wagner voltara-se, ao mesmo tempo, a recusa do cristianismo e de 
Schopenhauer; para Nietzsche, ambos são parentes porque são a 
manifestação da decadência, isto é, da fraqueza e da negação. Irritado 
com o antigo amigo, Nietzsche escreveu: "Não há nada de exausto, nada de
 caduco, nada de perigoso para a vida, nada que calunie o mundo no reino
 do espírito, que não tenha encontrado secretamente abrigo em sua arte; 
ele dissimula o mais negro obscurantismo nos orbes luminosos do ideal. 
Ele acaricia todo o instinto niilista (budista) e embeleza-o com a 
música; acaricia toda a forma de cristianismo e toda expressão religiosa
 de decadência".
Solidão, Agonia e Morte
Em
 1880, Nietzsche publicou O Andarilho e sua Sombra: um ano depois 
apareceu Aurora, com a qual se empenhou "numa luta contra a moral da 
auto-renúncia". Mais uma vez, seu trabalho não foi bem acolhido por seus
 amigos; Erwin Rohde nem chegou a agradecer-lhe o recebimento da obra, 
nem respondeu à carta que Nietzsche lhe enviara. Em 1882, veio à luz A 
Gaia Ciência, depois Assim falou Zaratustra (1884), Para Além de Bem e 
Mal (1886), O Caso Wagner, Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche contra 
Wagner (1888). Ecce Homo, Ditirambos Dionisíacos, O Anticristo e Vontade
 de Potência só apareceram depois de sua morte.
Durante
 o verão de 1881, Nietzsche residiu em Haute-Engandine, na pequena 
aldeia de Silvaplana, e, durante um passeio, teve a intuição de O Eterno
 Retorno, redigido logo depois. Nessa obra defendeu a tese de que o 
mundo passa indefinidamente pela alternância da criação e da destruição,
 da alegria e do sofrimento, do bem e do mal. De Silvaplana, Nietzsche 
transferiu-se para Gênova, no outono de 1881, e depois para Roma, onde 
permaneceu por insistência de Fräulein von Meysenburg, que pretendia 
casá-lo com uma jovem finlandesa, Lou Andreas Salomé. Em 1882, Nietzsche
 propôs-lhe casamento e foi recusado, mas Lou Andreas Salomé desejou 
continuar sua amiga e discípula. Encontraram-se mais tarde na Alemanha; 
porém, não houve a esperada adesão à filosofia nietzschiana e, assim, 
acabaram por se afastar definitivamente.
Em
 seguida, retornou à Itália, passando o inverno de 1882-1883 na baía de 
Rapallo. Em Rapallo, Nietzsche não se encontrava bem instalado; porém, 
"foi durante o inverno e no meio desse desconforto que nasceu o meu 
nobre Zaratustra".
No
 outono de 1883 voltou para a Alemanha e passou a residir em Naumburg, 
em companhia da mãe e da irmã. Apesar da companhia dos familiares, 
sentia-se cada vez mais só. Além disso, mostrava-se muito contrariado, 
pois sua irmã tencionava casar-se com Herr Foster, agitador anti-semita,
 que pretendia fundar uma empresa colonial no Paraguai, como reduto da 
cristandade teutônica. Nietzsche desprezava o anti-semitismo, e, não 
conseguindo influenciar a irmã, abandonou Naumburg.
Em
 princípio de abril de 1884 chegou a Veneza, partindo depois para a 
Suíça, onde recebeu a visita do barão Heinrich von Stein, jovem 
discípulo de Wagner. Von Stein esperava que o filósofo o acompanhasse a 
Bayreuth para ouvir o Parsifal, talvez pretendendo ser o mediador para 
que Nietzsche não publicasse seu ataque contra Wagner. Por seu lado, 
Nietzsche viu no rapaz um discípulo capaz de compreender o seu 
Zaratustra. Von Stein, no entanto, veio a falecer muito cedo, o que o 
amargurou profundamente, sucedendo-se alternâncias entre euforia e 
depressão. Em 1885, veio a público a Quarta parte de Assim falou 
Zaratustra; cada vez mais isolado, o autor só encontrou sete pessoas a 
quem enviá-la. Depois disso, viajou para Nice, onde veio a conhecer o 
intelectual alemão Paul Lanzky, que lera Assim falou Zaratustra e 
escrevera um artigo, publicado em um jornal de Leipzig e na Revista 
Européia de Florença. Certa vez, Lanzky se dirigiu a Nietzsche 
tratando-o de "mestre" e Nietzsche lhe respondeu: "Sois o primeiro que 
me trata dessa maneira".
Depois
 de 1888, Nietzsche passou a escrever cartas estranhas. Um ano mais 
tarde, em Turim, enfrentou o auge da crise; escrevia cartas ora 
assinando "Dioniso", ora "o Crucificado" e acabou sendo internado em 
Basiléia, onde foi diagnosticada uma "paralisia progressiva". 
Provavelmente de origem sifilítica, a moléstia progrediu lentamente até a
 apatia e a agonia. Nietzsche faleceu em Weimar, a 25 de agosto de 1900. 
O Dionisíaco e o Socrático
Nietzsche
 enriqueceu a filosofia moderna com meios de expressão: o aforismo e o 
poema. Isso trouxe como conseqüência uma nova concepção da filosofia e 
do filósofo: não se trata mais de procurar o ideal de um conhecimento 
verdadeiro, mas sim de interpretar e avaliar. A interpretação procuraria
 fixar o sentido de um fenômeno, sempre parcial e fragmentário; a 
avaliação tentaria determinar o valor hierárquico desses sentidos, 
totalizando os fragmentos, sem, no entanto, atenuar ou suprimir a 
pluralidade. Assim, o aforismo nietzschiano é, simultaneamente, a arte 
de interpretar e a coisa a ser interpretada, e o poema constitui a arte 
de avaliar e a própria coisa a ser avaliada. O intérprete seria uma 
espécie de fisiologista e de médico, aquele que considera os fenômenos 
como sintomas e fala por aforismos; o avaliador seria o artista que 
considera e cria perspectivas, falando pelo poema. Reunindo as duas 
capacidades, o filósofo do futuro deveria ser artista e 
médico-legislador, ao mesmo tempo.
Para
 Nietzsche, um tipo de filósofo encontra-se entre os pré-socráticos, nos
 quais existe unidade entre o pensamento e a vida, esta "estimulando" o 
pensamento, e o pensamento "afirmando" a vida. Mas o desenvolvimento da 
filosofia teria trazido consigo a progressiva degeneração dessa 
característica, e, em lugar de uma vida ativa e de um pensamento 
afirmativo, a filosofia ter-se-ia proposto como tarefa "julgar a vida", 
opondo a ela valores pretensamente superiores, mediando-a por eles, 
impondo-lhes limites, condenando-a. Em lugar do filósofo-legislador, 
isto é, crítico de todos os valores estabelecidos e criador de novos, 
surgiu o filósofo metafísico. Essa degeneração, afirma Nietzsche, 
apareceu claramente com Sócrates, quando se estabeleceu a distinção 
entre dois mundos, pela oposição entre essencial e aparente, verdadeiro e
 falso, inteligível e sensível. Sócrates "inventou" a metafísica, diz 
Nietzsche, fazendo da vida aquilo que deve ser julgado, medido, 
limitado, em nome de valores "superiores" como o Divino, o Verdadeiro, o
 Belo, o Bem. Com Sócrates, teria surgido um tipo de filósofo voluntário
 e sutilmente "submisso", inaugurando a época da razão e do homem 
teórico, que se opôs ao sentido místico de toda a tradição da época da 
tragédia.
Para
 Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como característica o 
saber místico da unidade da vida e da morte e, nesse sentido, constitui 
uma "chave" que abre o caminho essencial do mundo. Mas Sócrates 
interpretou a arte trágica como algo irracional, algo que apresenta 
efeitos sem causas e causas sem efeitos, tudo de maneira tão confusa que
 deveria ser ignorada. Por isso Sócrates colocou a tragédia na categoria
 das artes aduladoras que representam o agradável e não o útil e pedia a
 seus discípulos que se abstivessem dessas emoções "indignas de 
filósofos". Segundo Sócrates, a arte da tragédia desvia o homem do 
caminho da verdade: "uma obra só é bela se obedecer à razão", formula 
que, segundo Nietzsche, corresponde ao aforismo "só o homem que concebe o
 bem é virtuoso". Esse bem ideal concebido por Sócrates existiria em um 
mundo supra-sensível, no "verdadeiro mundo", inacessível ao conhecimento
 dos sentidos, os quais só revelariam o aparente e irreal. Com tal 
concepção, criou-se, segundo Nietzsche, uma verdadeira oposição 
dialética entre Sócrates e Dioniso: "enquanto em todos os homens 
produtivos o instinto é uma força afirmativa e criadora, e a consciência
 uma força crítica e negativa, em Sócrates o instinto torna-se crítico e
 a consciência criadora". Assim, Sócrates, o "homem teórico", foi o 
único verdadeiro contrário do homem trágico e com ele teve início uma 
verdadeira mutação no entendimento do Ser. Com ele, o homem se afastou 
cada vez mais desse conhecimento, na medida em que abandonou o fenômeno 
do trágico, verdadeira natureza da realidade, segundo Nietzsche. 
Perdendo-se a sabedoria instintiva da arte trágica, restou a Sócrates 
apenas um aspecto da vida do espírito, o aspecto lógico-racional; 
faltou-lhe a visão mística, possuído que foi pelo instinto irrefreado de
 tudo transformar em pensamento abstrato, lógico, racional. Penetrar a 
própria razão das coisas, distinguindo o verdadeiro do aparente e do 
erro era, para Sócrates, a única atividade digna do homem. Para 
Nietzsche, porém, esse tipo de conhecimento não tarda a encontrar seus 
limites: "esta sublime ilusão metafísica de um pensamento puramente 
racional associa-se ao conhecimento como um instinto e o conduz 
incessantemente a seus limites onde este se transforma em arte".
Por
 essa razão, Nietzsche combateu a metafísica, retirando do mundo 
supra-sensível todo e qualquer valor eficiente, e entendendo as ideias 
não mais como "verdades" ou "falsidades", mas como "sinais". A única 
existência, para Nietzsche, é a aparência e seu reverso não é mais o 
Ser; o homem está destinado à multiplicidade, e a única coisa permitida é
 sua interpretação.
O Vôo da Águia, a Ascensão da Montanha
A crítica nietzschiana à metafísica tem um sentido ontológico e um sentido moral: o combate à teoria das ideias socrático-platônicas é, ao mesmo tempo, uma luta acirrada contra o cristianismo.
Segundo
 Nietzsche, o cristianismo concebe o mundo terrestre como um vale de 
lágrimas, em oposição ao mundo da felicidade eterna do além. Essa 
concepção constitui uma metafísica que, à luz das ideias do outro mundo,
 autêntico e verdadeiro, entende o terrestre, o sensível, o corpo, como o
 provisório, o inautêntico e o aparente. Trata-se, portanto, diz 
Nietzsche, de "um platonismo para o povo", de uma vulgarização da 
metafísica, que é preciso desmistificar. O cristianismo, continua 
Nietzsche, é a forma acabada da perversão dos instintos que caracteriza o
 platonismo, repousando em dogmas e crenças que permitem à consciência 
fraca e escava escapar à vida, à dor e à luta, e impondo a resignação e a
 renúncia como virtudes. São os escravos e os vencidos da vida que 
inventaram o além para compensar a miséria; inventaram falsos valores 
para se consolar da impossibilidade de participação nos valores dos 
senhores e dos fortes; forjaram o mito da salvação da alma porque não 
possuíam o corpo; criaram a ficção do pecado porque não podiam 
participar das alegrias terrestres e da plena satisfação dos instintos 
da vida. "Este ódio de tudo que é humano", diz Nietzsche, "de tudo que é
 'animal' e mais ainda de tudo que é 'matéria', este temor dos 
sentidos... este horror da felicidade e da beleza; este desejo de fugir 
de tudo que é aparência, mudança, dever, morte, esforço, desejo mesmo, 
tudo isso significa... vontade de aniquilamento, hostilidade à vida, 
recusa em se admitir as condições fundamentais da própria vida".
Nietzsche
 propôs a si mesmo a tarefa de recuperar a vida e transmutar todos os 
valores do cristianismo: "munido de uma tocha cuja luz não treme, levo 
uma claridade intensa aos subterrâneos do ideal". A imagem da tocha 
simboliza, no pensamento de Nietzsche, o método filológico, por ele 
concebido como um método crítico e que se constitui no nível da 
patologia, pois procura "fazer falar aquilo que gostaria de permanecer 
mudo". Nietzsche traz à tona, por exemplo, um significado esquecido da 
palavra "bom". Em latim, bonus significa também o "guerreiro", 
significado este que foi sepultado pelo cristianismo. Assim como esse, 
outros significados precisariam ser recuperados; com isso se poderia 
constituir uma genealogia da moral que explicaria as etapas das noções 
de "bem" e de "mal". Para Nietzsche essas etapas são o ressentimento ("é
 tua culpa se sou fraco e infeliz"); a consciência da culpa (momento em 
que as formas negativas se interiorizam, dizem-se culpadas e voltam-se 
contra si mesmas); e o ideal ascético (momento de sublimação do 
sofrimento e de negação da vida). A partir daqui, a vontade de potência 
torna-se vontade de nada e a vida transforma-se em fraqueza e mutilação,
 triunfando o negativo e a reação contra a ação. Quando esse niilismo 
triunfa, diz Nietzsche, a vontade de potência deixa de querer significar
 "criar" para querer dizer "dominar"; essa é a maneira como o escravo a 
concebe. Assim, na fórmula "tu és mau, logo eu sou bom", Nietzsche vê o 
triunfo da moral dos fracos que negam a vida, eu negam a "afirmação"; 
neles tudo é invertido: os fracos passam a se chamar fortes, a baixeza 
transforma-se em nobreza. A "profundidade da consciência" que busca o 
Bem e a Verdade, diz Nietzsche, implica resignação, hipocrisia e 
máscara, e o intérprete-filólogo, ao percorrer os signos para 
denunciá-las, deve ser um escavador dos submundos a fim de mostrar que a
 "profundidade da interioridade" é coisa diferente do que ela mesma 
pretende ser. Do ponto de vista do intérprete que desça até os bas-fonds
 da consciência, o Bem é a vontade do mais forte, do "guerreiro", do 
arauto de um apelo perpétuo à verdadeira ultrapassagem dos valores 
estabelecidos, do super-homem, entendida esta expressão no sentido de um
 ser humano que transpõe os limites do humano, é o além-do-homem. Assim,
 o vôo da águia, a ascensão da montanha e todas as imagens de 
verticalidade que se encontram em Assim falou Zaratustra representam a 
inversão da profundidade e a descoberta de que ela não passa de um jogo 
de superfície.
A etimologia
 nietzschiana mostra que não existe um "sentido original", pois as 
próprias palavras não passam de interpretações, antes mesmo de serem 
signos, e se elas só significam porque são "interpretações essenciais". 
As palavras, segundo Nietzsche, sempre foram inventadas pelas classes 
superiores e, assim, não indicam um significado, mas impõem uma 
interpretação. O trabalho do etimologista, portanto, deve centralizar-se
 no problema de saber o que existe para ser interpretado, na medida em 
que tudo é máscara, interpretação, avaliação. Fazer isso é "aliviar o 
que vive, dançar, criar". Zaratustra, o intérprete por excelência, é 
como Dioniso.
Os Limites do Humano: O Além-do-Homem
Em Ecce Homo, Nietzsche assimila Zaratustra a Dioniso, concebendo o primeiro como o triunfo da afirmação da vontade de potência e o segundo como símbolo do mundo como vontade, como um deus artista, totalmente irresponsável, amoral e superior ao lógico. Por outro lado, a arte trágica é concebida por Nietzsche como oposta à decadência e enraizada na antinomia entre a vontade de potência, aberta para o futuro, e o "eterno retorno", que faz do futuro numa repetição; esta, no entanto, não significa uma volta do mesmo nem uma volta ao mesmo; o eterno retorno nietzschiano é essencialmente seletivo. Em dois momentos de Assim falou Zaratustra (Zaratustra doente e Zaratustra convalescente), o eterno retorno causa ao personagem-título, primeiramente, uma repulsa e um medo intoleráveis que desaparecem por ocasião de sua cura, pois o que o tornava doente era a idéia de que o eterno retorno estava ligado, apesar de tudo, a um ciclo, e que ele faria tudo voltar, mesmo o homem, o "homem pequeno". O grande desgosto do homem, diz Zaratustra, aí está o que me sufocou e que me tinha entrado na garganta e também o que me tinha profetizado o adivinho: tudo é igual. E o eterno retorno, mesmo do mais pequeno, aí está a causa de meu cansaço e de toda a existência. Dessa forma, se Zaratustra se cura é porque compreende que o eterno retorno abrange o desigual e a seleção. Para Dioniso, o sofrimento, a morte e o declínio são apenas a outra face da alegria, da ressurreição e da volta. Por isso, "os homens não têm de fugir à vida como os pessimistas", diz Nietzsche, "mas, como alegres convivas de um banquete que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma vez mais".
Para
 Nietzsche, portanto, o verdadeiro oposto a Dioniso não é mais Sócrates,
 mas o Crucificado. Em outros termos, a verdadeira oposição é a que 
contrapõe, de um lado, o testemunho contra a vida e o empreendimento de 
vingança que consiste em negar a vida; de outro, a afirmação do devir e 
do múltiplo, mesmo na dilaceração dos membros dispersos de Dioniso. Com 
essa concepção, Nietzsche responde ao pessimismo de Schopenhauer: em 
lugar do desespero de uma vida para a qual tudo se tornou vão, o homem 
descobre no eterno retorno a plenitude de uma existência ritmada pela 
alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do 
bem e do mal. O eterno retorno, e apenas ele, oferece, diz Nietzsche, 
uma "saída fora da mentira de dois mil anos", e a transmutação dos 
valores traz consigo o novo homem que se situa além do próprio homem.
Esse
 super-homem nietzschiano não é um ser, cuja vontade "deseje dominar". 
Se se interpreta vontade de potência, diz Nietzsche, como desejo de 
dominar, faz-se dela algo dependente dos valores estabelecidos. Com 
isso, desconhece-se a natureza da vontade de potência como princípio 
plástico de todas as avaliações e como força criadora de novos valores. 
Vontade de potência, diz Nietzsche, significa "criar", "dar" e 
"avaliar".
Nesse
 sentido, a vontade de potência do super-homem nietzschiano o situa 
muito além do bem e do mal e o faz desprender-se de todos os produtos de
 uma cultura decadente. A moral do além-do-homem, que vive esse 
constante perigo e fazendo de sua vida uma permanente luta, é a moral 
oposta à do escravo e à do rebanho. Oposta, portanto, à moral da 
compaixão, da piedade, da doçura feminina e cristã. Assim, para 
Nietzsche, bondade, objetividade, humildade, piedade, amor ao próximo, 
constituem valores inferiores, impondo-se sua substituição pela virtù 
dos renascentistas italianos, pelo orgulho, pelo risco, pela 
personalidade criadora, pelo amor ao distante. O forte é aquele em que a
 transmutação dos valores faz triunfar o afirmativo na vontade de 
potência. O negativo subsiste nela apenas como agressividade própria à 
afirmação, como a crítica total que acompanha a criação; assim, 
Zaratustra, o profeta do além-do-homem, é a pura afirmação, que leva a 
negação a seu último grau, fazendo dela uma ação, uma instância a 
serviço daquele que cria, que afirma.
Compreende-se,
 assim, porque Nietzsche desacredita das doutrinas igualitárias, que lhe
 parecem "imorais", pois impossibilitam que se pense a diferença entre 
os valores dos "senhores e dos escravos". Nietzsche recusa o socialismo,
 mas em Vontade de Potência exorta os operários a reagirem "como 
soldados".
Uma Filosofia Confiscada
Apoiado
 na crítica nietzschiana aos valores da moral cristã, em sua teoria da 
vontade de potência e no seu elogio do super-homem, desenvolveu-se um 
pensamento nacionalista e racista, de tal forma que se passou a ver no 
autor de "Assim Falou Zaratustra" um percursor do nazismo. A principal 
responsável por essa deformação foi sua irmã Elisabeth, que, ao 
assegurar a difusão de seu pensamento, organizando o Nietzsche-Archiv, 
em Weimar, tentou colocá-lo a serviço do nacional-socialismo. Elisabeth,
 depois do suicídio do marido, que fracassara em um projeto colonial no 
Paraguai, reuniu arbitrariamente notas e rascunhos do irmão, fazendo 
publicar Vontade de Potência como a última e a mais representativa das 
obras de Nietzsche, retendo até 1908 Ecce Homo, escrita em 1888. Esta 
obra constitui uma interpretação, feita por Nietzsche, de sua própria 
filosofia, que não se coaduna com o nacionalismo e o racismo germânicos.
 Ambos foram combatidos pelo filósofo, desde sua participação na guerra 
franco-prussiana (1870-1871).
Por
 ocasião desse conflito, Nietzsche alistou-se no exército alemão, mas 
seu ardor patriótico logo se dissolveu, pois, para ele, a vitória da 
Alemanha sobre a França teria como consequência "um poder altamente 
perigoso para a cultura". Nessa época, aplaudia as palavras de seu 
colega em Basiléia, Jacob Burckhardt (1818-1897), que insistia junto a 
seus alunos para que não tomassem o triunfo militar e a expansão de um 
Estado como indício de verdadeira grandeza.
Em
 Para Além de Bem e Mal, Nietzsche revela o desejo de uma Europa unida 
para enfrentar o nacionalismo ("essa neurose") que ameaçava subverter a 
cultura européia. Por outro lado, quando confiou ao "louro" a tarefa de 
"virilizar a Europa", Nietzsche levou até a caricatura seu desprezo 
pelos alemães, homens "que introduziram no lugar da cultura a loucura 
política e nacional... que só sabem obedecer pesadamente, disciplinados 
como uma cifre oculta em um número". No mesmo sentido, Nietzsche 
caracterizou os heróis wagnerianos como germanos que não passam de 
"obediência e longas pernas". E acabou rompendo definitivamente com 
Wagner, por causa do nacionalismo e anti-semitismo do autor de Tristão e
 Isolda: "Wagner condescende a tudo que desprezo, até o anti-semitismo".
Para
 compreender corretamente as ideias políticas de Nietzsche, é 
necessário, portanto, purificá-lo de todos os desvios posteriores que 
foram cometidos em seu nome. Nietzsche foi ao mesmo tempo um 
antidemocrático e um antitotalitário. "A democracia é a forma histórica 
de decadência do Estado", afirmou Nietzsche, entendendo por decadência 
tudo aquilo que escraviza o pensamento, sobretudo um Estado que pensa em
 si em lugar de pensar na cultura. Em Considerações Extemporâneas essa 
tese é reforçada: "estamos sofrendo as consequências das doutrinas 
pregadas ultimamente por todos os lados, segundo as quais o estado é o 
mais alto fim do homem, e, assim, não há mais elevado fim do que 
servi-lo. Considero tal fato não um retrocesso ao paganismo mas um 
retrocesso à estupidez". Por outro lado, Nietzsche não aceitava as 
considerações de que a origem do Estado seja o contrato ou a convenção; 
essas teorias seriam apenas "fantásticas"; para ele, ao contrário, o 
Estado tem uma origem "terrível", sendo criação da violência e da 
conquista e, como consequência, seus alicerces encontram-se na máxima 
que diz: "o poder dá o primeiro direito e não há direito que no fundo 
não seja arrogância, usurpação e violência". 
O
 Estado, diz Nietzsche, está sempre interessado na formação de cidadãos 
obedientes e tem, portanto, tendência a impedir o desenvolvimento da 
cultura livre, tornando-a estática e estereotipada. Ao contrário disso, o
 Estado deveria ser apenas um meio para a realização da cultura e para 
fazer nascer o além-do-homem. 
Assim Falou Zaratustra
Em
 Ecce Homo, Nietzsche intitulou seus capítulos: "Por que sou tão 
finalista?", "Por que sou tão sábio?", "Por que sou tão inteligente?", 
"Por que escrevo livros tão bons?". Isso levou muitos a considerarem sua
 obra como anormal e desqualificada pela loucura. Essa opinião, no 
entanto, revela um superficial entendimento de seu pensamento. Para 
entendê-lo corretamente, é necessário colocar-se dentro do próprio 
núcleo de sua concepção da filosofia: Nietzsche inverteu o sentido 
tradicional da filosofia, fazendo dela um discurso ao nível da patologia
 e considerando a doença "um ponto de vista" sobre a saúde e vice-versa.
 Para ele, nem a saúde, nem a doença são entidades; a fisiologia e a 
patologia são uma única coisa; as oposições entre bem e mal, verdadeiro e
 falso, doença e saúde são apenas jogos de superfície. Há uma 
continuidade, diz Nietzsche, entre a doença e a saúde e a diferença 
entre as duas é apenas de grau, sendo a doença um desvio interior à 
própria vida; assim, não há fato patológico.
A
 loucura não passa de uma máscara que esconde alguma coisa, esconde um 
saber fatal e "demasiado certo". A técnica utilizada pelas classes 
sacerdotais para a cura da loucura é a "meditação ascética", que 
consiste em enfraquecer os instintos e expulsar as paixões; com isso, a 
vontade de potência, a sensualidade e o livre florescimento do eu são 
considerados "manifestações diabólicas". Mas, para Nietzsche, aniquilar 
as paixões é uma "triste loucura", cuja decifração cabe à filosofia, 
pois é a loucura que torna mais plano o caminho para as ideias novas, 
rompendo os costumes e as superstições veneradas e constituindo uma 
verdadeira subversão dos valores. Para Nietzsche, os homens do passado 
estiveram mais próximos da idéia de que onde existe loucura há um grão 
de gênio e de sabedoria, alguma coisa de divino: "Pela loucura os 
maiores feitos foram espalhados foram espalhados pela Grécia". Em suma, 
aos "filósofos além de bem e mal", aos emissários dos novos valores e da
 nova moral não resta outro recurso, diz Nietzsche, a não ser o de 
proclamar as novas leis e quebrar o jugo da moralidade, sob o 
travestimento da loucura. É dentro dessa perspectiva, portanto, que se 
deve compreender a presença da loucura na obra de Nietzsche. Sua crise 
final apenas marcou o momento em que a "doença" saiu de sua obra e 
interrompeu seu prosseguimento. As últimos cartas de Nietzsche são o 
testemunho desse momento extremo e, como tal, pertencem ao conjunto de 
sua obra e de seu pensamento. A filosofia foi, para ele, a arte de 
deslocar as perspectivas, da saúde à doença, e a loucura deveria cumprir
 a tarefa de fazer a crítica escondida da decadência dos valores e 
aniquilamento: "Na verdade, a doença pode ser útil a um homem ou a uma 
tarefa, ainda que para outros signifique doença... Não fui um doente nem
 mesmo por ocasião da maior enfermidade".
A Moral de Kant
É
 só no domínio da moral que a razão poderá, legitimamente, manifestar-se
 em toda sua pujança. A razão teórica tinha necessidade da experiência 
para não se perder no vácuo da metafísica. A razão prática, isto é, 
ética, deve ao contrário, ultrapassar, para ser ela própria, tudo que 
seja sensível ou empírico.
Toda
 ação que toma seus móveis da sensibilidade, dos desejos empíricos, é 
estranha à moral, mesmo que essa ação seja materialmente boa. Por 
exemplo: se me empenho por alguém por cálculo interessado ou mesmo por 
afeição, minha conduta não é moral. Com efeito, amanhã, meus cálculos e 
meus sentimentos espontâneos poderiam levar-me a atos contrários. A 
vontade que tem por fim o prazer, a felicidade, fica submetida às 
flutuações de minha natureza. Nesse ponto, Kant se opõe não só ao 
naturalismo dos filósofos iluministas, mas, também, à ontologia otimista
 de São Tomás, para quem a felicidade é o fim legítimo de todas as 
nossas ações. Em Kant, há o que Hegel mais tarde denominará uma visão 
oral do mundo que afasta a ética dos equívocos da natureza. O imperativo
 moral não é um imperativo hipotético que submeteria o bem ao desejo 
(cumpre teu dever se nele satisfazes teu interesse, ou então, se teus 
sentimentos espontâneos a ele te conduzem), mas o imperativo categórico:
 Cumpre teu dever incondicionalmente.
Em
 que consiste esse dever? Uma vez que as leis que a Razão se impõe não 
podem, em nenhum caso, receber um conteúdo da experiência e que devem 
exprimir a autonomia da razão pura prática, as regras morais só podem 
consistir na própria forma da lei. "Age sempre de tal maneira que a 
máxima de tua ação possa ser erigida em regra universal" (primeira 
regra). O respeito pela razão estende-se ao sujeito racional: "Age 
sempre de maneira a tratares a humanidade em ti e nos outros sempre ao 
mesmo tempo como um fim e jamais como um simples meio" (segunda regra). 
Desse modo, o princípio do dever, para ser absolutamente rigoroso, não 
implica em nenhuma "alienação", como diríamos hoje, em nenhuma 
"heteronomia", como diz Kant.
Para
 se unirem numa justa reciprocidade de direitos e obrigações, os homens 
só têm que obedecer às exigências de sua própria razão: "Age como se 
fosses ao mesmo tempo legislador e súdito na república das vontades" 
(terceira regra).
O único
 sentimento que tem por si mesmo um valor moral nessa ética racionalista
 é o sentimento do respeito, pois não é anterior à lei, mas é a própria 
lei moral que o produz em mim; ele me engrandece, ele me realiza como 
ser racional que obedece à lei moral. Vimos que, pelo fato de ser 
puramente formal, essa moral não me propõe, efetivamente, um ato 
concreto a realizar. Ela simplesmente autoriza ou proíbe este ou aquele 
ato que tenho vontade de praticar. Por exemplo, vejo de imediato que não
 tenho o direito de mentir, mesmo que me diga: e se todos fizessem o 
mesmo? A mentira de todos para com todos é contraditória, portanto, 
proibída. A moral formal, por conseguinte, apresenta-se como 
essencialmente negativa. Como diz Jan Kélévitch, o imperativo categórico
 é um "proibitivo categórico".
A
 moral de Kant, ao privilegiar a razão humana, exprime sua desconfiança 
com relação à natureza humana, aos instintos, às tendências de tudo o 
que é empírico, passivo, passional, ou, como diz Kant, patológico. Tal é
 o rigoríssimo kantiano. A razão fala sobre a forma severa do dever 
porque é preciso impor silêncio à natureza carnal, porque é preciso, ao 
preço de grande esforço, submeter a humana vontade à lei do dever. Por 
conseguinte, o domínio da moral não é o da natureza (submissão animal 
aos instintos) nem o da santidade (em que a natureza, transfigurada pela
 graça, sentiria uma atração instintiva e irresistível pelos valores 
morais). O mérito moral é medido precisamente pelo esforço que fazemos 
para submeter nossa natureza às exigências do dever.
Moral e Metafísica
A
 moral de Kant é o que chamamos de uma moral independente. Ela não 
possui outro fundamento além da consciência humana, essa consciência que
 é essencialmente razão. Mesmo que o universo não tenha o menor sentido,
 mesmo que a alma seja mortal, o discípulo de Kant se sabe obrigado a 
respeitar as máximas da razão. 
Todavia,
 Kant vai reerguer a metafísica - essa metafísica cuja demonstração era 
impossível, segunda a crítica da razão pura. A originalidade de Kant 
está no fato de que, ao invés de buscar os fundamentos de sua moral na 
metafísica, ele vai estabelecer os fundamentos de uma metafísica na 
moral, a título de "postulados da razão prática". Por exemplo: o dever 
me prescreve a realização de certa perfeição moral que não consigo 
atingir na vida presente (posto que não chego a purificar totalmente a 
determinação de querer dos móveis sensíveis). Kant então postula a 
imortalidade da alma. 
Por
 outro lado, Kant constata que a virtude e a felicidade quase não estão 
juntas, neste mundo em que, de um modo geral, os maus são muito 
prósperos. Ele então postula que um Deus justiceiro, por intermédio de 
um sistema de recompensa e punições, restabelecerá no além a harmonia 
entre virtude e felicidade.
Finalmente,
 partindo da consciência da obrigação moral, Kant vai postular a 
liberdade humana. Com efeito, a obrigação moral exclui a necessidade dos
 atos humanos. A obrigação não teria o menor sentido se minha conduta 
fosse automaticamente determinada por minhas tendências ou pelas 
influências que sofri. Ser moralmente obrigado é ter o poder de 
responder sim ou não à regra moral, é ter a liberdade de escolher entre o
 bem e o mal. "Tu deves, diz Kant, então podes."
Esta
 liberdade não poderia ser demonstrada. No plano dos fenômenos, isto é, 
da experiência, do que hoje denominamos ciência psicológica, eu vejo que
 meus atos, ao contrário, são determinados uns pelos outros no tempo. 
Aquele crime pode ser explicado pelas paixões de seu autor, pela 
deplorável educação que recebeu, etc... E, no entanto, o homem se sente 
responsável, por conseguinte, livre. Não esqueçamos que o mundo dos 
fenômenos, isto é, do determinismo, é um mundo de aparências. Por trás 
desse determinismo aparente, pelo qual o mundo se me apresenta no 
conhecimento, esconde-se a realidade numenal de minha liberdade. Por 
conseguinte, é fora do tempo, é nas profundezas do ser inacessível ao 
saber científico, que o mau escolheu livremente o seu caráter de mau. Em
 tal sistema, portanto, não existe liberdade parcial nem 
meia-responsabilidade. Totalmente determinados nas aparências 
fenomenais, seríamos totalmente livres em nossa realidade numenal: daí 
se segue que nenhum pecado poderia ser escusável. 
A Crítica do Juízo
Desse modo, a filosofia de Kant nos surge como uma filosofia essencialmente trágica, já que afirma simultaneamente a necessidade da natureza (na Crítica da Razão Pura) e a exigência de uma liberdade absoluta (na Crítica da Razão Prática).
A Crítica do Juízo
Desse modo, a filosofia de Kant nos surge como uma filosofia essencialmente trágica, já que afirma simultaneamente a necessidade da natureza (na Crítica da Razão Pura) e a exigência de uma liberdade absoluta (na Crítica da Razão Prática).
Em
 sua terceira grande obra, A Crítica do Juízo, Kant se esforça por 
mostrar a possibilidade de uma reconciliação entre o mundo natural e o 
da liberdade. A natureza talvez não seja apenas o domínio do 
determinismo, mas também o da finalidade que aparece notadamente na 
organização harmoniosa dos seres vivos. Todavia, se o princípio de 
causalidade (determinismo) é constitutivo da experiência (não posso 
dispensá-lo para explicar a natureza), o princípio de finalidade 
permanece facultativo, puramente regulador (posso interpretar o 
agrupamento de certas condições como a manifestação de um fim). Tudo se 
passa como se o pássaro fosse feito para voar, mas uma coisa apenas é 
certa: o pássaro voa porque é constituído de tal maneira.
Os
 valores de beleza, presentes na obra de arte, igualmente nos oferecem 
uma espécie de reconciliação entre a razão e a imaginação, já que, na 
contemplação estética, a bela aparência que admiramos parece 
inteiramente penetrada dos valores do espírito. Finalidade sem fim (isto
 é, harmonia pura, fora de todo móvel exterior à obra de arte), a beleza
 oferece à nossa imaginação a oportunidade de uma satisfação 
inteiramente desinteressada. Ela é, no mundo kantiano, o exemplo único 
de uma satisfação ao mesmo tempo sensível e pura de todo egoísmo, o 
momento privilegiado em que uma emoção, longe de manifestar meu egoísmo 
dominador, dele me liberta e, como se diz muito bem, me "arrebata".
KARL MARX
"A menina está ali tão reservada,
tão silente e pálida;
a alma, como um anjo delicada,
está turva e abatida...
Tão suave, tão fiel ela era,
devotada ao céu,
da inocência imagem pura,
que a Graça teceu.
Aí chega um nobre senhor
sobre portentoso cavalo,
nos olhos um mar de amor
e flechas de fogo.
Feriu-a no peito tão fundo;
mas ele tem de partir,
em gritos de guerra bramando:
nada o pode impedir".
Mas Marx também encontra outro tom:
"Os mundos uivam o próprio canto fúnebre.
e nós somos macacos de um Deus frio".
Após
 essa amostra, surge a pergunta se a poesia alemã perdeu muito com a 
decisão de Marx, ainda que sob profusos sofrimentos da alma, de abdicar 
da carreira poética. Em todo caso, o pai, um advogado bem-sucedido, 
exprime-se assim: "Lamentaria ver você como um poetinha." Sugere, 
entretanto, que o filho escreva uma "ode em grande estilo" sobre a 
Batalha de Waterloo. Os pósteros, porém, dependendo de se enxergar no 
marxismo a salvação ou a perdição do mundo, sentem-se aliviados ou 
angustiados por Marx ter desistido, após longo tempo, de cavalgar o 
Pégaso.
|  | |
| Trier, Alemanha | 
Após
 dois semestres, Marx continua seus estudos em Berlim, mas também lá se 
evidencia que ele não é nenhum estudante modelar. Seu pai tem razão em 
se queixar. "Desordem, divagação apática por todas as áreas do saber, 
meditação indolente junto da sedenta lamparina de azeite; embrutecimento
 erudito em robe de chambre em vez de embrutecimento junto da caneca de 
cerveja, insociabilidade repugnante com menosprezo total pelas boas 
maneiras", tudo isso ele censura no filho. Marx assiste apenas a poucas 
aulas, e mesmo essas antes do âmbito da Filosofia e da História do que 
do âmbito do Direito. Por semestres inteiros quase não frequenta a 
universidade. De qualquer modo ele se forma aos 23 anos com um trabalho 
sobre um tema filosófico, em Jena, sem nem sequer ter estado lá por uma 
única hora. Mas esses acontecimentos não o impressionam. Para ele mais 
importante é pertencer ao "Clube do Doutor", uma agremiação de jovens 
discípulos de Hegel, e lá discutir dia e noite. Seus amigos atestam que 
ele é um "arsenal de pensamentos", uma "alma-danada de ideias". Ao mesmo
 tempo escreve "um novo sistema metafísico fundamental". Naturalmente, 
quer se tornar professor; mas desiste quando vê que seus amigos, os 
hegelianos de esquerda, quase sem exceção naufragavam no governo 
reacionário.
Em
 vez disso, Marx torna-se redator no Jornal Renano, de tendência 
liberal, publicado em Colônia. Essa atividade força-o a ocupar-se com 
problemas concretos de natureza política e econômica. Ele redige a folha
 em um espírito intrépido e liberal. Porém, recusa rudemente o 
comunismo, do qual mais tarde deveria tornar-se o cabeça. Após breve 
tempo, contudo, tem de suspender sua atividade de editor sob pressão 
policial. O jornal – "a meretriz do Reno", como o rei prussiano havia 
por bem chamá-lo – deixa de ser publicado.
Depois
 de ter-se casado com sua noiva de longos anos, Marx dirigi-se para 
Paris, onde edita juntamente com seu amigo Arnold Ruge os Anuários 
Franco-Germânicos. Por um tempo vive juntamente com a família Ruge em 
uma "comunidade comunista", que porém logo se desagregaria devido à 
incompatibilidade de gênios. Em Paris, Marx entra em contato com Heine e
 com socialistas franceses. Mas também sua permanência nesta cidade não é
 muito longa. A pedido do governo prussiano é expulso da França e 
estabelece-se provisoriamente em Bruxelas, onde funda o primeiro partido
 comunista do mundo (com 17 membros). Marx vai por pouco tempo para 
Londres, retornando então durante a Revolução de 1848 – por ocasião da 
qual escreve O Manifesto Comunista –, à França e à Alemanha a fim de 
promover seus planos revolucionários. Em Colônia, funda o Novo Jornal 
Renano. Mas é novamente expulso e vive até seus últimos dias, com apenas
 algumas interrupções para breves viagens ao continente, em Londres. 
Porém, todos esses anos em Paris e Bruxelas são cheios de contendas 
amargas e não particularmente tolerantes conduzidas contra 
revolucionários dissidentes; há também um trabalho intensivo em 
manuscritos filosóficos e econômicos, os quais em grande parte só serão 
publicados após sua morte.
Em
 Londres, Marx vive em situações muito limitadas com uma família que se 
multiplica com rapidez. Frequentemente padecem necessidades. A fundação 
de um jornal fracassa. Marx tem de levar a vida em grande parte por meio
 de donativos, sobretudo de seu amigo Friedrich Engels. As condições de 
moradia são na maioria das vezes catastróficas; ocasionalmente, até a 
mobília é penhorada. Ocorre inclusive de Marx nem sequer poder sair de 
casa por sua roupa ter sido penhorada. As doenças perseguem a família; 
apenas algumas das crianças sobrevivem aos primeiros anos. Pressionado 
por dívidas, Marx pensa em declarar bancarrota; apenas o fiel amigo 
Engels consegue impedir esse ato extremo. A senhora Jenny desespera-se 
frequentemente e deseja para si e suas crianças antes a morte do que 
viver uma vida tão miserável. Acresce que Marx se envolve em um caso 
amoroso com a empregada doméstica, que não fica sem consequências e 
prejudica sensivelmente o clima doméstico já afetado pela miséria 
financeira. Continuam também as desavenças com os correligionários.
Apesar de tudo, Marx trabalha ferreamente, ainda que interrompido por períodos de inatividade causada por esgotamento, em sua obra-prima, O Capital. Ele consegue enfim publicar o primeiro volume; como quase não aparecem comentários, ele mesmo escreve críticas positivas e negativas. Em 1883 porém, antes que a obra de três volumes esteja completa, Marx morre aos 65 anos.
Apesar de tudo, Marx trabalha ferreamente, ainda que interrompido por períodos de inatividade causada por esgotamento, em sua obra-prima, O Capital. Ele consegue enfim publicar o primeiro volume; como quase não aparecem comentários, ele mesmo escreve críticas positivas e negativas. Em 1883 porém, antes que a obra de três volumes esteja completa, Marx morre aos 65 anos.
O
 aspecto e a personalidade de Marx são descritos por um amigo russo de 
modo bem intuitivo, ainda que sua magnífica barba seja esquecida: "Ele 
representa o tipo de homem constituído por energia, força de vontade e 
convicção inflexível, um tipo que também segundo a aparência era 
extremamente estranho. Uma grossa juba negra sobre a cabeça, as mãos 
cobertas pelos pêlos, o paletó abotoado totalmente, possuía contudo o 
aspecto de um homem que tem o direito e o poder de atrair a atenção, por
 mais esquisitos que parecessem seu aspecto e seu comportamento. Seus 
movimentos eram desastrados, porém ousados e altivos; suas maneiras iam 
frontalmente de encontro a toda forma de sociabilidade. Mas eram 
orgulhosas, com um laivo de desprezo, e sua voz aguda, que suava como 
metal, combinava-se estranhamente com os juízos radicais que fazia sobre
 homens e coisas. Não falava senão em palavras imperativas, intolerantes
 contra toda resistência, que aliás eram ainda intensificadas por um tom
 que me tocava quase dolorosamente e que impregnava tudo o que falava. 
Esse tom expressava a firme convicção de sua missão de dominar os 
espíritos e de prescrever-lhes leis. Diante de mim estava a encarnação 
de um ditador democrático, assim como se fosse em momentos de fantasia."
Desde
 o início de sua atividade filosófica, Marx insere-se na maior disputa 
espiritual de seu tempo, determinada pela vultosa figura de Hegel, cujo 
pensamento ele chama de "a filosofia atual do mundo". Inicialmente, Marx
 dedica-se a Hegel com paixão para, depois, distanciar-se dele com tanto
 maior aspereza.
Sua
 crítica inicia-se pela concepção da história de Hegel. Para este, a 
história não é uma mera sequência casual de acontecimentos, mas um 
suceder racional que se desenvolve segundo um princípio imanente, ou 
seja, uma dialética interna. O decisivo nisso é que o verdadeiro sujeito
 da história não são os homens que agem. Na história antes dominaria um 
espírito que tudo abrange, ao qual Hegel designa como "espírito do 
mundo" ou "espírito absoluto" ou mesmo "Deus". Esse, o Deus que 
vem-a-ser, realiza no curso da história sua autoconsciência. Ele chega, 
por meio dos diferentes momentos do processo histórico, a si mesmo.
Hegel
 era da opinião de que em seu tempo e em seu próprio sistema o espírito 
absoluto teria, após todos seus descaminhos através da história, 
finalmente alcançado seu objetivo: a perfeita autoconsciência. "O 
espírito universal chegou ora até aqui. A última filosofia é o resultado
 de todas as anteriores; nada está perdido, todos os princípios foram 
preservados. Esta idéia concreta é o resultado dos esforços do espírito 
por quase 2500 anos, seu fervoroso trabalho, de reconhecer-se." 
Portanto, após o surgimento da filosofia hegeliana, não pode haver mais 
nada realmente inconcebível. Esse é o sentido da conhecida frase do 
Prefácio à Filosofia do Direito: "O que é racional é real; e o que é 
real é racional." Razão e realidade chegaram portanto, segundo Hegel, 
finalmente à adequação uma com a outra; elas foram verdadeiramente 
conciliadas. O espírito absoluto compreendeu a si mesmo como a realidade
 total e a realidade total como manifestação sua.
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| Marx e Hegel | 
Quando
 Hegel afirma que a realidade estaria conciliada com a razão, ele não 
poderia, segundo Marx, ter em vista a realidade concreta. Em Hegel, tudo
 se passa no âmbito do mero pensamento. Mesmo a realidade sobre a qual 
ele fala, é a mera realidade pensada. Para Marx, porém, a realidade 
factual mostra-se contraditória, inconcebível e portanto não conciliada 
com a razão. Todo o empenho filosófico de Hegel fracassa porque ele não é
 capaz de incluir essa realidade efetiva em seu pensar, por mais 
abrangente que esse seja. "O mundo é portanto um mundo dilacerado, que 
se opõe a uma filosofia fechada em sua própria totalidade."
Para
 Marx, portanto, a realidade concreta é a realidade do homem. "As 
pressuposições com as quais iniciamos são os indivíduos reais." A 
filosofia como Marx a postula – em contraposição a Hegel e em 
concordância com Feuerbach – é uma filosofia da existência humana. "A 
raiz do homem é o próprio homem." Marx denomina sua filosofia por isso 
mesmo de "humanismo real". O real primeiro e originário para o homem é o
 próprio homem. É dele, portanto, que o novo pensar também tem de 
partir.
Mas
 o que é o homem? O significativo aqui é que Marx não considera o homem,
 como o faz Hegel, essencialmente a partir de sua faculdade de conhecer.
 Ao contrário, trata-se decisivamente da práxis humana, da ação 
concreta. "Na práxis, o homem tem de comprovar a verdade, isto é, a 
realidade, o poder e a mundanalidade de seu pensamento." "Parte-se do 
homem real que age."
É
 da essência da práxis humana que ela se realize na relação com o outro.
 Se Feuerbach queria conceber o homem como indivíduo isolado, Marx 
ressalta com toda clareza: o homem vive desde sempre em uma sociedade 
que o supera. "O indivíduo é o ser social." "O homem, isto é o mundo do 
homem: Estado, sociedade." Essa natureza social constitui para Marx o 
ponto de partida para toda reflexão subsequente. Assim deve-se entender a
 muito discutida frase: "Não é a consciência do homem que determina seu 
ser, mas é seu ser social que determina sua consciência."
Mas
 por que meio se constitui a sociedade humana? Marx responde: 
basicamente, não por meio da consciência comum, mas por meio do trabalho
 comum. Pois o homem é originariamente um ser econômico. As relações 
econômicas e particularmente as forças produtivas a elas subjacentes são
 a base (ou a "infra-estrutura") de sua existência. Apenas na medida em 
que essas relações econômicas se modificam, também se desenvolvem os 
modos da consciência, que representam a "superestrutura ideológica". 
Desta superestrutura fazem parte o Estado, as leis, as ideias, a moral, a
 arte, a religião e similares. Na base econômica reencontram-se também 
aquelas leis do desenvolvimento histórico, como as que Hegel atribuiu ao
 espírito. As relações econômicas desdobram-se de modo dialético, mais 
precisamente, no conflito de classes. Por isso, para Marx, a história é 
principalmente a história das lutas de classes.
Até
 aqui tudo poderia parecer como uma das muitas teorias antropológicas e 
histórico-filosóficas, em que a história da filosofia é bastante rica, 
isto é, até interessante mas realmente apenas mais uma interpretação 
entre muitas outras. Por que, então, o que Marx diz é tão estimulante? 
Como se explica que seu pensamento tenha determinado tão amplamente o 
tempo seguinte? Isso reside obviamente em que Marx não se detém no 
âmbito do pensamento puro, mas que se põe a trabalhar decisivamente na 
transformação da realidade: "Os filósofos têm apenas interpretado 
diversamente o mundo; trata-se de modificá-lo."
Nessa
 intenção, Marx empreende uma crítica de seu tempo. Observa que em seus 
dias a verdadeira essência do homem, sua liberdade e independência, "a 
atividade livre e consciente", não se podem fazer valer. Por toda parte o
 homem é tirado a si mesmo. Por toda parte perdeu as autênticas 
possibilidades humanas de existência. Esse é o sentido daquilo que Marx 
chama de "auto-alienação" do homem. Ela significa uma permanente 
"depreciação do mundo do homem".
Também
 aqui Marx recorre às relações econômicas. A auto-alienação do homem tem
 sua raiz em uma alienação do trabalhador do produto de seu trabalho: 
este não pertence àquele para seu usufruto, mas ao empregador. O produto
 do trabalho torna-se uma "mercadoria", isto é, uma coisa estranha ou 
alheia ao trabalhador, que o coloca em posição de dependência, porque 
ele precisa compará-la para poder subsistir. "O objeto que o trabalho 
produz, seu produto, apresenta-se a ele como uma essência estranha, como
 um poder independente do produtor." Da mesma forma também o trabalho se
 torna "trabalho alienado": não a ele imposto de sua autoconservação; o 
trabalho torna-se, em sentido próprio, "trabalho forçado". Esse 
desenvolvimento atinge sua culminância no capitalismo, no qual o capital
 assume a função de um poder separado dos homens.
A
 alienação do produto do trabalho conduz também a uma "alienação do 
homem". Isso não vale apenas para a "luta de inimigos entre capitalista e
 trabalhador". As relações interpessoais em geral perdem cada vez mais a
 sua imediação. Elas são mediadas pelas mercadorias e pelo dinheiro, "a 
meretriz universal". Enfim, os próprios proletários assumem caráter de 
mercadoria; sua força de trabalho é comercializada no mercado de 
trabalho, no qual se encontra à mercê do arbítrio dos compradores. Seu 
"mundo interior" torna-se "cada vez mais pobre"; sua "destinação humana e
 sua dignidade" perdem-se cada vez mais. O trabalhador é "o homem 
extraviado de si mesmo"; sua existência é "a perda total do homem"; sua 
essência é uma "essência desumanizada".
Mas,
 no ápice desse desenvolvimento – o que Marx crê poder demonstrar –, tem
 de sobrevir a guinada. Ela se torna possível desde que o proletariado 
se conscientize de sua alienação. Ele se compreende então como "a 
miséria consciente de sua miséria espiritual e física, a desumanização 
que, consciente de sua desumanização, supera por isso a si mesma". 
Concretamente, segundo os prognósticos de Marx, chega-se a uma 
concentração do capital nas mãos de poucos, a um crescente desemprego e 
empobrecimento das massas. Com isso, porém, o capital torna-se seu 
próprio coveiro. Pois a essa concentração de capital devem seguir-se, 
segundo "leis infalíveis" – com necessidade histórica, cientificamente 
reconhecida e dialética –, a subversão e a revolução. A missão dessa 
revolução é "transformar o homem em homem", para que "o homem seja o ser
 supremo para o homem". Trata-se de "derrubar todas as relações em que o
 homem é um ser degradado, escravizado, abandonado e desprezado". 
Importa realizar "o verdadeiro reino da liberdade", desenfronhar o homem
 em "toda a riqueza de sua essência" e, com isso, superar 
definitivamente a alienação.
Marx
 considera tudo isso tarefa do movimento comunista. É chegado o tempo do
 "comunismo como superação positiva da propriedade privada enquanto 
auto-alienação do homem e por isso como apropriação real da essência 
humana por meio de e para o homem; por isso, como regresso – perfeito, 
consciente e dentro da riqueza total do desenvolvimento até aqui –, do 
homem para si mesmo enquanto homem social, ou seja, humano. Esse 
comunismo é a verdadeira dissolução do antagonismo entre o homem e a 
natureza e entre o homem e o homem. A verdadeira solução do conflito 
entre liberdade e necessidade. Ele é o enigma decifrado da história, a 
verdadeira realização da essência do homem". Com o comunismo, 
"encerra-se a pré-história da sociedade humana" e inicia-se a sociedade 
"realmente humana". Mas sobre como essa sociedade comunista deve ser, 
Marx não nos dá nenhuma informação adicional.
JEAN-PAUL SARTRE
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JEAN-PAUL SARTRE
BIBLIOGRAFIA
DURANT, Will, História da Filosofia - A Vida e as Ideias dos Grandes Filósofos, São Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.
FRANCA S. J., Padre Leonel, Noções de História da Filosofia.
PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís, História da Filosofia, Edições Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição, 1974.
VERGEZ, André e HUISMAN, Denis, História da Filosofia Ilustrada pelos Textos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.
Coleção Os Pensadores, Os Pré-socráticos, Abril Cultural, São Paulo, 1.ª edição, vol.I, agosto 1973.
 

























































 
 
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