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VIDAS

A VIDA É FEITA DE ESCOLHAS. A VIDA ETERNA, DE RENÚNCIAS!

FILOSOFIA CLÁSSICA

FILOSOFIA CLÁSSICA

Os Pré-Socráticos 

A característica fundamental do pensamento grego está na solução dualista do problema metafísico-teológico, isto é, na solução das relações entre a realidade empírica e o Absoluto que a explique, entre o mundo e Deus, em que Deus e mundo ficam separados um do outro. Consequência desse dualismo é o irracionalismo, em que fatalmente finaliza a serena concepção grega do mundo e da vida. O mundo real dos indivíduos e do “vir-a-ser” depende do princípio eterno da matéria obscura, que tende para Deus como o imperfeito para o perfeito; assimila em parte, a racionalidade de Deus, mas nunca pode chegar até ele porque dele não deriva. E a consequência desse irracionalismo outra não pode ser senão o pessimismo: um pessimismo desesperado, porque o grego tinha conhecimento de um absoluto racional, de Deus, mas estava também convicto de que ele não cuida do mundo e da humanidade, que não criou, não conhece, nem governa; e pensava, pelo contrário, que a humanidade é governada pelo Fado, pelo Destino, a saber, pela necessidade irracional. O último remédio desse mal da existência será procurado no ascetismo, considerando-o como a solidão interior e a indiferença heroica para com tudo, a resignação e a renúncia absoluta.

O Gênio Grego

A característica do gênio filosófico grego pode-se compendiar em alguns traços fundamentais: racionalismo, ou seja, a consciência do valor supremo do conhecimento racional; esse racionalismo não é, porém, abstrato, absoluto, mas se integra na experiência, no conhecimento sensível; o conhecimento, pois, não é fechado em si mesmo, mas aberto para o ser, é apreensão (realismo); e esse realismo não se restringe ao âmbito da experiência, mas a transpõe, a transcende para o absoluto, do mundo a Deus, sem o qual o mundo não tem explicação; embora, para os gregos, o "conhecer" - a contemplação, o teorético, o intelecto - tenham a primazia sobre o "operar" - a ação, o prático, a vontade - o segundo elemento, todavia, não é anulado pelo primeiro, mas está a ele subordinado; e o otimismo grego, consequência lógica do seu próprio racionalismo, cederá lugar ao pessimismo, quando se manifestar toda a irracionalidade da realidade, quando o realismo impuser tal concepção. Todos esses elementos vêm sendo, ainda, organizados numa síntese insuperável, numa unidade harmônica, realizada por meio de um desenvolvimento também harmônico, aperfeiçoado mediante uma crítica profunda. Entre as raças gregas, a cultura e a filosofia são devidas, sobretudo, aos jônios, sendo jônios também os atenienses.


Divisão da História da Filosofia Grega

Os Períodos Principais do Pensamento Grego

Consoante a ordem cronológica e a marcha evolutiva das ideias pode dividir-se a história da filosofia grega em quatro períodos:

I. Período pré-socrático (séc. VII - V a.C.) - Problemas cosmológicos. Período Naturalista: pré-socrático, em que o interesse filosófico é voltado para o mundo da natureza;

II. Período socrático (séc. IV a.C.) - Problemas metafísicos. Período Sistemático ou Antropológico: o período mais importante da história do pensamento grego (Sócrates, Platão, Aristóteles), em que o interesse pela natureza é integrado com o interesse pelo espírito e são construídos os maiores sistemas filosóficos, culminando com Aristóteles;

III. Período pós-socrático (séc. IV a.C. - VI p.C.) - Problemas morais. Período Ético: em que o interesse filosófico é voltado para os problemas morais, decaindo, entretanto a metafísica;

IV. Período Religioso: assim chamado pela importância dada à religião, para resolver o problema da vida, que a razão não resolve integralmente. O primeiro período é de formação, o segundo de apogeu, o terceiro de decadência.

Primeiro Período

 

O primeiro período do pensamento grego toma a denominação substancial de período naturalista, porque a nascente especulação dos filósofos é instintivamente voltada para o mundo exterior, julgando-se encontrar aí também o princípio unitário de todas as coisas; e toma a denominação cronológica de período pré-socrático, porque precede Sócrates e os sofistas, que marcam uma mudança e um desenvolvimento e, por conseguinte, o começo de um novo período na história do pensamento grego. Esse primeiro período tem início no alvor do VI século a.C., e termina dois séculos depois, mais ou menos, nos fins do século V. Surge e floresce fora da Grécia propriamente dita, nas prósperas colônias gregas da Ásia Menor, do Egeu (Jônia) e da Itália meridional, da Sicília, favorecido sem dúvida na sua obra crítica e especulativa pelas liberdades democráticas e pelo bem-estar econômico. Os filósofos deste período preocuparam-se quase exclusivamente com os problemas cosmológicos. Estudar o mundo exterior nos elementos que o constituem, na sua origem e nas contínuas mudanças a que está sujeito, é a grande questão que dá a este período seu caráter de unidade. Pelo modo de a encarar e resolver, classificam-se os filósofos que nele floresceram em quatro escolas: Escola Jônica; Escola Itálica; Escola Eleática; Escola Atomística.

Escola Jônica

A Escola Jônica, assim chamada por ter florescido nas colônias jônicas da Ásia Menor, compreende os jônios antigos e os jônios posteriores ou juniores. A escola jônica é também a primeira do período naturalista, preocupando-se os seus expoentes com achar a substância única, a causa, o princípio do mundo natural vário, múltiplo e mutável. Essa escola floresceu precisamente em Mileto, colônia grega do litoral da Ásia Menor, durante todo o VI século (a.C.), até a destruição da cidade pelos persas no ano de 494 a.C., prolongando-se ainda pelo V século (a.C). Os jônicos julgaram encontrar a substância última das coisas em uma matéria única; e pensaram que nessa matéria fosse imanente uma força ativa, de cuja ação derivariam precisamente a variedade, a multiplicidade, a sucessão dos fenômenos na matéria una. Daí ser chamada esta doutrina hilozoísmo (matéria animada). Os jônios antigos consideram o Universo do ponto de vista estático, procurando determinar o elemento primordial, a matéria primitiva de que são compostos todos os seres. Os mais conhecidos são: Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto. Os jônios posteriores distinguem-se dos antigos não só por virem cronologicamente depois, senão principalmente por imprimirem outra orientação aos estudos cosmológicos, encarando o Universo no seu aspecto dinâmico, e procurando resolver o problema do movimento e da transformação dos corpos. Os mais conhecidos são: Heráclito de Éfeso, Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de Clazômenas.

Tales de Mileto - (624-548 a.C.) "Água 

 

Tales de Mileto, fenício de origem, é considerado o fundador da escola jônica. É o mais antigo filósofo grego. Tales não deixou nada escrito mas sabemos que ele ensinava ser a água a substância única de todas as coisas. A terra era concebida como um disco boiando sobre a água, no oceano. Cultivou também as matemáticas e a astronomia, predizendo, pela primeira vez, entre os gregos, os eclipses do sol e da lua. No plano da astronomia, fez estudos sobre solstícios a fim de elaborar um calendário, e examinou o movimento dos astros para orientar a navegação. Provavelmente nada escreveu. Por isso, do seu pensamento só restam interpretações formuladas por outros filósofos que lhe atribuíram uma ideia básica: a de que tudo se origina da água. Segundo Tales, a água, ao se resfriar, torna-se densa e dá origem à terra; ao se aquecer transforma-se em vapor e ar, que retornam como chuva quando novamente esfriados. Desse ciclo de seu movimento (vapor, chuva, rio, mar, terra) nascem as diversas formas de vida, vegetal e animal. A cosmologia de Tales pode ser resumida nas seguintes proposições: A terra flutua sobre a água; A água é a causa material de todas as coisas. Todas as coisas estão cheias de deuses. O imã possui vida, pois atrai o ferro.
Segundo Aristóteles sobre a teoria de Tales: elemento estático e elemento dinâmico. Elemento Estático - a flutuação sobre a água. Elemento Dinâmico - a geração e nutrição de todas as coisas pela água. Tales acreditava em uma "alma do mundo", havia um espírito divino que formava todas as coisas da água. Tales sustentava ser a água a substância de todas as coisas.

Anaximandro de Mileto (611-547 A.C.) "Ápeiron" 

Anaximandro de Mileto, geógrafo, matemático, astrônomo e político, discípulo e sucessor de Tales e autor de um tratado Da Natureza, põe como princípio universal uma substância indefinida, o ápeiron (ilimitado), isto é, quantitativamente infinita e qualitativamente indeterminada. Deste ápeiron (ilimitado) primitivo, dotado de vida e imortalidade, por um processo de separação ou "segregação" derivam os diferentes corpos. Supõe também a geração espontânea dos seres vivos e a transformação dos peixes em homens. Anaximandro imagina a terra como um disco suspenso no ar. Eterno, o ápeiron está em constante movimento, e disto resulta uma série de pares opostos - água e fogo, frio e calor, etc. - que constituem o mundo. O ápeiron é assim algo abstrato, que não se fixa diretamente em nenhum elemento palpável da natureza. Com essa concepção, Anaximandro prossegue na mesma via de Tales, porém dando um passo a mais na direção da independência do "princípio" em relação às coisas particulares. Para ele, o princípio da "physis" (natureza) é o ápeiron (ilimitado). Atribui-se a Anaximandro a confecção de um mapa do mundo habitado, a introdução na Grécia do uso do gnômon (relógio de sol) e a medição das distâncias entre as estrelas e o cálculo de sua magnitude (é o iniciador da astronomia grega). Ampliando a visão de Tales, foi o primeiro a formular o conceito de uma lei universal presidindo o processo cósmico total. Diz-se também, que preveniu o povo de Esparta de um terremoto. Anaximandro julga que o elemento primordial seria o indeterminado (ápeiron), infinito e em movimento perpétuo.

Fragmentos


"Imortal... e imperecível (o ilimitado enquanto o divino) - Aristóteles, Física". Esta (a natureza do ilimitado, ele diz que) é sem idade e sem velhice. Hipólito, Refutação.

Anaxímenes de Mileto (588-524 A.C.) "Ar"   

 

Segundo Anaxímenes, a arkhé (comando) que comanda o mundo é o ar, um elemento não tão abstrato como o ápeiron, nem palpável demais como a água. Tudo provém do ar, através de seus movimentos: o ar é respiração e é vida; o fogo é o ar rarefeito; a água, a terra, a pedra são formas cada vez mais condensadas do ar. As diversas coisas que existem, mesmo apresentando qualidades diferentes entre si, reduzem-se a variações quantitativas (mais raro, mais denso) desse único elemento. Atribuindo vida à matéria e identificando a divindade com o elemento primitivo gerador dos seres, os antigos jônios professavam o hilozoísmo e o panteísmo naturalista. Dedicou-se especialmente à meteorologia. Foi o primeiro a afirmar que a Lua recebe sua luz do Sol. Anaxímenes julga que o elemento primordial das coisas é o ar.

Fragmentos

"O contraído e condensado da matéria ele diz que é frio, e o ralo e o frouxo (é assim que ele expressa) é quente". (Plutarco). "Com nossa alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim também todo o cosmo sopro e ar o mantém". (Aécio).

Vida de Heráclito   

Heráclito nasceu em Éfeso, cidade da Jônia, de família que ainda conservava prerrogativas reais (descendentes do fundador da cidade). Seu caráter altivo, misantrópico e melancólico ficou proverbial em toda a antiguidade. Desprezava a plebe. Recusou-se sempre a intervir na política. Manifestou desprezo pelos antigos poetas, contra os filósofos de seu tempo e até contra a religião. Sem ter sido mestre, Heráclito escreveu um livro Sobre a Natureza, em prosa, no dialeto jônico, mas de forma tão concisa que recebeu o cognome de Skoteinós, o Obscuro. Floresceu em 504-500 a.C. - Heráclito é por muitos considerados o mais eminente pensador pré-socrático, por formular com vigor o problema da unidade permanente do ser diante da pluralidade e mutabilidade das coisas particulares e transitórias. Estabeleceu a existência de uma lei universal e fixa (o Lógos), regedora de todos os acontecimentos particulares e fundamento da harmonia universal, harmonia feita de tensões, "como a do arco e da lira".

Filosofia de Heráclito

Heráclito concebe o próprio absoluto como processo, como a própria dialética. A dialética é:
A. Dialética exterior, um raciocinar de cá para lá e não a alma da coisa dissolvendo-se a si mesma;
B. Dialética imanente do objeto, situando-se, porém, na contemplação do sujeito;
C. Objetividade de Heráclito, isto é, compreender a própria dialética como princípio.

É o progresso necessário, e é aquele que Heráclito fez. O ser é o um, o primeiro; o segundo é o devir - até esta determinação avançou ele. Isto é o primeiro concreto, o absoluto enquanto nele se dá a unidade dos opostos. Nele encontra-se, portanto, pela primeira vez, a ideia filosófica em sua forma especulativa; o raciocínio de Parmênides e Zenão é entendimento abstrato; por isso Heráclito foi tido como filósofo profundo e obscuro e como tal criticado.
O que nos é relatado da filosofia de Heráclito parece, à primeira vista, muito contraditório; mas nela se pode penetrar com o conceito e assim descobrir, em Heráclito, um homem de profundos pensamentos. Ele é a plenitude da consciência até ele - uma consumação da ideia na totalidade que é o início da Filosofia ou expressa a essência da ideia, o infinito, aquilo que é.

O Princípio Lógico

O princípio universal. Este espírito arrojado pronunciou pela primeira vez esta palavra profunda: "O ser não é mais que o não-ser", nem é menos; ou ser e nada são o mesmo, a essência é mudança. O verdadeiro é apenas como a unidade dos opostos; nos eleatas, temos apenas o entendimento abstrato, isto é, apenas o ser é. Dizemos, em lugar da expressão de Heráclito: O absoluto é a unidade do ser e do não-ser. Se ouvimos aquela frase "O ser não é mais que o não-ser", desta maneira, não parece, então, produzir muito sentido, apenas destruição universal, ausência de pensamento. Temos, porém, ainda uma outra expressão que aponta mais exatamente o sentido do princípio. Pois Heráclito diz: "Tudo flui (panta rei), nada persiste, nem permanece o mesmo". E Platão ainda diz de Heráclito: "Ele compara as coisas com a corrente de um rio - que não se pode entrar duas vezes na mesma corrente"; o rio corre e toca-se outra água. Seus sucessores dizem até que nele nem se pode mesmo entrar, pois que imediatamente se transforma; o que é, ao mesmo tempo já novamente não é. Além disso, Aristóteles diz que Heráclito afirma que é apenas um o que permanece; disto todo o resto é formado, modificado, transformado; que todo o resto fora deste um flui, que nada é firme, que nada se demora; isto é, o verdadeiro é o devir, não o ser - a determinação mais exata para este conteúdo universal é o devir. Os eleatas dizem: só o ser é, é o verdadeiro; a verdade do ser é o devir; ser é o primeiro pensamento enquanto imediato. Heráclito diz: Tudo é devir; este devir é o princípio. Isto está na expressão: "O ser é tão pouco como o não-ser; o devir é e também não é". As determinações absolutamente opostas estão ligadas numa unidade; nela temos o ser e também o não-ser. Dela faz parte não apenas o surgir, mas também o desaparecer; ambos não são para si, mas são idênticos. É isto que Heráclito expressou com suas sentenças. O não ser é, por isso é o não-ser, e o não-ser é, por isso é o ser; isto é a verdade da identidade de ambos.

É um grande pensamento passar do ser para o devir; é ainda abstrato, mas, ao mesmo tempo, também é o primeiro concreto, a primeira unidade de determinações opostas. Estas estão inquietas nesta relação, nela está o princípio da vida. Com isto está preenchido o vazio que Aristóteles apontou nas antigas filosofias - a falta de movimento; este movimento é aqui, agora mesmo, princípio.
É uma grande convicção que se adquiriu, quando se reconheceu que o ser e o nada são abstrações sem verdade, que o primeiro elemento verdadeiro é o devir. O entendimento separa a ambos como verdadeiros e de valor; a razão, pelo contrário, reconhece um no outro, que num está contido seu outro - e assim o todo, o absoluto deve ser determinado como o devir. 
 
Heráclito também diz que os opostos são características do mesmo, como, por exemplo, "o mel é doce e amargo" - ser e não-ser ligam-se ao mesmo. Sexto observa: Heráclito parte, como os céticos, das representações correntes dos homens; ninguém negará que os sãos dizem do mel que é doce, e os que sofrem de icterícia que é amargo - se fosse apenas doce, não poderia modificar sua natureza através de outra coisa e assim também para os que sofrem de icterícia seria doce. Zenão começa a sobressumir os predicados opostos e aponta no movimento aquilo que se opõe - um por limites e um sobressumir os limites; Zenão só exprimiu o infinito pelo seu lado negativo -, por causa de sua contradição, como o não verdadeiro. Em Heráclito, vemos o infinito como tal expresso como conceito e essência: o infinito, que é em si e para si, é a unidade dos opostos e, na verdade, dos universalmente opostos, da pura oposição, ser e não-ser. Tomamos nós o ente em si e para si, não a representação do ente, do pleno, assim o puro ser é o pensamento simples, em que todo o determinado é negado, o absolutamente negativo - nada é o mesmo, apenas este igual a si mesmo -, passagem absoluta para o oposto, ao qual Zenão não chegou! "Do nada, nada vem." Em Heráclito o momento da negatividade é imanente; disto trata o conceito de toda a Filosofia.
Primeiro tivemos a abstração de ser e não-ser, numa forma bem imediata e universal; mais exatamente, porém, também Heráclito concebeu as oposições de maneira mais determinada. É esta unidade de real e ideal, de objetivo e subjetivo; o objetivo somente é o devir subjetivo. Este verdadeiro é o processo do devir; Heráclito expressou de modo determinado este pôr-se numa unidade das diferenças. Aristóteles diz, por exemplo, que Heráclito "ligou o todo e o não-todo" (parte) - o todo se torna parte e a parte o é para se tornar o todo -, o "que se une e se opõe", do mesmo modo, "o que concorda e o dissonante"; e de que de tudo (que se opõe) resulta um, e de um tudo. Este um não é o abstrato, a atividade de dirimir-se; a morta infinitude é uma má abstração em oposição a esta profundidade que vemos em Heráclito. Sexto Empírico cita o seguinte que Heráclito teria dito: A parte é algo diferente do todo; mas é também o mesmo que o todo é; a substância é o todo e a parte. O fato de Deus ter criado o mundo Ter-se dividido a si mesmo, gerado seu Filho, etc. - todos estes elementos concretos estão contidos nesta determinação. Platão diz, em seu Banquete, sobre o princípio de Heráclito: "O um, diferenciado de si mesmo, une-se consigo mesmo" - este é o processo da vida, "como a harmonia do arco e da lira". Deixa então que Erixímaco, que fala no Banquete, critique o fato de a harmonia ser desarmônica ou se componha de opostos, pois que a harmonia se formaria de altos e baixos, mas da unidade pela arte da música. Mas isto não contradiz Heráclito, que justamente quer isto. O simples, a repetição de um único som não é harmonia. Da harmonia faz parte a diferença; é preciso que haja essencial e absolutamente uma diferença. Esta harmonia é precisamente o absoluto devir, transformar-se - não devir outro, agora este, depois aquele. O essencial é que cada diferente, cada particular seja diferente de um outro - mas não de um abstrato qualquer outro, mas de seu outro; cada um apenas é, na medida em que seu outro em si esteja consigo, em seu conceito. Mudança é unidade, relação de ambos a um, um ser, este e o outro. Na harmonia e no pensamento concordamos que seja assim; vemos, pensamos a mudança, a unidade essencial. O espírito relaciona-se na consciência com o sensível e este sensível é seu outro. Assim também no caso dos sons; devem ser diferentes, mas de tal maneira que também possam ser unidos - e isto os sons são em si. Da harmonia faz parte determinada oposição, seu oposto, como na harmonia das cores. A subjetividade é o outro da objetividade, não de um pedaço de papel - o absurdo disto logo se mostra - , deve ser seu outro, e nisto reside sua identidade; assim cada coisa é o outro do outro enquanto seu outro. Este é o grande princípio de Heráclito; pode parecer obscuro, mas é especulativo; e isto é, para o entendimento que segura para si o ser, o não-ser, o subjetivo e objetivo, o real e o ideal, sempre obscuro.

Os Modos da Realidade

Heráclito não ficou parado, em sua exposição, nesta expressão em conceitos, no puro lógico, mas além desta forma universal, na qual expôs seu princípio, deu à sua ideia também uma expressão real. Esta figura pura é precipuamente de natureza cosmológica, ou sua forma é mais a forma natural; por isso, é incluído ainda na Escola Jônica, e com isto deu novos impulsos à filosofia da natureza. Sobre esta forma real de seu princípio os historiadores, contudo, não estão de acordo entre si. A maioria diz que ele teria posto a essência ontológica como fogo, outros dizem que como ar, outros dizem que antes o vapor que o ar; mesmo o tempo é citado, em Sexto, como o primeiro ser do ente. A questão é a seguinte: Como compreender esta diversidade? Não se deve absolutamente crer que se deva atribuir estas notícias à negligência dos escritores, pois as testemunhas são as melhores, como Aristóteles e Sexto Empírico, que não falam destas formas de passagem, mas de modo bem determinado, sem, no entanto, chamar a atenção para estas diferenças e contradições. Uma outra razão mais próxima parece-nos resultar da obscuridade do escrito de Heráclito, o qual, na confusão de seu modo de expressão, poderia dar motivos para mal-entendidos. Mas, considerando mais detidamente, esta dificuldade desaparece; esta mostra-se mais para uma análise superficial; no conceito profundo de Heráclito acha-se a verdadeira saída deste empecilho. De maneira alguma podia Heráclito afirmar, como Tales, que a água ou o ar ou coisa semelhante seria a essência absoluta; e não o podia afirmar como um primeiro donde emanaria o outro, na medida em que pensou ser como idêntico como o não-ser ou no conceito infinito. Assim, portanto, a essência absoluta que é não pode surgir nele como uma determinidade existente, por exemplo, a água, mas a água enquanto se transforma, ou apenas o processo.

A. - Processo abstrato, tempo. Heráclito, portanto, disse que o tempo é o primeiro ser corpóreo, como exprime Sexto. "Corpóreo" é uma expressão inadequada. Os céticos escolhiam muitas vezes as expressões mais grosseiras ou tornavam os pensamentos grosseiros para mais facilmente liquidá-los. "Corpóreo" significa sensibilidade abstrata; o tempo é a intuição abstrata do processo; diz que ele é o primeiro ser sensível. O tempo, portanto, é a essência verdadeira. Na medida em que Heráclito não parou na expressão lógica do devir, mas deu a seu princípio a forma de um ente, deduz-se disto que primeiro tinha que oferecer-se a forma do tempo; pois precisamente, no sensível, no que se pode ver, o tempo é o primeiro que se oferece como o devir; é a primeira forma do devir. Enquanto intuído, o tempo é o puro devir. O tempo é puro transformar-se, é o puro conceito, o simples, que é harmônico a partir de absolutamente opostos. Sua essência é ser e não-ser, sem outra determinação - ser puro e abstrato não-ser, postos imediatamente numa unidade e ao mesmo tempo separados. Não como se o tempo fosse e não fosse, mas o tempo é isto: no ser imediatamente não-ser e no não-ser imediatamente ser - esta mudança de ser para não-ser, este conceito abstrato, é, porém, visto de maneira objetiva, enquanto é para nós. No tempo não é o passado e o futuro, somente o agora; e este é, para não ser, está logo destruído, passado - e este não-ser passa, do mesmo modo, para o ser, pois ele é. É a abstrata contemplação desta mudança. Se tivéssemos de dizer como aquilo que Heráclito reconheceu como a essência existe para a consciência, nesta pura forma em que ele o reconheceu, não haveria outra que nomear a não ser o tempo; é, por conseguinte, absolutamente certo que a primeira forma do que devém é o tempo; assim isto se liga ao princípio do pensamento de Heráclito.

B. - A forma real como processo, fogo. Mas este puro conceito objetivo deve realizar-se mais. No tempo estão os momentos, ser e não-ser, postos apenas negativamente ou como momentos que imediatamente desaparecem. Além disso, Heráclito determinou o processo de um modo mais físico. O tempo é intuição, mas inteiramente abstrata. Se quisermos representar-nos o que ele é, de modo real, isto é, expressar ambos os momentos como uma totalidade para si, como subsistente, então levanta-se a questão: que ser físico corresponde a esta determinação? O tempo, dotado de tais momentos, é o processo; compreender a natureza significa apresentá-la como processo. Este é o elemento verdadeiro de Heráclito e o verdadeiro conceito; por isso, logo compreendemos que Heráclito não podia dizer que a essência é o ar ou a água ou coisas semelhantes, pois eles mesmos não são (isto é o próximo) o processo. O fogo, porém, é o processo: assim afirmou o fogo como a primeira essência - e este é o modo real do processo heracliteano, a alma e a substância do processo da natureza. Justamente no processo distinguem-se os momentos, como no movimento: 
1. o puro momento negativo, 
2. os momentos da oposição subsistente, água e ar, e 
3. a totalidade em repouso, a terra. A vida da natureza é o processo destes momentos: a divisão da totalidade em repouso da terra na oposição, o pôr desta oposição, destes momentos - e a unidade negativa, o retorno para a unidade, o queimar da oposição subsistente. O fogo é o tempo físico; ele é esta absoluta inquietude, absoluta dissolução do que persiste - o desaparecer de outros, mas também de si mesmo; ele não é permanente. Por isso compreendemos (é inteiramente consequente) por que Heráclito pode nomear o fogo como o conceito do processo de sua determinação fundamental.


C
. - O fogo está agora mais precisamente determinado, mais explicitado como processo real; ele é para si o processo real, sua realidade é o processo todo no qual, então, os momentos são determinados mais exata e concretamente. O fogo, enquanto o metamorfosear-se das coisas corpóreas, é mudança, transformação do determinado, evaporação, transformação em fumaça; pois ele é, no processo, o momento abstrato do mesmo, não tanto o ar como antes a evaporação. Para este processo Heráclito utilizou uma palavra muito singular: evaporação (anathymíasis) (fumaça, vapores do sol); evaporação é aqui apenas a significação superficial - é mais: passagem. Sob este ponto de vista, Aristóteles diz de Heráclito que, segundo sua exposição, o princípio era a alma, por ser ela a evaporação, o emergir de tudo, e este evaporar-se, devir, seria o incorpóreo e sempre fluído. As determinações mais próximas deste processo real são, em parte, falhas e contraditórias. Sob este ponto de vista, afirma-se, em algumas notícias, que Heráclito teria determinado o processo assim: "As formas (mudanças) do fogo são, primeiro, o mar e, então, a metade disto, terra, e a outra metade, o raio" - o fogo em sua eclosão. Este é universal e muito obscuro. A natureza é assim esse círculo. Neste sentido ouvimo-lo dizer: "Nem um deus nem um homem fabricou o universo mas sempre foi e é e será um fogo sempre vivo, que segundo suas próprias leis (metro) se acende e se apaga.". Compreendemos o que Aristóteles cita, que o princípio é a alma, por ser a evaporação, este processo do mundo que a si mesmo se move; o fogo é a alma. No que se refere ao fato de Heráclito afirmar que o fogo é vivificante, a alma, encontra-se uma expressão que pode parecer bizarra, isto é, que a alma mais seca é a melhor. Nós certamente não tomamos a alma mais molhada como a melhor, mas, pelo contrário, a mais viva; seco quer dizer aqui cheio de fogo: assim a alma mais seca é o fogo puro, e este não é a negação do vivo, mas a própria vida. Para retornar a Heráclito: ele é aquele que primeiro expressou a natureza do infinito e que compreendeu a natureza como sendo em si infinita, isto é, sua essência como processo. É a partir dele que se deve datar o começo da existência da Filosofia; ele é a ideia permanente, que é a mesma em todos os filósofos até os dias de hoje, assim como foi a ideia de Platão e Aristóteles.

"Os homens são deuses mortais e os deuses, homens imortais; viver é-lhes morte e morrer é-lhes vida".

"Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos".

Pitágoras, o fundador da escola pitagórica, nasceu em Samos pelos anos 571-70 a.C. Em 532-31 foi para a Itália, na Magna Grécia, e fundou em Crotona, colônia grega, uma associação científico-ético-política, que foi o centro de irradiação da escola e encontrou partidários entre os gregos da Itália meridional e da Sicília. Pitágoras aspirava - e também conseguiu - a fazer com que a educação ética da escola se ampliasse e se tornasse reforma política; isto, porém, levantou oposições contra ele e foi constrangido a deixar Crotona, mudando-se para Metaponto, aí morrendo provavelmente em 497-96 a.C.
Segundo o pitagorismo, a essência, o princípio essencial de que são compostas todas as coisas, é o número, ou seja, as relações matemáticas. Os pitagóricos, não distinguindo ainda bem forma, lei e matéria, substância das coisas, consideraram o número como sendo a união de um e outro elemento. Da racional concepção de que tudo é regulado segundo relações numéricas, passa-se à visão fantástica de que o número seja a essência das coisas.
Mas, achada a substância una e imutável das coisas, os pitagóricos se acham em dificuldades para explicar a multiplicidade e o vir-a-ser, precisamente mediante o uno e o imutável. E julgam poder explicar a variedade do mundo mediante o concurso dos opostos, que são - segundo os pitagóricos - o ilimitado e o limitado, ou seja, o par e o ímpar, o imperfeito e o perfeito. O número divide-se em par, que não põe limites à divisão por dois, e, por conseguinte, é ilimitado (quer dizer, imperfeito, segundo a concepção grega, a qual via a perfeição na determinação); e ímpar, que põe limites à divisão por dois e, portanto, é limitado, determinado, perfeito. Os elementos constitutivos de cada coisa - sendo cada coisa número - são o par e o ímpar, o ilimitado e o limitado, o pior e o melhor. Radical oposição esta, que explicaria o vir-a-ser e o multíplice, que seriam reconduzidos à concordância e à unidade pela fundamental harmonia (matemática), que governa e deve governar o mundo material e moral, astronômico e sonoro.
Como a filosofia da natureza, assim a astronomia pitagórica representa um progresso sobre a jônica. De fato, os pitagóricos afirmaram a esfericidade da Terra e dos demais corpos celestes, bem como a rotação da Terra, explicando assim o dia e a noite; e afirmaram também a revolução dos corpos celestes em torno de um foco central, que não se deve confundir com o Sol. Pelo que diz respeito à moral, enfim, dominam no pitagorismo o conceito de harmonia, logicamente conexo com a filosofia pitagórica, e as práticas ascéticas e abstinenciais, com relação à metempsicose e à reencarnação das almas.
Para compreendermos seus princípios fundamentais, é preciso partir do eleatismo. Como é possível uma pluralidade? Pelo fato de o não-ser ter um ser. Portanto, identificam o não-ser ao Ápeiron de Anaximandro, ao absolutamente Indeterminado, àquilo que não tem nenhuma qualidade; a isso opõe-se o absolutamente Determinado, o Péras. Mas ambos compõem o Uno, do qual se pode dizer que é impar, delimitado e ilimitado, inqualificado e qualificado. Dizem, pois, contra o eleatismo, que, se o Uno existe, foi em todo caso formado por dois princípios, pois, nesse caso, há também uma pluralidade; da unidade procede a série dos números aritméticos (monádicos), depois os números geométricos ou grandezas (formas espaciais). Portanto, a Unidade veio a ser; portanto, há também uma pluralidade. Desde que se têm o ponto, a linha, as superfícies e os corpos, têm-se também os objetos materiais; o número é a essência própria das coisas. Os eleatas dizem: "Não há não-ser, logo, tudo é uma unidade". Os pitagóricos: "A própria unidade é o resultado de um ser e de um não-ser, portanto há, em todo caso, não-ser e, portanto, também uma pluralidade".

À primeira vista, é uma especulação totalmente insólita. O ponto de partida me parece ser a apologia da ciência matemática contra o eleatismo. Lembramo-nos da dialética de Parmênides. Nela, é dito da Unidade (supondo que não existe pluralidade):
1) que ela não tem partes e não é um todo;
2) que tampouco tem limites;
3) portanto, que não está em parte nenhuma;
4) que não pode nem mover-se nem estar em repouso, etc. Mas, por outro lado, o Ser e a Unidade dão a Unidade existente, portanto a diversidade, e as partes múltiplas, e o número, e a pluralidade do ser, e a delimitação, etc. É um procedimento análogo: ataca-se o conceito da Unidade existente porque comporta os predicados contraditórios e é, portanto, um conceito contraditório, impossível. Os matemáticos pitagóricos acreditavam na realidade das leis que haviam descoberto; bastava-lhes que fosse afirmada a existência da Unidade para deduzir dela também a pluralidade. E acreditavam discernir a essência verdadeira das coisas em suas relações numéricas. Portanto, não há qualidades, não há nada além de quantidades, não quantidades de elementos (água, fogo, etc.), mas delimitações do ilimitado, do Ápeiron; este é análogo ao ser potencial da hyle de Aristóteles. Assim, toda coisa nasce de dois fatores opostos. De novo, aqui, dualismo. Notável quadro estabelecido por Aristóteles (Metaf. I, 5): delimitado, ilimitado; ímpar, par; uno, múltiplo; direita, esquerda; masculino, feminino; imóvel, agitado; reto, curvo; luz, trevas; bom, mau; quadrado, ablongo. De um lado têm-se, portanto: delimitado, ímpar, uno, direita, masculino, imóvel, reto, luz, bom, quadrado. De outro lado, ilimitado, par, múltiplo, esquerda, feminino, agitado, curvo, trevas, mau, ablongo. Isso lembra o quadro-modelo de Parmênides. O ser é luz e, portanto, sutil, quente, ativo; o não-ser é noite e, portanto, denso, frio, passivo.
O ponto de partida que permite afirmar que tudo o que é qualitativo é quantitativo encontra-se na acústica.
Teoria das cordas sonoras; relação de intervalos; modo dórico.
A música, com efeito, é o melhor exemplo do que queriam dizer os pitagóricos. A música, como tal, só existe em nossos nervos e em nosso cérebro; fora de nós ou em si mesma (no sentido de Locke), compõe-se somente das relações numéricas quanto ao ritmo, se se trata de sua quantidade, e quanto à tonalidade, se se trata de sua qualidade, conforme se considere o elemento harmônico ou o elemento rítmico. No mesmo sentido, poder-se-ia exprimir o ser do universo, do qual a música é, pelo menos em certo sentido, a imagem, exclusivamente com o auxílio de números. E tal é, estritamente, o domínio da química e das ciências naturais. Trata-se de encontrar fórmulas matemáticas para as forças absolutamente impenetráveis. Nossa ciência é, nesse sentido, pitagórica. Na química, temos uma mistura de atomismo e de pitagorismo, para a qual Ecphantus na Antiguidade passa por ter aberto o caminho.
A contribuição original dos pitagóricos é, pois, uma invenção extremamente importante: a significação do número e, portanto, a possibilidade de uma investigação exata em física. Nos outros sistemas de física, tratava-se sempre de elementos e de sua combinação. As qualidades nasciam por combinação ou por dissociação; agora, enfim, afirma-se que as qualidades residem na diversidade das proporções. Mas esse pressentimento estava ainda longe da aplicação exata. Contentou-se, provisoriamente, com analogias fantasiosas.
 
Simbolismo dos números pitagóricos: um é a razão, dois a opinião, quatro a justiça, cinco o casamento, dez a perfeição, etc.; um é o ponto, dois é a linha, três a superfície, quatro o volume. Cosmogonia. O Universo e os planetas esféricos. A harmonia das esferas.
Se se pergunta a que se pode vincular a filosofia pitagórica, encontra-se, inicialmente, o primeiro sistema de Parmênides, que fazia nascer todas as coisas de uma dualidade; depois, o Ápeiron de Anaximandro, delimitado e movido pelo fogo de Heráclito. Mas estes são apenas, evidentemente, problemas secundários; na origem há a descoberta das analogias numéricas no universo, ponto de vista inteiramente novo. Para defender essa ideia contra a doutrina unitária dos eleatas, tiveram de erigir a noção de número, foi preciso que também a Unidade tivesse vindo a ser; retomaram então a idéia heraclitiana do pólemos, pai de todas as coisas, e da Harmonia que une as qualidades opostas; a essa força, Parmênides chamava Aphrodite. Simbolizava a gênese de todas as coisas a partir da oitava. Decompuseram os dois elementos de que nasce o número em par e ímpar. Identificaram essas noções com termos filosóficos já usuais. Chamar o Ápeiron de Par é sua grande inovação; isso porque os ímpares, os gnómones, davam nascimento a uma série limitada de números, os números quadrados. Remetem-se, assim, a Anaximandro, que reaparece aqui pela última vez. Mas identificam esse limite com o fogo de Heráclito, cuja tarefa é, agora, dissolver o indeterminado em tantas relações numéricas determinadas; é essencialmente uma força calculadora. Se houvessem tomado emprestado de Heráclito a palavra lógos, teriam entendido por ela a proporção (aquilo que fixa as proporções, como o Péras fixa o limite). Sua idéia fundamental é esta: a matéria, que é representada inteiramente destituída de qualidade, somente por relações numéricas adquire tal ou tal qualidade determinada. Tal é a resposta dada ao problema de Anaximandro. O vir-a-ser é um cálculo. Isso lembra a palavra de Leibniz, ao dizer que a música é "exercitium arithmeticae occultum nescientis se numerare animi" (¹). Os pitagóricos teriam podido dizer o mesmo do universo, mas sem poder dizer quem faz o cálculo.
(¹) O exercício de aritmética oculto do espírito que não sabe calcular.

A doutrina e a vida de Pitágoras, desde os tempos da antiguidade, jaz envolta num véu de mistério.
A força mística do grande filósofo e reformador religioso, há 2.600 anos vem, poderosamente, influindo no pensamento Ocidental. Dentre as religiões de mistérios, de caráter iniciático, a doutrina pitagórica foi a que mais se difundiu na antiguidade.
Não consideramos apenas lenda o que se escreveu sobre essa vida maravilhosa, porque há, nessas descrições, sem dúvida, muito de histórico do que é fruto da imaginação e da cooperação ficcional dos que se dedicaram a descrever a vida do famoso filósofo de Samos.
O fato de negar-se, peremptoriamente, a historicidade de Pitágoras (como alguns o fazem), por não se ter às mãos documentação bastante, não impede que seja o pitagorismo uma realidade empolgante na história da filosofia, cuja influência atravessa os séculos até nossos dias.

Acontece com Pitágoras o que aconteceu com Shakespeare, cuja existência foi tantas vezes negada. Se não existiu Pitágoras de Samos, houve com certeza alguém que construiu essa doutrina, e que, por casualidade, chamava-se Pitágoras. Podemos assim parafrasear o que foi dito quanto a Shakespeare. Mas, pondo de lado esses escrúpulos ingênuos de certos autores, que preferem declará-lo como não existente, como se houvesse maior validez na negação da sua historicidade do que na sua afirmação, vamos a seguir relatar algo, sinteticamente, em torno dessa lenda.
Em 1917, perto de Porta Maggiori, sob os trilhos da estrada de ferro, que liga Roma a Nápoles, foi descoberta uma cripta, que se julgou a princípio fosse a porta de uma capela cristã subterrânea. Posteriormente verificou-se que se tratava de uma construção realizada nos tempos de Cláudio, por volta de 41 a 54 d.C., e que nada mais era do que um templo, onde se reuniam os membros de uma seita misteriosa, que, afinal, averiguou-se ser pitagórica. Sabe-se hoje, com base histórica, que antes, já em tempos de César, proliferavam os templos pitagóricos, e se essa seita foi tão combatida, deve-se mais ao fato de ser secreta do que propriamente por suas ideias. Numa obra, hoje cara aos pitagóricos, Carcopino (La Brasilique pythagoricienne de la Porte Majeure) dá-nos um amplo relato desse templo. E foi inegavelmente essa descoberta tão importante que impulsionou novos estudos, que se realizaram sobre a doutrina de Pitágoras, os quais tendem a mostrar o grande papel que exerceu na história, durante vinte e cinco séculos, essa ordem, que ainda existe e tem seus seguidores, embora esteja, em nossos dias, como já esteve no passado, irremediavelmente infectada de ideias estranhas que, ao nosso ver, desvirtuam o pensamento genuíno de Pitágoras de Samos.
É aceito quase sem divergência por todos que se debruçaram a estudar a sua vida, que Pitágoras nasceu em Samos, entre 592 a 570 antes da nossa era; ou seja, naquele mesmo século em que surgiram tantos grandes condutores de povos e criadores de religiões, como foi Gautama Buda, Zoroastro (Zaratustra), Confúcio e Lao Tsé.
Inúmeras são as divergências sobre a verdadeira nacionalidade de Pitágoras, pois uns afirmam ter sido ele de origem egípcia; outros, síria ou, ainda, natural de Tiro.
Relata a lenda que Pitágoras, cujo nome significa o Anunciador pítico (Pythios), era filho de Menesarco e de Partêmis, ou Pythaia. Tendo esta, certa vez, levado o filho à Pítia de Delfos, esta sacerdotiza vaticinou-lhe um grande papel, o que levou a mãe a devotar-se com o máximo carinho à sua educação. Consta que Pitágoras, que desde criança se revelava prodigioso, teve como primeiros mestres a Hermodamas de Samos até os 18 anos, depois Ferécides de Siros, tendo sido, posteriormente, aluno de Tales, em Mileto, e ouvinte das conferências de Anaximandro. Foi depois discípulo de Sonchi, um sacerdote egípcio, tendo, também, conhecido Zaratos, o assírio Zaratustra ou Zoroastro, em Babilônia, quando de sua estada nessa grande metrópole da antiguidade.
Conta-nos, ainda, a lenda que o hierofante Adonai aconselhou-o a ir ao Egito, recomendado ao faraó Amom, onde, afirma-se, foi iniciado nos mistérios egípcios, nos santuários de Mênfis, Dióspolis e Heliópolis. Afirma-se, ademais, que realizou um retiro no Monte Carmelo e na Caldéia, quando foi feito prisioneiro pelas tropas de Cambísis, tendo sido daí conduzido para a Babilônia. Foi em sua viagem a essa metrópole da Antiguidade, que conheceu o pensamento das antigas religiões do Oriente, e frequentou as aulas ministradas por famosos mestres de então.
Observa-se, porém, em todas as fontes que nos relatam a vida de Pitágoras, que este realizou, em sua juventude, inúmeras viagens e peregrinações, tendo voltado para Samos já com a idade de 56 anos. Suas lições atraíram-lhe muitos discípulos, mas provocaram, também, a inimizade de Policrates, então tirano de Samos, o que fez o sábio exilar-se na Magna Grécia (Itália), onde, em Crotona, fundou o seu famoso Instituto.
Antes de sua localização na Magna Grécia, relata-se que esteve em contato com os órficos, já em decadência, no Peloponeso, tendo então conhecido a famosa sacerdotiza Teocléia de Delfos.
Mas é na Itália que desempenha um papel extraordinário, porque aí é que funda o seu famoso Instituto, o qual, combatido pelos democratas de então, foi finalmente destruído, contando-nos a lenda que, em seu incêndio, segundo uns, pereceu Pitágoras, junto com os seus mais amados discípulos, enquanto outros afirmam que conseguiu fugir, tomando um rumo que permaneceu ignorado.
Segundo as melhores fontes, Pitágoras deve ter falecido entre 510 e 480. A sociedade pitagórica continuou após a sua morte, tendo desaparecido quando do famoso massacre de Metaponto, depois da derrota da liga crotoniata.
"Com ordem e com tempo encontra-se o segredo de fazer tudo e tudo fazer bem". (Pitágoras)

O Pitagorismo   

Durante o século VI a.C. verificou-se, em algumas regiões do mundo grego, uma revivescência da vida religiosa. Os historiadores mostram que um dos fatores concorreram para esse fenômeno foi a linha política adotada, em geral, pelos tiranos, para garantir seu papel de líderes populares e para enfraquecer a antiga aristocracia - que se supunha descendente dos deuses protetores das polis, das divindades "oficiais" -, os tiranos favoreciam a expansão de cultos populares ou estrangeiros.

"Ajuda teus semelhantes a levantar sua carga, mas não a carregues". (Pitágoras)

A Pátria Estelar

Dentre as religiões de mistério, de caráter iniciático, uma teve enorme difusão: o culto de Dioniso, originário da Trácia, e que passou a constituir o núcleo da religião órfica. O orfismo - de Orfeu, que primeiro teria recebido a revelação de certos mistérios e os teria confiado a iniciados sob a forma de poemas musicais - era uma religião essencialmente esotérica. Os órficos acreditavam na imortalidade da alma e na metempsicose, ou seja, na transmigração da alma através de vários corpos, a fim de efetivar sua purificação. A alma aspiraria, por sua própria natureza, a retornar à sua pátria celeste, às estrelas, de onde caíra. Para libertar-se, porém, do ciclo das reincarnações, o homem necessitaria da ajuda de Dioniso, deus libertador que completava a libertação preparada pelas práticas catárticas (entre as quais se incluía a abstinência de certos alimentos). A religião órfica pressupunha, portanto, uma distinção - não só de natureza como também de valor - entre a alma ignea e imortal e os corpos pereciveis através dos quais ela realizava sua purificação.

"O que fala, semeia - o que escuta, recolhe". (Pitágoras)

Salvação pela Matemática

Pitágoras de Samos, que se tornou figura legendária na própria Antiguidade, teria sido antes de mais nada um reformador religioso, pois realizou uma modificação fundamental na doutrina órfica, transformando o sentido da "via de salvação"; em lugar do deus Dioniso colocou a matemática.
Da vida de Pitágoras quase nada pode ser afirmado com certeza, já que ela foi objeto de uma série de relatos tardios e fantasiosos, como os referentes às suas viagens e a seus contatos com culturas orientais. Parece certo, contudo, que ele teria deixado Samos (na Jônia), na segunda metade do século VI a.C. fugindo à tirania de Polícrates, transferindo-se para Crotona (na Magna Grécia) fundou uma confraria científico-religiosa.
Pitágoras criou um sistema global de doutrinas, cuja finalidade era descobrir a harmonia que preside à constituição do cosmo e traçar, de acordo com ela, as regras da vida individual e do governo das cidades. Partindo de ideias órficas, o pitagorismo pressupunha uma identidade fundamental, de natureza divina, entre todos os seres. Essa similitude profunda entre os vários existentes era sentida pelo homem sob a forma de um "acordo com a natureza", que, sobretudo, depois do pitagórico Filolau, será qualificada como uma "harmonia", garantida pela presença do divino em tudo. Natural que dentro de tal concepção - vista por alguns autores como o fundamento do "mito helênico" - o mal seja entendido sempre como desarmonia.

A grande novidade introduzida certamente pelo próprio Pitágoras na religiosidade órfica foi a transformação do processo de libertação da alma num esforço puramente humano, porque basicamente intelectual. A purificação resultaria do trabalho intelectual, que descobre a estrutura numérica das coisas e torna, assim, a alma semelhante ao cosmo, entendido como unidade harmônica, sustentada pela ordem e pela proporção, e que se manifesta como beleza.
Pitágoras teria chegado à concepção de que todas as coisas são números através inclusive de uma observação no campo musical: verificou no monocórdio que o som produzido varia de acordo com a extensão da corda sonora. Ou seja, descobriu que há uma dependência do som em relação à extensão, da música, (tão importante como propiciadora de vivências religiosas estáticas) em relação à matemática.

"Todas as coisas são números". (Pitágoras)

Em Todas as Coisas, o Número

A partir do próprio Pitágoras, o pitagorismo primitivo concebe a extensão como descontínua: constituída por unidades indivisíveis e separadas por um "intervalo". Segundo a cosmologia pitagórica - que descreve o cenário cósmico, onde se processa a purificação da alma - esse "intervalo" resultaria da respiração do universo que, vivo, inalaria o ar infinito (pneuma ápeiron) em que estaria imerso. Mínimo de extensão e mínimo de corpo, as unidades comporiam os números. Estes não seriam, portanto - como virão a ser mais tarde -, meros símbolos a exprimir o valor das grandezas: para os pitagóricos, os números são reais, são essências realizadas (usando-se um vocabulário filosófico posterior), são a própria "alma das coisas", são entidades corpóreas constituídas por unidades contíguas e a prenunciar os átomos de Leucipo e Demócrito. Assim, quando os pitagóricos falam que as coisas imitam os números estariam entendendo essa imitação (mimesis) num sentido realista: as coisas manifestariam externamente a estrutura numérica inerente.
De acordo com essa concepção, os pitagóricos adotaram uma representação figurada dos números, em substituição às representações literais mais arcaicas, usadas pelos gregos e depois pelos romanos. A representação figurada permitia explicitar a lei de composição dos números e torna-se um fator de avanço das investigações matemáticas dos pitagóricos. Os primeiros números, representados figurativamente, bastavam para justificar o que há de essencial no universo: o um é o ponto, mínimo de corpo, unidade de extensão; o dois determina a linha; o três gera a superfície, enquanto o quatro produz o volume. Já por sua própria notação figurativa evidencia-se que a primitiva matemática pitagórica constitui uma aritmo-geometria, a associar intimamente os aspectos numéricos e geométrico, a quantidade e sua expressão espacial.

"Pensem o que quiserem de ti; faze aquilo que te parece justo". (Pitágoras)

O Escândalo dos "Irracionais"

A primitiva concepção pitagórica de número apresentava limitações que logo exigiriam dos próprios pitagóricos tentativas de reformulação. O principal impasse enfrentado por essa aritmo-geometria baseada em inteiros (já que as unidades seriam indivisíveis) foi o levantado pelos números irracionais. Tanto na relação entre certos valores musicais (expressos matematicamente), quanto na base mesma da matemática, surgem grandezas inexprimíveis naquela concepção de número. Assim, a relação entre o lado e a diagonal do quadrado (que é a da hipotenusa do triângulo retângulo isósceles com o cateto) tornava-se "irracional", aquelas linhas não apresentavam "razão comum" ou "comum medida", o que se evidenciava pelo aparecimento na tradução aritmética da relação entre elas, de valores sem possibilidade de determinação exaustiva, como V¯². O "escândalo" dos irracionais manifestava-se no próprio teorema de Pitágoras (o quadrado construído sobre a hipotenusa é igual a soma dos quadrados construídos sobre os catetos). Com efeito, desde que se atribuísse valor 1 ao cateto de um triângulo isósceles, a hipotenusa seria igual a V¯². Ou então, quando se pressupunha que os valores correspondentes à hipotenusa e aos catetos eram números primos entre si, acabava-se por se concluir pelo absurdo de que um deles não era afinal nem par nem ímpar.
 
Apesar desses impasses - e em grande parte por causa deles - o pensamento pitagórico evoluiu e expandiu-se, influenciando praticamente todo o desenvolvimento da ciência e da filosofia gregas. Sua astronomia, estreitamente vinculada à sua religião astral foi o ponto de partida das várias doutrinas que os gregos formulariam, pressupondo o universo harmonicamente constituído por astros que desenvolvem trajetórias, presos a esferas homocêntricas. Essa geometrização do cosmo estava aliada, no pitagorismo, às concepções musicais também desenvolvidas pela escola: separadas por intervalos equivalentes aos intervalos musicais, aquelas esferas produziram, em seu movimento, sons de acorde perfeito. Essa "harmonia das esferas", permanentemente soante, seria a própria tessitura do que o homem considera "silêncio".

"Educai as crianças e não será preciso punir os homens". (Pitágoras)

ZENÃO - Vida, Obras e Pensamento

Zenão floresceu cerca de 464/461 a.C. Nasceu em Eléia (Itália). Ao contrário de Heráclito, interveio na política, dando leis à sua pátria. Tendo conspirado contra a tirania e o tirano (Nearco?), acabou preso, torturado e, por não revelar o nome dos comparsas, perdeu a vida. - Escreveu várias obras em prosa: Discussões, Contra os Físicos, Sobre a Natureza, Explicação Crítica de Empédocles. - Considerado criador da dialética (entendida como argumentação combativa ou erística), Zenão erigiu-se em defensor de seu mestre, Parmênides, contra as críticas dos adversários, principalmente os pitagóricos. Defendeu o ser uno, contínuo e indivisível de Parmênides contra o ser múltiplo, descontínuo e divisível dos pitagóricos.
A característica de Zenão é a dialética. Ele é o mestre da Escola Eleática; nela seu puro pensamento torna-se o movimento do conceito em si mesmo, a alma pura da ciência - é o iniciador da dialética. Pois até agora só vimos nos eleatas a proposição: "O nada não possui realidade, não é, e aquilo que é surgir e desaparecer cai fora". Em Zenão, pelo contrário, também descobrimos tal afirmar e sobressumir daquilo que o contradiz, mas não o vemos, ao mesmo tempo, começar com esta afirmação; é a razão que realiza o começo - ela aponta, tranquila em si mesma, naquilo que é afirmado como sendo sua destruição. Parmênides afirmou: "O universo é imutável, pois na mudança seria posto o não-ser daquilo que é; mas somente é ser, no 'não-ser é' se contradizem sujeito e predicado". Zenão, pelo contrário, diz: "Afirmai vossa mudança: nela enquanto mudança, é o nada para ela, ou ela não é nada". Nisto consistia o movimento determinado, pleno para aquela mudança; Zenão falou e voltou-se contra o movimento como tal ou puro movimento.
Também Zenão era um eleata; é o mais jovem e viveu particularmente em convívio com Parmênides. Este o amava muito e o adotou como filho. Seu pai verdadeiro chamava-se Teleutágoras. Em sua vida não apenas era algo de muito respeito em seu Estado, mas também em geral era célebre e muito respeitado como professor. Platão o lembra: de Atenas e de outros lugares vinham homens a ele para entregar-se à sua formação. Atribuiu-se-lhe orgulhosa auto-suficiência, pelo fato de (exceto sua viagem a Atenas) ter sua residência fixa em Eléia, negando-se a viver por mais tempo na grande e poderosa Atenas, para lá colher fama. Segundo muitas lendas, a fortaleza de sua alma tornou-se célebre pela sua morte. Ela teria salvo um Estado (não se sabe se sua pátria Eléia ou se Sicília) de seu tirano, sacrificando da seguinte maneira sua vida: Teria participado de uma conjuração para derrubar o tirano, tendo, porém, esta sido traída. Quando o tirano, diante de seu povo, o fez torturar de todos os modos, para arrancar-lhe a confissão dos nomes dos outros conjuradores, e ao perguntar pelos inimigos do Estado, Zenão delatou primeiro todos os amigos do tirano como participantes da conjuração, chamando então o tirano mesmo a peste do Estado. Dessa maneira, as poderosas admoestações ou também as torturas horríveis e a morte de Zenão ergueram os cidadãos e levantaram-lhes o ânimo, para caírem sobre o tirano, liquidá-lo e assim libertar-se. De modo violento e furioso de sua reação. Diz-se que ele se postou como se quisesse dizer ainda algo aos ouvidos do tirano, mordendo-lhe, no entanto, a orelha e cerrando os dentes até ter sido trucidado pelos outros. Outros narram que ele teria ferrado os dentes em seu nariz, segurando-o assim. Outros ainda dizem que, tendo suas respostas sido seguidas de enormes torturas, ele cortou a língua com os próprios dentes e a cuspiu no rosto do tirano, para lhe mostrar que dele nada arrancaria; depois disso teria sido triturado num pilão.

1) Segundo seu elemento tético, a filosofia de Zenão é, em seu conteúdo, inteiramente igual à que vimos em Xenófanes e Parmênides, apenas com esta diferença fundamental, que os momentos e as oposições são expressos mais como conceitos e pensamentos. Já em seu elemento tético vemos progresso; ele já está mais avançado no sobressumir das oposições e determinações.

"É impossível", diz ele, "que, quando algo é, surja" (ele relaciona isto com a divindade); "pois teria que surgir ou do igual ou do desigual. Ambas as coisas são, porém. impossíveis; pois não se pode atribuir, ao igual, que dele se produza mais do que deve ser produzido já que os iguais devem ter entre si as mesmas determinações." Com a aceitação da igualdade, desaparece a diferença entre o que produz e aquilo que é produzido. "Tampouco pode surgir o desigual do desigual; pois se do mais fraco se originasse o mais forte ou do menor o maior ou do pior o melhor, ou se, inversamente, o pior viesse do melhor, originar-se-ia o não-ser do ente, o que é impossível; portanto. Deus é eterno." Isto foi denominado panteísmo (spinozismo), que repousaria sobre a proposição ex nihilo nihil fit. Em Xenófanes e Parmênides tínhamos ser e nada. Do nada é imediatamente nada, do ser, ser; mas assim já é. Ser é a igualdade expressa como imediata; pelo contrário, igualdade como igualdade pressupõe o movimento do pensamento e a mediação, a reflexão em si. Ser e não-ser situam-se assim, lado a lado, sem que sua unidade seja concebida como a de diferentes; estes diferentes não são expressos como diferentes. Em Zenão a desigualdade é o outro membro em oposição a igualdade.
 
Em seguida, é demonstrada a unidade de Deus: "Se Deus é o mais poderoso de tudo, então Ihe é próprio que seja um; pois, na medida em que dele houvesse dois ou ainda mais, ele não teria poder sobre eles; mas enquanto Ihe faltasse o poder sobre os outros não seria Deus. Se, portanto, houvesse mais deuses, eles seriam mais poderosos e mais fracos um em face do outro; não seriam, por conseguinte, deuses; pois faz parte da natureza de Deus não ter acima de si nada mais poderoso; pois o igual não é nem pior nem melhor que o igual - ou não se distingue dele. Se, portanto, Deus é e se ele é de tal natureza, então só há um Deus; não seria capaz de tudo o que quisesse, se houvesse mais deuses".
"Sendo um, é em toda parte igual, ouve, vê e possui também, em toda parte, os outros sentimentos; pois, não fosse assim, as partes de Deus dominariam uma sobre a outra" (uma estaria onde a outra não está, reprimi-la-ia; uma parte teria determinações que faltariam às outras), "o que é impossível. Como Deus é em toda parte igual, possui ele a forma esférica; pois não é aqui assim, em outra parte de outro modo, mas em toda parte igual." Diz ainda: "Já que é eterno, um e esférico, ele nao é nem infinito (ilimitado) nem limitado. Pois, a) ilimitado é o não-ente; pois este não possui nem meio, nem começo, nem fim, nem uma parte - tal coisa é o ilimitado. Como, porém, é o não-ente, assim não é o ente. 0 ilimitado é o indeterminado, o negativo; seria o não-ente, a supressão do ser, e é assim, ele mesmo, determinado como algo unilateral. b) Dar-se-ia delimitação mútua, se houvesse diversos; mas. como é apenas um, ele não é limitado." Assim Zenão também mostra: "O um não se move, nem é imóvel. Pois imóvel é a) o não-ente" (no não-ente não se realiza nenhum movimento; com a falta de movimento estaria posto o não-ser ou o vazio; o imóvel é negativo; "pois para ele nenhuma outra coisa advém, nem vai para coisa alguma. b) Movido, porém, somente é o múltiplo; pois um dever-se-ia mover para o outro." Movido só é o que é diferente de outro; pressupõe-se uma multiplicidade de tempo, espaço. "O um, portanto, não está nem em repouso nem se movimenta; pois não se parece nem com o não-ente nem com o múltiplo. Em tudo isto, Deus se comporta assim; pois ele é eterno e um, idêntico a si mesmo e esférico nem ilimitado nem limitado, nem em repouso nem em movimento." Do fato de nada poder provir, quer do igual quer do desigual, Aristóteles conclui que, ou nada existe fora de Deus, ou tudo é eterno.
Vemos, em tal tipo de raciocínio, uma dialética que se pode denominar de raciocínio metafísico. 0 princípio da identidade Ihe serve de fundamento: "O nada é igual ao nada, não passa para o ser, nem vice-versa; do igual, portanto, nada pode provir". O ser, o um da Escola Eleática é apenas esta abstração, este afundar-se no abismo da identidade do entendimento. Este modo, o mais antigo, de argumentar é ainda, até o dia de hoje, válido, por exemplo, nas assim chamadas demonstrações da unidade de Deus. A isto vemos ligada uma outra espécie de raciocínio metafísico: são feitas pressuposições, por exemplo. o poder de Deus, raciocinando-se, a partir daí. negando-se predicados. Esta a maneira comum de nós raciocinarmos. No que se refere às determinações deve-se observar que elas, enquanto algo negativo, devem ser mantidas afastadas do ser positivo e apenas real.
Para ir a esta abstração fazemos um outro caminho, não utilizamos a dialética que usa a Escola Eleática; nosso caminho é trivial e mais óbvio. Nós dizemos que Deus é imutável, a mudança apenas se atribui às coisas finitas (isto como que sendo uma proposição empírica); de um lado temos, assim, as coisas finitas e a mudança; de outro lado, a imutabilidade nesta unidade abstrata e absoluta consigo mesma. É a mesma separação; só que nós deixamos valer como ser também o finito. o que os eleatas desprezaram. Ou também partimos das coisas finitas para as espécies, gêneros, e deixamos, passo a passo, o negativo de lado; e o gênero mais alto é então Deus, que, enquanto o ser supremo, é apenas afirmativamente, mas sem qualquer determinação. Ou passamos do finito para o infinito, dizendo que o finito, enquanto limitado, deve ter seu fundamento no infinito. Em todas estas formas que nos são bem familiares está contida a mesma dificuldade da questão que se levanta no que diz respeito ao pensamento eleático: De onde vem a determinação, como deve ela ser concebida, tanto no um mesmo, que deixa o finito de lado, como no modo como o infinito se manifesta no finito? Os eleatas distinguem-se, em seu pensamento, de nosso modo de refletir comum, pelo fato de terem posto mãos à obra de maneira especulativa - o especulativo tem lugar no fato de afirmarem que a mudança não é - e pelo fato de, desta maneira. terem mostrado que, assim como se pressupõe o ser, a mudança é em si contradição, algo incompreensível: pois do um, do ser, está afastada a determinação do negativo, da multiplicidade. Enquanto nós deixamos valer, em nossa representação, a realidade do mundo finito, os eleatas foram mais consequentes, avançando até a afirmação de que só o um é e de que o negativo não é - consequência que, ainda que deva ser por nós admirada, é, contudo, não menos, uma grande abstração
Particularmente digno de nota é o fato de que. em Zenão, já há a consciência mais alta de que uma determinação é negada de que esta negação mesma é novamente uma determinação, devendo então, na negação absoluta. não ser negada apenas uma determinação, mas ambas as negações que se opõem. Antes é negado o movimento e a essência absoluta aparece como em repouso; ou é negada enquanto finita. e então é puramente infinita. Isto, porém, também é determinação, também ela finita. Do mesmo modo, também o ser em oposição ao não-ser é uma determinação.
Sendo a essência absoluta posta como o um ou o ser, ela é posta através da negação; é determinada como o negativo e, assim, como o nada, e ao nada se atribuem os mesmos predicados que ao ser: o puro ser não é movimento, é o nada do movimento. Isto pressentiu Zenão; e, porque previu que o ser é o oposto do nada, assim negou ele do um o que deveria dizer-se do nada. Mas o mesmo deveria acontecer com o resto. 0 um é o mais poderoso e nisto determinado propriamente como o destruir absoluto; pois o poder é também o não-ser absoluto de um outro, o vazio. 0 um é igualmente o não dos muitos: tanto no nada como no um, a multiplicidade está sobressumida. Esta dialética mais alta encontramo-la em Platão, em seu Parmênides. Aqui isto surge apenas referido a algumas determinações não com referência às determinações do um e do ser mesmo.
A consciência mais alta é a consciência sobre a nulidade do ser enquanto algo determinado em face do nada; isto se dá, parte em Heráclito e, então, nos sofistas; com isto não permanece verdade alguma, ser-em-si, mas apenas o ser para o outro é, ou seja, a certeza da consciência individual e a certeza como refutação - o lado negativo da dialética.

2) Já lembramos que também encontramos a verdadeira dialética objetiva igualmente em Zenão.
Zenão possui o aspecto importante de ser o descobridor da dialética: se não é ele propriamente, no que vimos, o descobridor da dialética em sua plenitude, ao menos é quem está em seu começo; pois ele nega predicados que se opõem. Portanto, Xenófanes, Parmênides, Zenão põem como fundamento a proposição: Nada é nada, o nada não é, ou o igual (como diz Melisso) é a essência; isto é, eles afirmam um dos predicados que se opõem, como a essência. Eles põem-no fixamente; onde encontram, numa determinação, o oposto, suprimem com isto essa determinação. Mas, assim, esta somente se suprime através de um outro, através de minha afirmação, através da distinção que faço de que um lado é o verdadeiro, o outro sem importância (nulo) (parte-se de uma determinada proposição); sua nulidade não aparece nela mesma, não de maneira que se suprima a si mesma, isto é, que contenha em si uma contradição. Como movimento: Verifiquei algo e vejo que é o nulo; demonstrei isto, segundo o pressuposto, no movimento; conclui-se, portanto, que ele é o nulo. Mas uma outra consciência não verifica aquilo; eu declaro isto como imediatamente verdadeiro; a outra consciência tem razão em afirmar uma outra: coisa como imediatamente verdadeira, por exemplo, o movimento. Como sempre é o caso quando um sistema filosófico refuta o outro, o primeiro sistema é posto como fundamento e a partir dele se entra em debate contra o outro. Assim a coisa é facilitada: "O outro sistema não possui verdade, porque não concorda com o meu"; mas o outro sistema tem o mesmo direito de dizer assim. Eu não devo demonstrar sua não-verdade através de um outro, mas em si mesmo. De nada ajuda demonstrar meu sistema ou minha proposição e então concluir: portanto, o sistema que se opõe está errado; para esta proposição aquela sempre parecerá algo de estranho, algo exterior. O falso não deve ser apresentado corno falso porque o oposto é verdadeiro, mas em si mesmo.
Esta convicção racional vemos despertar em Zenão. No Parmênides de Platão (127-128), esta dialética é muito bem descrita. Platão fá-lo falar assim sobre isto: faz Sócrates dizer que Zenão afirma em seu escrito o mesmo que Parmênides, isto é, que tudo é um: mas que nos procura enganar com uma expressão, procurando dar a impressão de que está dizendo algo de novo. Sócrates diz que Parmênides afirma em seu poema que tudo é um: Zenão, pelo contrário, que o múltiplo não é. Zenão responde que escreveu isto, antes contra aqueles que procuram tornar ridícula (komodeiñ) a proposição de Parmênides, quando mostram quantas coisas ridículas e que contradições contra si mesmos resultam de suas afirmações. Diz que combateu aqueles que afirmam o ser do múltiplo, para demonstrar que disto resultariam muito mais coisas discordantes que da proposição de Parmênides.
Isto é a determinação mais exata da dialética objetiva. Nesta dialética não vemos afirmar-se o pensamento simples para si mesmo, mas, fortalecido, levar a guerra para território inimigo. Este lado possui a dialética na consciência de Zenão; mas ela deve ser considerada também de seu lado positivo. Conforme a representação corrente da ciência, em que proposições são resultado da demonstração, é a demonstração o movimento da convicção, ligação através de mediação. A dialética como tal é a) dialética exterior, este movimento distinto do compreender deste movimento; b) não é um movimento apenas de nossa intuição, mas a partir da coisa mesma, isto é, demonstrada para o puro conceito do conteúdo. Aquela dialética é uma mania de contemplar objetos, de neles apontar razões e aspectos, através dos quais se torna vacilante o que em geral vale como firme. Podem ser então razões bem exteriores. A outra dialética, porém, é a consideração imanente do objeto: ele é tomado para si, sem pressuposições, ideia, dever-ser, não segundo circunstâncias exteriores, leis, razões. A gente se põe inteiramente dentro da coisa, considera o objeto em si mesmo e o toma segundo as determinações que possui. Nesta consideração, ele se demonstra a si mesmo, mostra que possui determinações opostas, que se suprime (sobressume): esta dialética encontramos precipuamente junto aos antigos. A dialética subjetiva, que raciocina, baseando-se em razões exteriores, torna-se norma quando se concede: "No correto está o incorreto e no falso também o verdadeiro". A dialética verdadeira não deixa nada sobrando em seu objeto, de tal modo que apresentaria falhas apenas de um lado; mas ele se dissolve segundo sua natureza inteira. 0 resultado desta dialética é zero, o negativo; o afirmativo que nela se esconde ainda não aparece. A esta dialética verdadeira pode juntar-se o que os eleatas fizeram. Mas junto a eles ainda não vingou a determinação, a essência do com-preender; ficaram parados na ideia de que através da contradição o objeto se torna nulo.
A dialética da matéria de Zenão não foi até hoje ainda refutada; não se conseguiu ainda passar além dela e a questão fica esquecida no indeterminado. "Ele demonstra que, quando é o múltiplo, então é grande e pequeno: grande, assim o múltiplo é infinito, segundo a grandeza" (tò mégethos), deve-se ultrapassar a multiplicidade, enquanto limite indiferente, para passar para o infinito; o que é infinito não é “mais grande”, nem “mais múltiplo”; infinito é o negativo do múltiplo; "pequeno, de maneira que não tem mais grandeza", átomos, o não-ente. "Aqui mostra ele que o que não tem tamanho, nem espessura, nem massa (ónkos), também não é. Pois se fosse acrescentado a um outro não aumentaria a este; pois, se não tem tamanho e grandeza, nada poderia acrescentar ao tamanho do outro; assim o que foi acrescentado não é nada. O mesmo aconteceria ao ser retirado; o outro não seria por isso diminuído; não é, portanto, nada".
Os aspectos mais exatos desta dialética nos conservou Aristóteles; o movimento foi tratado particularmente por Zenão, de maneira objetiva e dialética. Mas o caráter exaustivo que vemos no Parmênides de Platão não Ihe corresponde. Vemos desaparecer para a consciência de Zenão o simples pensamento imóvel para tornar-se ele mesmo movimento pensante; na medida em que combate o movimento sensível, ele o dá a si. O fato de a dialética ter tido atraída sua atenção primeiro para o movimento é a razão de a dialética mesma ser este movimento ou o movimento mesmo ser a dialética de todo ente. A coisa tem. enquanto se move, sua dialética mesma em si, e o movimento é: tornar-se outro, sobressumir-se. Aristóteles afirma que Zenão teria negado o movimento pelo fato de possuir contradição interna. Mas não se deve entender isto assim como se o movimento não fosse - como nós dizemos, não há elefantes, não há rinocerontes. Que o movimento existe, que ele é fenômeno, isto nem está em questão; o movimento possui certeza sensível, como existem elefantes. Neste sentido, Zenão nem teve a idéia de negar o movimento. Pelo contrário, seu questionar vai em busca de sua verdade; mas o movimento é não verdadeiro, pois ele é contradição. Com isto quer ele dizer que não se Ihe deveria atribuir verdadeiro ser. Zenão mostra então que a representação do movimento contém uma contradição e apresenta quatro modos de refutação do movimento. Os argumentos repousam sobre a infinita divisão do espaço e do tempo.
 
1)
Primeira forma: Zenão diz que o movimento não tem verdade alguma, porque o movido deveria atingir primeiro a metade do espaço como sua meta. Aristóteles diz isto de maneira tão breve por ter tratado antes amplamente o objeto e tê-lo exposto detidamente. Isto deve ser compreendido de maneira mais universal; é pressuposta a continuidade do espaço. O que se move deve atingir uma determinada meta; este caminho é um todo. Para percorrer o todo, o que é movido deve antes ter percorrido a metade. Agora a meta é o fim desta metade. Mas esta metade é novamente um todo, este espaço possui assim uma metade; deve, portanto, ter atingido antes a metade desta metade, e assim até o infinito. Zenão toca aqui na divisibilidade infinita do espaço. Pelo fato de espaço e tempo serem absolutamente contínuos, nunca se pode parar com a divisão. Cada grandeza - e cada tempo e espaço sempre tem uma grandeza - é novamente divisível em duas metades; estas devem ser percorridas e, mesmo onde colocamos um espaço o menor possível, sempre surge este mesmo estado de coisas. O movimento que seria o percurso destes momentos infinitos nunca termina; portanto, o que é movido nunca atinge sua meta.
É conhecido como Diógenes de Sínope, o Cínico, refutou tais provas da contradição do movimento, de maneira muito simples; levantou-se em silêncio e caminhou de cá para lá - ele as refutou pela ação. Mas a estória é continuada também assim: a um aluno que se contentara com esta refutação, Diógenes o castigou pela simples razão de que, se o professor havia discutido com argumentos, ele só poderia deixar valer uma refutação também com argumentos. Da mesma maneira a gente não deve satisfazer-se com a certeza sensível; mas é preciso compreender.
Vemos aqui desenvolvido o infinito aparecer. Primeiro em sua contradição - uma consciência dele. O movimento, o puro aparecer em si mesmo é o objeto e surge como um pensado, um posto segundo sua essência, a saber, (consideramos a forma dos momentos) em suas diferenças da pura igualdade consigo mesmo e da pura negatividade - do ponto contra a continuidade. Na nossa representação não parece contraditório que o ponto no espaço ou, do mesmo modo, o momento no tempo contínuo seja posto ou que seja afirmado o agora do tempo como uma continuidade, uma duração (dia, ano); mas seu conceito contradiz-se a si mesmo. A igualdade consigo mesmo, a continuidade é absoluta homogeneidade, é eliminação de toda diferença, de todo negativo, de todo ser para si; o ponto é, pelo contrário, o puro ser para si, o absoluto distinguir-se e a supressão de toda igualdade e homogeneidade com outro. Mas estes dois estão postos numa unidade, no espaço e no tempo, espaço e tempo, portanto, a contradição. O mais fácil é mostrá-la no movimento; pois, no movimento, o oposto é também posto para a representação. Pois o movimento e a essência, a realidade do tempo e do espaço; e, enquanto esta aparece, é posta, também é posto já o fenômeno da contradição. É para esta contradição que Zenão chama a atenção.
É a continuidade de um espaço, é o positivo que é posto; e nele o limite que o divide ao meio. Mas o limite que divide ao meio não é limite absoluto ou em si e para si, mas é algo limitado, é novamente continuidade. Mas esta continuidade também novamente nada é de absoluto, mas põe o oposto nela - limite que divide ao meio; mas com isto novamente não é posto o limite da continuidade, a metade ainda é continuidade e assim até o infinito. Até o infinito - com isto nos representamos um além, que não pode ser atingido, fora da representação que não pode atingi-lo. É um inacabado ultrapassar, mas presente no conceito - um passar além de uma determinação oposta para outra, de continuidade para negatividade, de negatividade para continuidade; elas estão diante de nós. Destes dois momentos pode, no processo, ser afirmado um deles como o essencial. Primeiro Zenão põe o progresso contínuo de maneira tal que não se atinge nada igual a si, um determinado - nenhum espaço limitado, portanto, continuidade; ou Zenão afirma o avanço neste limitar.
A resposta geral e a solução de Aristóteles é que espaço e tempo não são divididos infinitamente, mas apenas divisíveis. Parece, entretanto, que, enquanto são divisíveis (potentia, dynámei, não actu, energeía), também devem estar efetivamente divididos infinitamente; pois, de outro modo, não poderiam ser divididos ao infinito - uma resposta geral para a representação. 
 
2)
"O segundo argumento" (que também é pressuposição da continuidade e posição da divisão) chama-se "argumento de Aquiles", o homem dos pés velozes. Os antigos gostavam de vestir as dificuldades com representações sensíveis. De dois corpos que se movem numa direção, dos quais um está na frente e outro o segue numa determinada distância, movendo-se, porém, mais rapidamente que aquele, sabemos que o segundo alcançará o primeiro. Zenão, porém, diz: "O mais vagaroso nunca poderá ser alcançado nem mesmo pelo mais rápido"; e isto ele demonstra assim: o que segue necessita de uma determinada parte do tempo para "alcançar o lugar de onde partiu o que está em fuga", no começo desta determinada parte do tempo. Durante o tempo em que o segundo atingiu o ponto onde o primeiro se achava, este já avançou para mais longe, deixou atrás de si novo espaço que o segundo novamente deverá percorrer numa parte desta parte do tempo; e assim se vai até o infinito. B percorre numa hora duas milhas, A, no mesmo tempo, uma milha. Se estão separados entre si por duas milhas, então B chegou numa hora onde A estava no começo da hora. Mas o espaço (uma milha), vencido por A, será percorrido por B na metade de uma hora, e assim ao infinito. Desta maneira, o movimento mais rápido nada ajuda ao segundo corpo para percorrer o espaço intermediário que o separa do outro; o tempo de que necessita, também o mais vagaroso sempre tem à sua disposição, e "com isto ele já sempre conseguiu uma vantagem".
Aristóteles, que trata disto, diz brevemente sobre o mesmo: "Este argumento representa a mesma divisão infinita'' ou o infinito ser dividido através do movimento. "É algo não verdadeiro; pois o rápido, contudo, alcançará o vagaroso, se Ihe for permitido ultrapassar o limite, o limitado." A resposta é correta e contém tudo. Nesta representação são admitidos dois pontos de tempo e dois de espaço que estão separados entre si - isto é, são limitados, são limites um para o outro. Se, ao contrário, se admite que tempo e espaço são contínuos, de maneira tal que dois pontos do tempo ou dois pontos de espaço se relacionam entre si de maneira contínua, então eles são, igualmente, na medida em que são dois também não dois - são idênticos.
Zenão apenas faz valer o limite, a divisão, o momento da separação de espaço e tempo em sua total determinação; por isto surge a contradição. O que gera a dificuldade sempre é o pensamento, porque separa em sua distinção aqueles momentos de um objeto, na realidade unidos. 0 pensamento produziu a queda original, quando o homem comeu da árvore do conhecimento do bem e do mal; mas também ressarce este prejuízo. É uma dificuldade superar o pensamento e é somente ele que causa esta dificuldade.
 
3)
"O terceiro argumento" tem a forma que Zenão descreve assim: "A flecha em voo repousa", e isto porque "o que se move sempre está no mesmo agora" e no aqui igual a si mesmo, no "não-distinguível" (en tõ nyn, katà tò íson); ele está aqui, e aqui e aqui. Assim que dizemos que sempre é o mesmo; a isto, porém, não chamamos movimento, mas repouso: o que sempre está no aqui e agora, repousa. Ou deve-se dizer da flecha que sempre está no mesmo espaço e no mesmo tempo; não consegue ultrapassar seu espaço, não conquista um outro espaço, isto é, um espaço maior ou menor. Aqui o tornar-se outro foi sobressumido; o ser limitado é posto como tal, mas o limitar é, contudo, um momento. No aqui agora como tais, não há diferença. No espaço, um ponto é tão bem um aqui como o outro, isto aqui e isto aqui e mais um outro, etc.; e, contudo, o aqui é sempre o mesmo aqui; não são distintos entre si. A continuidade, a igualdade do aqui e afirmada aqui contra a opinião da diferença. Cada lugar é lugar diferente - portanto, o mesmo; a diferença é apenas aparente. Não é neste estado de coisas, mas no mundo do espírito que se manifesta a verdadeira e objetiva diferença.
Isto acontece também na mecânica: pergunta-se qual se move de dois corpos. Para determinar qual deles se move é preciso mais de dois lugares, ao menos três. Mas uma coisa é correta: o movimento é absolutamente relativo; se, no espaço absoluto, por exemplo, o olho repousa ou se move, é inteiramente o mesmo. Ou, conforme uma proposição de Newton: se dois corpos giram, em círculo, um em torno do outro, surge a pergunta se um repousa ou se ambos se movem. Newton quer decidir isto por uma circunstância exterior, os fios estendidos (tensio filorum). Se num navio caminho na direção oposta da direção em que se move o navio, o mover-me é movimento com relação ao navio, mas repouso com relação a outra coisa.
Nos dois primeiros argumentos a continuidade no avançar é o que predomina: não existe limite absoluto, nem espaço limitado, mas apenas continuidade absoluta, transgredir todos os limites. No argumento agora em questão é retido o aspecto inverso, a saber, o absoluto ser-limitado, a interrupção da continuidade, nenhuma passagem para outro. Sobre este terceiro argumento diz Aristóteles que ele se origina do fato de se aceitar que o tempo consiste de "agoras"; pois, se não se concede isto, não se pode tirar a conclusão a que Zenão chegou.
 
4) "O quarto argumento" e tomado de corpos iguais que se movem no estádio ao lado de um igual, com velocidade igual, um a partir do fim do estádio, o outro a partir do meio, um em direção do outro; disto se deveria concluir que a metade do tempo é igual ao dobro. O erro da conclusão consiste no fato de admitir que, no que se move e no que está em repouso, a coisa percorre uma mesma extensão em tempo igual, com velocidade igual; isto, porém, é falso.
Esta quarta forma diz respeito à contradição no movimento oposto. A oposição possui aqui uma outra forma: a) mas também novamente o universo, o comum, que deve ser atribuído inteiramente a cada parte, enquanto realiza para si apenas uma parte; b) é apenas posto como verdadeiro (como sendo) o que cada parte faz para si. Aqui a distância de um corpo é a soma do afastar se de ambos; é o que acontece quando caminho dois pés para o leste e outro, partindo do mesmo ponto, caminha dois pés para o oeste; assim estamos distantes um do outro quatro pés - aqui ambos devem ser somados; na distância de ambos, ambos são positivos. Ou avancei e retrocedi dois pés - no mesmo ponto; ainda que tenha andado quatro pés, não saí do ponto em que estava. 0 movimento é, portanto, nulo; pois pelo movimento de ir para frente e para trás há aqui coisas opostas que se suprimem.
Isto é então a dialética de Zenão. Ele captou as determinações que contém nossa representação do espaço e tempo; ele as tinha em sua consciência e nelas mostra o aspecto contraditório. As antinomias de Kant nada mais são do que aquilo que Zenão aqui já fizera.
O elemento universal da dialética, a proposição universal da escola eleática foi, portanto: "0 verdadeiro é apenas o um, todo o resto é não-verdadeiro"; como a filosofia kantiana chegou ao resultado: "Conhecemos apenas fenômenos". No todo é o mesmo princípio: "O conteúdo da consciência é apenas um fenômeno, nada verdadeiro"; mas nisto também reside uma diferença. Pois Zenão e os Eleatas afirmaram sua proposição com a seguinte significação: "O mundo sensível é em si mesmo apenas mundo fenomenal, com suas formas infinitamente diversas - este lado não possui verdade em si mesmo". Nào é, porém, isto que pensa Kant. Ele afirma: Voltando-se para o mundo, quando o pensamento se dirige para o mundo exterior (para o pensamento também o mundo dado no interior é algo exterior), voltando-se para ele, fazemos dele um fenômeno; é a atividade de nosso pensamento que atribui ao exterior tantas determinações: o sensível, determinações da reflexão, etc. Só nosso conhecimento é fenômeno, o mundo é em si absolutamente verdadeiro; só nossa aplicação, nosso acréscimo o arruína para nós; o que acrescentamos, nada vale. O mundo torna-se não-verdadeiro pelo fato de Ihe jogarmos em cima uma massa de determinações. Isto é então a grande diferença. Este conteúdo também é nulo em Zenão; mas, em Kant, porque é obra nossa. Em Kant é o elemento espiritual que arruína o mundo; segundo Zenão, é o mundo, o que aparece em si que é não-verdadeiro. Segundo Kant, é nosso pensar, a atividade de nosso espírito o elemento mau - é uma enorme humildade do espírito não ter confiança no conhecimento. Na Bíblia diz Cristo: "Pois não sois melhores que os pardais?" Nós o somos enquanto pensamos - enquanto seres sensíveis, tão bons ou tão maus como os pardais. O sentido da dialética de Zenão possui maior objetividade que esta dialética moderna. A dialética de Zenão ainda se conteve nos limites da metafísica: mais tarde, com os sofistas, tornou se universal.
De sua vida sabemos poucas coisas seguras. mas muitas lendas. Viagens extraordinárias, a ruína material, as honras que recebeu de seus concidadãos, sua solidão, seu grande poder de trabalho. Uma tradição tardia afirma que ele ria de tudo...

Demócrito e Leucipo partem do eleatismo. Mas o ponto de partida de Demócrito é acreditar na realidade do movimento porque o pensamento é um movimento. Esse é seu ponto de ataque: o movimento existe porque eu penso e o pensamento tem realidade. Mas se há movimento deve haver um espaço vazio, o que equivale a dizer que o não-ser é tão real quanto o ser. Se o espaço é absolutamente pleno, não pode haver movimento. Com efeito: 1) o movimento espacial só pode ter lugar no vazio, pois o pleno não pode acolher em si nada que lhe seja heterogêneo; se dois corpos pudessem ocupar o mesmo lugar no espaço, poderia haver uma infinidade deles, pois o menor poderia acolher em si o maior; 2) a rarefação e a condensação só se explicam pelo espaço vazio; 3) o crescimento só se explica porque o alimento penetra nos interstícios do corpo; 
4) Em um vaso cheio de cinza pode-se ainda derramar tanta água quanta se ele estivesse vazio, a cinza desaparece nos interstícios vazios da água. O não ser é, portanto, também o pleno, nastón (de nasso, ou aperto), o stereón. O pleno é aquilo que não contém nenhum Kenón. Se toda grandeza fosse divisível ao infinito, não haveria mais nenhuma grandeza, não haveria mais ser. Se deve subsistir um pleno, isto é, um ser, é preciso que a divisão não possa ir ao infinito. Mas o movimento demonstra o ser, tanto quanto o não-ser. Se somente o não ser existisse, não haveria movimento. O que resta são os átomos. O ser é a unidade indivisível.
Mas, se esses seres devem agir uns sobre os outros pelo choque, é preciso que sejam de natureza idêntica. Demócrito afirma, portanto, como Pitágoras, que o ser deve ser semelhante a si mesmo em todos os pontos. O ser não pertence mais a um ponto do que a outro. Se um átomo fosse o que o outro não é, haveria um não-ser, o que é uma contradição. Somente nossos sentidos nos mostram coisas qualitativamente diferentes. São chamadas também idéai ou skhémata. Todas as qualidades são nómo, os seres só diferem pela quantidade. É preciso, pois, remeter todas as qualidades a diferenças quantitativas. Elas só se distinguem pela forma (rhysmós, skhéma), pela ordem (diathigé, táxis), peia posição (tropé, thésis). A difere de N pela forma, AN de NA pela ordem, Z de N pela posição. A principal diferença está na forma, que indica diferença de grandeza e de peso. O peso pertence a cada corpo (como medida de todas as quantidades). Como todos os seres são da mesma natureza, o peso deve pertencer igualmente a todos, isto é, à mesma massa, o mesmo peso. O ser, portanto, é definido como pleno, dotado de uma forma, pesado; os corpos são idênticos a esses predicados. Temos aqui a distinção que reaparece em Locke: as qualidades primárias pertencem às coisas em si mesmas, fora de nossa representação; não se pode fazer abstração delas; são: a extensão, a impermeabilidade, a forma, o número. Todas as outras qualidades são secundárias, produzidas pela ação das qualidades primárias sobre os órgãos de nossos sentidos, dos quais são apenas as impressões: cor, som, gosto, odor, dureza, moleza, polido, rugoso, etc. Pode-se, portanto, fazer abstração da natureza dos corpos na medida em que é apenas a ação dos nervos sobre os órgãos sensoriais.
Uma coisa nasce quando se produz um certo agrupamento de átomos; desaparece quando esse grupo se desfaz, muda quando muda a situação ou a disposição desse grupo ou quando uma parte é substituída por outra. Cresce quando lhe são acrescentados novos átomos. Toda ação de uma coisa sobre outra se produz pelo choque dos átomos; se há separação no espaço, recorre-se à teoria das aporrhoaí. Percebe-se, pois, que Empédocles foi utilizado a fundo, pois este havia discernido o dualismo do movimento em Anaxágoras e recorrido à ação mágica. Demócrito adota uma posição adversa. Anaxágoras reconhecia quatro elementos; Demócrito esforçou-se por caracterizá-los a partir de seus átomos da mesma natureza. O fogo é feito de átomos pequenos e redondos; nos outros elementos estão misturados átomos diversos; os elementos distinguem-se apenas pela grandeza de suas partes. É por isso que a água, a terra e o ar podem nascer um do outro por dissociação.
Demócrito pensa, com Empédocles, que somente o semelhante age sobre o semelhante. A teoria dos poros e das aporrhoaí preparava a do kenón. O ponto de partida de Demócrito, a realidade do movimento, Ihe é comum com Anaxágoras e Empédocles, provavelmente também sua dedução a partir da realidade do pensamento. Com Anaxágoras, tem em comum os ápeira ou matérias originais. Naturalmente, é antes de tudo de Parmênides que ele procede, é este que domina todas as suas concepções fundamentais. Ele retorna ao primeiro sistema de Parmênides, segundo o qual o mundo se compunha de ser e de não-ser. Toma emprestado de Heráclito a crença absoluta no movimento, a idéia de que todo movimento pressupõe uma contradição e de que o conflito é o pai de todas as coisas.
De todos os sistemas antigos, o de Demócrito é o mais lógico: pressupõe a mais estrita necessidade presente em toda parte, não há nem interrupção brusca nem intervenção estranha no curso natural das coisas. Só então o pensamento se desprende de toda a concepção antropomórfica do mito, tem-se, enfim, uma hipótese cientificamente utilizável; esta hipótese, o materialismo, sempre foi da maior utilidade. É a concepção mais terra-a-terra; parte das qualidades reais da matéria, não procura logo de início, como a hipótese do Nous ou as causas finais de Aristóteles, ultrapassar as forças mais simples. É um grande pensamento reconduzir às manifestações inumeráveis de uma força única, da espécie mais comum, todo esse universo cheio de ordem e de exata finalidade. A matéria que se move segundo as Ieis mais gerais produz, com o auxílio de um mecanismo cego, efeitos que parecem os desígnios de uma sabedoria suprema. Leia-se Kant, História Natural do Céu, p. 48. Rosenkr.: ''Admito que a matéria de todo o universo está em um estado de dispersão geral e faço dele um perfeito caos. Vejo as substâncias se formarem em virtude de leis conhecidas de atração e modificarem, pelo choque, seu movimento. Sinto o prazer de ver um todo bem ordenado nascer sem o auxílio de fábulas arbitrárias, pelo efeito de leis mecânicas bem conhecidas, e esse todo é tão semelhante ao universo que temos sob os olhos que não posso impedir-me de tomá-lo por ele mesmo. Não contestarei então que a teoria de Lucrécio ou de seus predecessores, Epicuro, Leucipo, Demócrito, tem muita analogia com a minha. Parece-me que se poderia dizer aqui, em certo sentido, sem muita imprudência: 'Dai-me a matéria, e eu vos farei um mundo' ".
Eis como Demócrito se representa a formação de um mundo dado: os átomos flutuam, perpetuamente agitados, no espaço infinito; censurou-se desde a Antiguidade esse ponto de partida, dizendo que o mundo teria sido movido e teria nascido por "acaso", concursu quodam fortuito, que o "acaso cego" reinaria entre os materialistas. Esta é uma maneira muito pouco filosófica de se exprimir. O que é preciso dizer é que há uma causalidade sem finalidade, anánke sem intenções. Não há acaso, mas um conjunto de leis rigorosas, embora não racionais.
Demócrito deduz todo movimento do espaço vazio e do peso. Os átomos pesados caem e fazem subir os átomos leves com sua pressão. O movimento original é, bem entendido, vertical, uma queda regular e eterna no infinito do espaço; não se pode indicar sua velocidade, pois, como o espaço é infinito e a queda regular não há medida para essa velocidade...
Como os átomos vieram a operar movimentos laterais, a formar turbilhões na regularidade das combinações que se faziam e se desfaziam? Se tudo caía na mesma velocidade, isso seria equivalente ao repouso absoluto; a velocidade sendo desigual, eles se encontram, alguns são repelidos, produz-se um movimento giratório. Esse turbilhão aproxima, primeiramente, o que é de mesma natureza. Quando os átomos em equilíbrio são tão numerosos que não podem mais se mover, os mais leves são repelidos para o vazio exterior, como se fossem expulsos; os outros permanecem juntos, entrelaçando-se e formando uma espécie de conglomerado... Cada um desses conglomerados que se separam da massa dos corpos primitivos é um mundo; há infinitos mundos. Estes nasceram e perecerão.
Cada vez que nasce um mundo, é que uma massa produzida pelo choque de átomos heterogêneos se separou; as partes mais leves são empurradas para o alto; sob o efeito combinado de forças opostas, a massa entra em rotação, os elementos repelidos para fora depositam-se no exterior como uma película. Esse invólucro vai-se tornando cada vez mais fino, certas partes sendo atraídas para o centro pela rotação. Os átomos centrais formam a terra, aqueles que se elevam formam o céu, o fogo, o ar. Alguns formam massas espessas, mas o ar que os leva é por sua vez levado em um rápido turbilhão; neste eles secam pouco a pouco e se inflamam pela rapidez do movimento (astros). Do mesmo modo, as partículas do corpo terrestre são pouco a pouco arrancadas pelos ventos e pelos astros e se acumulam em água nos ocos. Assim a terra se solidifica. Pouco a pouco ela tomou uma posição fixa no centro do universo; no começo, quando ela era ainda pequena e leve, movia-se de um lado para outro. O sol e a lua, em um estágio antigo de sua formação, foram apanhados pelas massas que se moviam em torno do núcleo terrestre e desse modo viram-se atraídos para nosso sistema sideral.

Nascimento dos seres animados. A essência da alma reside em sua força animadora; é esta que move os seres animados. O pensamento é um movimento. A alma deve, pois, ser feita da matéria mais móvel, de átomos sutis, lisos e arredondados (de fogo). Essas partículas de fogo estão espalhadas por todo o corpo; entre todos os átomos corporais se intercala um átomo de alma. Estes se movem perpetuamente. Por causa de sua sutileza e de sua mobilidade arriscam-se a serem arrancados do corpo pelo ar circundante. É disso que nos preserva a respiração, que nos traz constantemente de fora novos átomos de fogo e de alma para substituir os átomos desaparecidos e que prende no interior do corpo aqueles que quereriam escapar. Se a respiração cessa, o fogo interior escapa. Disso resulta a morte. Isso não acontece em um instante; pode ocorrer que a vida seja restaurada depois da desaparição de uma parte da alma. O sono - morte aparente.
 
Teoria das percepções dos sentidos. O contato não é imediato, opera-se por meio das aporrhoaí. Estas penetram no corpo pelos sentidos e espalham-se por todas as partes; disso nasce a representação das coisas. Duas condições são necessárias: uma certa força da impressão e a afinidade do órgão que a recebe. Somente o semelhante sente o semelhante, percebemos as coisas por meio das partes de nosso ser que Ihes são análogas.
A percepção é idêntica ao pensamento. Uma e outro são modificações mecânicas da matéria da alma; se a alma é levada por esse movimento à temperatura conveniente, percebe exatamente os objetos, o pensamento é sadio. Se o movimento a aquece ou a esfria excessivamente, as representações são falsas e o pensamento é malsão. É aqui que começam as verdadeiras dificuldades do materialismo, porque ele próprio começa a sentir seu prõton pseudos. Tudo o que é objetivo, extenso, agente, potanto material, tudo aquilo que o materialismo considera como seu fundamento mais solido, não passa de um dado extremamente mediato, um concreto extremamente relativo, que passou pelo mecanismo do cérebro e acomodou-se às formas do tempo, do espaço e da causalidade, graças às quais se apresenta como extenso no espaço e agente no tempo. É de um tal dado que o materialismo quer, agora, deduzir o único dado imediato, a representação. É uma prodigiosa petição de princípios; de repente, o último elo aparece como o ponto de partida de que já dependia o primeiro elo da corrente. Assim, comparou-se o materialismo ao Barão de Crac (sic), que, quando atravessava o rio a cavalo, suspendia sua montaria apertando-a entre as pernas e se suspendia a si mesmo por meio de sua peruca, que puxava para cima. O absurdo consiste em partir do dado objetivo, enquanto, na verdade, todo dado objetivo é determinado de várias maneiras pelo sujeito pensante e desaparece totalmente quando se faz abstração do sujeito. Por outro lado, o materialismo é uma hipótese preciosa e de uma verdade relativa, mesmo depois que se descobriu o prõton pseudos; é uma representação cômoda nas ciências naturais, e todos os seus resultados permanecem verdadeiros para nós, se não no absoluto. Trata-se do mundo que é o nosso, para cuja produção cooperamos sempre.

Anotações sobre Demócrito  

Deveríamos a Demócrito muitos sacrifícios fúnebres, simplesmente para reparar os erros do passado para com ele. Com efeito, é raro que um escritor considerável tenha tido de sofrer tantos ataques devidos o razões diversas. Teólogos e metafísicos acumularam sobre seu nome suas acusações inveteradas contra o materialismo. O divino Platão chegou mesmo a considerar seus escritos tão perigosos que pretendia destruí-los em um auto-de-fé privado e só foi impedido disso por considerar que já era tarde demais, que o veneno já estava por demais alastrado. Mais tarde, os obscurantistas da Antigüidade se vingaram dele, introduzindo, sob sua marca, o contrabando de seus escritos de magia e de alquimia, o que imputou ao pai de todas as tendências racionais uma reputação de grande mágico. O cristianismo nascente, enfim, logrou executar o enérgico desígnio de Platão; e sem dúvida um século anticósmico devia considerar os escritos de Demócrito, assim como os de Epicuro, como a encarnação do paganismo. Enfim, foi reservado à nossa época negar também a grandeza filosófica do homem e atribuir-lhe um temperamento de sofista. Todos esses ataques se desenrolam em um terreno que não podemos mais defender.
Os fragmentos de Moral (= Estudos Éticos) têm, por um lado, um tom desenvolto de homem do mundo e uma bela forma. Não recendem a estoicismo nem a platonismo, mas, aqui e ali, lembram Aristóteles e sua metropathía.
Não são indignos de Demócrito. É um problema psicológico saber se foi ele que os escreveu. A tradição não prova nada... Junta-se a isso a obscuridade em que nos encontramos a respeito de Leucipo. Se este é o inventor da ideia principal, podemos entretanto atribuir também a Demócrito uma grande diversidade de concepções.
Todos os materialistas pensam que, se o homem é infeliz, é por não conhecer a natureza. Assim o Sistema da Natureza começa nestes termos: "O homem é infeliz porque não conhece a natureza".
Sobre a questão da criação do mundo, Demócrito é perfeitamente claro. Uma sequência infinita de anos, a cada mil anos uma pedrinha é juntada às outras, e a terra acaba por ser o que é.
Sobre o problema da origem do mundo, ele foi, igualmente, de uma completa clareza.
O materialismo é o elemento conservador na ciência como na vida. A ética de Demócrito é conservadora.
"Contenta-te com o mundo tal como é", é o cânon moral que o materialismo produziu. Uma plena virilidade do pensamento e da investigação aparece cm Demócrito. Entretanto, ele não perde o senso da poesia. É o que prova sua própria descrição, seu juízo sobre os poetas, que considera como profetas da verdade (isso lhe parece um fato natural).
Não acreditamos nos contos, mas sentimos sua força poética.

Características do Pensamento de Demócrito

• Gosto pela ciência. Aitíai. Viagens;
• Clareza. Aversão ao bizarro;
• Simplicidade do método;
• Arrojo poético (poesia do atomismo);
• Sentimento de um progresso poderoso;
• Fé absoluta em seu sistema;
• O Mal excluído de seu sistema.
• Paz de espírito, resultado do estudo cientifico. Pitágoras.
• Inquietações míticas: racionalismo.
• Inquietações morais: ascetismo.
• Inquietações políticas: quietismo.
• Inquietações conjugais: adoção de filhos.

Vauvenargues 
Vauvenargues diz com razão que os grandes pensamentos vêm do coração. É na moral que está a chave da física de Demócrito. Sentir-se liberto de todo Incognoscível.
– É a meta de sua filosofia. Os sistemas anteriores não lhe davam isso, pois deixavam subsistir um elemento irracional. Eis por que ele procurou remeter tudo àquilo que é mais fácil de compreender, a queda e o choque.
Queria sentir-se no mundo como em um quarto claro. Racionalista encarnado, pai do racionalismo, acomodava à sua maneira os deuses, o espetáculo dos sacrifícios, etc. Demócrito, sem dúvida, deve igualmente ser incluído entre os melancólicos...
A meta é o otium litteratum: "ter a paz"

Demócrito, esse Humboldt do mundo antigo.
 
Sente-se impelido a correr o mundo. Retorna pobre e sem recursos, reduzido, como um mendigo, a viver das esmolas de seu irmão. Sua cidade natal o toma por um pródigo. Recusam-lhe uma sepultura honrada, até o dia em que seus parentes tomam as dores do morto e em que se elevam monumentos em honra daquele que, desprezado em vida, quase morrera de fome.
Ele se desempenha com excessiva rapidez dos encargos de construir o mundo e a moral. Os problemas mais profundos Ihe permanecem ocultos. É que sua vontade é a mola de sua investigação; o que quer é terminá-la e atingir o conhecimento último. Ele se atrela a este, e é isso que Ihe dá sua segurança e sua confiança em si. Ainda não havia notado, ao passar em revista os sistemas anteriores, uma abundância infinita de pontos de vista diversos; conservou, de seus raros predecessores, aquilo que Ihe era homogêneo, aquilo que lhe parecia inteligível e simples, e condenou sem indulgência a intrusão de um mundo mítico. É, pois, um racionalista confiante; crê na capacidade liberadora de seu sistema e elimina dele tudo aquilo que é mau e imperfeito.

Período Sistemático (SOFISTAS)

O segundo período da história do pensamento grego é o chamado período sistemático. Com efeito, nesse período realiza-se a sua grande e lógica sistematização, culminando em Aristóteles, através de Sócrates e Platão, que fixam o conceito de ciência e de inteligível, e através também da precedente crise cética da sofística. O interesse dos filósofos gira, de preferência, não em torno da natureza, mas em torno do homem e do espírito; da metafísica passa-se à gnosiologia e à moral. Daí ser dado a esse segundo período do pensamento grego também o nome de antropológico, pela importância e o lugar central destinado ao homem e ao espírito no sistema do mundo, até então limitado à natureza exterior.
Esse período esplêndido do pensamento grego - depois do qual começa a decadência - teve duração bastante curta. Abraça, substancialmente, o século IV a.C., e compreende um número relativamente pequeno de grandes pensadores: os sofistas e Sócrates, daí derivando as chamadas escolhas socráticas menores, sendo principais a cínica e a cirenaica, precursoras, respectivamente, do estoicismo e do epicurismo do período seguinte; Platão e Aristóteles, deles procedendo a Academia e o Liceu, que sobreviverão também no período seguinte e além ainda, especialmente a Academia por motivos éticos e religiosos, e em seus desenvolvimentos neoplatônicos em especial - apesar de o aristotelismo ter superado logicamente o platonismo.
É certo, não obstante, que as obras completas de Demócrito (que incluem as obras de Leucipo e outros, bem como as de Demócrito) continuaram a existir, porquanto a escola as conservou em Abdera e Teos ao longo dos tempos helenísticos. Por isso, foi possível para Trasilo, sob o reinado de Tibério, fazer uma edição das obras de Demócrito, organizada em tetralogias, exatamente como sua edição dos diálogos de Platão. Mesmo isso não foi suficiente para preservá-las. Os epicuristas, que tinham a obrigação de ter estudado o homem a quem deviam tanto, detestavam qualquer tipo de estudo, e provavelmente nem se preocuparam em multiplicar os exemplares de um escritor cujas obras teriam sido um testemunho permanente para a carência de originalidade que caracterizou o próprio sistema deles.
Sabemos extremamente pouco sobre a vida de Demócrito. Como Protágoras, era natural de Abdera na Trácia, uma cidade que nem mereceria a reputação proverbial de embotamento, considerando que pode dar origem a dois homens de tanta envergadura. Quanto à data do seu nascimento, temos apenas conjeturas para nos orientar. Em uma das principais obras, afirmou que elas foram escritas 730 anos após a queda de Tróia; não sabemos; porém, quando, segundo a suposição dele, isto ocorrera. Havia nessa época e posteriormente diversas eras em uso. Disse também algures que, quando Anaxágoras era velho, ele era jovem, e a partir dai concluiu-se que nasceu em 460 a.C. Parece, entretanto, cedo demais, visto estar baseado na hipótese de que tinha quarenta anos quando se encontrou com Anaxágoras, e a expressão "jovem" sugere menos que esta idade. Demais, cumpre-nos encontrar um espaço para Leucipo entre eles [Demócrito] e Zenão. Se Demócrito morreu, como se diz, com a idade de noventa ou cem anos, de qualquer maneira ainda vivia quando Platão fundara a Academia. Mesmo a partir de fundamentos meramente cronológicos, é falso classificar Demócrito entre os predecessores de Sócrates, e obscurece o fato de que, como Sócrates, ele tentou responder ao seu distinto concidadão Protágoras.
Demócrito foi discípulo de Leucipo, e temos uma prova contemporânea, a de Glauco de Régio, que também os pitagóricos foram seus mestres. Um membro posterior da escola, Apolodoro de Quizico, diz que tomou conhecimento por intermédio de Filolau, o que parece muito provável. Isto esclarece o seu conhecimento geométrico, bem como, outros aspectos do seu sistema. Sabemos, outrossim, que Demócrito falou nas obras das doutrinas de Parmênides e Zenão, que chegou a conhecê-las através de Leucipo. Fez menção a Anaxágoras, e parece ter dito que a sua teoria do sol e da lua não era original. Isto pode referir se à explicação dos eclipses, que geralmente fora atribuída em Atenas, e sem dúvida alguma na Jonia, a Anaxágoras, ainda que Demócrito naturalmente estivesse ciente de ser ela pitagórica.
Diz-se ter visitado o Egito, mas há uma certa razão para se acreditar que o fragmento onde isto é mencionado (fragmento 298 b) é apócrifo. Há um outro (fragmento 116) no qual ele diz: "Eu fui a Atenas e ninguém tomou conhecimento de mim". Se disse isto, sem dúvida deu a entender que não conseguira causar uma impressão tal como o fizera o seu mais brilhante concidadão Protágoras. Por outro lado, Demétrio de Falerão afirmou que Demócrito jamais visitou Atenas; então é possível que este fragmento também seja apócrifo. Seja como for, ele deve ter despendido a maior parte do seu tempo no estudo, ensinando e escrevendo em Abdera. Não era um sofista itinerante do tipo moderno, mas sim o cabeça de uma escola regular.
A verdadeira grandeza de Demócrito não está na teoria dos átomos e do vazio, que ele parece ter exposto bem conforme a tinha recebido de Leucipo. Menos ainda está no seu sistema cosmológico, que deriva mormente de Anaxágoras. Pertence inteiramente a uma outra geração que a desses homens, e não está preocupado de modo especial em encontrar uma resposta a Parmênides. A questão à qual tinha que se dedicar era a de sua própria época. A possibilidade de ciência havia sido negada, bem como todo o problema do conhecimento levantado por Protágoras, e era isto que exigia uma solução. Ademais, o problema do comportamento tornara-se premente. A originalidade de Demócrito, portanto, está precisamente na mesma linha que a de Sócrates.

Teoria do Conhecimento

Demócrito procedeu como Leucipo ao fazer uma avaliação puramente mecânica da sensação, e é provável que ele seja o autor da doutrina minuciosa dos átomos com respeito a este assunto. Uma vez que a alma se compõe de átomos como qualquer outra coisa, a sensação deve consistir no impacto dos átomos externos sobre os átomos da alma, e os órgãos dos sentidos devem ser simplesmente ''passagens" (póroi = poros) através das quais estes átomos se introduzem. Disto decorre que os objetos da visão não são estritamente as coisas que nós mesmos presumimos ver, mas as "imagens" (deíkela, eídola) que os corpos estão constantemente emitindo. A imagem na pupila do olho era considerada como a coisa essencial em visão. Não é, porém, uma semelhança exata do corpo do qual provém, pois está sujeita às distorções causadas pela interferência do ar. Este é o motivo por que vemos as coisas a distância de um modo embaraçado e indistinto, e por que, se a distância for grande, não podemos vê-las de modo algum. Se não houvesse ar, mas somente o vazio, entre nós e os objetos da visão, isto não seria assim; "poderíamos ver uma formiga rastejando no firmamento". As diferenças de cor devem-se à lisura ou aspereza das imagens ao tato. A audição explica-se de uma maneira similar. O som é uma torrente de átomos que jorram do corpo sonante e produzem movimento no ar entre ele [corpo] e o ouvido. Chegou, portanto, ao ouvido junto com aquelas porções do ar que se Ihe assemelham. As diferenças de paladar são devidas às diferenças nas figuras (eide, skhémata) dos átomos que entram em contato com os órgãos desse sentido; e o olfato explica-se semelhantemente, embora não com os mesmos detalhes. De modo idêntico, o tato, considerado como o sentido pelo qual sentimos o calor e o frio, o molhado e o seco e outros que tais, é afetado de acordo com a forma e o tamanho dos átomos chocando nele.
Aristóteles afirma que Demócrito reduziu todos os sentidos ao tato, e é realmente verdade se entendermos por tato o sentido que percebe qualidades, tais como forma, tamanho e peso. Este, todavia, deve ser cautelosamente distinguido do sentido próprio do tato, que acima foi descrito. Para compreender esta questão, temos que considerar a doutrina do conhecimento "legítimo" e "ilegítimo".
É aqui que Demócrito entra nitidamente em conflito com Protágoras, que asseverou serem todas as sensações igualmente verdadeiras para o objeto sensível. Demócrito, pelo contrário, considera falsas todas as sensações dos sentidos próprios, posto que elas não têm uma contrapartida real fora do objeto sensível. Nisto, naturalmente, está em conformidade com a tradição eleática onde repousa a teoria atômica. Parmênides afirmara claramente que o paladar, as cores, o som e outros semelhantes eram apenas "nomes" (onómata), e é bastante idêntico a Leucipo que disse algo de parecido, apesar de não haver razão de se acreditar que ele tenha elaborado uma teoria sobre o assunto. Seguindo o exemplo de Protágoras, Demócrito foi obrigado a ser explícito com referência à questão. Sua doutrina, felizmente, foi-nos preservada através de suas próprias palavras. "Por convenção (nómo)": disse ele (fragmento 125), "há o doce; por convenção há o amargo; por convenção há o quente e por convenção há o frio; por convenção há a cor". Porém, na realidade (etee), há os átomos e o vazio. Deveras, as nossas sensações não representam nada de externo, apesar de serem causadas por algo fora de nós, cuja verdadeira natureza não pode ser apreendida pelos sentidos próprios. Esta é a razão por que a mesma coisa às vezes dá a sensação de doce e às vezes de amargo. "Pelos sentidos", afirmou Demócrito (fragmento 9),"nós na verdade não conhecemos nada de certo, mas somente alguma coisa que muda de acordo com a disposição do corpo e das coisas que nele penetram ou Ihe opõem resistência". Não podemos conhecer a realidade deste modo, pois "a verdade jaz num abismo" (fragmento 117). Vê-se que esta doutrina tem muito em comum com a distinção moderna entre as qualidades primárias e secundárias da matéria.
Demócrito, pois, rejeita a sensação como fonte de conhecimento, exatamente como fizeram os pitagóricos e Sócrates; contudo, como eles, ressalva a possibilidade de ciência, afirmando que existe uma outra fonte de conhecimento que não a dos sentidos próprios. "Há", diz ele (fragmento 11), "duas formas de conhecimento (gnóme): o legítimo (gnesíe) e o ilegítimo (skotíe). Ao ilegítimo pertencem todos estes: a visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato. O legítimo, porém, está separado daquele". Esta é a resposta de Demócrito a Protágoras. Ele diz que o mel, por exemplo, é tanto amargo quanto doce, doce para mim e amargo para você. Na realidade, é "não mais tal do que tal" (oudèn mãllon toion è toion). Sexto Empírico e Plutarco afirmaram claramente que Demócrito argüiu contra Protágoras, e o fato, por conseguinte, está fora da discussão.
Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que Demócrito dera uma explicação puramente mecânica deste conhecimento legítimo, como o fizera do ilegítimo. Defendeu, com efeito, que os átomos fora de nós poderiam afetar diretamente os átomos da nossa alma sem a intervenção dos órgãos dos sentidos. Os átomos da alma não se restringem a algumas partes específicas do corpo, mas nele penetram em qualquer direção, e não há nada que os impeça de ter contato imediato com os átomos externos, chegando assim a conhecê-los como realmente são. O "conhecimento legítimo" é, afinal de contas, da mesma natureza do "ilegítimo", e Demócrito recusou-se, como Sócrates, a fazer uma separação absoluta entre os sentidos e o conhecimento. "Pobre Mente", imagina ele os sentidos dizerem (fragmento 125); "é por causa de nós que conseguiste as provas com as quais atiras contra nós. Teu tiro é uma capitulação." O conhecimento "legítimo" não é, apesar de tudo, pensamento, mas uma espécie de sentido interno, e seus objetos são como os "sensíveis comuns" de Aristóteles.
Como seria de esperar de um seguidor dos pitagóricos e de Zenão, Demócrito ocupou-se com o problema da continuidade. Em uma passagem digna de nota (fragmento 155), ele o confirma desta forma: "Se um cone fosse cortado por um plano em linha paralela à base, o que se deveria pensar das superfícies das duas partes cortadas? Seriam iguais ou desiguais? Se forem desiguais, farão irregular o cone, pois ele terá muitas incisões em forma de degraus e muitas asperezas. Se forem iguais, então as partes cortadas serão iguais, e o cone terá a aparência de um cilindro, que é composto de círculos iguais e não desiguais, o que é o maior absurdo". Segundo um comentário de Arquimedes, parece que Demócrito prosseguiu afirmando que o volume do cone era a terça parte do volume do cilindro sobre a mesma base e do mesmo peso, cujo teorema foi demonstrado primeiro por Eudoxo. É evidente, pois, que ele estava empenhado em problemas tais como aqueles que finalmente deram origem ao método infinitesimal do próprio Arquimedes. Vemos mais uma vez como foi importante a obra de Zenão como um fermento intelectual.

A Sofística

Após as grandes vitórias gregas, atenienses, contra o império persa, houve um triunfo político da democracia, como acontece todas as vezes que o povo sente, de repente, a sua força. E visto que o domínio pessoal, em tal regime, depende da capacidade de conquistar o povo pela persuasão, compreende-se a importância que, em situação semelhante, devia ter a oratória e, por conseguinte, os mestres de eloquência. Os sofistas, sequiosos de conquistar fama e riqueza no mundo, tornaram-se mestres de eloquência, de retórica, ensinando aos homens ávidos de poder político a maneira de consegui-lo. Diversamente dos filósofos gregos em geral, o ensinamento dos sofistas não era ideal, desinteressado, mas sobejamente retribuído. O conteúdo desse ensino abraçava todo o saber, a cultura, uma enciclopédia, não para si mesma, mas como meio para fins práticos e empíricos e, portanto, superficial.
A época de ouro da sofística foi - pode-se dizer - a segunda metade do século V a.C. O centro foi Atenas, a Atenas de Péricles, capital democrática de um grande império marítimo e cultural. Os sofistas maiores foram quatro. Os menores foram uma plêiade, continuando até depois de Sócrates, embora sem importância filosófica.
Protágoras foi o maior de todos, chefe de escola e teórico da sofística.

Moral, Direito e Religião

Em coerência com o ceticismo teórico, destruidorda ciência, a sofística sustenta o relativismo prático, destruidor da moral. Como é verdadeiro o que tal ao sentido, assim é bem o que satisfaz ao sentimento, ao impulso, à paixão de cada um em cada momento. Ao sensualismo, ao empirismo gnosiológicos correspondem o hedonismo e o utilitarismo ético: o único bem é o prazer, a única regra de conduta é o interesse particular. Górgias declara plena indiferença para com todo moralismo: ensina ele a seus discípulos unicamente a arte de vencer os adversários; que a causa seja justa ou não, não lhe interessa. A moral, portanto, - como norma universal de conduta - é concebida pelos sofistas não como lei racional do agir humano, isto é, como a lei que potencia profundamente a natureza humana, mas como um empecilho que incomoda o homem.
Desta maneira, os sofistas estabelecem uma oposição especial entre natureza e lei, quer política, quer moral, considerando a lei como fruto arbitrário, interessado, mortificador, uma pura convenção, e entendendo por natureza, não a natureza humana racional, mas a natureza humana sensível, animal, instintiva. E tentam criticar a vaidade desta lei, na verdade tão mutável conforme os tempos e os lugares, bem como a sua utilidade comumente celebrada: não é verdade - dizem - que a submissão à lei torne os homens felizes, pois grandes malvados, mediante graves crimes, têm frequentemente conseguido grande êxito no mundo e, aliás, a experiência ensina que para triunfar no mundo, não é mister justiça e retidão, mas prudência e habilidade.
Então a realização da humanidade perfeita, segundo o ideal dos sofistas, não está na ação ética e ascética, no domínio de si mesmo, na justiça para com os outros, mas no engrandecimento ilimitado da própria personalidade, no prazer e no domínio violento dos homens. Esse domínio violento é necessário para possuir e gozar os bens terrenos, visto estes bens serem limitados e ambicionados por outros homens. É esta, aliás, a única forma de vida social possível num mundo em que estão em jogo unicamente forças brutas, materiais. Seria, portanto, um prejuízo a igualdade moral entre os fortes e os fracos, pois a verdadeira justiça conforme à natureza material, exige que o forte, o poderoso, oprima o fraco em seu proveito.
 
Quanto ao direito e à religião, a posição da sofística é extremista também, naturalmente, como na gnosiologia e na moral. A sofística move uma justa crítica, contra o direito positivo, muitas vezes arbitrário, contingente, tirânico, em nome do direito natural. Mas este direito natural - bem como a moral natural - segundo os sofistas, não é o direito fundado sobre a natureza racional do homem, e sim sobre a sua natureza animal, instintiva, passional. Então, o direito natural é o direito do mais poderoso, pois em uma sociedade em que estão em jogo apenas forças brutas, a força e a violência podem ser o único elemento organizador, o único sistema jurídico admissível.
A respeito da religião e da divindade, os sofistas não só trilham a mesma senda dos filósofos racionalistas gregos do período precedente e posterior, mas - de harmonia com o ceticismo deles - chegam até o extremo, até o ateísmo, pelo menos praticamente. Os sofistas, pois, servem-se da injustiça e do muito mal que existe no mundo, para negar que o mundo seja governado por uma providência divina.

Protágoras de Abdera

Protágoras nasceu em Abdera - pátria de Demócrito, cuja escola conheceu - pelo ano 480. Viajou por toda a Grécia, ensinando na sua cidade natal, na Magna Grécia, e especialmente em Atenas, onde teve grande êxito, sobretudo entre os jovens, e foi honrado e procurado por Péricles e Eurípedes. Acusado de ateísmo, teve de fugir de Atenas, onde foi processado e condenado por impiedade, e a sua obra sobre os deuses foi queimada em praça pública. Refugiou-se então na Sicília, onde morreu com setenta anos (410 a.C.), dos quais, quarenta dedicados à sua profissão. Dos princípios de Heráclito e das variações da sensação, conforme as disposições subjetivas dos órgãos, inferiu Protágoras a relatividade do conhecimento. Esta doutrina enunciou-a com a célebre fórmula; o homem é a medida de todas as coisas. Esta máxima significava mais exatamente que de cada homem individualmente considerado dependem as coisas, não na sua realidade física, mas na sua forma conhecida. Subjetivismo, relativismo e sensualismo são as notas características do seu sistema de ceticismo parcial. Platão deu o nome de Protágoras a um dos seus diálogos, e a um outro o de Górgias.

Górgias de Leôncio

Górgias nasceu em Abdera, na Sicília, em 480-375 a.C - correlacionado com Empédocles - representa a maior expressão prática da sofística, mediante o ensinamento da retórica; teoricamente, porém, foi um filósofo ocasional, exagerador dos artifícios da dialética eleática. Em 427 foi embaixador de sua pátria em Atenas, para pedir auxílio contra os siracusanos. Ensinou na Sicília, em Atenas, em outras cidades da Grécia, até estabelecer-se em Larissa na Tessália, onde teria morrido com 109 anos de idade. Menos profundo, porém, mais eloquente que Protágoras, partiu dos princípios da escola eleata e concluiu também pela absoluta impossibilidade do saber. É autor duma obra intitulada "Do não ser", na qual desenvolve as três teses:
Nada existe; se alguma coisa existisse não a poderíamos conhecer; se a conhecêssemos não a poderíamos manifestar aos outros. A prova de cada uma destas proposições e um enredo de sofismas, sutis uns, outros pueris.
No Górgias de Platão, Górgias declara que a sua arte produz a persuasão que nos move a crer sem saber, e não a persuasão que nos instrui sobre as razões intrínsecas do objeto em questão. Em suma, é mais ou menos o que acontece com o jornalismo moderno. Para remediar este extremo individualismo, negador dos valores teoréticos e morais, Protágoras recorre à convenção estatal, social, que deveria estabelecer o que é verdadeiro e o que é bem!

SÓCRATES

A Vida

Quem valorizou a descoberta do homem feita pelos sofistas, orientando-a para os valores universais, segundo a via real do pensamento grego, foi Sócrates. Nasceu Sócrates em 470 ou 469 a.C., em Atenas, filho de Sofrônico, escultor, e de Fenáreta, parteira. Aprendeu a arte paterna, mas dedicou-se inteiramente à meditação e ao ensino filosófico, sem recompensa alguma, não obstante sua pobreza. Desempenhou alguns cargos políticos e foi sempre modelo irrepreensível de bom cidadão. Combateu a Potidéia, onde salvou a vida de Alcebíades e em Delium, onde carregou aos ombros a Xenofonte, gravemente ferido. Formou a sua instrução sobretudo através da reflexão pessoal, na moldura da alta cultura ateniense da época, em contato com o que de mais ilustre houve na cidade de Péricles.
Inteiramente absorvido pela sua vocação, não se deixou distrair pelas preocupações domésticas nem pelos interesses políticos. Quanto à família, podemos dizer que Sócrates não teve, por certo, uma mulher ideal na quérula Xantipa; mas também ela não teve um marido ideal no filósofo, ocupado com outros cuidados que não os domésticos.
Quanto à política, foi ele valoroso soldado e rígido magistrado. Mas, em geral, conservou-se afastado da vida pública e da política contemporânea, que contrastavam com o seu temperamento crítico e com o seu reto juízo. Julgava que devia servir a pátria conforme suas atitudes, vivendo justamente e formando cidadãos sábios, honestos, temperados - diversamente dos sofistas, que agiam para o próprio proveito e formavam grandes egoístas, capazes unicamente de se acometerem uns contra os outros e escravizar o próximo.
Entretanto, a liberdade de seus discursos, a feição austera de seu caráter, a sua atitude crítica, irônica e a consequente educação por ele ministrada, criaram descontentamento geral, hostilidade popular, inimizades pessoais, apesar de sua probidade. Diante da tirania popular, bem como de certos elementos racionários, aparecia Sócrates como chefe de uma aristocracia intelectual. Esse estado de ânimo hostil a Sócrates concretizou-se, tomou forma jurídica, na acusação movida contra ele por Mileto, Anito e Licon: de corromper a mocidade e negar os deuses da pátria introduzindo outros. Sócrates desdenhou defender-se diante dos juizes e da justiça humana, humilhando-se e desculpando-se mais ou menos. Tinha ele diante dos olhos da alma não uma solução empírica para a vida terrena, e sim o juízo eterno da razão, para a imortalidade. E preferiu a morte. Declarado culpado por uma pequena minoria, assentou-se com indômita fortaleza de ânimo diante do tribunal, que o condenou à pena capital com o voto da maioria.
Tendo que esperar mais de um mês a morte no cárcere - pois uma lei vedava as execuções capitais durante a viagem votiva de um navio a Delos - o discípulo Criton preparou e propôs a fuga ao Mestre. Sócrates, porém, recusou, declarando não querer absolutamente desobedecer às leis da pátria. E passou o tempo preparando-se para o passo extremo em palestras espirituais com os amigos. Especialmente famoso é o diálogo sobre a imortalidade da alma - que se teria realizado pouco antes da morte e foi descrito por Platão no Fédon com arte incomparável. Suas últimas palavras dirigidas aos discípulos, depois de ter sorvido tranqüilamente a cicuta, foram: "Devemos um galo a Esculápio". É que o deus da medicina tinha-o livrado do mal da vida com o dom da morte. Morreu Sócrates em 399 a.C. com 71 anos de idade.

Método de Sócrates

É a parte polêmica. Insistindo no perpétuo fluxo das coisas e na variabilidade extrema das impressões sensitivas determinadas pelos indivíduos que de contínuo se transformam, concluíram os sofistas pela impossibilidade absoluta e objetiva do saber. Sócrates restabelece-lhe a possibilidade, determinando o verdadeiro objeto da ciência.
O objeto da ciência não é o sensível, o particular, o indivíduo que passa; é o inteligível, o conceito que se exprime pela definição. Este conceito ou ideia geral obtém-se por um processo dialético por ele chamado indução e que consiste em comparar vários indivíduos da mesma espécie, eliminar-lhes as diferenças individuais, as qualidades mutáveis e reter-lhes o elemento comum, estável, permanente, a natureza, a essência da coisa. Por onde se vê que a indução socrática não tem o caráter demonstrativo do moderno processo lógico, que vai do fenômeno à lei, mas é um meio de generalização, que remonta do indivíduo à noção universal.
Praticamente, na exposição polêmica e didática destas ideias, Sócrates adotava sempre o diálogo, que revestia uma dúplice forma, conforme se tratava de um adversário a confutar ou de um discípulo a instruir. No primeiro caso, assumia humildemente a atitude de quem aprende e ia multiplicando as perguntas até colher o adversário presunçoso em evidente contradição e constrangê-lo à confissão humilhante de sua ignorância. É a ironiasocrática. No segundo caso, tratando-se de um discípulo (e era muitas vezes o próprio adversário vencido), multiplicava ainda as perguntas, dirigindo-as agora ao fim de obter, por indução dos casos particulares e concretos, um conceito, uma definição geral do objeto em questão. A este processo pedagógico, em memória da profissão materna, denominava ele maiêutica ou engenhosa obstetrícia do espírito, que facilitava a parturição das ideias.

Doutrinas Filosóficas

A introspecção é o característico da filosofia de Sócrates. E exprime-se no famoso lema conhece-te a ti mesmo - isto é, torna-te consciente de tua ignorância - como sendo o ápice da sabedoria, que é o desejo da ciência mediante a virtude. E alcançava em Sócrates intensidade e profundidade tais, que se concretizava, se personificava na voz interior divina do gênio ou demônio.
Como é sabido, Sócrates não deixou nada escrito. As notícias que temos de sua vida e de seu pensamento, devemo-las especialmente aos seus dois discípulos Xenofonte e Platão, de feição intelectual muito diferente. Xenofonte, autor de Anábase, em seus Ditos Memoráveis, legou-nos de preferência o aspecto prático e moral da doutrina do mestre. Xenofonte, de estilo simples e harmonioso, mas sem profundidade, não obstante a sua devoção para com o mestre e a exatidão das notícias, não entendeu o pensamento filosófico de Sócrates, sendo mais um homem de ação do que um pensador. Platão, pelo contrário, foi filósofo grande demais para nos dar o preciso retrato histórico de Sócrates; nem sempre é fácil discernir o fundo socrático das especulações acrescentadas por ele. Seja como for, cabe-lhe a glória e o privilégio de ter sido o grande historiador do pensamento de Sócrates, bem como o seu biógrafo genial. Com efeito, pode-se dizer que Sócrates é o protagonista de todas as obras platônicas embora Platão conhecesse Sócrates já com mais de sessenta anos de idade. 
 
"Conhece-te a ti mesmo" - o lema em que Sócrates cifra toda a sua vida de sábio. O perfeito conhecimento do homem é o objetivo de todas as suas especulações e a moral, o centro para o qual convergem todas as partes da filosofia. A psicologia serve-lhe de preâmbulo, a teodicéia de estímulo à virtude e de natural complemento da ética.
Em psicologia, Sócrates professa a espiritualidade e imortalidade da alma, distingue as duas ordens de conhecimento, sensitivo e intelectual, mas não define o livre arbítrio, identificando a vontade com a inteligência.
Em teodicéia, estabelece a existência de Deus: a) com o argumento teológico, formulando claramente o princípio: tudo o que é adaptado a um fim é efeito de uma inteligência; b) com o argumento, apenas esboçado, da causa eficiente: se o homem é inteligente, também inteligente deve ser a causa que o produziu; c) com o argumento moral: a lei natural supõe um ser superior ao homem, um legislador, que a promulgou e sancionou. Deus não só existe, mas é também Providência, governa o mundo com sabedoria e o homem pode propiciá-lo com sacrifícios e orações. Apesar destas doutrinas elevadas, Sócrates aceita em muitos pontos os preconceitos da mitologia corrente que ele aspira reformar.

Moral
- É a parte culminante da sua filosofia. Sócrates ensina a bem pensar para bem viver. O meio único de alcançar a felicidade ou semelhança com Deus, fim supremo do homem, é a prática da virtude. A virtude adquiri-se com a sabedoria ou, antes, com ela se identifica. Esta doutrina, uma das mais características da moral socrática, é consequência natural do erro psicológico de não distinguir a vontade da inteligência. Conclusão: grandeza moral e penetração especulativa, virtude e ciência, ignorância e vício são sinônimos. "Se músico é o que sabe música, pedreiro o que sabe edificar, justo será o que sabe a justiça".
Sócrates reconhece também, acima das leis mutáveis e escritas, a existência de uma lei natural - independente do arbítrio humano, universal, fonte primordial de todo direito positivo, expressão da vontade divina promulgada pela voz interna da consciência.
Sublime nos lineamentos gerais de sua ética, Sócrates, em prática, sugere quase sempre a utilidade como motivo e estímulo da virtude. Esta feição utilitarista empana-lhe a beleza moral do sistema.

Gnosiologia

O interesse filosófico de Sócrates volta-se para o mundo humano, espiritual, com finalidades práticas, morais. Como os sofistas, ele é cético a respeito da cosmologia e, em geral, a respeito da metafísica; trata-se, porém, de um ceticismo de fato, não de direito, dada a sua revalidação da ciência. A única ciência possível e útil é a ciência da prática, mas dirigida para os valores universais, não particulares. Vale dizer que o agir humano - bem como o conhecer humano - se baseia em normas objetivas e transcendentes à experiência. O fim da filosofia é a moral; no entanto, para realizar o próprio fim, é mister conhecê-lo; para construir uma ética é necessário uma teoria; no dizer de Sócrates, a gnosiologia deve preceder logicamente a moral. Mas, se o fim da filosofia é prático, o prático depende, por sua vez, totalmente, do teorético, no sentido de que o homem tanto opera quanto conhece: virtuoso é o sábio, malvado, o ignorante. O moralismo socrático é equilibrado pelo mais radical intelectualismo, racionalismo, que está contra todo voluntarismo, sentimentalismo, pragmatismo, ativismo.
A filosofia socrática, portanto, limita-se à gnosiologia e à ética, sem metafísica. A gnosiologia de Sócrates, que se concretizava no seu ensinamento dialógico, donde é preciso extraí-la, pode-se esquematicamente resumir nestes pontos fundamentais: ironia, maiêutica, introspecção, ignorância, indução, definição. Antes de tudo, cumpre desembaraçar o espírito dos conhecimentos errados, dos preconceitos, opiniões; este é o momento da ironia, isto é, da crítica. Sócrates, de par com os sofistas, ainda que com finalidade diversa, reivindica a independência da autoridade e da tradição, a favor da reflexão livre e da convicção racional. A seguir será possível realizar o conhecimento verdadeiro, a ciência, mediante a razão. Isto quer dizer que a instrução não deve consistir na imposição extrínseca de uma doutrina ao discente, mas o mestre deve tirá-la da mente do discípulo, pela razão imanente e constitutiva do espírito humano, a qual é um valor universal. É a famosa maiêutica de Sócrates, que declara auxiliar os partos do espírito, como sua mãe auxiliava os partos do corpo.

Esta interioridade do saber, esta intimidade da ciência - que não é absolutamente subjetivista, mas é a certeza objetiva da própria razão - patenteiam-se no famoso dito socrático"conhece-te a ti mesmo" que, no pensamento de Sócrates, significa precisamente consciência racional de si mesmo, para organizar racionalmente a própria vida. Entretanto, consciência de si mesmo quer dizer, antes de tudo, consciência da própria ignorância inicial e, portanto, necessidade de superá-la pela aquisição da ciência. Esta ignorância não é, por conseguinte, ceticismo sistemático, mas apenas metódico, um poderoso impulso para o saber, embora o pensamento socrático fique, de fato, no agnosticismo filosófico por falta de uma metafísica, pois, Sócrates achou apenas a forma conceptual da ciência, não o seu conteúdo.
O procedimento lógico para realizar o conhecimento verdadeiro, científico, conceptual é, antes de tudo, a indução: isto é, remontar do particular ao universal, da opinião à ciência, da experiência ao conceito. Este conceito é, depois, determinado precisamente mediante a definição, representando o ideal e a conclusão do processo gnosiológico socrático, e nos dá a essência da realidade.

A Moral

Como Sócrates é o fundador da ciência em geral, mediante a doutrina do conceito, assim é o fundador, em particular da ciência moral, mediante a doutrina de que eticidade significa racionalidade, ação racional. Virtude é inteligência, razão, ciência, não sentimento, rotina, costume, tradição, lei positiva, opinião comum. Tudo isto tem que ser criticado, superado, subindo até à razão, não descendo até à animalidade - como ensinavam os sofistas. É sabido que Sócrates levava a importância da razão para a ação moral até àquele intelectualismo que, identificando conhecimento e virtude - bem como ignorância e vício - tornava impossível o livre arbítrio. Entretanto, como a gnosiologia socrática carece de uma especificação lógica, precisa - afora a teoria geral de que a ciência está nos conceitos - assim a ética socrática carece de um conteúdo racional, pela ausência de uma metafísica. Se o fim do homem for o bem - realizando-se o bem mediante a virtude, e a virtude mediante o conhecimento - Sócrates não sabe, nem pode precisar este bem, esta felicidade, precisamente porque lhe falta uma metafísica. Traçou, todavia, o itinerário, que será percorrido por Platão e acabado, enfim, por Aristóteles. Estes dois filósofos, partindo dos pressupostos socráticos, desenvolverão uma gnosiologia acabada, uma grande metafísica e, logo, uma moral.

Escolas Socráticas Menores

A reforma socrática atingiu os alicerces da filosofia. A doutrina do conceito determina para sempre o verdadeiro objeto da ciência: a indução dialética reforma o método filosófico; a ética une pela primeira vez e com laços indissolúveis a ciência dos costumes à filosofia especulativa. Não é, pois, de admirar que um homem, já aureolado pela austera grandeza moral de sua vida, tenha, pela novidade de suas ideias, exercido sobre os contemporâneos tamanha influência. Entre os seus numerosos discípulos, além de simples amadores, como Alcibíades e Eurípedes, além dos vulgarizadores da sua moral (socratici viri), como Xenofonte, havia verdadeiros filósofos que se formaram com os seus ensinamentos. Dentre estes, alguns, saídos das escolas anteriores não lograram assimilar toda a doutrina do mestre; desenvolveram exageradamente algumas de suas partes com detrimento do conjunto.
Sócrates não elaborou um sistema filosófico acabado, nem deixou algo de escrito; no entanto, descobriu o método e fundou uma grande escola. Por isso, dele depende, direta ou indiretamente, toda a especulação grega que se seguiu, a qual, mediante o pensamento socrático, valoriza o pensamento dos pré-socráticos desenvolvendo-o em sistemas vários e originais. Isto aparece imediatamente nas escolas socráticas. Estas - mesmo diferenciando-se bastante entre si - concordam todas pelo menos na característica doutrina socrática de que o maior bem do homem é a sabedoria. A escola socrática maior é a platônica; representa o desenvolvimento lógico do elemento central do pensamento socrático - o conceito - juntamente com o elemento vital do pensamento precedente, e culmina em Aristóteles, o vértice e a conclusão da grande metafísica grega. Fora desta escola começa a decadência e desenvolver-se-ão as escolas socráticas menores.
São fundadores das escolas socráticas menores, das quais as mais conhecidas são:

1. A escola de Megara, fundada por Euclides (449-369), que tentou uma conciliação da nova ética com a metafísica dos eleatas e abusou dos processos dialéticos de Zenão.

2. A escola cínica, fundada por Antístenes (n. c. 445), que, exagerando a doutrina socrática do desapego das coisas exteriores, degenerou, por último, em verdadeiro desprezo das conveniências sociais. São bem conhecidas as excentricidades de Diógenes.

3. A escola cirenaica ou hedonista, fundada por Aristipo, (n. c. 425) que desenvolveu o utilitarismo do mestre em hedonismo ou moral do prazer. Estas escolas, que, durante o segundo período, dominado pelas altas especulações de Platão e Aristóteles , verdadeiros continuadores da tradição socrática, vegetaram na penumbra, mais tarde recresceram transformadas ou degeneradas em outras seitas filosóficas. Dentre os herdeiros de Sócrates, porém, o herdeiro genuíno de suas ideias, o seu mais ilustre continuador foi o sublime Platão.

Introdução à Apologia de Sócrates

De acordo com Diógenes Laércio, a acusação apresentada contra Sócrates, em janeiro de 399 a.C., foi a que segue: "A seguinte acusação escreve e jura Meleto, filho de Meleto, do povoado de Piteo, contra Sócrates, filho de Sofronisco, do povoado de Alópece. Sócrates é culpado de não aceitar os deuses que são reconhecidos pelo Estado, de introduzir novos cultos, e, também, é culpado de corromper a juventude. Pena: a morte"
A cidade de Atenas não podia mover ações, mas um cidadão podia, assumindo, porém, total responsabilidade, se a acusação não fosse considerada procedente pelo júri. O acusador era Meleto, mas não só ele; também Ânito e Lícon, com os mesmos direitos à palavra no decorrer do processo. Meleto era o acusador oficial, porém nada exigia que o acusador oficial fosse o mais respeitável, hábil ou temível, mas somente aquele que assinava a acusação.
E, neste caso, a influência exercida por Ânito constituiu o elemento mais respeitável no desfecho do processo, que foi por ele zelosamente preparado nas reuniões dos diversos cidadãos, sustentando-o com a autoridade de seu nome.
No Eutífron, vemos que Sócrates, ao se aproximar do Pórtico do Rei, onde fora afixada a acusação por Meleto, ao ser inquirido pelo adivinho Eutífron a respeito de quem era aquele que o acusava, respondeu: "Sei bem pouco a respeito dele, talvez porque seja um homem jovem e desconhecido. Acredito chamar-se Meleto, do povoado de Piteo, de cabelos lisos, barba rala e nariz em forma de bico de pássaro".
A respeito de saber com exatidão quem era esse Meleto, existem muitas dúvidas, sendo uma delas se se tratava do personagem citado por Aristófanes. Mas não há elementos em que basear essa suposição, pois um jovem poeta de 399 a.C. pouco provavelmente chamaria a atenção de Aristófanes em 405 a.C., além de considerar que Sócrates insiste no fato de que Meleto é desconhecido.
Julgar tratar-se do Meleto que, em 399 a.C., chegou a tomar parte da acusação contra Andócides, no célebre processo por causa da mutilação da estátua de Hermes e da profanação dos Mistérios, seria muito conveniente, por haver sido essa também uma acusação de impiedade. Contudo, existe outro obstáculo, de acordo com a própria informação de Andócides: esse Meleto foi um dos que, em 404 a.C., por ordem dos Trinta Tiranos, se prestaram a deter Leon de Salamina. À parte o problema da mudança de lado - de partidário dos Trinta Tiranos tornar-se aliado de Ânito, que derrotara e expulsara esses mesmos Trinta Tiranos -, sobra a dificuldade de explicar por que motivo Sócrates, que conforme ele mesmo afirma na Apologia, juntamente com outros quatro homens recebera a ordem de deter a Leon de Salamina, tendo sido o único a recusar-se a obedecer, não disse que Meleto era um desses homens.
Exceto se reputarmos que essa defesa não seja de fato de Sócrates, e sim escrita por Platão, que se vale do nome de Meleto, já então tido como um fanático religioso, a fim de engrandecer o mestre desaparecido.
Desse modo, podemos considerar Meleto de Sócrates o mesmo Meleto de Andócides, assim solucionando o problema que tanta discussão tem provocado, embora, logicamente, fique apenas no campo da suposição, já que nada corrobora realmente esta pretensão.
O pouco que conhecemos ou podemos presumir a respeito de Lícon é que pouca importância e autoridade teve no decorrer do processo, com seu nome sendo citado sempre com evidente desapreço.
Ânito, o mais importante dos acusadores, é aquele que, não resta dúvida, dava a impressão de conhecer Sócrates, que a ele alude como se Meleto fosse seu subordinado, como se deste tivesse se originado a idéia da pena de morte para persuadir Sócrates a abandonar a cidade antes que o processo tivesse seguimento. Ânito era filho de Antemione, comerciante de couro, nascera por volta de - 150 a.C. e já havia exercido importantes cargos e magistraturas, sendo estratego em 410 a.C. Após ter sido enviado ao exílio pelos Trinta Tiranos, juntamente com Trasíbulo e outros, regressou de File com estes e tomou parte da expedição armada contra o governo dos tiranos. Depois da restauração do regime democrático, tornou-se um dos mais eminentes cidadãos de Atenas.
Ânito manteve relação com Sócrates, segundo comprova sua atuação no Mênon, onde manifesta uma ameaça velada a este: "Afigura-se-me, ó Sócrates, que com muita facilidade te dedicas à maledicência, e eu te aconselho, se quiseres me ouvir, que tenhas cuidado".
A opinião de Platão a esse respeito é bem clara: não foi por razões religiosas que Sócrates recebeu a condenação, mas sim por questões evidentemente políticas.
A bem da verdade, Sócrates dera, mediante palavras e atos, patente mostra de sua obstinada repulsa aos governos democráticos.
Portanto, nessa época de instalação do regime democrático, convinha afastar de Atenas o mestre de Crísias, o homem que sempre se recordava de haver sido discípulo de Arquesilau, o qual, por sua vez, fora discípulo de Anaxágoras, expulso de Atenas em decorrência de um processo parecido com o seu.
Mas é preciso frisar que o propósito, como o próprio Sócrates repete, não era matá-lo, e sim afastá-lo de Atenas, e se isso não ocorreu deveu-se à demasiada teimosia do próprio Sócrates, que em vez de escolher o exílio preferiu a proposta de uma multa irrisória, vindo a ser, por conseguinte, condenado.
No que concerne à condenação por motivos religiosos, da mesma maneira que se dá com condenações por motivos políticos, o texto da sentença preocupa-se muito mais em esconder do que apresentar as verdadeiras causas. Tanto isso é verdade que, em sua defesa, vemos o réu inverter a ordem das acusações e colocar em primeiro lugar a última imputação: corromper os jovens.
Desde a época de Sócrates, afirmara-se o culto patriarcal, em que Zeus era o deus-pai, o líder máximo. Se a acusação tivesse se dado em épocas mais antigas, poderíamos presumir que Sócrates teria adotado a defesa do culto da deusa, isto é, um movimento reacionário em termos de culto.
Coloquemos a questão com mais clareza: as lendas referem a revolta patriarcal contra o matriarcado.
A Tripla Deusa, venerada como Réia, esposa de Cronos, em seus três aspectos: lua crescente, lua cheia a lua minguante, era a suprema deusa e gerava uma vez por ano a Dionisos - Zagreus, seu filho, que era sempre devorado pelo tempo.
Dessa maneira, as múltiplas facetas da deusa prevaleciam, constituindo as sacerdotisas os verdadeiros líderes das povoações e os homens, seus instrumentos de fertilização e prazer, executando os trabalhos mais necessários à sobrevivência e à defesa.
Numerosas revoltas começaram a eclodir com a chegada de contínuas levas de dórios, minianos e jônios, em cujas culturas o patriarcalismo era arraigado, que acabaram por fomentar a rebelião de Zagreus contra seu pai e mãe. Zagreus torna-se Zeus, o Deus-Agnes, ou o Agnos-Deus, que pode significar tanto o deus desconhecido quanto o deus-carneiro; Réia vem a ser adorada como Hera, e seus aspectos: marinho, lunar e noturno, como Anfitrite, Ártemis e Cérbero. Anfitrite é esposa de Posêidon, um dos aspectos de Zeus; Ártemis é filha de Zeus, e permanece virgem; quanto a Cérbero, representa Hécate, sendo fiel guardião dos domínios de Hades, outro aspecto de Zeus, seu culto tendo sido de novo extinto durante o período de estabelecimento do culto olímpico.
Nessa fase seria de fato correto crer que alguém sofresse um processo por questões religiosas, mas à época de Sócrates tudo isso já se encontrava devidamente solidificado, e a argumentação de Burnet, em seu comentário à Apologia, revela-se, portanto, bem pouco confiável, quando afirma "que esses novos deuses da cosmologia jônica eram uma antiga história e que poderia ser uma violação da anistia colocá-los de novo à luz do dia".
Portanto, considerando-se a anistia garantida até mesmo pelo próprio Ânito, que juntamente com Trasíbulo fora seu principal defensor, não era possível levar em conta as culpas passadas de Sócrates para condená-lo, isso presumindo que existisse alguma, e era necessário arranjar o pretexto para executá-lo.
Era todo o ensinamento socrático que se tornava perigoso, e não os novos fatos. O que significava aquela sabedoria, proclamada superior até mesmo pelo oráculo, que consistia em saber que não se sabe?
Qual a postura dos políticos diante disso? Que direitos seriam mais opostos aos da democracia do que aqueles originados da experiência e da competência, e a superioridade da inteligência sobre os direitos da assembléia popular e soberana?
É isso que causou a condenação de Sócrates, a exigência de que o piloto do barco conheça seu ofício, isto é, a superioridade do saber sobre a aclamação do povo.
Ademais, é necessário recordar que Sócrates manteve relações com os Trinta Tiranos: estes não lhe teriam ordenado a prisão de Leon de Salamina se não o considerassem um deles; Crísias, o mais feroz dos Tiranos, havia sido seu discípulo, e também Alcebíades, que voltara a ser assunto pela recente inclusão de seu nome entre os envolvidos na profanação dos Mistérios. E mais: Sócrates menciona a seu favor sua participação no caso do exílio de Querofonte, porém, assim, insiste no fato de que, durante o mandato dos Trinta, Querofonte foi obrigado a se exilar, enquanto Sócrates pôde permanecer.
Some-se a isto que Sócrates jamais desejou exercer nenhuma magistratura, nem participar de alguma forma do governo de sua cidade, embora não seja verdade que permanecesse fora do âmbito do governo, pois com frequência era visto discutindo em público; e não se pode afirmar, pelos testemunhos que possuímos, que fosse singularmente prudente ou diplomático em sua maneira de discutir.
As mais importantes orientações da vida eram subvertidas por seu orgulho de ter consciência da sua ignorância, e os jovens, de fato, iriam acabar desrespeitando qualquer autoridade que não se identificasse com a inteligência e a sabedoria, provocando ainda o desapreço por tudo que não buscasse a sabedoria, desprezando a economia doméstica e a riqueza.

Apologia de Sócrates

Preâmbulo

Desconheço atenienses, que influência tiveram meus acusadores em vosso espírito; a mim próprio, quase me fizeram esquecer quem sou, tal o poder de persuasão de sua eloquência. De verdades, porém, não disseram nenhuma. Uma, sobretudo, me espantou das muitas perfídias que proferiram: a recomendação de precaução para não vos deixardes seduzir pelo orador formidável que sou. Com efeito, não corarem de me haver eu de desmentir prontamente com os fatos, ao mostrar-me um orador nada formidável, eis o que me pareceu a maior de suas insolências, salvo se essa gente chama formidável a quem diz a verdade; se é o que entendem, eu admitiria que, em contraste com eles, sou um orador. Seja como for, repito-o, de verdades eles não disseram alguma; de mim, porém, vós ouvireis a verdade inteira. Mas não por Zeus, atenienses, não ouvireis discursos como os deles, aprimorados em substantivos e verbos, em estilo florido; serão expressões espontâneas, nos termos que me ocorrerem, porque deposito confiança na justiça do que digo; nem espere outra coisa qualquer um de vós. Verdadeiramente, senhores, não ficaria bem a um velho como eu vir diante de vós modelar seus discursos como um rapazinho. Faço-vos, contudo, um pedido, atenienses, uma súplica premente; se ouvirdes, na minha defesa, a mesma linguagem que habitualmente emprego na praça, junto das bancas, onde tantos dentre vós me haveis escutado, e em outros lugares, não a estranheis nem vos revolteis por isso. Acontece que venho ao tribunal pela primeira vez aos setenta anos de idade; sinto-me, assim, completamente estrangeiro à linguagem do local. Se eu fosse de fato um estrangeiro, sem dúvida me desculparíeis o sotaque e o linguajar de minha criação; peço-vos nesta oportunidade a mesma tolerância, que é de justiça a meu ver, para a minha linguagem, que poderia ser talvez pior, talvez melhor, e que examineis com atenção se o que digo é justo ou não. Nisso reside o mérito de um juiz; o de um orador, em dizer a verdade.

A Defesa de Sócrates - Primeira Parte

Diversidade Entre Duas Categorias de Acusadores: os Antigos e os Recentes

Em princípio, ó atenienses, é legítimo que eu me defenda das calúnias das primeiras acusações que me foram dirigidas e dos primeiros acusadores, e depois das mais recentes acusações e dos novos acusadores. Pois muitos que se encontram entre vós já me acusaram no passado, sempre faltando com a verdade, e esses me causam bem mais temor do que Ânito e seus amigos, embora estes sejam acusadores perigosos. Mas os primeiros são muito mais perigosos, ó cidadãos, aqueles que convivendo com a maior parte de vós, como crianças que deviam ser educadas, procuraram convencer-vos de acusações não menos caluniosas contra mim: que existe um certo Sócrates, homem de muita sabedoria, que especula a respeito das coisas do céu, que esquadrinha todos os segredos obscuros, que transforma as razões mais fracas nas mais consistentes. Estes, ó atenienses, que propalaram essas coisas acerca de mim, são os acusadores que mais receio, porque, ao ouvi-los, as pessoas acreditam que quem se dedica a tais investigações não admite a existência dos deuses. E esses acusadores são muito numerosos e me acusaram há bastante tempo, e, o que é mais grave, caluniaram-me quando vós tínheis aquela idade em que é bastante fácil – alguns de vós éreis crianças ou adolescentes – dar crédito às calúnias, e assim, em resumo, acusaram-me obstinadamente, sem que eu contasse com alguém para me defender. E o que é mais assombroso é que seus nomes não podem sequer ser citados, exceto o de um comediógrafo; porém os outros – os que, por inveja ou por vício em fazer falsas acusações, procuraram colocar-vos contra mim, ou os que pretenderam convencer os outros por estarem verdadeiramente convencidos e de boa fé –, esses todos não podem ser encontrados, nem se pode exigir que ao menos alguns deles venham até aqui, nem acusar ninguém por difamação, e, em verdade, a fim de me defender só posso lutar contra sombras, e acusar de mentiroso a quem não responde. Portanto, vós deveis vos certificar de que existem duas categorias de acusadores: de um lado, os que me acusam há pouco tempo, e de outro, os que já me acusam há bastante tempo e dos quais tenho falado a respeito, e então reconhecereis que devo defender-me destes em primeiro lugar. Ainda mais porque esses acusadores fizeram-se ouvir por vós antes e mais demoradamente do que aqueles que vieram depois.
Defender-me-ei, portanto, ó atenienses, e assim descobrirei se aquela calúnia, que martiriza meu coração há tanto tempo, possa ser extirpada, embora deva fazê-lo em tão curto prazo. E se eu for bem-sucedido, se conseguir acarretar-vos algum benefício com a minha defesa, será excelente para vós e para mim. Bem sei quanto isto é difícil e tenho plena consciência da enorme dificuldade que me espera. Que tudo se passe de acordo com a vontade do Deus, pois à lei é necessário obedecer e defender-se.

Defesa Contra os Antigos Acusadores

Calúnia a Respeito do Saber de Sócrates

Vamos começar desde o início e examinar que tipo de acusação motivou essa calúnia, na qual Meleto se baseou para redigir sua acusação neste processo. Que afirmavam meus detratores? Façamos de conta que se trate de uma acusação juramentada de acusadores reais e dos quais seja preciso ler o texto: "Sócrates é réu de haver-se ocupado de assuntos que não eram de sua alçada, e investigando o que existe embaixo da terra e no céu, procurando transformar a mentira em verdade e ensinando-a às pessoas". A acusação possui mais ou menos este teor. Assististes a alguma coisa semelhante na comédia de Aristófanes, na qual um certo Sócrates aparece andando de lá para cá, afirmando que caminha em cima das nuvens, e outro amontoado de tolices, que não consigo compreender nem um pouco. E não digo isso por julgar aquelas ciências coisas vis, se é mesmo verdade que haja cientistas de tais ciências. Não faltaria quem, acompanhando Meleto, fizesse contra mim uma acusação tão grave! Eu só vos asseguro, ó atenienses, que não me ocupo desses assuntos, e recorro à maioria de vós para que sirvam de testemunhas. Peço que revelem publicamente quantos de vós já me ouviram falar a respeito dessas coisas, e então compreendereis que tudo o mais que dizem sobre mim possui o mesmo valor.
Resumindo: nada existe em tudo isso que corresponda à verdade; e, mais ainda, se ouvistes alguém declarar que instruo os homens em troca de dinheiro, isto também não passa de mentira. Mesmo que, se alguém se propõe a instruir homens como fazem Górgias de Leontini, Pródico de Ceo e Hípias de Élida, se me afigure coisa em absoluto nada condenável. Esses valorosos homens percorrem as cidades com o propósito de instruir os jovens, aos quais seria mais fácil, e sem ter de gastar dinheiro, fazer-se instruir por um de seus concidadãos; e convencem esses jovens a preferir a sua companhia à dos seus, recebendo em troca dinheiro e ainda por cima gratidão. Ouvi também referências a outro homem, de Paros, que possui muita sabedoria e veio morar em Atenas, e o soube por intermédio de Cálias, filho de Hipônico, homem que gastou mais dinheiro com sofistas do que qualquer outro ateniense. Perguntei a ele:
– Cálias, se teus dois filhos fossem dois potros ou duas vitelas, terias de contratar e pagar uma pessoa que tomasse conta deles, que tivesse a capacidade de lhes ensinar as virtudes para serem acrescentadas à sua natureza, e eles se tomariam cavalariços ou agricultores; mas teus filhos são homens; que educação, então: tencionas proporcionar-lhes? Quem entende das virtudes que lhes são necessárias, ou seja, das virtudes do homem e cidadão? Acredito que pensaste a respeito disso quando puseste os filhos no mundo. Existe alguém capaz de fazê-lo?
– Claro que sim – respondeu-me.
– E quem é ele? – indaguei-lhe. – de onde é e quanto cobra para ensinar?
– Eveno de Paros. E seu preço é cinco minas – respondeu-me.
No íntimo, parabenizei esse tal de Eveno, se é de fato possuidor dessa doutrina e a ensina a tão baixo preço. Eu mesmo me orgulharia se fosse capaz de tal coisa, contudo eu não sei, ó atenienses.

O Que é o Saber de Sócrates

O Oráculo de Delfos

Oráculo de Delfos
Algum de vós poderia questionar-me: "Ó Sócrates, o que fazes então? Que motivo originou essas calúnias? Com certeza, se muitos te acusaram, não se deveu ao fato de que nada fizeste fora do comum; tantas vozes não teriam se erguido se tivesses te comportado como todos se comportam. Conte o que fizestes, pois não desejamos julgar-te irrefletidamente".
Procurarei esclarecer-vos a respeito da causa dessas calúnias contra mim. Escutai-me, portanto. É possível que alguns entre vós creiam que eu esteja brincando; não, estou falando sério. Ó atenienses, é verdade que adquiri renome por possuir certa sabedoria. E que tipo de sabedoria é essa? Possivelmente, uma sabedoria estritamente humana. E a respeito de ser sábio, receio possuir esta única sabedoria. Ao passo que esses, de quem vos falava há pouco, talvez sejam possuidores de uma sabedoria sobre-humana, mas afirmo que não a conheço, e quem diz o contrário mente, apenas com o intuito de caluniar-me. Peço-vos para não fazer algazarra, ó atenienses, embora possais ter a impressão de que eu esteja proferindo palavras por demais fortes; que não é meu depoimento, mas o de uma testemunha que merece toda a vossa confiança. De minha sabedoria, se de fato se trata de sabedoria, e de sua natureza, invocarei como testemunha, diante de vós, o próprio deus de Delfos. Todos vós conheceis Querefonte. Era meu amigo desde o tempo da juventude e pertencente ao vosso partido popular; partiu no último exílio em vossa companhia e regressou também em vossa companhia. Sabeis que tipo de homem era Querofonte e de como era determinado em suas resoluções Dirigiu-se em certa ocasião a Delfos e atreveu-se a perguntar ao oráculo se existia alguém mais sábio que eu. A pitonisa respondeu que não existia ninguém. Como testemunho deste fato se prestará o irmão de Querefonte, em virtude de este haver falecido.

Pesquisa Junto aos Políticos

Saberão agora o motivo pelo qual vos relato isso: meu intento é pôr-vos a par de onde se originou a calúnia contra mim. Após ter ouvido a resposta do oráculo, refleti da seguinte maneira: "Que pretende o deus dizer? Qual é o significado oculto do enigma? Tendo em vista que eu não me considero sábio, que quer dizer o deus ao afirmar que sou o mais sábio dos homens? Com certeza não mente, pois ele não pode mentir". E longamente me mantive nesta dúvida. Por fim, ao arrepio de minha vontade, comecei a investigar acerca disso. Fui ter com um daqueles que possuem reputação de sábios, julgando que somente assim poderia desmentir o oráculo e responder ao vaticínio: "Este é mais sábio que eu e afirmastes que era eu". Mas enquanto estava analisando este – o nome não é necessário que eu vos revele, ó cidadãos; basta dizer que era um de nossos políticos –, enfim, este com que, analisando e raciocinando em conjunto, fiz a experiência que irei descrever-vos, e este homem aparentava ser sábio, no entender de muitas pessoas e especialmente de si mesmo, mas talvez não o fosse de verdade. Procurei fazê-lo compreender que embora se julgasse sábio, não o era. Em vista disso, a partir daquele momento, não só ele passou a me odiar, como também muitos dos que se encontravam presentes. Afastei-me dali e cheguei à conclusão de que era mais sábio que aquele homem, neste sentido, que nós, eu e ele, podíamos não saber nada de bom, nem de belo, mas aquele acreditava saber e não sabia, enquanto eu, ao contrário, como não sabia, também não julgava saber, e tive a impressão de que, ao menos numa pequena coisa, fosse mais sábio que ele, ou seja, porque não sei, nem acredito sabê-lo. Aí procurei um outro, entre os que possuem reputação de serem mais sábios que aqueles, e me ocorreu exatamente a mesma coisa, e também este me dedicou ódio, juntamente com muitos outros.

Pesquisa Junto aos Poetas

Não obstante isso, continuei diligentemente com minha pesquisa, embora notando, com desagrado e assombro, que todos passaram a me odiar e que, contudo, afigurava-se-me impossível deixar de atentar para as palavras do deus. "Se almejas saber o que o oráculo quer dizer", dizia a mim mesmo, "deves visitar todos aqueles que possuem reputação de sabedoria." Por isso, ó atenienses, devo dizer-vos de novo a verdade; juro-vos que este foi o resultado da minha pesquisa: os que eram famosos por possuírem maior sabedoria, conforme minha pesquisa, conforme a palavra do deus, pareceram-me quase todos em maior erro. E outros, sem fama alguma, se me afiguraram melhores e mais sábios. Mas desejo terminar de relatar-vos minhas peregrinações e as fadigas que sofri para convencer-me de que a palavra do oráculo era incontestável.
Em seguida aos políticos, fui procurar os poetas, tanto os que escreviam ditirambos e tragédias como os demais, convencido de que diante daqueles confirmaria minha ignorância e sua superioridade. Peguei suas melhores poesias, as que considerava mais bem construídas, e indaguei aos próprios poetas o que eles pretendiam dizer; porque dessa maneira aprenderia alguma coisa com eles. Estou com vergonha, ó atenienses, de contar-vos a verdade! Mas é obrigatório que eu a diga. Resumindo, todas as outras pessoas presentes discorriam melhor a respeito do que os poetas haviam escrito que os próprios autores; diante disto, descobri que não era por nenhum tipo de sabedoria que eles faziam versos, mas por uma propensão e inspiração natural que eu desconheço, como os adivinhos e vaticinadores, que dizem de fato muitas coisas belas, mas não conhecem nada do que dizem, e aproximadamente o mesmo, e isto eu percebi com clareza, é o que ocorre entre os poetas. E compreendi também que os poetas, pelo fato de fazerem poesias, julgavam-se os mais sábios dos homens até mesmo em outras coisas em que realmente não o eram. Então afastei-me deles, com a certeza de ser mais sábio que eles, pelo mesmo motivo que era mais que os políticos.

Pesquisa Junto aos Artesãos

No final, dirigi-me aos artesãos, que de sua arte tinha a consciência de não conhecer nada, e eles sabiam que eu os considerava conhecedores de numerosas e belas coisas. E não me equivoquei, eles conheciam coisas que eu não conhecia, e nisso eram mais sábios do que eu. Porém, ó atenienses, também os artesãos famosos apresentavam o mesmo defeito dos poetas: por conhecerem muito bem sua arte, cada um deles julgava-se extremamente sábio, até mesmo em outros assuntos de maior realce e dificuldade, e este importante defeito deslustrava toda sua sabedoria. De forma que eu, em nome do oráculo, indaguei a mim mesmo se deveria permanecer tal como era, nem sabedor de minha sabedoria nem ignorante de minha ignorância, ambas as coisas, como eles, e respondi a mim e ao oráculo que convinha continuar tal qual eu era.

O Verdadeiro Saber Consiste em Saber Que Não se Sabe

Em virtude desta pesquisa, fiz numerosas e perigosíssimas inimizades, e a partir destas inimizades surgiram muitas calúnias, e entre as calúnias, a fama de sábio, porque, toda vez que participava de uma discussão, as pessoas julgavam que eu fosse sábio naqueles assuntos em que somente punha a descoberto a ignorância dos demais. A verdade, porém, é outra, ó atenienses: quem sabe é apenas o deus, e ele quer dizer, por intermédio de seu oráculo, que muito pouco ou nada vale a sabedoria do homem, e, ao afirmar que Sócrates é sábio, não se refere propriamente a mim, Sócrates, mas só usa meu nome como exemplo, como se tivesse dito: "Ó homens, é muito sábio entre vós aquele que, igualmente a Sócrates, tenha admitido que sua sabedoria não possui valor algum". É por esta razão que ainda hoje procuro e investigo, de acordo com a palavra do deus, se existe alguém entre os atenienses ou estrangeiros que possa ser considerado sábio e, como acho que ninguém o seja, venho em ajuda ao deus provando que não há sábio algum. E tomado como estou por esta ânsia de pesquisa, não me restou mais tempo para realizar alguma coisa de importante nem pela cidade nem pela minha casa, e levo uma existência miserável por conta deste meu serviço ao deus.

As Muitas Inimizades e a Acusação

Vós tendes conhecimento de que os jovens que dispõem de mais tempo que os outros, os filhos das famílias mais ricas, seguem-me de livre e espontânea vontade, e se regozijam em assistir a esta minha análise dos homens; inúmeras vezes procuram imitar-me e tentam, por sua própria conta, analisar alguma pessoa. Logicamente, deparam-se com numerosos homens que julgam saber alguma coisa e sabem pouco ou nada, e então, aqueles que são analisados por eles voltam-se contra mim e não contra quem os analisou, declarando que Sócrates é homem por demais infame e corruptor dos jovens. E se alguém indaga: "Afinal, o que faz e o que ensina este Sócrates para corromper os jovens?", nada respondem, porque o desconhecem, e, só para não evidenciar que estão confusos, dizem as coisas que comumente são ditas contra todos os filósofos, além de afirmar que ele especula sobre as coisas que se encontram no céu e as que ficam embaixo da terra, e que também ensina a não acreditar nos deuses e apresenta como melhores as piores razões. A verdade, porém, é que esses homens demonstraram ser pessoas que dão a impressão de saber tudo, porém, naturalmente, não querem dizer a verdade. Desta maneira, ambiciosos, dominados pela paixão e numerosos como são, e todos da mesma opinião nesta difamação a meu respeito e com argumentos que podem parecer também convincentes, sem escrúpulo algum encheram vossos ouvidos com suas calúnias. Este é o motivo pelo qual, finalmente, lançaram-se contra mim Meleto, Ânito e Lícon: Meleto profundamente irado por causa dos poetas, Ânito por causa dos artesãos e dos políticos, Lícon por causa dos oradores. Contudo, como vos disse desde o início, seria de fato um verdadeiro milagre se eu tivesse a capacidade de arrancar-vos do coração esta calúnia que possui raízes tão firmes e profundas. Esta é, ó cidadãos, a verdade, e eu a revelo por completo, sem ocultar-vos nada, nem mesmo esquivando-me dela, embora saiba que sou odiado por muitos exatamente por isso. Por sinal, é outra prova de que digo a verdade, e que esta é a calúnia contra mim e esta a causa. Indagai quanto quiserdes, agora ou depois, e recebereis sempre a mesma resposta.

Defesa Contra Meleto

No que diz respeito aos meus primeiros acusadores, isso é o bastante para a defesa das culpas a mim atribuídas; procurarei em seguida defender-me de Meleto, homem digno e patriota, como ele mesmo se define, e dos acusadores que virão depois. Vou começar desde o início e como se na verdade dissesse respeito a outra espécie de acusadores, analisemos também o ato de acusação deste. Declarou mais ou menos isto:"Sócrates é réu de corromper os jovens, de não crer nos deuses nos quais a cidade crê e também de praticar cultos religiosos extravagantes".
Analisemos esta acusação minuciosamente. Meleto afirma que corrompo a juventude, e eu digo, ó atenienses, que o réu é o próprio Meleto, porque aborda com leviandade assuntos sérios e tão inescrupulosamente leva homens diante do tribunal, com o intuito de fazer crer que se preocupa com coisas com as quais, na verdade, nunca se preocupou. E procurarei provar-vos que isso é a pura verdade.

Meleto Não Sabe o Que é Educar Nem Corromper

Meleto, mostra-te e responde. Não julgas de suprema importância que os jovens consigam se tornar os melhores possíveis?

MELETO: — Julgo.

SÓCRATES: — Dize, então, aos juizes o que os torna melhores. Com certeza o sabes, pois esta é uma preocupação tua e descobriste quem os corrompe, conforme afirmas, e por este motivo citaste-me diante do tribunal e me acusaste. Vamos, dize aos juizes o que os faz melhores. Vês, Meleto, como ficas calado, sem saber o que dizer? E isto não te se afigura vergonhoso, e prova suficiente do que afirmo: que nunca te preocupaste com estes assuntos? Vamos, ó excelente homem, responde: que os faz melhores?

MELETO: — As leis.

SÓCRATES: — Não se trata disto, meu amigo. Indago-te qual é o homem que, em primeiro lugar, deve ter conhecimento, conforme dizes, das leis.

MELETO: — Estes, ó Sócrates, os juizes.

SÓCRATES: — Afirmas, então, Meleto, que estes possuem a capacidade de educar os jovens e torná-los melhores?

MELETO: — Afirmo.

SÓCRATES: — Crês que todos, ou alguns sim e outros não?

MELETO: — Todos.

SÓCRATES: — Dizes bem, por Hera! E grande a quantidade de bons educadores! Também estes que estão nos ouvindo tornam os jovens melhores ou não?

MELETO: — Sim, também estes.

SÓCRATES: — E os senadores?

MELETO: — Também os senadores.

SÓCRATES: — Quer dizer, então, Meleto, que talvez aqueles das Assembléias Populares corrompam os jovens? Ou também aqueles os tornam melhores?

MELETO: — Também aqueles.

SÓCRATES: — Todos os atenienses que te ouvem tornam os jovens bons e belos, todos, exceto eu. Portanto, sou eu quem os corrompe. É isto que queres dizer?

MELETO: — Exatamente isto.

SÓCRATES: — Como sou infeliz! Mas responde-me a isto: também com os cavalos crês que seja assim? Que todos os homens os tornem melhores e somente um os mutile? Ou, ao contrário, que somente um os torne melhores, ou poucos, aqueles que são peritos em cavalos, e que os demais se sirvam dos cavalos e os mutilem? E não acontece assim, ó Meleto, com os cavalos e com todos os seres vivos? Com certeza é assim, digam Ânito e tu mesmo que sim ou não. Seria uma grande felicidade para os jovens se correspondesse à verdade que somente um lhes causa danos e todos os outros os educam e melhoram. Mas, prossegue, Meleto, já que demonstrei a contento que tu nunca te preocupaste com os jovens. Mais ainda, demonstrei que nunca tiveste preocupação com as coisas pelas quais me trouxeste diante deste tribunal.
Agora dize-me, ó Meleto, o que mais convém, viver entre bons cidadãos ou entre maus cidadãos? Amigo, responde, não é difícil o que te pergunto. Os maus não prejudicam aqueles que lhes são próximos? E os bons não lhes fazem o bem?

MELETO: — Com toda a certeza.

SÓCRATES: — Pode existir alguém que esteja com eles e que prefira receber o mal em lugar do bem? Responde, excelente homem. Também a lei deseja que respondas. Pode existir alguém que prefira receber o mal?

MELETO: — Não, realmente.

SÓCRATES: — Então, trouxeste-me a este tribunal porque corrompo os jovens por querer è os torno maus, ou faço isto sem querer?

MELETO: — Afirmo que é por querer.

SÓCRATES: — Quer dizer, então, ó Meleto, tua sabedoria sendo maior que a minha, na tua idade, tendo eu os anos que tenho, que pensas conhecer melhor do que eu que os maus sempre causam algum mal, principalmente àqueles mais próximos deles, e que os bons façam o bem, e que eu ignore essas coisas a ponto de não saber que se se torna mau a um deles corre-se o risco de receber algo mau dele e que, no caso de saber disso, eu me empenhe em torná-los maus? Não me persuadirás disto, ó Meleto. Nem acredito que possas persuadir a ninguém. Ou seja, não corrompo os jovens, ou, se os corrompo, faço-o sem querer, de maneira que em ambos os casos mentes. Se eu os corrompo sem querer, por faltas involuntárias, não existe lei alguma que possa me obrigar a vir até aqui, mas sim que faça com que seja afastado, a fim de advertir-me ou censurar-me, e é claro que, uma vez advertido, não mais farei o que fazia sem querer. Tens evitado encontrar-te comigo e advertir-me; não o quiseste fazer de forma alguma e me trazes aqui, embora as leis estabeleçam que aqui sejam trazidos somente os que devem ser castigados, e não censurados.

Meleto Acusa Sócrates de Ateísmo e se Contradiz

Neste momento, cidadãos de Atenas, é bastante evidente aquilo que eu afirmava: que Meleto nunca se preocupou com essas coisas. Apesar disso, dize-nos, Meleto, de que maneira, de acordo com tua opinião, eu corrompo a juventude? Não o faço, como afirma com clareza a acusação que apresentaste contra mim, ensinando-os a não acreditar nos deuses nos quais a cidade acredita, mas em outras divindades novas? Não é, conforme dizes, ensinando estas coisas que os corrompo?

MELETO: — Sim, eu digo exatamente isto.

SÓCRATES: — Em nome desses mesmos deuses a respeito dos quais agora falamos, explica-te com maior clareza, tanto para mim como para estes juízes, porque não consigo compreender a quais deuses eu ensino que os jovens devem acreditar, pois se naqueles que acredito são deuses, não sou ateu e, por conseguinte, não posso ser culpado disso, mesmo que não sejam os da cidade, e sim outros; é por causa disso que me trazes a este tribunal, por que são outros ou por que afirmas que não acredito de maneira alguma nos deuses e ensino isto aos jovens?

MELETO: — Eu afirmo que não acreditas de maneira alguma nos deuses.

SÓCRATES: — Ó excelente Meleto! Por que dizes que não acredito, da mesma maneira que os outros homens, que o sol e a lua sejam deuses?

MELETO: — Com certeza, ó juízes, pois afirma que o sol é uma pedra e a lua é feita de terra.

SÓCRATES: — Pensas, meu bom Meleto, em acusar também Anaxágoras? E tens em tão pouca estima e reputas tão ignorantes nas letras a estes juízes, a ponto de não saberem que os livros de Anaxágoras de Clazomena estão repletos destes ensinamentos? E por que motivo os jovens iriam aprender de mim estas coisas que por uma simples dracma podem comprar na ágora e zombarem de Sócrates, se este as apresentasse como suas, ainda mais sendo tão extravagantes? Por Zeus, pensas de fato que eu não acredite em deus algum?

MELETO: — Em nenhum, com certeza.

SÓCRATES: — Ninguém acredita em ti, ó Meleto, e naquilo que afirmas; creio que não consegues persuadir nem a ti mesmo. Na verdade, ó atenienses, tudo isto se me afigura desaforado e atrevido, e quem escreveu esta acusação foi desaforado e a escreveu por atrevimento e desrespeito juvenil. É como se alguém desejasse pôr-me à prova compondo uma espécie de enigma: "Dar-se-á conta Sócrates, aquele grande sábio, que o estou ridicularizando e me contradigo? Ou conseguirei enganá-lo e a todos aqueles que me ouvem?" Com efeito, parece-me que Meleto se contradiz na acusação, como se declarasse: "Sócrates é réu de não acreditar nos deuses, mas também de acreditar nos deuses". E isto significa desejo de se divertir.
Ó atenienses, analisai comigo de que maneira creio que ele se contradiz. Responde, ó Meleto. E vós, como já vos exortei no começo, recordai-vos de não me interromper se continuo a raciocinar à minha maneira.
Existe alguém, ó Meleto, que acredite na existência de fatos humanos e não em homens? Fazei com que responda, ó atenienses, e não criai tanta agitação por causa de uma palavra. Há quem não acredite na existência de cavalos, mas sim nas coisas relativas a cavalos? E que não acredite na existência de flautistas, mas sim que existam sons de flauta? Não ha ninguém, eu mesmo respondo, a ti e aos outros que aqui se encontram, se não queres responder. Mas responde ao menos à pergunta seguinte: existe quem possa acreditar em coisas demoníacas, mas não em demônios?

MELETO: — É completamente impossível.

SÓCRATES: — Quanta satisfação me proporcionou tua resposta, embora tenhas sido obrigado pelos juízes. Portanto, acusas-me de acreditar em coisas demoníacas e de ensiná-las; é isto que afirmas e que juraste no teu ato de acusação. Mas se acredito em coisas demoníacas, devo obrigatoriamente crer em demônios, não é assim? Com certeza é assim. Parece-me que aceitas, já que não contestas. E não consideramos estes demônios filhos dos deuses?

MELETO: — Logicamente.

SÓCRATES: — Ora, se afirmas que existem demônios, se estes demônios são deuses, é neste ponto que eu digo que fazes enigmas e brincadeiras, quando declaras que eu, embora não acreditando na existência dos deuses, afirmo a sua existência, uma vez que digo existirem demônios. De outra forma, se estes demônios são filhos dos deuses, são também filhos bastardos gerados por ninfas ou outras mães; então, quem poderá pensar que existam filhos de deuses e de deuses não? Seria disparate igual se pensasse que os mulos fossem filhos de jumentos e cavalos e que estes últimos não existissem. Por isso, Meleto, é impossível, exceto que haja sido para pôr-me à prova, que tenhas escrito contra mim uma acusação como esta, ou é necessário dizer que não sabias do que me acusar? Mas que consiga convencer quem quer que seja, mesmo se fraco de intelecto, que a mesma pessoa que acredita em coisas demoníacas possa não acreditar em coisas divinas e, de outra forma, que a mesma pessoa que acredita em coisas demoníacas possa não acreditar nem em demônios, nem em deuses, nem em heróis, isto é impossível.

A Missão Divina

Fazer o Que é Justo, Permanecer no Lugar Adequado, Obedecer ao Deus

Chega, ó atenienses, isto é o bastante para demonstrar que não sou culpado das acusações de Meleto, pois não se faz necessária uma defesa muito longa. O que eu vos disse, desde o início, que um profundo ódio ergueu-se contra mim, e vindo de muitas pessoas, é verdade, vós sabeis; e se algo me causará dano, não será nem Meleto nem Ânito, mas sim este ódio, esta calúnia e esta raiva das pessoas. Pessoas estas que já causaram a perda de tantos outros e valorosos homens, e, acredito, outros ainda irão perder, não havendo perigo que causem somente a minha perda.
Algum de vós poderia talvez altercar-me: "Sócrates, não te envergonhas de haveres exercido tal atividade, que agora coloca em risco tua vida?" Eu responderia a este: "Não falas bem se pensas que alguém, tendo a capacidade de fazer algum bem, mesmo sendo pequeno, deva calcular os riscos de vida ou de morte e não deva olhar o injusto e se pratica as ações de homem honesto e corajoso ou de infame e mau. Por outro lado, acompanhando este teu raciocínio, teriam sido néscios todos os heróis que morreram em Tróia, e o mais néscio de todos seria o filho de Tétis que, sem se envergonhar, tamanho desdém mostrou pelo perigo, quando sua mãe, uma deusa, estando ele ávido do sangue de Heitor, disse-lhe, se bem me lembro: 'Ó filho, se vingares a morte do teu companheiro Pátroclo e matares Heitor, também morrerás'. Ao ouvir tais palavras, Aquiles negligenciou o perigo e a morte, receando muito mais viver miseravelmente sem vingar o amigo, e declarou: 'Rapidamente eu morra, logo após ter castigado a quem matou, nem que para isso me torne objeto de desprezo'. Acreditas que Aquiles tenha pensado na morte e no perigo?"
É assim que deve ser, ó atenienses, que onde alguém se haja instalado, considerando ser aquele seu lugar mais honroso, ou onde tenha sido instalado por quem ordena, aí, creio, deve ficar e enfrentar os riscos e não pensar na morte, nem em outra desgraça qualquer, à exceção de na desonra e na vergonha.
Declaro-vos, ó cidadãos, que meu comportamento seria anormal e excêntrico se, ao passo que em Potidéia, Anfípolis e Délio, quando os comandantes que vós elegestes me designaram uma posição, lá fiquei, como qualquer outro, arriscando minha vida, aqui, ao contrário, ao receber ordens do deus, ao menos conforme pude ouvir e interpretar essa mesma ordem, pela qual deveria viver filosofando e dedicando-me a conhecer a mim mesmo e aos outros, que, digo, por temor à morte ou a outra desgraça semelhante, tivesse desertado do posto a mim designado pelo deus. Seria algo, repito, anormal e, de fato, existiriam então motivos para trazer-me aqui no tribunal como sendo um desumano que não cresse nos deuses, já que desobedece ao oráculo, receia a morte e julga ser sábio sem sê-lo. Com efeito, atenienses, recear a morte não passa de julgar ser sábio e não sê-lo, dado que significa pensar saber aquilo que não se sabe. E, em verdade, ninguém sabe se, por acaso, ela não seja o maior de todos os bens que podem ser dados ao homem e, contudo, receiam-na como se soubessem que ela é a maior das desgraças. E não é ignorância, a mais vergonhosa das ignorâncias, acreditar saber o que não se sabe? Ora, atenienses, acredito distinguir-me por este motivo e precisamente neste ponto da maior parte dos homens, e se me atrevesse a dizer que em alguma coisa sou mais sábio que os outros, somente por isto o diria, que como não sei nada de preciso a respeito das coisas do Hades, também nada penso saber a esse respeito. Mas ser injusto e desobedecer a quem é melhor que nós, seja deus, seja homem, isto bem sei que é coisa vergonhosa e indecente. Por isso, como ocorre diante dos males que sei que são nefastos, nunca acontecerá que eu fuja diante daqueles de que não sei se por acaso não são bens.
Portanto, mesmo que me concedesses a liberdade, contra a vontade de Ânito que, desde o começo, declarava não ser necessário que eu viesse até este tribunal, ou, uma vez aqui trazido, que era impossível não condenar-me à morte, porque, dizia, se consigo safar-me da condenação, daquele momento em diante, seus filhos prosseguindo a praticar os ensinamentos de Sócrates, estariam inapelavelmente perdidos e corrompidos; se, ao ouvir este raciocínio de Ânito, me dissésseis: "Ó Sócrates, não pretendemos dar, agora, atenção a Ânito e deixamos-te livre, desde que não empregues mais teu tempo nessas pesquisas, nem te ocupes mais de filosofia, e se fores surpreendido a praticar ainda estas coisas, morrerás"; se, como dizia, com esta condição me deixásseis em liberdade, eu vos responderia: "Ó atenienses, eu vos amo, mas obedecerei primeiro ao deus do que a vós, e enquanto tiver ânimo, e enquanto for capaz, não pararei de filosofar, não pararei de estimular-vos e censurar-vos; e a quem quer que eu encontrasse de vós, em qualquer ocasião, conversando da minha maneira habitual, assim diria: "E tu, que és o melhor dos homens; tu, ateniense, cidadão da maior cidade e mais célebre por sabedoria e poder, não te envergonhes de pensar em acumular o máximo de riquezas, fama e honras, sem te preocupar em cuidar da inteligência, da verdade e da tua alma, para que se tornem tão boas quanto possível?" E se algum de vós retrucasse que cuida de fato delas, não o deixaria afastar-se nem iria embora, mas o interrogaria, o analisaria, o impugnaria, e se me afigurasse que não possui virtude mas apenas afirma possuí-la, eu o envergonharia demonstrando-lhe que considera infames as coisas mais estimáveis e de valor, as infames. E agiria assim com qualquer um que eu quisesse: jovens ou velhos, atenienses ou estrangeiros, e também com vós, que me sois mais estritamente próximos. Isto, vós não desconheceis, é ordem do deus e estou convencido de que haja para vós maior bem na cidade do que esta minha obediência ao deus.
Em verdade, com este meu caminhar não faço outra coisa a não ser convencer-vos, jovens e velhos, de que não deveis vos preocupar nem com o corpo, nem com as riquezas, nem com qualquer outra coisa antes e mais que com a alma, a fim de que ela se torne excelente e muito virtuosa, e de que das riquezas não se origina a virtude, mas da virtude se originam as riquezas e todas as outras coisas que são venturas para os homens, tanto para os cidadãos individualmente como para o Estado. Se ao falar desta maneira corrompo os jovens, está certo, isto significará que minhas palavras são nocivas, mas se alguém afirma que falo diferentemente e não deste modo, então diz coisas insensatas. Por tudo isso, permiti que vos diga, ó cidadãos atenienses: ou dareis ouvidos a Ânito, ou não dareis, absolver-me-eis ou não, mas, de qualquer forma, tende a certeza de que nunca agirei de outra maneira que esta, mesmo que não só uma, mas muito mais vezes devesse morrer.
Não promoveis algazarra, ó cidadãos, lembrai-vos de meu pedido de que não causásseis balbúrdia diante do que eu dissesse, mas que vos limitásseis a ouvir. Ademais, creio que vos será útil escutar. Restam-me algumas outras coisas a dizer-vos, às quais, talvez, erguereis a voz. Não, não fazei assim. Convencei-vos: se me condenardes à morte, a mim que sou como vos disse, não me causareis maior dano que podeis causar a vós mesmos. A mim não causarão dano nem Meleto nem Ânito. E nem o poderiam. Não penso que seja possível que um homem de bem receba o mal de um malvado. Poderá sim, Ânito, condenar-me à morte, ou ao desterro, espoliar-me dos direitos civis; tudo em que este homem crer e outros crerem serão grandes males, não o creio eu; penso que seja um mal bem mais grave aquele que é cometido por esses que tentam condenar à morte um homem inocente. Logo, ó atenienses, de maneira alguma estou falando em minha defesa, como alguém poderia achar, mas falo por vós, que não necessitais pecar, condenando-me à morte, contra o dom do deus. Pois se me matardes, não encontrarão facilmente um outro igual a mim, que, não riam da comparação, tenha sido colocado de fato pelo deus aos flancos da cidade como aos flancos de um cavalo grande e de boa raça, mas pelo seu próprio tamanho, um pouco lerdo e necessitado de estímulo, um ferrão. Assim parece-me que o deus me colocou aos flancos da cidade; nunca paro de exortar-vos, de convencer-vos, de falar-vos, um por um, estando a vosso lado, em todo lugar. Afirmo, pois, que outro como eu não nascerá facilmente, ó atenienses, e se desejais me ouvir, me poreis a salvo. Mas se estais irritados comigo como o que está em vias de adormecer com quem o desperta, e golpeais como a matar um inseto inoportuno, condenar-me-eis à morte, por obediência a Ânito, e depois, no decorrer de todo o resto de vossa existência, dormireis tranquilamente, se o deus não vos mandar algum outro para substituir-me. E se for eu mesmo a pessoa indicada pelo deus para presentear a cidade, podereis me reconhecer por isso: que não parece humano que haja descuidado todos os meus negócios e ainda aguentar por tantos anos que tenham sido descuidadas as coisas da minha casa, e sempre, ao contrário, cuidando das vossas, estando por perto como estaria um pai ou irmão mais velho, para convencer-vos a buscar a virtude. Que se desta vida tirasse algum proveito e se pelos conselhos que dou recebesse alguma compensação, aí sim haveria uma razão, mas vistes que meus detratores, que me acusaram tão despudoradamente de tantas outras culpas, desta não tiveram o despudor de me acusar, pondo-me frente a frente com uma testemunha, somente uma, que provasse ter eu recebido uma única vez compensação ou de havê-la solicitado. E a prova cabal de que é verdade o que vos declaro, eu dou: a minha pobreza.

Repugnância e Abstenção Socrática da Política Comum

É possível que pareça estranho eu me encontrar sempre próximo e me dar tanto ao trabalho de fornecer conselhos a este ou àquele em particular, se, ao se tratar de aconselhar a cidade e de ir à tribuna para falar ao povo, então me falte coragem. E o motivo disso me haveis ouvido dizer várias vezes e em vários lugares, que existe em mim não sei que espírito divino e demoníaco, a respeito do qual, também Meleto, com jeito de estar se divertindo, aponta no ato da acusação. É como uma voz que possuo dentro de mim desde criança, e que, toda vez que eu a ouço, sempre faz com que eu desista do que estou para fazer, e nunca me convence a realizar qualquer outra coisa. É essa voz que me impede de me ocupar das coisas do Estado, e parece-me que faz muito bem em agir dessa forma. Sabeis perfeitamente, ó cidadãos, que se eu tivesse, por algum tempo, me ocupado dos negócios de Estado, teria sido morto também num curto espaço de tempo e não teria realizado nada de útil, nem por vós nem por mim. E não me desprezei se falo assim, pois é a verdade. Não existe homem que possa se salvar ao opor-se com sinceridade, não digo a vós, mas a qualquer outra multidão, e tente impedir que muitas vezes se cometam injustiças as leis na cidade; e é também preciso que aquele que luta em defesa do que é justo, se de fato pretende escapar da morte, mesmo que por breve tempo, de viver de forma privada e não exercer funções públicas.
aquilo que afirmo eu mesmo posso oferecer-vos provas cabais, e não palavras, mas do que mais necessitais: fatos. Escutai o que me sucedeu e vereis então que diante do que é justo não sou homem de ceder a ninguém por temor à morte; e que, além de não ceder, estou pronto a morrer. Falarei um pouco grosseiramente, como fazem alguns dos frequentadores dos tribunais, mas com sinceridade. Tendes conhecimento, ó cidadãos, de que nunca exerci em nossa cidade magistratura alguma, exceto uma vez em que fiz parte do Conselho, justamente no dia em que era o vosso desejo julgar em conjunto, ao arrepio da lei, e em seguida acolhestes todos ao meu parecer, aqueles dez capitães que não haviam recolhidos os náufragos e os mortos depois da batalha naval das Arginusas. Então eu me opus, lutando para que nada fosse feito contra a lei, e votei contra. Os oradores habituais já estavam prontos para suspender-me da função e aprisionar-me, e vós a instigá-los e a gritar; julguei que era meu dever correr aquele risco mantendo-me ao lado do direito e do justo em vez de apoiar-vos e deliberar o injusto por temer a prisão e a morte. E isto ocorreu quando a cidade ainda era regida por uma democracia. Mais tarde, depois que surgiu a oligarquia, os Trinta mandaram-me chamar, e a mais outros quatros, levaram-nos à sala do Tolo e ordenaram que retirássemos de Salamina o Leon de Salamina, para que este viesse a morrer. E davam ordens semelhantes a vários outros homens, na tentativa de envolver em seus atos cruéis o maior número de pessoas possível. E naquela ocasião, não com palavras, e sim com fatos, demonstrei que a morte, se a palavra não soar por demais vulgar, não possui importância alguma para mim, mas de não cometer injustiças ou crueldades, isto sim me importa acima de qualquer coisa.E aquele governo, apesar de prepotente, não me atemorizou, não me obrigou a cometer um ato injusto, e, quando saímos do Tolo e os outros quatro se dirigiram para Salamina a fim de retirar Leon, deixei-os ir e voltei para casa. Acredito que só por causa disso, eu já teria morrido, se aquele governo não tivesse sido deposto logo em seguida. E disto que relatei possuo muitas testemunhas.

O Testemunho dos Discípulos, de seus Pais e Irmãos

Credes que eu teria vivido por tantos anos se houvesse me ocupado de assuntos públicos e, fazendo-o como homem de bem, tivesse lutado em defesa da justiça e tivesse considerado esta defesa, como é necessário, meu dever mais alto? Com certeza, atenienses, não existe homem que o tivesse conseguido! Em verdade, em toda minha existência, tanto em público, nas poucas vezes que me ocupei de coisas públicas, como privadamente, sempre fui o mesmo, um homem que diante do justo nunca cedeu a quem quer que fosse, a ninguém, e nem mesmo àqueles que os caluniadores chamam de meus discípulos. Nunca fui mestre de quem, quer que seja, principalmente se é uma pessoa que , quando falo ou atendo àquilo que acredito ser meu ofício, deseja escutar-me; seja jovem, seja velho, nunca me refutaram, e não é verdade que, se recebo dinheiro, eu falo e se não recebo, fico calado, porque estou da mesma maneira à disposição de todos, pobres e ricos, quem quer que me indague e deseje ouvir as minhas respostas. Por conseguinte, se entre os homens que me frequentam, um se torne de boa formação moral ou não, não será justo que eu receba elogios ou impropérios, já que não prometi ensinamento algum a ninguém, nem nunca ensinei coisa alguma. E se há quem diga que aprendeu ou ouviu alguma coisa de mm, em particular, alguma coisa que todos os outros não tenham aprendido ou ouvido, tenhais a certeza de que este não diz a verdade.
Diante disso, como é possível que a alguns agrade estar comigo tanto tempo? Vós ouvistes, ó cidadãos, que eu disse toda a verdade: têm prazer de ouvir-me quando submeto à prova aqueles que pensam serem sábios e não o são. Com efeito, não é desagradável. Ao fazer isso, repito-vos, cumpro as ordens do deus, dadas por intermédios de vaticínios e sonhos, e por outros meios de que se serve a providência divina para ordenar ao homem que faça alguma coisa. E estas coisas, ó atenienses, são verdadeiras e demonstráveis. Se de fato eu corrompo os jovens, se já corrompi algum, seria ainda necessário que estes, ao envelhecerem, tomassem consciência de que quando eram jovens eu os aconselhei a praticar o mal, e que viessem à tribuna para acusar-me e para exigir minha punição, e, se não quisessem fazê-lo diretamente, que enviassem hoje para cá as pessoas de sua família, pais, irmãos, e outros, se os que lhe são caro sofreram algum mal por mim causado, e que me fizessem pagar por isso. Muitos destes estão presentes, eu os vejo. Ali está Críton, meu contemporâneo e conterrâneo com sei filho Critóbulo, e também Lisânias de Esfeto, com seu filho Ésquino,e ainda Antífon de Cefísia, pai de Epígeno, e ali estão outros, cujos irmãos viveram comigo familiarmente, Nicóstrato, , filho de Teozótides, irmão de Teódoto, e como Teódoto faleceu, não poderá falar com o irmão a meu favor, e aí está Parálio, filho de Demódoco,de quem era irmão Teages, e ali Adimanto, filho de Aríston, de quem ali se encontra o irmão Platão, e Aantodoro, de quem temos aqui o irmão Apolodoro. E poderia nomear muitos outros. E conseguiria indicar vários outros que Meleto poderia apresentar como testemunhas na sua acusação; se ele se esqueceu disso, que os apresente agora, cedo-lhe o lugar; se existe alguma testemunha deste tipo, que se manifeste.
Porém, atenienses, vereis que todos farão o contrário, todos falarão a favor do corruptor, em defesa daquele que causa o mal de seus familiares, como afirmam Meleto e Ânito. Talvez esses, os corrompidos, tenham alguma razão para me defender, mas aqueles que não foram corrompidos, que são agora anciãos, que outra razão podem ter para me defender exceto esta, que é verdadeira e justa: a certeza de que Meleto mente e eu digo a verdade?

Epílogo

Sócrates não quer Misericórdia

Cidadãos, são estas, enfim, as razões que posso apresentar em minha defesa, e algumas mais, que, porém, são bem poucos diferentes destas. É possível que alguém entre vós, ao pensar em si mesmo, possa irritar-se comigo se, algum dia, ao ter de enfrentar um processo menos arriscado do que este, suplicou clemência aos juizes, e, além disso, trouxe ao tribunal os filhos e vários de seus parentes e amigos, ao passo que eu não me porto desta maneira, embora, ao que parece, esteja arriscando a vida .É possível que alguém, ao fazer intimamente esta comparação, se deixe influenciar pelo amor-próprio ferido e, desta forma, enraivecido com minha atitude, emita seu voto com raiva. A uma pessoa assim, que talvez esteja entre vós, não afirmo categoricamente que há, poderei responder da seguinte maneira: "Meu estimado amigo, eu também trouxe alguém da minha família, e aqui caberia aquele dito de Homero: 'Que não de carvalho, nem de pedra nasci, mas de criaturas humanas'.
Eu também possuo família, ó atenienses; tenho três filhos, um já crescido e dois ainda crianças, mas não os trouxe aqui para despertar vossa misericórdia e absolver-me". E não é por orgulho que me comporto assim, nem por desprezo, nem para provar que sou corajoso diante da mote, mas pela minha reputação, pela vossa e de toda a cidade, não me pareceu honroso agir dessa maneira, ainda mais na minha idade e com o meu nome, verdadeiro ou falso que seja, porque corre pela cidade que, em quaisquer aspectos, Sócrates se distingue da maioria dos homens. Ora, se aquele que entre vós possuem fama de se distinguirem pela sabedoria e coragem, ou por outra virtude qualquer, se procedessem dessa maneira, seria vergonhoso, e pessoas desse tipo, eu mesmo presenciei muitas vezes, quando eram réus em um processo, embora possuíssem alguma boa reputação, têm atitudes excepcionais, como se achassem que iriam sofrer sabe-se lá que tortura se devessem morrer e como se tornassem imortais se não fossem condenados à morte por vós. Estes, sim, envergonham a toda a cidade, tanto que qualquer forasteiro poderia imaginar que aqueles atenienses que se distinguem por sua virtude e que seus concidadãos elegem à magistratura e outras honras não são em nada melhores que as mulheres. Por isso, não nos portamos dessa maneira é o que compete a nós, que temos fama de sermos ainda alguma coisa. Nem vos conviria, se nos comportássemos assim, deixar-nos fazê-lo, mas sim mostrar a todos que julgais com maior rigor quem encena esses dramas lastimosos e cobre a cidade de ridículo do que quem suporta com serenidade o próprio destino.
Não considero justo, ó cidadãos, tentar influir nos juízes e, mediante súplicas, livrar-me da condenação, mas sim infomá-los e convencê-los.
Os juízes não se encontram aqui para favorecer o justo, mas para julgar o justo, nem juraram que favorecerão a quem lhes paga, mas que farão justiça de acordo com as leis. Portanto, não é necessário que vos habitueis a isso; não faremos coisas boas e piedosas, nem vos nem eu. Não iríeis querer então, ó atenienses, que eu cometesse diante de vós atos que reputo desonestos, injustos e vis, e eu menos ainda, eu que sou acusado por Meleto, aqui presente, de impiedade. Porque é evidente que se eu, por meio de súplicas procurasse convencer-vos e obrigar-vos a violar o juramento, eu vos ensinaria que, desta acusação, seria culpado de não crer nos deuses. E é justamente o contrário que sucede. Acredito nos deuses mais do que qualquer um dos meus acusadores, e deixo a vosso critério, e ao do deus, julgar o que será para vós e para mim o melhor.

Segunda Parte

A Pena

Do Esperado da Pena

Se eu não estou abalado, ó atenienses, com o que acaba de ocorrer, o de terem votado pela minha condenação, isso deve-se, entre outras razões, ao fato de não haver sido apanhado de surpresa. O que, no entanto, me causa mais estranheza é o grande número de votos favoráveis a mm , pois acreditava que seria condenado por muito mais votos, e não por tão poucos. Ao que me parece, com apenas mais trinta votos a meu favor teria sido absolvido. Portanto, penso haver escapado das mãos de Meleto, e não só haver escapado delas, mas, o que é bastante evidente, se Ânito e Lícon não tivessem vindo para me acusar, eu teria sido multado em mil dracmas por não haver conseguido um quinto dos votos.
Este homem, então, pensa que mereço a pena capital. E eu, que pena apresentarei em oposição à vossa, ó atenienses? Não é evidente que seja a mesma que me foi imposta? Qual será então? Que pena merecerei ou que multa, por não haver usufruído em paz, ao longo da minha existência, o que aprendi, e por ter desprezado aquilo que atrai a maioria; riquezas, interesses particulares, cargos militares e políticos e todas as outras magistraturas, e as agitações e conspirações que acontecem nas cidades, pois sempre me considerei por demais honesto para conseguir salvar-me se me dedicasse a tais coisas e convencido de que não teria sido útil nem para mm nem para vós, e porque sempre acudi rapidamente aonde quer que eu reputasse poder proporcionar o maior bem a cada um de vós em particular, tentando convencer-vos de que, antes de qualquer coisa e de vós mesmos, procurásseis ser os melhores e mais sensatos possível, e que vos esforçásseis ao máximo para trabalhar em prol da cidade. Que mereço por sempre haver agido desta forma? Algum grande bem, ó atenienses, se é que devo ser recompensado como mereço. Que será apropriado para um pobre benfeitor que precisa de tempo para aconselhar-vos nos vossos assuntos? O que mais seria conveniente a esse homem, atenienses não seria mantê-lo no Pritaneu com muito maior razão do que aqueles que, com cavalo, biga ou quadriga, tenham conseguido triunfos nos Jogos Olímpicos. Porque estes vos proporcionam felicidade, e também a mim, e não precisam ser sustentados como eu precioso. Se, então, devo pedir, de acordo com o direito, aquilo a que faço jus, peço se alimentado no Pritaneu.
Contudo, mesmo nestas minhas palavras de agora, talvez julgais notar quase o mesmo sentimento de ofensivo orgulho que acreditáveis ter percebido quando falava a respeito de suplicar e despertar comiseração. Não, não é isso, ó cidadãos, mas algo bastante diferente. Penso nunca haver prejudicado ninguém por querer, e mesmo assim não logrei convencer-vos; tivemos muito pouco tempo para nos entendermos. E acredito que se houvesse leis entre nós, como as que há entre outros povos, que proíbem que uma pena de morte seja aplicada em apenas um dia, e sim em mais, estaríeis convencidos, e, mesmo assim, não é fácil livrar-se em tão breve espaço de tempo de acusações tão graves. E também pensa em prejudicar a mm mesmo ao declarar que sou merecedor da pena e pedir que esta pena seja aplicada a mim. E por temer o que eu deveria agir dessa forma? Talvez por temer sofrer aquilo que Meleto exige para mim e que eu declaro não saber se é bom ou mau? E em troca desta pena devo escolher outra entre aquelas que eu sei serem más? Deverei solicitar a prisão? E por que motivo deverei viver preso, a serviço da eterna magistratura dos Onze? Uma pena em dinheiro e permanecer enjaulado enquanto não for paga? Mas é exatamente a mesma coisa que a anterior, porque não possuo dinheiro para pagá-la. Pedirei o exílio? Sim, talvez seja precisamente esta pena que desejastes para mim. Porém, em verdade, ó atenienses, eu teria de estar imbuído de uma bem ingênua vontade de viver se fosse assim tão irracional a ponto de não poder nem mesmo fazer este raciocínio, que enquanto vós, embora sendo meus concidadãos, não fostes capazes de agüentar minha companhia e os meus discursos, e mais, que minha companhia foi tão desagradável que procuras agora livrar-vos dela, que outros a agüentariam de bom grado? E ainda, atenienses, que excelente vida seria a minha, nesta idade, exilado, mudando sempre de país para país, perseguido em todos os lugares. Porque sei muito bem que aonde quer que eu vá, os jovens acorrerão a fim de me ouvir, como aqui, e, se eu os repelir, serão estes mesmos que me farão perseguir, convencendo os mais velhos; e se não os repelir, serei perseguido por seus pais e demais parentes.
Algum de vós talvez pudesse contestar-me: "Em silêncio e quieto, ó Sócrates, não poderias viver após ter saído de Atenas?" Isso seria simplesmente impossível. Porque, se vos dissesse que significaria desobedecer ao deus e que, por conseguinte, não seria possível que eu vivesse em silêncio, não acreditaríeis e pensaríeis que estivesse sendo sarcástico. Se vos dissesse que esse é o maior bem para o homem, meditar todos os dias sobre a virtude e acerca dos outros assuntos que me ouvistes discutindo e analisando a meu respeito e dos demais, e que uma vida desprovida de tais análises não é digna de ser vivida, se vos dissesse isto, acreditar-me-iam menos ainda. Contudo, é isto que vos digo, ó atenienses, porém é difícil convencer-vos. Por outro lado, não estou habituado a considerar-me merecedor de mal algum. Se eu possuísse dinheiro, poderia ter-me aplicado uma multa que conseguisse pagar, porque, assim, não teria me infligido mal algum. Mas não possuo dinheiro e não posso fazer isso, exceto se desejeis multar-me de uma quantia que eu tenha a possibilidade de pagar. Poderei pagar-vos apenas uma mina de prata. Portanto, multo-me em uma mina de prata.

Mas vedes, ó atenienses, que Platão, Críton, Critóbulo e Apolodoro querem que eu me multe em trinta minas, que eles mesmos garantirão. Multo-me então em trinta minas. E esses homens, dignos de crédito e confiança, serão garantes dessa quantia.

Terceira Parte

Após a Condenação

Aos que Votaram Contra

Por não haverdes aguardado mais um pouco, atenienses, aqueles que desejarem injuriar a cidade vos impingirão a fama e a acusação de terdes matado Sócrates, um sábio. Sim, chamar-me-ão de sábio, apesar de que eu não o seja, os que vos quiserem censurar. Se esperásseis mais algum tempo, a própria natureza satisfaria o vosso desejo. Bem sabeis a minha idade, já distante da vida e próxima da morte. Não dirijo essas palavras a todos vós, mas aos que votaram pela minha morte.
Para esses mesmos, adito o seguinte: talvez imagineis, senhores, que me perdi por falta de discursos com que vos poderia persuadir, se na minha opinião se devesse tudo fazer e dizer para escapar à justiça. Engano! Perdi-me por falta, não de discursos, mas de atrevimento e descaramento, por me recusar a proferir o que mais gostais de ouvir, lamentos e gemidos, fazendo e dizendo uma porção de coisas que declaro indignas de mm, tais como costumais ouvir dos outros. Ora, se antes achei que o perigo não justificava indignidade alguma, tampouco me pesa agora da maneira por que me defendi; ao contrário, muito mais folgo em morrer após a defesa que fiz, do que folgaria em viver após fazê-la daquele outro modo. Quer no tribunal, quer na guerra, não devo eu, não deve ninguém lançar mão de todo e qualquer recurso para escapar à morte. Com efeito, é evidente que, nas batalhas, muitas vezes se pode escapar à morte arrojando as armas e suplicando piedade aos perseguidores; em cada perigo, tem muitos outros meios de escapar à morte quem ousa tudo fazer e dizer. Não se tenha por difícil escapar à morte, porque muito mais difícil é escapar à maldade; ela corre mais ligeira que a morte. Neste momento, fomos apanhados, eu, que sou um velho vagaroso, pela mais lenta das duas, eu e os meus acusadores, ágeis e velozes, pela mais ligeira, a malvadez. Agora, vamos partir; eu, condenado por vós à morte; eles, condenados pela verdade a seu pecado e a seu crime. Eu aceito a pena imposta; eles igualmente. Por certo, tinha de ser assim e penso que não houve excessos.
Acerca do futuro, no entanto, quero fazer-vos um vaticínio, meus condenadores; de fato, eis-me chegado àquele momento em que os homens vaticinam melhor, quando estão para morrer. Eu vos afianço, homens que me mandais matar, que o castigo os vos alcançará logo após a minha morte e será, por Zeus, muito mais duro que a pena capital que me impusestes. Vós o fizestes supondo que vos livraríeis de dar boas contas de vossa vida; mas o resultado será inteiramente oposto, eu vo-lo asseguro. Serão mais numerosos os que vos pedirão contas; até agora eu os continha e vós não os percebíeis; eles serão tanto mais importunos quanto são mais jovens, e vossa irritação será maior. Se imaginais que, matando homens, evitareis que alguém vos repreenda a má vida, estais enganados; essa não é uma forma de libertação, enm é inteiramente eficaz nem honrosa; esta outra, sim, é a mais honrosa e mais fácil; em vez de tapar a boca dos outros, preparar-se para ser o melhor possível. Com este vaticínio, despeço-me de vós que me condenastes.

Aos que o Absolveram

Com os que votaram pela absolvição, gostaria de conversar com respeito ao que se acaba de suceder, enquanto os magistrados estão ocupados e antes de ir para onde devo morrer. Por conseguinte, senhores, ficai comigo mais um pouco; nada obsta que nos entretenhamos enquanto dispomos de tempo. Quero explicar-vos, como a amigos, o sentido exato de que me aconteceu agora.
O que me ocorreu senhores juízes, a vós é que chamo com tino de juízes, foi algo prodigioso. A usual inspiração, a da divindade, sempre foi rigorosamente assídua em opor-se a ações mínimas, quando eu ia cometer um erro; agora, porém, acaba de me ocorrer o que vós estais vendo, o que se poderia considerar, e há quem o faça, como o maior dos males; mas a advertência divina não se me opôs de manhã, ao sair de casa, nem enquanto subia aqui para o tribunal, nem quando ia dizer alguma coisa; no entanto, quantas vezes ela me conteve em meio de outros discursos! Mas hoje não se me opôs vez alguma no decorrer do julgamento, em nenhuma ação ou palavra. A que devo atribuir isso? Vou dizer-vos: é bem possível que seja um bem para mim o que aconteceu e não é forçoso acreditar que a morte seja um mal. Disso tenho agora uma boa prova, porque a usual advertência não poderia deixar de opor-se, se não fosse uma ação boa o que eu estava para praticar.
Façamos mais esta reflexão: há grande esperança de que isto seja um bem. Morrer é uma destas duas coisas: ou o morte é igual a nada, e não sente nenhuma sensação d coisa nenhuma; ou, então, como se costuma dizer, trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte!
Bem posso imaginar que, se devêssemos identificar uma noite em que estivéssemos dormindo tão profundamente que nem mesmo sonhássemos e, contrapondo a essa as demais noites e dias de nossa vida, pensar e dizer quantos dias e noites de nossa existência vivemos melhor e mais agradavelmente do que naquela noite, bem posso imaginar que, já não digo um homem comum, mas o próprio rei da Pérsia acharia fácil enumerar tal noite entre as outras noites e dias. Logo, se a morte é isso, digo que é uma vantagem, porque, assim sendo, toda a duração do tempo se apresenta como nada mais que uma noite. Se, do outro lado, a morte é como a mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes?
Se, ao chegar ao Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a gente vai encontrar os verdadeiros juízes que, segundo consta, lá distribuem a justiça, Minos, ¹ Radamanto, Éaco, Triptólemo e outros semideuses que foram justiceiros em vida, não valeria a pena a viagem? Quanto não daria qualquer de vós para estar na companhia de Orfeu, ² Museu, Hesíodo e Homero? Por mm, estou pronto a morrer muitas vezes, se isso é verdade; eu de modo especial acharia lá um entretenimento maravilhoso, quando encontrasse Palamedes, Ajax de Telamon e outros dos antigos, que tenham morrido por um sentença iníqua; não me seria desagradável comparar com os deles os meus sofrimentos e, o que é mais, passar o tempo examinando e interrogando os de lá como aos de cá, a ver quem deles é sábio e quem, não o sendo, cuida que é. Quanto não se daria, senhores juízes, para sujeitar a exame aquele que comandou a imensa expedição contra Tróia, ou Ulisses, ou Sísifo? Milhares de outros se poderiam nomear, homens e mulheres, com quem seria uma felicidade indizível estar junto, conversando com eles, sujeitando-os a exame! Os de lá absolutamente não matam por uma razão dessas! Os de lá são mais felizes que os de cá, entre outros motivos, por serem imortais pelo resto do tempo, se a tradição está certa.
Vós também, senhores juízes, deveis bem esperar da morte e considerar particularmente esta verdade: não há, para o homem bom, mal algum, quer na vida, quer na morte, e os deuses não descuidam de seu destino. O meu não é consequência do acaso; vejo claramente que era melhor para mim morrer agora e ficar livre de fadigas. Por isso é que a advertência nada me impediu. Não me insurjo absolutamente contra os que votaram contra mm ou me acusaram. Verdade é que não me acusaram e condenaram com esse modo de pensar, mas na suposição de que me causavam dano: nisso merecem censura. No entanto, só tenho um pedido a lhes fazer: quando meus filhos crescerem, castigai-os, atormentai-os com os mesmíssimos tormentos que eu vos infligi, se achardes que eles estejam cuidando mais da riqueza ou de outra coisa que da virtude; se estiverem supondo ter um valor que não tenham, repreendei-os, como vos fiz eu, por não cuidarem do que devem e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se vós assim agirdes, eu terei recebido de vós justiça; eu, e meus filhos também.
Bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor destino, se eu, se vós, é segredo para todos, exceto para a divindade.
¹ Rei lendário de Creta, filho de Europa e de Zeus, marido de Pasífae, sábio legislador, juiz dos Infernos com Éaco e Triptólemo.
² Célebre aedo da era pré-homérica, cantava e tocava a lira com tal perfeição que até as feras se aquietavam e vinham deitar-se a seus pés. Atribuía-se-lhe a invenção da lira e dos rituais mágicos e divinatórios, origem de seitas místicas, a que se deu o nome de orfismo.

PLATÃO

A Vida e as Obras

Diversamente de Sócrates , que era filho do povo, Platão nasceu em Atenas, em 428 ou 427 a.C., de pais aristocráticos e abastados, de antiga e nobre prosápia. Temperamento artístico e dialético - manifestação característica e suma do gênio grego - deu, na mocidade, livre curso ao seu talento poético, que o acompanhou durante a vida toda, manifestando-se na expressão estética de seus escritos; entretanto isto prejudicou sem dúvida a precisão e a ordem do seu pensamento, tanto assim que várias partes de suas obras não têm verdadeira importância e valor filosófico.
Aos vinte anos, Platão travou relação com Sócrates - mais velho do que ele quarenta anos - e gozou por oito anos do ensinamento e da amizade do mestre. Quando discípulo de Sócrates e ainda depois, Platão estudou também os maiores pré-socráticos. Depois da morte do mestre, Platão retirou-se com outros socráticos para junto de Euclides, em Mégara.
Daí deu início a suas viagens, e fez um vasto giro pelo mundo para se instruir (390-388). Visitou o Egito, de que admirou a veneranda antigüidade e estabilidade política; a Itália meridional, onde teve ocasião de travar relações com os pitagóricos (tal contato será fecundo para o desenvolvimento do seu pensamento); a Sicília, onde conheceu Dionísio o Antigo, tirano de Siracusa e travou amizade profunda com Dion, cunhado daquele. Caído, porém, na desgraça do tirano pela sua fraqueza, foi vendido como escravo. Libertado graças a um amigo, voltou a Atenas.
Em Atenas, pelo ano de 387, Platão fundava a sua célebre escola, que, dos jardins de Academo, onde surgiu, tomou o nome famoso de Academia. Adquiriu, perto de Colona, povoado da Ática, uma herdade, onde levantou um templo às Musas, que se tornou propriedade coletiva da escola e foi por ela conservada durante quase um milênio, até o tempo do imperador Justiniano (529 d.C.).
Platão, ao contrário de Sócrates, interessou-se vivamente pela política e pela filosofia política. Foi assim que o filósofo, após a morte de Dionísio o Antigo, voltou duas vezes - em 366 e em 361 - à Dion, esperando poder experimentar o seu ideal político e realizar a sua política utopista. Estas duas viagens políticas a Siracusa, porém, não tiveram melhor êxito do que a precedente: a primeira viagem terminou com desterro de Dion; na segunda, Platão foi preso por Dionísio, e foi libertado por Arquitas e pelos seus amigos, estando, então, Arquistas no governo do poderoso estado de Tarento.
Voltando para Atenas, Platão dedicou-se inteiramente à especulação metafísica, ao ensino filosófico e à redação de suas obras, atividade que não foi interrompida a não ser pela morte. Esta veio operar aquela libertação definitiva do cárcere do corpo, da qual a filosofia - como lemos no Fédon - não é senão uma assídua preparação e realização no tempo. Morreu o grande Platão em 348 ou 347 a.C., com oitenta anos de idade.
Platão é o primeiro filósofo antigo de quem possuímos as obras completas. Dos 35 diálogos, porém, que correm sob o seu nome, muitos são apócrifos, outros de autenticidade duvidosa.
A forma dos escritos platônicos é o diálogo, transição espontânea entre o ensinamento oral e fragmentário de Sócrates e o método estritamente didático de Aristóteles. No fundador da Academia, o mito e a poesia confundem-se muitas vezes com os elementos puramente racionais do sistema. Faltam-lhe ainda o rigor, a precisão, o método, a terminologia científica que tanto caracterizam os escritos do sábio estagirita.
A atividade literária de Platão abrange mais de cinquenta anos da sua vida: desde a morte de Sócrates , até a sua morte. A parte mais importante da atividade literária de Platão é representada pelos diálogos - em três grupos principais, segundo certa ordem cronológica, lógica e formal, que representa a evolução do pensamento platônico, do socratismo ao aristotelismo.

O Pensamento: A Gnosiologia

Como já em Sócrates, assim em Platão a filosofia tem um fim prático, moral; é a grande ciência que resolve o problema da vida. Este fim prático realiza-se, no entanto, intelectualmente, através da especulação, do conhecimento da ciência. Mas - diversamente de Sócrates, que limitava a pesquisa filosófica, conceptual, ao campo antropológico e moral - Platão estende tal indagação ao campo metafísico e cosmológico, isto é, a toda a realidade.
Este caráter íntimo, humano, religioso da filosofia, em Platão é tornado especialmente vivo, angustioso, pela viva sensibilidade do filósofo em face do universal vir-a-ser, nascer e perecer de todas as coisas; em face do mal, da desordem que se manifesta em especial no homem, onde o corpo é inimigo do espírito, o sentido se opõe ao intelecto, a paixão contrasta com a razão. Assim, considera Platão o espírito humano peregrino neste mundo e prisioneiro na caverna do corpo. Deve, pois, transpor este mundo e libertar-se do corpo para realizar o seu fim, isto é, chegar à contemplação do inteligível, para o qual é atraído por um amor nostálgico, pelo eros platônico.
Platão como Sócrates, parte do conhecimento empírico, sensível, da opinião do vulgo e dos sofistas, para chegar ao conhecimento intelectual, conceptual, universal e imutável. A gnosiologia platônica, porém, tem o caráter científico, filosófico, que falta a gnosiologia socrática, ainda que as conclusões sejam, mais ou menos, idênticas. O conhecimento sensível deve ser superado por um outro conhecimento, o conhecimento conceptual, porquanto no conhecimento humano, como efetivamente, apresentam-se elementos que não se podem explicar mediante a sensação. O conhecimento sensível, particular, mutável e relativo, não pode explicar o conhecimento intelectual, que tem por sua característica a universalidade, a imutabilidade, o absoluto (do conceito); e ainda menos pode o conhecimento sensível explicar o dever ser, os valores de beleza, verdade e bondade, que estão efetivamente presentes no espírito humano, e se distinguem diametralmente de seus opostos, fealdade, erro e mal-posição e distinção que o sentido não pode operar por si mesmo.
Segundo Platão, o conhecimento humano integral fica nitidamente dividido em dois graus: o conhecimento sensível, particular, mutável e relativo, e o conhecimento intelectual, universal, imutável, absoluto, que ilumina o primeiro conhecimento, mas que dele não se pode derivar. A diferença essencial entre o conhecimento sensível, a opinião verdadeira e o conhecimento intelectual, racional em geral, está nisto: o conhecimento sensível, embora verdadeiro, não sabe que o é, donde pode passar indiferentemente o conhecimento diverso, cair no erro sem o saber; ao passo que o segundo, além de ser um conhecimento verdadeiro, sabe que o é, não podendo de modo algum ser substituído por um conhecimento diverso, errôneo. Poder-se-ia também dizer que o primeiro sabe que as coisas estão assim, sem saber porque o estão, ao passo que o segundo sabe que as coisas devem estar necessariamente assim como estão, precisamente porque é ciência, isto é, conhecimento das coisas pelas causas.
Sócrates estava convencido, como também Platão, de que o saber intelectual transcende, no seu valor, o saber sensível, mas julgava, todavia, poder construir indutivamente o conceito da sensação, da opinião; Platão, ao contrário, não admite que da sensação - particular, mutável, relativa - se possa de algum modo tirar o conceito universal, imutável, absoluto. E, desenvolvendo, exagerando, exasperando a doutrina da maiêutica socrática, diz que os conceitos são a priori, inatos no espírito humano, donde têm de ser oportunamente tirados, e sustenta que as sensações correspondentes aos conceitos não lhes constituem a origem, e sim a ocasião para fazê-los reviver, relembrar conforme a lei da associação.
Aqui devemos lembrar que Platão, diversamente de Sócrates, dá ao conhecimento racional, conceptual, científico, uma base real, um objeto próprio: as ideias eternas e universais, que são os conceitos, ou alguns conceitos da mente, personalizados. Do mesmo modo, dá ao conhecimento empírico, sensível, à opinião verdadeira, uma base e um fundamento reais, um objeto próprio: as coisas particulares e mutáveis, como as concebiam Heráclito e os sofistas. Deste mundo material e contigente, portanto, não há ciência, devido à sua natureza inferior, mas apenas é possível, no máximo, um conhecimento sensível verdadeiro - opinião verdadeira - que é precisamente o conhecimento adequado à sua natureza inferior. Pode haver conhecimento apenas do mundo imaterial e racional das idéias pela sua natureza superior. Este mundo ideal, racional - no dizer de Platão - transcende inteiramente o mundo empírico, material, em que vivemos.

Teoria das Idéias

Sócrates mostrara no conceito o verdadeiro objeto da ciência. Platão aprofunda-lhe a teoria e procura determinar a relação entre o conceito e a realidade fazendo deste problema o ponto de partida da sua filosofia.
A ciência é objetiva; ao conhecimento certo deve corresponder a realidade. Ora, de um lado, os nossos conceitos são universais, necessários, imutáveis e eternos (Sócrates), do outro, tudo no mundo é individual, contingente e transitório (Heráclito). Deve, logo, existir, além do fenomenal, um outro mundo de realidades, objetivamente dotadas dos mesmos atributos dos conceitos subjetivos que as representam. Estas realidades chamam-se Ideias. As ideias não são, pois, no sentido platônico, representações intelectuais, formas abstratas do pensamento, são realidades objetivas, modelos e arquétipos eternos de que as coisas visíveis são cópias imperfeitas e fugazes. Assim a ideia de homem é o homem abstrato perfeito e universal de que os indivíduos humanos são imitações transitórias e defeituosas.
Todas as ideias existem num mundo separado, o mundo dos inteligíveis, situado na esfera celeste. A certeza da sua existência funda-a Platão na necessidade de salvar o valor objetivo dos nossos conhecimentos e na importância de explicar os atributos do ente de Parmênides, sem, com ele, negar a existência do fieri. Tal a célebre teoria das ideias, alma de toda filosofia platônica, centro em torno do qual gravita todo o seu sistema.

A Metafísica

As Ideias

O sistema metafísico de Platão centraliza-se e culmina no mundo divino das ideias; e estas contrapõe-se a matéria obscura e incriada. Entre as ideias e a matéria estão o Demiurgo e as almas, através de que desce das ideias à matéria aquilo de racionalidade que nesta matéria aparece.
O divino platônico é representado pelo mundo das ideias e especialmente pela ideia do Bem, que está no vértice. A existência desse mundo ideal seria provada pela necessidade de estabelecer uma base ontológica, um objeto adequado ao conhecimento conceptual. Esse conhecimento, aliás, se impõe ao lado e acima do conhecimento sensível, para poder explicar verdadeiramente o conhecimento humano na sua efetiva realidade. E, em geral, o mundo ideal é provado pela necessidade de justificar os valores, o dever ser, de que este nosso mundo imperfeito participa e a que aspira.
Visto serem as ideias conceitos personalizados, transferidos da ordem lógica à ontológica, terão consequentemente as características dos próprios conceitos: transcenderão a experiência, serão universais, imutáveis. Além disso, as ideias terão aquela mesma ordem lógica dos conceitos, que se obtém mediante a divisão e a classificação, isto é, são ordenadas em sistema hierárquico, estando no vértice a ideia do Bem, que é papel da dialética (lógica real, ontológica) esclarecer. Como a multiplicidade dos indivíduos é unificada nas ideias respectivas, assim a multiplicidade das ideias é unificada na ideia do Bem. Logo, a ideia do Bem, no sistema platônico, é a realidade suprema, donde dependem todas as demais ideias, e todos os valores (éticos, lógicos e estéticos) que se manifestam no mundo sensível; é o ser sem o qual não se explica o vir-a-ser. Portanto, deveria representar o verdadeiro Deus platônico. No entanto, para ser verdadeiramente tal, falta-lhe a personalidade e a atividade criadora. Desta personalidade e atividade criadora - ou, melhor, ordenadora - é, pelo contrário, dotado o Demiurgo o qual, embora superior à matéria, é inferior às ideias, de cujo modelo se serve para ordenar a matéria e transformar o caos em cosmos.

As Almas

A alma, assim como o Demiurgo, desempenha papel de mediador entre as ideias e a matéria, à qual comunica o movimento e a vida, a ordem e a harmonia, em dependência de uma ação do Demiurgo sobre a alma. Assim, deveria ser, tanto no homem como nos outros seres, porquanto Platão é um pampsiquista, quer dizer, anima toda a realidade. Ele, todavia, dá à alma humana um lugar e um tratamento à parte, de superioridade, em vista dos seus impelentes interesses morais e ascéticos, religiosos e místicos. Assim é que considera ele a alma humana como um ser eterno (coeterno às ideias, ao Demiurgo e à matéria), de natureza espiritual, inteligível, caído no mundo material como que por uma espécie de queda original, de um mal radical. Deve portanto, a alma humana, libertar-se do corpo, como de um cárcere; esta libertação, durante a vida terrena, começa e progride mediante a filosofia, que é separação espiritual da alma do corpo, e se realiza com a morte, separando-se, então, na realidade, a alma do corpo.
A faculdade principal, essencial da alma é a de conhecer o mundo ideal, transcendental: contemplação em que se realiza a natureza humana, e da qual depende totalmente a ação moral. Entretanto, sendo que a alma racional é, de fato, unida a um corpo, dotado de atividade sensitiva e vegetativa, deve existir um princípio de uma e outra. Segundo Platão, tais funções seriam desempenhadas por outras duas almas - ou partes da alma: a irascível (ímpeto), que residiria no peito, e a concupiscível (apetite), que residiria no abdome - assim como a alma racional residiria na cabeça. Naturalmente a alma sensitiva e a vegetativa são subordinadas à alma racional.
Logo, segundo Platão, a união da alma espiritual com o corpo é extrínseca, até violenta. A alma não encontra no corpo o seu complemento, o seu instrumento adequado. Mas a alma está no corpo como num cárcere, o intelecto é impedido pelo sentido da visão das ideias, que devem ser trabalhosamente relembradas. E diga-se o mesmo da vontade a respeito das tendências. E, apenas mediante uma disciplina ascética do corpo, que o mortifica inteiramente, e mediante a morte libertadora, que desvencilha para sempre a alma do corpo, o homem realiza a sua verdadeira natureza: a contemplação intuitiva do mundo ideal.

O Mundo

O mundo material, o cosmos platônico, resulta da síntese de dois princípios opostos, as ideias e a matéria. O Demiurgo plasma o caos da matéria no modelo das ideias eternas, introduzindo no caos a alma, princípio de movimento e de ordem. O mundo, pois, está entre o ser (ideia) e o não-ser (matéria), e é o devir ordenado, como o adequado conhecimento sensível está entre o saber e o não-saber, e é a opinião verdadeira. Conforme a cosmologia pampsiquista platônica, haveria, antes de tudo, uma alma do mundo e, depois, partes da alma, dependentes e inferiores, a saber, as almas dos astros, dos homens, etc.
O dualismo dos elementos constitutivos do mundo material resulta do ser e do não-ser, da ordem e da desordem, do bem e do mal, que aparecem no mundo. Da ideia - ser, verdade, bondade, beleza - depende tudo quanto há de positivo, de racional no vir-a-ser da experiência. Da matéria - indeterminada, informe, mutável, irracional, passiva, espacial - depende, ao contrário, tudo que há de negativo na experiência.
Consoante a astronomia platônica, o mundo, o universo sensível, são esféricos. A terra está no centro, em forma de esfera e, ao redor, os astros, as estrelas e os planetas, cravados em esferas ou anéis rodantes, transparentes, explicando-se deste modo o movimento circular deles.
No seu conjunto, o mundo físico percorre uma grande evolução, um ciclo de dez mil anos, não no sentido do progresso, mas no da decadência, terminados os quais, chegado o grande ano do mundo, tudo recomeça de novo. É a clássica concepção grega do eterno retorno, conexa ao clássico dualismo grego, que domina também a grande concepção platônica.

Moral

Segundo a psicologia platônica, a natureza do homem é racional, e, por consequência, na razão realiza o homem a sua humanidade: a ação racional realiza o sumo bem, que é, ao mesmo tempo, felicidade e virtude. Entretanto, esta natureza racional do homem encontra no corpo não um instrumento, mas um obstáculo - que Platão explica mediante um dualismo filosófico-religioso de alma e de corpo: o intelecto encontra um obstáculo nos sentidos, a vontade no impulso, e assim por diante. Então a realização da natureza humana não consiste em uma disciplina racional da sensibilidade, mas na sua final supressão, na separação da alma do corpo, na morte. Agir moralmente é agir racionalmente, e agir racionalmente é filosofar, e filosofar é suprimir o sensível, morrer aos sentidos, ao corpo, ao mundo, para o espírito, o inteligível, a ideia.
Em todo caso, visto que a alma humana racional se acha, de fato, neste mundo, unida ao corpo e aos sentidos, deve principiar a sua vida moral sujeitando o corpo ao espírito, para impedir que o primeiro seja obstáculo ao segundo, à espera de que a morte solte definitivamente a alma dos laços corpóreos. Noutras palavras, para que se realize a sabedoria, a contemplação, a filosofia, a virtude suma, a única virtude verdadeiramente humana e racional, é necessário que a alma racional domine, antes de tudo, a alma concupiscível, derivando daí a virtude da temperança, e domine também a alma irascível, donde a virtude da fortaleza. Tal harmônica distribuição de atividade na alma conforme a razão constituiria, pois, a justiça, virtude fundamental, segundo Platão, juntamente com a sapiência, embora a esta naturalmente inferior. Temos, destarte, uma classificação, uma dedução das famosas quatro virtudes naturais, chamadas depois cardeais - prudência, fortaleza, temperança, justiça - sobre a base da metafísica platônica da alma.
Quanto ao destino das almas depois da morte, eis o pensamento de Platão: em geral, o destino da alma depende da sua filosofia, da razão; em especial, depende da religião, dos mistérios órfico-dionisíacos. Em geral, distingue ele três categorias de alma:
1. As que cometeram pecados inexpiáveis, condenadas eternamente;
2. As que cometeram pecados expiáveis;
3. As que viveram conforme à justiça. As almas destas últimas duas categorias nascem de novo, encarnam-se de novo, para receber a pena ou o prêmio merecidos. Segundo o pensamento que lemos no Fédon, seria mister acrescentar uma quarta categoria de almas, as dos filósofos, videntes de ideias, libertados da vida temporal para sempre.

A Política



Os escritos em que Platão trata especificamente do problema da política, são a República, o Político e as Leis. Na República, a obra fundamental de Platão sobre o assunto, traça o seu estado ideal, o reino do espírito, da razão, dos filósofos, em chocante contraste com os estados e a política deste mundo.
Qual é, pois, a justificação da sociedade e do estado? Platão acha-a na própria natureza humana, porquanto cada homem precisa do auxílio material e moral dos outros. Desta variedade de necessidades humanas origina-se a divisão do trabalho e, por consequência, a distinção em classes, em castas, que representam um desenvolvimento social e uma sistematização estável da divisão do trabalho no âmbito de um estado. A essência do estado seria então, não uma sociedade de indivíduos semelhantes e iguais, mas dessemelhantes e desiguais. Tal especificação e concretização da divisão do trabalho seria representada pela instituição da escravidão; tal instituição, consoante Platão, é necessária porquanto os trabalhos materiais, servis, são incompatíveis com a condição de um homem livre em geral.
Segundo Platão, o estado ideal deveria ser dividido em classes sociais. Três são, pois, estas classes: a dos filósofos, a dos guerreiros, a dos produtores, as quais, no organismo do estado, corresponderiam respectivamente às almas racional, irascível e concupiscível no organismo humano. À classe dos filósofos cabe dirigir a república. Com efeito, contemplam eles o mundo das ideias, conhecem a realidade das coisas, a ordem ideal do mundo e, por conseguinte, a ordem da sociedade humana, e estão, portanto, à altura de orientar racionalmente o homem e a sociedade para o fim verdadeiro. Tal atividade política constitui um dever para o filósofo, não, porém, o fim supremo, pois este fim supremo é unicamente a contemplação das ideias.
À classe dos guerreiros cabe a defesa interna e externa do estado, de conformidade com a ordem estabelecida pelos filósofos, dos quais e juntamente com os quais, os guerreiros receberam a educação. Os guerreiros representam a força a serviço do direito, representado pelos filósofos.
À classe dos produtores, enfim, - agricultores e artesãos - submetida às duas precedentes, cabe a conservação econômica do estado, e, consequentemente, também das outras duas classes, inteiramente entregues à conservação moral e física do estado. Na hierarquia das classes, a dos trabalhadores ocupa o ínfimo lugar, pelo desprezo com que era considerado por Platão - e pelos gregos em geral - o trabalho material.
Na concepção ideal, espiritual, ética, ascética do estado platônico, pode causar impressão, à primeira vista, o comunismo dos bens, das mulheres e dos filhos, que Platão propugna para as classes superiores. Entretanto, Platão foi levado a esta concepção política - tornada depois sinônimo de imanentismo, materialismo, ateísmo - não certamente por estes motivos, mas pela grande importância e função moral por ele atribuída ao estado, como veículo dos valores transcendentais da Ideia. Tinha ele compreendido bem que os interesses particulares, privados, econômicos e, especialmente, domésticos, estão efetivamente em contraste com os interesses coletivos, sociais, estatais, sendo estes naturalmente superiores àqueles - eticamente considerados. E não hesita em sacrificar totalmente os interesses inferiores aos superiores, a riqueza, a família, o indivíduo ao estado, porquanto representa precisamente - consoante seu pensamento - um altíssimo valor moral terreno, político-religioso, como única e total expressão da eticidade transcendente.
Se a natureza do estado é, essencialmente, a de organismo ético-transcendente, a sua finalidade primordial é pedagógico-espiritual; a educação deve, por isso, estar substancialmente nas mãos do estado. O estado deve, então, promover, antes de tudo, o bem espiritual dos cidadãos, educá-los para a virtude, e ocupar-se com o seu bem estar material apenas secundária e instrumentalmente. Platão tende a desvalorizar a grandeza militar e comercial, a dominação e a riqueza, idolatrando a grandeza moral. O grande, o verdadeiro político não é - diz Platão - o homem prático e empírico, mas o sábio, o pensador; não realiza tanto as obras exteriores, mas, sobretudo, se preocupa com espiritualizar os homens. Desta maneira é concebido o estado educador de homens virtuosos, segundo as virtudes que se referem a cada classe, respectivamente. Esta educação é dispensada essencialmente às classes superiores - especialmente aos filósofos, a quem cabem as virtudes mais elevadas, e, portanto, a direção da república. Ao contrário, o estado em nada se interessa - ao menos positivamente - pelo povo, pelo vulgo, pela plebe, cuja formação é inteiramente material e subordinada, consistindo sua virtude apenas na obediência, visto a alma concupiscível estar sujeita à alma racional.
A educação das classes superiores importa, fundamentalmente, música e ginástica. A música - abrangendo também a poesia, a história, etc., e, em geral, todas as atividades presididas pelas Musas - é, todavia, cultivada apenas para fins práticos e morais. Deveria ela equilibrar, com a sua natureza gentil e civilizadora, a ação oposta, fortificadora, da ginástica. Platão reconhece a importância da ginástica, mas não passa de uma importância instrumental e parcial, pois o prevalecer da cultura física do corpo torna os homens grosseiros e materiais. Daí a sua aversão ao culto idolátrico dos exercícios físicos, que foi um dos indícios da decadência grega.

A Religião e a Arte



A ideia do Bem seria o centro da religião platônica. Seu culto essencial é representado pela ciência e, portanto, pela virtude que deriva necessariamente da ciência. Ao lado, e subordinadas a esta espécie de Deus supremo, estão as demais ideias, denominadas por Platão, deuses eternos. Entretanto, este absoluto - o Bem e as ideias - embora transcendente, espiritual e ético, não pode tornar-se objeto de religião, nem sequer da religião assim chamada natural, dada a sua impersonalidade e inatividade a respeito do mundo.
Quanto à avaliação da religião positiva, Platão hostiliza o antromorfismo, até querer banidos de seu estado ideal os poetas, inclusive Homero, pelos mitos fantásticos e imorais, narrados em torno dos deuses e dos heróis. Apesar de repelir os deuses da mitologia popular e poética, aceita francamente o politeísmo. É um politeísmo estranho, cujas divindades são os astros e o cosmo, animados e racionais, os assim chamados deuses visíveis, subordinados ao Demiurgo, bem como à ideia do Bem e às outras ide
ias. Platão pode, pois, conservar - reformada e purificada - a religião helênica, como religião do seu estado ideal.
As doutrinas estéticas de Platão são algo oscilantes entre uma valorização e uma desvalorização da arte. Em todo caso, no conjunto do seu pensamento, em oposição ao seu gênio e ao gênio artístico grego, prevalece a desvalorização por dois motivos, teorético um, prático outro. O motivo teorético é que a arte resultaria como cópia de uma cópia: cópia do mundo empírico, que é já uma cópia do mundo ideal; cópia não de essências, como a ciência, mas de fenômenos. Por consequência, a arte deveria ser, gnosiologicamente, inferior à ciência. O motivo prático é que a arte - dada esta sua inferior natureza teorética, impura fonte gnosiológica - torna-se outro tanto danosa no campo moral. Atuando cegamente sobre o sentimento, a arte nos atrai para o verdadeiro, como para o falso, para o bem como para o mal.
Seja como for, encontramos em Platão uma tentativa de valorização da arte em si, sendo considerada a arte como uma espécie de loucura divina, de mania, semelhante à religião e ao amor, ou seja, uma espécie de revelação superior. A arte, pois - como o amor, que tem por objeto a Beleza eterna e os graus que levam até ela - deveria ser um itinerário especial do espírito para o Absoluto e o inteligível, algo como que uma filosofia, porquanto deveria atingir intuitivamente, encarnada em formas sensíveis, aquele mesmo ideal inteligível que a filosofia atinge abstratamente, na sua pureza lógica, conceptual.

A Academia

A escola filosófica fundada por Platão, a Academia, sobreviveu-lhe por quase um milênio, até o VI século d.C. Costuma-se dividi-la - cronologicamente e logicamente - em antiga, média e nova. A antiga academia dura até o ano de 260 a.C., mais ou menos, isto é, quase um século. É governada por discípulos, reitores, sucessores de Platão. A ela pertencem homens insignes e de grande doutrina. Vai-se acentuando a importância da experiência, segundo os interesses do último Platão, como também uma tendência para uma sempre maior sistematização do pensamento platônico, provavelmente também pela influência de Aristóteles.
Segue-se na média academia, que toma uma orientação cética, sobretudo graças a Carnéades (213-128 a.C.). Finalmente, a nova academia volta ao antigo dogmatismo e, depois, orienta-se para o ecletismo, prevalecendo simpatias pitagóricas. Chegamos assim ao princípio da era vulgar. No entanto, a academia platônica sobreviverá ainda e tomará uma última forma e feição com o neoplatonismo. É este o último esforço grandioso do pensamento grego para resolver o problema filosófico, desenvolvendo o dualismo no panteísmo emanatista, e valorizando o elemento religioso positivo, que Platão já tinha valorizado no mito.

Para Entender Platão

Platão, nascido em 428 a.C., é o primeiro grande filósofo da tradição ocidental a deixar uma obra escrita considerável. Todavia, a obra de Platão só pode ser entendida em função de outros pensamentos, anteriores e contemporâneos - de saída, o pensamento de seu mestre Sócrates, como também o pensamento dos filósofos anteriores, precisamente denominados pré-socráticos.
Tratemos, inicialmente, de evocar Pitágoras de Samos, que viveu no século V antes de nossa era e que sabemos ter sido um ilustre matemático. Na realidade, sua matemática desemboca numa metafísica, já que Pitágoras acredita que os números são o princípio e a chave de todo o universo; assim como a natureza do som é função do comprimento da corda que vibra, as aparências coloridas do universo, infinitamente diversas, dissimulam relações numéricas que constituem o fundo das coisas: ideia capital, que não só reencontramos em Platão, mas que está na origem da ciência moderna. Pitágoras (que teria inventado a palavra filosofia, amor à sabedoria), também é um místico, fundador de sociedades iniciáticas que visam à salvação de seus membros. A doutrina pitagórica da salvação está muito próxima dos mistérios do orfismo. Os pitagóricos acreditam na metempsicose. A alma, como punição de faltas passadas, torna-se prisioneira de um corpo (soma = sema; corpo = túmulo). A encarnação é tão somente um encarceramento provisório para a alma. A morte anuncia o renascimento num outro corpo até que a alma, simultaneamente purificada pela virtude e pela prática de ritos iniciáticos, mereça ser finalmente libertada de toda materialização.
Muitas outras doutrinas dessa época tentam explicar o mundo. Empédocles vê na matéria quatro elementos (terra, água, ar e fogo), enquanto o ódio que dissocia e o amor que unifica seriam os princípios motores do universo. Anaxágoras, que foi professor de Péricles, acha que os elementos constitutivos do mundo são ordenados por uma Inteligência cósmica, o Nous.
Duas doutrinas se opõem radicalmente entre si. Para Heráclito de Éfeso, tudo muda infinitivamente. "Planta rei", tudo flui: a morte sucede à vida, a noite ao dia, a vigília ao sono. "Não nos banhamos duas vezes no mesmo rio". O fluxo que faz do universo uma torrente é constantemente produzido e destruído por um Fogo cósmico, segundo um ritmo regular. A esta filosofia da mobilidade universal se opõem Parmênides e seu discípulo Zenão de Eléia: para eles, a mobilidade não passa de uma ilusão que engana nossos sentidos; o real é o Ser único, imóvel, eterno. "O Ser é, o não-ser não é"; o não-ser é a mudança (mudar é deixar de ser o que se é para ser o que não se é). Demócrito tenta conciliar as duas doutrinas por intermédio de sua filosofia de átomos, elementos eternos, cujas combinações mutáveis são infinitas.
Diremos uma palavra sobre os sofistas, cujo ceticismo é engendrado pela multiplicidade de doutrinas contraditórias, pelo abuso da retórica (um orador hábil pode demonstrar o que quiser) e, de um modo geral, pelo incremento do individualismo e decadência dos costumes após Péricles.
Um dos mais célebres, Protágoras de Abdera, dizia, segundo o testemunho de Platão, que "o homem é a medida de todas as coisas". Em outras palavras: não existe verdade absoluta, mas tão somente opiniões relativas ao homem (este vinho, delicioso para o amador, é amargo para o enfermo).
Platão, no entanto, só reencontra a filosofia a partir de preocupações de caráter político. É um jovem aristocrata que une aos seus dons intelectuais e físicos (duas vezes coroado nos jogos atléticos nacionais, é belo e vigoroso: apelidam-no "Platão" em virtude de seus ombros largos), o nascimento mais prestigioso: sua mãe descendia de Sólon, seus ancestrais paternos, do último rei de Atenas. Estava destinado, portanto, a uma brilhante carreira política. Mas Atenas, que por ocasião do nascimento de Platão se encontra no apogeu - com inigualável poder marítimo - , esboroa-se na época em que Platão atinge a idade adulta. Platão tinha quatro anos quando começaram as guerras do Peloponeso e trinta e um quando eles terminaram, com a capitulação de Atenas. A destruição da frota, a peste, o arrasamento dos famosos muros (uniam a cidade ao Pireu) pelos esparciatas vencedores, assinalam a importância da catástrofe. Platão vai sonhar com a reconstrução de uma cidade, mas uma cidade cuja potência é antes moral e espiritual do que material, uma cidade que seja a encarnação da Justiça.
Para compreender isto, recordemos o acontecimento fundamental da juventude de Platão, seu encontro com Sócrates. Sócrates tem sessenta e três anos quando, em 407, Platão a ele se une. Alain falou a propósito desse "choque dos contrários": Platão, aristocrata jovem e belo, torna-se discípulo de um cidadão de origem modesta, velho e muito feio (seus olhos salientes e seu nariz achatado são célebres). E isto é significativo e simbólico. A verdade e a justiça (das quais Sócrates será o símbolo) não possuem bom aspecto, pertencem a um mundo que não o das aparências. Na Atenas vencida, o jovem Platão é convocado por parentes e amigos a participar do governo autoritário dos Trinta; ele se retrai, porém, e constata que os Trinta acumulam injustiças e violências. Devemos agora, portanto, caracterizar os grandes traços da filosofia de Sócrates:
1. Sócrates não pretende, como Empédocles ou Heráclito, elaborar uma cosmologia; segundo ele, deve-se deixar aos deuses o cuidado de se ocupar com o universo; devemos nos interessar, de preferência, por aquilo que nos concerne diretamente. "Conhece-te a ti mesmo". Esta máxima gravada no frontão do templo de Delfos, é a palavra-chave do humanismo socrático.
2. Sócrates, todavia, não pretende ensinar coisa alguma sobre a natureza humana; não quer nos comunicar um saber que não possuiríamos. Ajuda-nos tão somente a refletir, isto é, a tomar consciência dos nossos próprios pensamentos, dos problemas que eles colocam. Muitas vezes, ele se comparava à sua mãe, que era parteira. Nada ensinava e limitava-se a partejar os espíritos, ajudá-los a trazer à luz o que já trazem em si mesmos. Tal é a maiêutica socrática.
3. Ao mesmo tempo que convida o interlocutor a tomar consciência de seu próprio pensamento, Sócrates fá-lo compreender que, na verdade, ignora o que acreditava saber. Tal é a ironia, que, ao pé da letra, significa a arte de interrogar. Sócrates, de fato, faz perguntas e sempre dá a impressão de buscar uma lição no interlocutor. Aborda com humildade fingida os sofistas inflados de falso-saber. E as perguntas feitas por Sócrates levam o interlocutor a descobrir as contradições de seus pensamentos e a profundidade de sua ignorância.
4. Na realidade, se Sócrates é o primeiro a reconhecer sua própria ignorância, ele funda todas as suas esperanças na verdade tão somente. Seu método é, antes de tudo, um esforço de definição. Por exemplo: partindo dos aspectos os mais diversos da justiça, ele procura depreender o conceito de justiça, a ideia geral que contém os caracteres constitutivos da justiça. Sócrates possui tal confiança no saber e na verdade que está firmemente persuadido que os injustos e os maus não passam de ignorantes. Se conhecessem verdadeiramente a justiça, eles a praticariam, pois ninguém é "maus voluntariamente". Segundo sua perspectiva racionalista, só há salvação pelo saber. O verdadeiro ponto de partida da filosofia de Platão é a morte de Sócrates em 399 a.C. Acontecimento político: é o partido popular, de novo no poder, que, por iniciativa de um certo Anytos (filho de um rico empreiteiro e antigo amigo dos Trinta, aos quais traiu para assumir a liderança do outro partido), condena Sócrates a beber a cicuta como corruptor da juventude e adversário dos deuses da cidade. Condenação injusta e escandalosa que exprime uma incompatibilidade trágica entre o poder político e a sabedoria do filósofo. Daí as resoluções que Platão nos apresenta na sétima carta. "Reconheço que todos os Estados atuais, sem exceção, são mal governados... É somente pela filosofia que se pode discernir todas as formas de justiça política e individual". Talvez a solução seja a evasão do filósofo que "foge daqui debaixo" para se refugiar na meditação pura (tal é o filósofo cujo retrato nos é traçado no Teeteto; filósofo puramente contemplativo que nem sabe onde se reúne o Conselho e cujo corpo está apenas presente na Cidade). Mas uma outra solução seria o próprio filósofo encarregar-se do governo da cidade (a Justiça reinará, diz Platão, no dia em que os filósofos forem reis ou no dia em que os reis forem filósofos).
Tal é o sonho que Platão tentaria realizar em Siracusa. Encontrara aí um discípulo estusiasta na pessoa de Dion, cunhado do novo tirano, Dionísio I. Este último, todavia, não se revelou muito adequado para se tornar o rei filósofo que Platão quisera fazer dele. Dionísio I prendeu Platão e, na ilha de Egina, fê-lo expor no mercado de escravos para ser vendido. Resgatado por Anikeris de Cítera por vinte minas, Platão retornou a Atenas.
É então que ele funda, aos quarenta anos, uma escola de filosofia à portas da cidade, perto de Colona, nos jardins de Academos. Devemos representar a Academia como uma espécie de Universidade onde se ensina matemáticas (não entra aqui quem não for geômetra), filosofia e a arte de governar as cidades segundo a justiça. O ensino esotérico (isto é, secreto, reservado aos iniciados) dado por Platão a seus discípulos só nos é conhecido atualmente pelas críticas de Aristóteles; restam-nos, porém, a obra escrita de Platão, seus diálogos célebres tais como o Górgias, o Fedro, o Fédon, o Banquete, a República, o Teeteto, o Sofista, o Político, o Parmênides, o Timeu, as Leis. Esses trabalhos esotéricos de Platão constituem a mais pura joia da filosofia de todos os tempos. Platão morre em 348 a.C.
Se quiséssemos resumir a filosofia de Platão em uma palavra, poderíamos dizer que ela é fundamentalmente um dualismo. Platão, de certo modo, reconcilia Parmênides e Heráclito ao admitir a existência de dois mundos: o mundo das ideias imutáveis, eternas, e o mundo das aparências sensíveis, perpetuamente mutáveis. Acrescenta-se que o mundo das Ideias é, no fundo, o único mundo verdadeiro. Platão concede ao mundo sensível uma certa realidade, mas ele só existe porque participa do mundo das ideias do qual é uma cópia ou, mais exatamente, uma sombra. Um belo efebo, por exemplo, só é belo porque participa da Beleza em si.
Podemos mostrar de duas maneiras que a intuição fundamental de Platão se prende ao ensinamento de Sócrates:
a) Recordemos o ensinamento socrático sobre a definição, sobre o conceito; para que haja, por exemplo, como Sócrates o estabeleceu, uma definição do homem em geral, uma essência universal do homem, é preciso que exista algo além dos homens particulares e diferentes entre si que nós reconhecemos, um outro mundo onde exista o Homem em si, a Justiça em si, isto é, as Ideias. Em suma, Platão dá realidade ao conceito socrático. A ideia platônica é uma promoção ontológica do conceito socrático.
b) Mas é sobretudo a vida e a morte de Sócrates que suscitam o idealismo platônico. Como diz muito bem André Bonnard, a cidade que condena Sócrates à morte, a cidade que vê triunfar a injustiça e a mentira é "um mundo ao inverso, um mundo de pernas para o ar". Desse modo, o idealismo platônico "traz a marca de um grave traumatismo. A morte de Sócrates feriu-o mortalmente. É no mundo invisível que a justiça e a verdade triunfam". E Sócrates, pela tranqüilidade quase contente de sua morte, atesta a existência desse mundo invisível, mostra que, para ele, as Ideias contam mais que a vida.
Os temas principais do platonismo podem ligar-se à distinção entre o mundo das Ideias eternas e o mundo das aparências mutáveis. A ascensão dialética, por exemplo, é o itinerário pelo qual nos levamos do mundo sensível ao mundo das Ideias: no mais baixo grau, as simples impressões sensíveis (eikasia), um pouco mais acima, as opiniões estabelecidas (pistis), em seguida, o pensamento discursivo (dianoia) que constrói o raciocínio partindo de figuras, como fazem os geômetras, e, finalmente, no mais alto grau, o pensamento intuitivo, a iluminação direta pela Idéia (noesis).
A teoria platônica da alma está ligada à doutrina das Ideias. As almas outrora contemplaram às Ideias à vontade. Depois, por punição de alguma falta, segundo a doutrina órfico-pitagórica, elas foram aprisionadas no corpo. Todavia, elas continuam capazes de reminiscência, uma vez que guardaram uma lembrança obscura que, no entanto, pode ser redespertada de seu antigo contato com as Ideias. Assim, o jovem escravo que Sócrates interroga no Mênon descobre propriedades geométricas quase sem ajuda. Platão pensa igualmente que a emoção amorosa, a emoção que rebata a alma diante da Beleza - de todas as ideias a mais fácil de reconhecer - é o meio de uma conversão dialética: o amor por um belo corpo, em seguida pelos belos corpos, depois pelas belas almas e pelas belas virtudes conduz à redescoberta do Belo em si (leia-se o Banquete).
À doutrina das Ideias também se correlaciona a esperança da imortalidade da alma, "esse belo risco a ser corrido". Uma vez que a alma é feita para as Ideias - visto que sua união com o corpo é acidental e monstruosa - por que não seria eterna como as Ideias que ela tem por vocação contemplar?
Do mesmo modo, uma vez que as Ideias constituem absolutos referenciais - não o homem, mas Deus é que é a medida de todas as coisas, objeta Platão a Protágoras - é preciso renunciar do oportunismo e à imoralidade dos sofistas. Platão sustenta contra Cálicles (no Górgias), contra Trasímaco e Gláucon (na República) o valor absoluto da Ideia de justiça. A justiça é a hierarquia harmônica das três partes da alma - a sensibilidade, a vontade e o espírito. Ela também se encontra em cada uma das virtudes particulares: a temperança nada mais é que uma sensibilidade regulamentada segundo a justiça; a coragem é a justiça da vontade e a sabedoria é a justiça do espírito.
A justiça política é uma harmonia semelhante à justiça do indivíduo, mas "escritas em caracteres mais fortes" na escala do Estado... A política de Platão distingue, à imagem de todas as sociedades indo-européias primitivas, três classes sociais: os artesãos dos quais a Justiça exige a temperança, os militares nos quais a Justiça será coragem, os chefes cuja Justiça é, antes de tudo, Sabedoria e que são filósofos longamente instruídos. Entre todas as formas de governo, Platão prefere a aristocracia e, nele, é preciso tomar a palavra em seu sentido etimológico: governo dos melhores.
Finalmente, podemos ligar à distinção dos dois mundos algumas observações sobre o mito platônico:
a) O mito, procedimento pedagógico paradoxal, traduz uma espécie de narração poética legendária, isto é, numa linguagem de imagens uma verdade filosófica estranha ao mundo sensível! É o mundo das Ideias eternas transposto em imagens sensíveis, sugerido pelo mundo das imagens!
b) O mito é o único meio de exposição para os problemas de origem (acontecimentos sem testemunhos) e dos fins últimos (que ainda não existem!), pois a inteligência abstrata só compreende o eterno e não pode bastar para evocar o que pertence à história.
c) O mito indica que o pensamento filosófico vem se abeberar nas fontes das crenças religiosas tradicionais.
d) Finalmente, o mito ressalta as relações que, segundo Platão, existem entre a poesia e a verdade. A poesia mítica é uma mensagem metafísica, o belo não é senão o "esplendor do verdadeiro" e a arte está em segundo lugar em relação à filosofia.

ARISTÓTELES

A Vida e as Obras

Este grande filósofo grego, filho de Nicômaco, médico de Amintas, rei da Macedônia, nasceu em Estagira, colônia grega da Trácia, no litoral setentrional do mar Egeu, em 384 a.C. Aos dezoito anos, em 367, foi para Atenas e ingressou na academia platônica, onde ficou por vinte anos, até à morte do Mestre. Nesse período estudou também os filósofos pré-platônicos, que lhe foram úteis na construção do seu grande sistema.
Em 343 foi convidado pelo Rei Filipe para a corte de Macedônia, como preceptor do Príncipe Alexandre, então jovem de treze anos. Aí ficou três anos, até à famosa expedição asiática, conseguindo um êxito na sua missão educativo-política, que Platão não conseguiu, por certo, em Siracusa. De volta a Atenas, em 335, treze anos depois da morte de Platão, Aristóteles fundava, perto do templo de Apolo Lício, a sua escola. Daí o nome de Liceu dado à sua escola, também chamada peripatética devido ao costume de dar lições, em amena palestra, passeando nos umbrosos caminhos do ginásio de Apolo. Esta escola seria a grande rival e a verdadeira herdeira da velha e gloriosa academia platônica. Morto Alexandre em 323, desfez-se politicamente o seu grande império e despertaram-se em Atenas os desejos de independência, estourando uma reação nacional, chefiada por Demóstenes. Aristóteles, malvisto pelos atenienses, foi acusado de ateísmo. Preveniu ele a condenação, retirando-se voluntariamente para Eubéia, Aristóteles faleceu, após enfermidade, no ano seguinte, no verão de 322. Tinha pouco mais de 60 anos de idade. A respeito docaráter de Aristóteles, inteiramente recolhido na elaboração crítica do seu sistema filosófico, sem se deixar distrair por motivos práticos ou sentimentais, temos naturalmente muito menos a revelar do que em torno do caráter de Platão, em que, ao contrário, os motivos políticos, éticos, estéticos e místicos tiveram grande influência. Do diferente caráter dos dois filósofos, dependem também as vicissitudes exteriores das duas vidas, mais uniforme e linear a de Aristóteles, variada e romanesca a de Platão. Aristóteles foi essencialmente um homem de cultura, de estudo, de pesquisas, de pensamento, que se foi isolando da vida prática, social e política, para se dedicar à investigação científica. A atividade literária de Aristóteles foi vasta e intensa, como a sua cultura e seu gênio universal. "Assimilou Aristóteles escreve magistralmente Leonel Franca todos os conhecimentos anteriores e acrescentou-lhes o trabalho próprio, fruto de muita observação e de profundas meditações. Escreveu sobre todas as ciências, constituindo algumas desde os primeiros fundamentos, organizando outras em corpo coerente de doutrinas e sobre todas espalhando as luzes de sua admirável inteligência. Não lhe faltou nenhum dos dotes e requisitos que constituem o verdadeiro filósofo: profundidade e firmeza de inteligência, agudeza de penetração, vigor de raciocínio, poder admirável de síntese, faculdade de criação e invenção aliados a uma vasta erudição histórica e universalidade de conhecimentos científicos. O grande estagirita explorou o mundo do pensamento em todas as suas direções. Pelo elenco dos principais escritos que dele ainda nos restam, poder-se-á avaliar a sua prodigiosa atividade literária". A primeira edição completa das obras de Aristóteles é a de Andronico de Rodes pela metade do último século a.C. substancialmente autêntica, salvo uns apócrifos e umas interpolações. Aqui classificamos as obras doutrinais de Aristóteles do modo seguinte, tendo presente a edição de Andronico de Rodes.
I. Escritos lógicos: cujo conjunto foi denominado Órganon mais tarde, não por Aristóteles. O nome, entretanto, corresponde muito bem à intenção do autor, que considerava a lógica instrumento da ciência.
II. Escritos sobre a física: abrangendo a hodierna cosmologia e a antropologia, e pertencentes à filosofia teorética, juntamente com a metafísica.
III. Escritos metafísicos: a Metafísica famosa, em catorze livros. É uma compilação feita depois da morte de Aristóteles mediante seus apontamentos manuscritos, referentes à metafísica geral e à teologia. O nome de metafísica é devido ao lugar que ela ocupa na coleção de Andrônico, que a colocou depois da física.
IV. Escritos morais e políticos: a Ética a Nicômaco, em dez livros, provavelmente publicada por Nicômaco, seu filho, ao qual é dedicada; a Ética a Eudemo, inacabada, refazimento da ética de Aristóteles, devido a Eudemo; a Grande Ética, compêndio das duas precedentes, em especial da segunda; a Política, em oito livros, incompleta.
V. Escritos retóricos e poéticos: a Retórica, em três livros; a Poética, em dois livros, que, no seu estado atual, é apenas uma parte da obra de Aristóteles. As obras de Aristóteles as doutrinas que nos restam - manifestam um grande rigor científico, sem enfeites míticos ou poéticos, exposição e expressão breve e aguda, clara e ordenada, perfeição maravilhosa da terminologia filosófica, de que foi ele o criador.

O Pensamento: A Gnosiologia

Segundo Aristóteles, a filosofia é essencialmente teorética: deve decifrar o enigma do universo, em face do qual a atitude inicial do espírito é o assombro do mistério. O seu problema fundamental é o problema do ser, não o problema da vida. O objeto próprio da filosofia, em que está a solução do seu problema, são as essências imutáveis e a razão última das coisas, isto é, o universal e o necessário, as formas e suas relações. Entretanto, as formas são imanentes na experiência, nos indivíduos, de que constituem a essência. A filosofia aristotélica é, portanto, conceptual como a de Platão mas parte da experiência; é dedutiva, mas o ponto de partida da dedução é tirado - mediante o intelecto da experiência. A filosofia, pois, segundo Aristóteles, dividir-se-ia em teorética, prática e poética, abrangendo, destarte, todo o saber humano, racional. A teorética, por sua vez, divide-se emfísica, matemática e filosofia primeira(metafísica e teologia); a filosofia prática divide-se eméticae política; a poética em estética e técnica. Aristóteles é o criador da lógica, como ciência especial, sobre a base socrático-platônica; é denominada por ele analítica e representa a metodologia científica. Trata Aristóteles os problemas lógicos e gnosiológicos no conjunto daqueles escritos que tomaram mais tarde o nome de Órganon. Limitar-nos-emos mais especialmente aos problemas gerais da lógica de Aristóteles, porque aí está a suagnosiologia. Foi dito que, em geral, a ciência, a filosofia - conforme Aristóteles, bem como segundo Platão - tem como objeto o universal e o necessário; pois não pode haver ciência em torno do individual e do contingente, conhecidos sensivelmente. Sob o ponto de vista metafísico, o objeto da ciência aristotélica é aforma, como ideia era o objeto da ciência platônica. A ciência platônica e aristotélica são, portanto, ambas objetivas, realistas: tudo que se pode aprender precede a sensação e é independente dela. No sentido estrito, a filosofia aristotélica é dedução do particular pelo universal, explicação do condicionado mediante a condição, porquanto o primeiro elemento depende do segundo. Também aqui se segue a ordem da realidade, onde o fenômeno particular depende da lei universal e o efeito da causa. Objeto essencial da lógica aristotélica é precisamente este processo de derivação ideal, que corresponde a uma derivação real. A lógica aristotélica, portanto, bem como a platônica, é essencialmente dedutiva, demonstrativa, apodíctica. O seu processo característico, clássico, é o silogismo. Os elementos primeiros, os princípios supremos, as verdades evidentes, consoante Platão, são fruto de uma visão imediata, intuição intelectual, em relação com a sua doutrina do contato imediato da alma com as ideias - reminiscência. Segundo Aristóteles, entretanto, de cujo sistema é banida toda forma de inatismo, também os elementos primeiros do conhecimento - conceito e juízos - devem ser, de um modo e de outro, tirados da experiência, da representação sensível, cuja verdade imediata ele defende, porquanto os sentidos por si nunca nos enganam. O erro começa de uma falsa elaboração dos dados dos sentidos: a sensação, como o conceito, é sempre verdadeira. Por certo, metafisicamente, ontologicamente, o universal, o necessário, o inteligível, é anterior ao particular, ao contigente, ao sensível: mas, gnosiologicamente, psicologicamente existe primeiro o particular, o contingente, o sensível, que constituem precisamente o objeto próprio do nosso conhecimento sensível, que é o nosso primeiro conhecimento. Assim sendo, compreende-se que Aristóteles, ao lado e em consequência da doutrina de dedução, seja constrangido a elaborar, na lógica, uma doutrina da indução. Por certo, ela não está efetivamente acabada, mas pode-se integrar logicamente segundo o espírito profundo da sua filosofia. Quanto aos elementos primeiros do conhecimento racional, a saber, os conceitos, a coisa parece simples: a indução nada mais é que a abstração do conceito, do inteligível, da representação sensível, isto é, a "desindividualização" do universal do particular, em que o universal é imanente. A formação do conceito é, a posteriori, tirada da experiência. Quanto ao juízo, entretanto, em que unicamente temos ou não temos a verdade, e que é o elemento constitutivo da ciência, a coisa parece mais complicada. Como é que se formam os princípios da demonstração, os juízos imediatamente evidentes, donde temos a ciência? Aristóteles reconhece que é impossível uma indução completa, isto é, uma resenha de todos os casos os fenômenos particulares para poder tirar com certeza absoluta leis universais abrangendo todas as essências. Então só resta possível uma indução incompleta, mas certíssima, no sentido de que os elementos do juízo os conceitos são tirados da experiência, a posteriori, seu nexo, porém, é a priori, analítico, colhido imediatamente pelo intelecto humano mediante a sua evidência, necessidade objetiva.

Filosofia de Aristóteles

Partindo como Platão do mesmo problema acerca do valor objetivo dos conceitos, mas abandonando a solução do mestre, Aristóteles constrói um sistema inteiramente original. Os caracteres desta grande síntese são:
1. Observação fiel da natureza - Platão, idealista, rejeitara a experiência como fonte de conhecimento certo. Aristóteles, mais positivo, toma sempre o fato como ponto de partida de suas teorias, buscando na realidade um apoio sólido às suas mais elevadas especulações metafísicas. 
2. Rigor no método - Depois de estudas as leis do pensamento, o processo dedutivo e indutivo aplica-os, com rara habilidade, em todas as suas obras, substituindo à linguagem imaginosa e figurada de Platão, em estilo lapidar e conciso e criando uma terminologia filosófica de precisão admirável. Pode considerar-se como o autor da metodologia e tecnologia científicas. Geralmente, no estudo de uma questão, Aristóteles procede por partes: 
a) começa a definir-lhe o objeto; 
b)passa a enumerar-lhes as soluções históricas; 
c)propõe depois as dúvidas; 
d) indica, em seguida, a própria solução;
e) refuta, por último, as sentenças contrárias.
3. Unidade do conjunto - Sua vasta obra filosófica constitui um verdadeiro sistema, uma verdadeira síntese. Todas as partes se compõem, se correspondem, se confirmam.

A Teologia

Objeto próprio da teologia é o primeiro motor imóvel, ato puro, o pensamento do pensamento, isto é, Deus, a quem Aristóteles chega através de uma sólida demonstração, baseada sobre a imediata experiência, indiscutível, realidade do vir-a-ser, da passagem da potência ao ato. Este vir-a-ser, passagem da potência ao ato, requer finalmente um não-vir-a-ser, motor imóvel, um motor já em ato, um ato puro enfim, pois, de outra forma teria que ser movido por sua vez. A necessidade deste primeiro motor imóvel não é absolutamente excluída pela eternidade do vir-a-ser, do movimento, do mundo. Com efeito, mesmo admitindo que o mundo seja eterno, isto é, que não tem princípio e fim no tempo, enquanto é vir-a-ser, passagem da potência ao ato, fica eternamente inexplicável, contraditório, sem um primeiro motor imóvel, origem extra-temporal, causa absoluta, razão metafísica de todo devir. Deus, o real puro, é aquilo que move sem ser movido; a matéria, o possível puro, é aquilo que é movido, sem se mover a si mesmo.

Da análise do conceito de Deus, concebido como primeiro motor imóvel, conquistado através do precedente raciocínio, Aristóteles, pode deduzir logicamente a natureza essencial de Deus, concebido, antes de tudo, como ato puro, e, consequentemente, como pensamento de si mesmo. Deus é unicamente pensamento, atividade teorética, no dizer de Aristóteles, enquanto qualquer outra atividade teria fim extrínseco, incompatível com o ser perfeito, auto-suficiente. Se o agir, o querer têm objeto diverso do sujeito agente e "querente", Deus não pode agir e querer, mas unicamente conhecer e pensar, conhecer a si próprio e pensar em si mesmo. Deus é, portanto, pensamento de pensamento, pensamento de si, que é pensamento puro. E nesta autocontemplação imutável e ativa, está a beatitude divina.
Se Deus é mera atividade teorética, tendo como objeto unicamente a própria perfeição, não conhece o mundo imperfeito, e menos ainda opera sobre ele. Deus não atua sobre o mundo, voltando-se para ele, com o pensamento e a vontade; mas unicamente como o fim último, atraente, isto é, como causa final, e, por consequência, e só assim, como causa eficiente e formal (exemplar). De Deus depende a ordem, a vida, a racionalidade do mundo; ele, porém, não é criador, nem providência do mundo. Em Aristóteles o pensamento grego conquista logicamente a transcendência de Deus; mas, no mesmo tempo, permanece o dualismo, que vem anular aquele mesmo Absoluto a que logicamente chegara, para dar uma explicação filosófica da relatividade do mundo pondo ao seu lado esta realidade independente dele.

A Moral

Aristóteles trata da moral em três Éticas, de que se falou quando das obras dele. Consoante sua doutrina metafísica fundamental, todo ser tende necessariamente à realização da sua natureza, à atualização plena da sua forma: e nisto está o seu fim, o seu bem, a sua felicidade, e, por consequência, a sua lei. Visto ser a razão a essência característica do homem, realiza ele a sua natureza vivendo racionalmente e senso disto consciente. E assim consegue ele a felicidade e a virtude, isto é, consegue a felicidade mediante a virtude, que é precisamente uma atividade conforme à razão, isto é, uma atividade que pressupõe o conhecimento racional. Logo, o fim do homem é a felicidade, a que é necessária à virtude, e a esta é necessária a razão. A característica fundamental da moral aristotélica é, portanto, o racionalismo, visto ser a virtude ação consciente segundo a razão, que exige o conhecimento absoluto, metafísico, da natureza e do universo, natureza segundo a qual e na qual o homem deve operar.
As virtudes éticas, morais, não são mera atividade racional, como as virtudes intelectuais, teoréticas; mas implicam, por natureza, um elemento sentimental, afetivo, passional, que deve ser governado pela razão, e não pode, todavia, ser completamente resolvido na razão. A razão aristotélica governa, domina as paixões, não as aniquila e destrói, como queria o ascetismo platônico. A virtude ética não é, pois, razão pura, mas uma aplicação da razão; não é unicamente ciência, mas uma ação com ciência.
Uma doutrina aristotélica a respeito da virtude doutrina que teve muita doutrina prática, popular, embora se apresente especulativamente assaz discutível é aquela pela qual a virtude é precisamente concebida como um justo meio entre dois extremos, isto é, entre duas paixões opostas: porquanto o sentido poderia esmagar a razão ou não lhe dar forças suficientes. Naturalmente, este justo meio, na ação de um homem, não é abstrato, igual para todos e sempre; mas concreto, relativo a cada qual, e variável conforme as circunstâncias, as diversas paixões predominantes dos vários indivíduos.
Pelo que diz respeito à virtude, tem, ao contrário, certamente, maior valor uma outra doutrina aristotélica: precisamente a da virtude concebida como hábito racional. Se a virtude é, fundamentalmente, uma atividade segundo a razão, mais precisamente é ela um hábito segundo a razão, um costume moral, uma disposição constante, reta, da vontade, isto é, a virtude não é inata, como não é inata a ciência; mas adquiri-se mediante a ação, a prática, o exercício e, uma vez adquirida, estabiliza-se, mecaniza-se; torna-se quase uma segunda natureza e, logo, torna-se de fácil execução - como o vício.
Como já foi mencionado, Aristóteles distingue duas categorias fundamentais de virtudes: as éticas, que constituem propriamente o objeto da moral, e as dianoéticas, que a transcendem. É uma distinção e uma hierarquia, que têm uma importância essencial em relação a toda a filosofia e especialmente à moral. As virtudes intelectuais, teoréticas, contemplativas, são superiores às virtudes éticas, práticas, ativas. Noutras palavras, Aristóteles sustenta o primado do conhecimento, do intelecto, da filosofia, sobre a ação, a vontade, a política.

A Política

A política aristotélica é essencialmente unida à moral, porque o fim último do estado é a virtude, isto é, a formação moral dos cidadãos e o conjunto dos meios necessários para isso. O estado é um organismo moral, condição e complemento da atividade moral individual, e fundamento primeiro da suprema atividade contemplativa. A política, contudo, é distinta da moral, porquanto esta tem como objetivo o indivíduo, aquela a coletividade. A ética é a doutrina moral individual, a política é a doutrina moral social. Desta ciência trata Aristóteles precisamente na Política, de que acima se falou.
O estado, então, é superior ao indivíduo, porquanto a coletividade é superior ao indivíduo, o bem comum superior ao bem particular. Unicamente no estado efetua-se a satisfação de todas as necessidades, pois o homem, sendo naturalmente animal social, político, não pode realizar a sua perfeição sem a sociedade do estado.
Visto que o estado se compõe de uma comunidade de famílias, assim como estas se compõem de muitos indivíduos, antes de tratar propriamente do estado será mister falar da família, que precede cronologicamente o estado, como as partes precedem o todo. Segundo Aristóteles, a família compõe-se de quatro elementos: os filhos, a mulher, os bens, os escravos; além, naturalmente, do chefe a que pertence a direção da família. Deve ele guiar os filhos e as mulheres, em razão da imperfeição destes. Deve fazer frutificar seus bens, porquanto a família, além de um fim educativo, tem também um fim econômico. E, como ao estado, é-lhe essencial a propriedade, pois os homens têm necessidades materiais. No entanto, para que a propriedade seja produtora, são necessários instrumentos inanimados e animados; estes últimos seriam os escravos.
Aristóteles não nega a natureza humana ao escravo; mas constata que na sociedade são necessários também os trabalhos materiais, que exigem indivíduos particulares, a que fica assim tirada fatalmente a possibilidade de providenciar a cultura da alma, visto ser necessário, para tanto, tempo e liberdade, bem como aptas qualidades espirituais, excluídas pelas próprias características qualidades materiais de tais indivíduos. Daí a escravidão.
Vejamos, agora, o estado em particular. O estado surge, pelo fato de ser o homem um animal naturalmente social, político. O estado provê, inicialmente, a satisfação daquelas necessidades materiais, negativas e positivas, defesa e segurança, conservação e engrandecimento, de outro modo irrealizáveis. Mas o seu fim essencial é espiritual, isto é, deve promover a virtude e, consequentemente, a felicidade dos súditos mediante a ciência.
Compreende-se, então, como seja tarefa essencial do estado a educação, que deve desenvolver harmônica e hierarquicamente todas as faculdades: antes de tudo as espirituais, intelectuais e, subordinadamente, as materiais, físicas. O fim da educação é formar homens mediante as artes liberais, importantíssimas a poesia e a música, e não máquinas, mediante um treinamento profissional. Eis porque Aristóteles, como Platão, condena o estado que, ao invés de se preocupar com uma pacífica educação científica e moral, visa a conquista e a guerra. E critica, dessa forma, a educação militar de Esparta, que faz da guerra a tarefa precípua do estado, e põe a conquista acima da virtude, enquanto a guerra, como o trabalho, são apenas meios para a paz e o lazer sapiente.
Não obstante a sua concepção ética do estado, Aristóteles, diversamente de Platão, salva o direito privado, a propriedade particular e a família. O comunismo como resolução total dos indivíduos e dos valores no estado é fantástico e irrealizável. O estado não é uma unidade substancial, e sim uma síntese de indivíduos substancialmente distintos. Se se quiser a unidade absoluta, será mister reduzir o estado à família e a família ao indivíduo; só este último possui aquela unidade substancial que falta aos dois precedentes. Reconhece Aristóteles a divisão platônica das castas, e, precisamente, duas classes reconhece: a dos homens livres, possuidores, isto é, a dos cidadãos e a dos escravos, dos trabalhadores, sem direitos políticos.
Quanto à forma exterior do estado, Aristóteles distingue três principais: a monarquia, que é o governo de um só, cujo caráter e valor estão na unidade, e cuja degeneração é a tirania; a aristocracia, que é o governo de poucos, cujo caráter e valor estão na qualidade, e cuja degeneração é a oligarquia; a democracia, que é o governo de muitos, cujo caráter e valor estão na liberdade, e cuja degeneração é a demagogia. As preferências de Aristóteles vão para uma forma de república democrático-intelectual, a forma de governo clássica da Grécia, particularmente de Atenas. No entanto, com o seu profundo realismo, reconhece Aristóteles que a melhor forma de governo não é abstrata, e sim concreta: deve ser relativa, acomodada às situações históricas, às circunstâncias de um determinado povo. De qualquer maneira a condição indispensável para uma boa constituição, é que o fim da atividade estatal deve ser o bem comum e não a vantagem de quem governa despoticamente.

A Religião

Com Aristóteles afirma-se o teísmo do ato puro. No entanto, este Deus, pelo seu efetivo isolamento do mundo, que ele não conhece, não cria, não governa, não está em condições de se tornar objeto de religião, mais do que as transcendentes ideias platônicas. E não fica nenhum outro objeto religioso. Também Aristóteles, como Platão, se exclui filosoficamente o antropomorfismo, não exclui uma espécie de politeísmo, e admite, ao lado do Ato Puro e a ele subordinado, os deuses astrais, isto é, admite que os corpos celestes são animados por espíritos racionais. Entretanto, esses seres divinos não parecem e não podem ter função religiosa e sem física.
Não obstante esta concepção filosófica da divindade, Aristóteles admite a religião positiva do povo, até sem correção alguma. Explica e justifica a religião positiva, tradicional, mítica, como obra política para moralizar o povo, e como fruto da tendência humana para as representações antropomórficas; e não diz que ela teria um fundamento racional na verdade filosófica da existência da divindade, a que o homem se teria facilmente elevado através do espetáculo da ordem celeste.
Aristóteles como Platão considera a arte como imitação, de conformidade com o fundamental realismo grego. Não, porém, imitação de uma imitação, como é o fenômeno, o sensível, platônicos; e sim imitação direta da própria ideia, do inteligível imanente no sensível, imitação da forma imanente na matéria. Na arte, esse inteligível, universal é encarnado, concretizado num sensível, num particular e, destarte, tornando intuitivo, graças ao artista. Por isso, Aristóteles considera a arte a poesia de Homero que tem por conteúdo o universal, o imutável, ainda que encarnado fantasticamente num particular, como superior à história e mais filosófica do que a história de Heródoto que tem como objeto o particular, o mutável, seja embora real. O objeto da arte não é o que aconteceu uma vez como é o caso da história , mas o que por natureza deve, necessária e universalmente, acontecer. Deste seu conteúdo inteligível, universal, depende a eficácia espiritual pedagógica, purificadora da arte.
Se bem que a arte seja imitação da realidade no seu elemento essencial, a forma, o inteligível, este inteligível recebe como que uma nova vida através da fantasia criadora do artista, isto precisamente porque o inteligível, o universal, deve ser encarnado, concretizado pelo artista num sensível, num particular. As leis da obra de arte serão, portanto, além de imitação do universal verossimilhança e necessidade coerência interior dos elementos da representação artística, íntimo sentimento do conteúdo, evidência e vivacidade de expressão. A arte é, pois, produção mediante a imitação; e a diferença entre as várias artes é estabelecida com base no objeto ou no instrumento de tal imitação.

A Metafísica

A metafísica aristotélica é "a ciência do ser como ser, ou dos princípios e das causas do ser e de seus atributos essenciais". Ela abrange ainda o ser imóvel e incorpóreo, princípio dos movimentos e das formas do mundo, bem como o mundo mutável e material, mas em seus aspectos universais e necessários. Exporemos portanto, antes de tudo, as questões gerais da metafísica, para depois chegarmos àquela que foi chamada, mais tarde, metafísica especial; tem esta como objeto o mundo que vem-a-ser - natureza e homem - e culmina no que não pode vir-a-ser, isto é, Deus. Podem-se reduzir fundamentalmente a quatro as questões gerais da metafísica aristotélica: potência e ato, matéria e forma, particular e universal, movido e motor. A primeira e a última abraçam todo o ser, a segunda e a terceira todo o ser em que está presente a matéria.
I. A doutrina da potência e do ato é fundamental na metafísica aristotélica: potência significa possibilidade, capacidade de ser, não-ser atual; e ato significa realidade, perfeição, ser efetivo. Todo ser, que não seja o Ser perfeitíssimo, é portanto uma síntese - um sínolo - de potência e de ato, em diversas proporções, conforme o grau de perfeição, de realidade dos vários seres. Um ser desenvolve-se, aperfeiçoa-se, passando da potência ao ato; esta passagem da potência ao ato é atualização de uma possibilidade, de uma potencialidade anterior. Esta doutrina fundamental da potência e do ato é aplicada - e desenvolvida - por Aristóteles especialmente quando da doutrina da matéria e da forma, que representam a potência e o ato no mundo, na natureza em que vivemos. Desta doutrina da matéria e da forma, vamos logo falar.
II. Aristóteles não nega o vir-a-ser de Heráclito, nem o ser de Parmênides, mas une-os em uma síntese conclusiva, já iniciada pelos últimos pré-socráticos e grandemente aperfeiçoada por Demócrito e Platão. Segundo Aristóteles, a mudança, que é intuitiva, pressupõe uma realidade imutável, que é de duas espécies. Um substrato comum, elemento imutável da mudança, em que a mudança se realiza; e as determinações que se realizam neste substrato, a essência, a natureza que ele assume. O primeiro elemento é chamado matéria (prima), o segundo forma (substancial). O primeiro é potência, possibilidade de assumir várias formas, imperfeição; o segundo é atualidade - realizadora, especificadora da matéria - , perfeição. A síntese - o sinolo - da matéria e da forma constitui a substância, e esta, por sua vez, é o substrato imutável, em que se sucedem os acidentes, as qualidades acidentais. A mudança, portanto, consiste ou na sucessão de várias formas na mesma essência, forma concretizada da matéria, que constitui precisamente a substância.
A matéria sem forma, a pura matéria, chamada matéria-prima, é um mero possível, não existe por si, é um absolutamente interminado, em que a forma introduz as determinações. A matéria aristotélica, porém, não é o puro não-ser de Platão, mero princípio de decadência, pois ela é também condição indispensável para concretizar a forma, ingrediente necessário para a existência da realidade material, causa concomitante de todos os seres reais.
Então não existe, propriamente, a forma sem a matéria, ainda que a forma seja princípio de atuação e determinação da própria matéria. Com respeito à matéria, a forma é, portanto, princípio de ordem e finalidade, racional, inteligível. Diversamente da ideia platônica, a forma aristotélica não é separada da matéria, e sim imanente e operante nela. Ao contrário, as formas aristotélicas são universais, imutáveis, eternas, como as ideias platônicas.
Os elementos constitutivos da realidade são, portanto, a forma e a matéria. A realidade, porém, é composta de indivíduos, substâncias, que são uma síntese - umsínolo - de matéria e forma. Por consequência, estes dois princípios não são suficientes para explicar o surgir dos indivíduos e das substâncias que não podem ser atuados - bem como a matéria não pode ser atuada - a não ser por um outro indivíduo, isto é, por uma substância em ato. Daí a necessidade de um terceiro princípio, a causa eficiente, para poder explicar a realidade efetiva das coisas. A causa eficiente, por sua vez, deve operar para um fim, que é precisamente a síntese da forma e da matéria, produzindo esta síntese o indivíduo. Daí uma quarta causa, a causa final, que dirige a causa eficiente para a atualização da matéria mediante a forma.
III. Mediante a doutrina da matéria e da forma, Aristóteles explica o indivíduo, a substância física, a única realidade efetiva no mundo, que é precisamente síntese - sínolo - de matéria e de forma. A essência - igual em todos os indivíduos de uma mesma espécie - deriva da forma; a individualidade, pela qual toda substância é original e se diferencia de todas as demais, depende da matéria. O indivíduo é, portanto, potência realizada, matéria enformada, universal particularizado. Mediante esta doutrina é explicado o problema do universal e do particular, que tanto atormenta Platão; Aristóteles faz o primeiro - a ideia - imanente no segundo - a matéria, depois de ter eficazmente criticado o dualismo platônico, que fazia os dois elementos transcendentes e exteriores um ao outro.
IV. Da relação entre a potência e o ato, entre a matéria e a forma, surge o movimento, a mudança, o vir-a-ser, a que é submetido tudo que tem matéria, potência. A mudança é, portanto, a realização do possível. Esta realização do possível, porém, pode ser levada a efeito unicamente por um ser que já está em ato, que possui já o que a coisa movida deve vir-a-ser, visto ser impossível que o menos produza o mais, o imperfeito o perfeito, a potência o ato, mas vice-versa. Mesmo que um ser se mova a si mesmo, aquilo que move deve ser diverso daquilo que é movido, deve ser composto de um motor e de uma coisa movida. Por exemplo, a alma é que move o corpo. O motor pode ser unicamente ato, forma; a coisa movida - enquanto tal - pode ser unicamente potência, matéria. Eis a grande doutrina aristotélica do motor e da coisa movida, doutrina que culmina no motor primeiro, absolutamente imóvel, ato puro, isto é, Deus.

A Psicologia

Objeto geral da psicologia aristotélica é o mundo animado, isto é, vivente, que tem por princípio a alma e se distingue essencialmente do mundo inorgânico, pois, o ser vivo diversamente do ser inorgânico possui internamente o princípio da sua atividade, que é precisamente a alma, forma do corpo. A característica essencial e diferencial da vida e da planta, que tem por princípio a alma vegetativa, é a nutrição e a reprodução. A característica da vida animal, que tem por princípio a alma sensitiva, é precisamente a sensibilidade e a locomoção. Enfim, a característica da vida do homem, que tem por princípio a alma racional, é o pensamento. Todas estas três almas são objeto da psicologia aristotélica. Aqui nos limitamos à psicologia racional, que tem por objeto específico o homem, visto que a alma racional cumpre no homem também as funções da vida sensitiva e vegetativa; e, em geral, o princípio superior cumpre as funções do princípio inferior. De sorte que, segundo Aristóteles diversamente de Platão todo ser vivo tem uma só alma, ainda que haja nele funções diversas faculdades diversas porquanto se dão atos diversos. E assim, conforme Aristóteles, diversamente de Platão, o corpo humano não é obstáculo, mas instrumento da alma racional, que é a forma do corpo.
O homem é uma unidade substancial de alma e de corpo, em que a primeira cumpre as funções de forma em relação à matéria, que é constituída pelo segundo. O que caracteriza a alma humana é a racionalidade, a inteligência, o pensamento, pelo que ela é espírito. Mas a alma humana desempenha também as funções da alma sensitiva e vegetativa, sendo superior a estas. Assim, a alma humana, sendo embora uma e única, tem várias faculdades, funções, porquanto se manifesta efetivamente com atos diversos. As faculdades fundamentais do espírito humano são duas: teorética e prática, cognoscitiva e operativa, contemplativa e ativa. Cada uma destas, pois, se desdobra em dois graus, sensitivo e intelectivo, se se tiver presente que o homem é um animal racional, quer dizer, não é um espírito puro, mas um espírito que anima um corpo animal.
O conhecimento sensível, a sensação, pressupões um fato físico, a saber, a ação do objeto sensível sobre o órgão que sente, imediata ou à distância, através do movimento de um meio. Mas o fato físico transforma-se num fato psíquico, isto é, na sensação propriamente dita, em virtude da específica faculdade e atividade sensitivas da alma. O sentido recebe as qualidades materiais sem a matéria delas, como a cera recebe a impressão do selo sem a sua matéria. A sensação embora limitada é objetiva, sempre verdadeira com respeito ao próprio objeto; a falsidade, ou a possibilidade da falsidade, começa com a síntese, com o juízo. O sensível próprio é percebido por um só sentido, isto é, as sensações específicas são percebidas, respectivamente, pelos vários sentidos; o sensível comum, as qualidades gerais das coisas tamanho, figura, repouso, movimento, etc. são percebidas por mais sentidos. O senso comum é uma faculdade interna, tendo a função de coordenar, unificar as várias sensações isoladas, que a ele confluem, e se tornam, por isso, representações, percepções.
Acima do conhecimento sensível está o conhecimento inteligível, especificamente diverso do primeiro. Aristóteles aceita a essencial distinção platônica entre sensação e pensamento, ainda que rejeite o inatismo platônico, contrapondo-lhe a concepção do intelecto como tabula rasa, sem ideias inatas. Objeto do sentido é o particular, o contingente, o mutável, o material. Objeto do intelecto é o universal, o necessário, o imutável, o imaterial, as essências, as formas das coisas e os princípios primeiros do ser, o ser absoluto. Por consequência, a alma humana, conhecendo o imaterial, deve ser espiritual e, quanto a tal, deve ser imperecível.
Analogamente às atividades teoréticas, duas são as atividades práticas da alma: apetite e vontade. O apetite é a tendência guiada pelo conhecimento sensível, e é próprio da alma animal. Esse apetite é concebido precisamente como sendo um movimento finalista, dependente do sentimento, que, por sua vez depende do conhecimento sensível. A vontade é o impulso, o apetite guiado pela razão, e é própria da alma racional. Como se vê, segundo Aristóteles, a atividade fundamental da alma é teorética, cognoscitiva, e dessa depende a prática, ativa, no grau sensível bem como no grau inteligível.

A Cosmologia

Uma questão geral da física aristotélica, como filosofia da natureza, é a análise dos vários tipos de movimento, mudança, que já sabemos ser passagem da potência ao ato, realização de uma possibilidade. Aristóteles distingue quatro espécies de movimentos:
1. Movimento substancial - mudança de forma, nascimento e morte;
2. Movimento qualitativo - mudança de propriedade;
3. Movimento quantitativo - acrescimento e diminuição;
4. Movimento espacial - mudança de lugar, condicionando todas as demais espécies de mudança.

Outra especial e importantíssima questão da física aristotélica é a concernente ao espaço e ao tempo, em torno dos quais fez ele investigações profundas. O espaço é definido como sendo o limite do corpo, isto é, o limite imóvel do corpo "circundante" com respeito ao corpo circundado. O tempo é definido como sendo o número, isto é, a medida do movimento segundo a razão, o aspecto, do "antes" e do "depois". Admitidas as precedentes concepções de espaço e de tempo - como sendo relações de substâncias, de fenômenos - é evidente que fora do mundo não há espaço nem tempo: espaço e tempo vazios são impensáveis.
Uma terceira questão fundamental da filosofia natural de Aristóteles é a concernente ao teleologismo - finalismo - por ele propugnado com base na finalidade, que ele descortina em a natureza. "A natureza faz, enquanto possível, sempre o que é mais belo". Fim de todo devir é o desenvolvimento da potência ao ato, a realização da forma na matéria.
Quanto às ciências químicas, físicas e especialmente astronômicas, as doutrinas aristotélicas têm apenas um valor histórico, e são logicamente separáveis da sua filosofia, que tem um valor teorético. Especialmente célebre é a sua doutrina astronômica geocêntrica, que prestará a estrutura física à Divina Comédia de Dante Alighieri.

Juízo sobre Aristóteles

É difícil aquilatar em sua justa medida o valor de Aristóteles. A influência intelectual por ele até hoje exercida sobre o pensamento humano e à qual se não pode comparar a de nenhum outro pensador dá-nos, porém, uma ideia da envergadura de seu gênio excepcional. Criador da lógica, autor do primeiro tratado de psicologia científica, primeiro escritor da história da filosofia, patriarca das ciências naturais, metafísico, moralista, político, ele é o verdadeiro fundador da ciência moderna e "ainda hoje está presente com sua linguagem científica não somente às nossas cogitações, senão também à expressão dos sentimentos e das ideias na vida comum e habitual".
Nem por isso podemos deixar de apontar as lacunas do seu sistema. Sua moral, sem obrigação nem sanção, é defeituosa e mais gravemente defeituosa ainda que a teodicéia, sobretudo na parte que trata das relações de Deus com o mundo. O dualismo primitivo e irredutível entre Deus, ato puro, e a matéria, princípio potencial, é, na própria teoria aristotélica, uma verdadeira contradição e deixa subsistir, como enigma insolúvel e inexplicável, a existência dos seres fora de Deus.

Vista Retrospectiva

Com Sócrates entre a filosofia em seu caminho definitivo. O problema do objeto e da possibilidade da ciência é posto em seus verdadeiros termos e resolvido, nas suas linhas gerais, pela doutrina do conceito.Platão dá um passo além, procurando determinar a relação entre o conceito e a realidade, mas encalha, dum lado, nas dificuldades insolúveis de um realismo exagerado; de outro, nas extravagâncias dum idealismo extremo. Aristóteles, com o seu espírito positivo e observador, retoma o mesmo problema no pé em que o pusera Platão e dá-lhe, pela teoria da abstração e da inteligência ativa, uma solução satisfatória e definitiva nos grandes lineamentos. Em torno desta questão fundamental, que entende com a metafísica, a psicologia e a lógica, se vão desenvolvendo harmoniosamente as outras partes da filosofia até constituírem em Aristóteles esta grandiosa síntese do saber universal, o mais precioso legado da civilização grega que declinava à civilização ocidental que surgia.

O EPICURISMO – CETICISMO - ECLETISMO

Epicuro, fundador da escola que tomou o seu nome, nasceu em Atenas, provavelmente, em 341 a.C., do ateniense Néocles, e foi criado em Samos. A mãe praticava a magia. Cedo dedicou-se à filosofia, sendo iniciado por Nausífanes de Teo no sistema de Demócrito. Em 306 abriu a sua famosa escola em Atenas, nos jardins da sua vila, que se tornaram centro das reuniões aristocráticas dos seus admiradores, discípulos e amigos. Epicuro expôs a sua doutrina num grande número de escritos, pela maior parte perdidos. Faleceu em 270 a.C. com setenta anos de idade. O epicurismo teve, desde logo, rápida e vasta difusão no mundo romano, onde encontramos, sobretudo, Tito Lucrécio Caro - I século a.C. - o poeta entusiasta, autor de De rerum natura, que venerava Epicuro como uma divindade. A ele devemos as melhores notícias sobre o sistema epicurista. A escola epicurista durou até o IV século d.C., mas teve escasso desenvolvimento, conforme o desejo do mestre, que queria os discípulos fiéis até a letra do sistema. A originalidade deveria manifestar-se na vida.
Epicuro foi pessoa fidalga e refinada, o ideal da fidalguia antiga: fazer da formosura o princípio inspirador da vida, e fruir dessa formosura na própria existência pessoal. E foi um mestre eficaz de sabedoria aristocrática, feita de nobreza de sentimentos, senso refinado, gosto para a formosura, para a cultura superior. Em seus jardins, num sereno lazer, semelhante ao dos deuses, deu vida a uma sociedade genial, em que dominava o vínculo da amizade. As amizades dos epicuristas ficaram famosas como as dos pitagóricos. A associação espalhou-se depois, mas conservou-se fortemente organizada, mediante uma estável constituição, ajudas materiais, cartas, missões. O mestre pareceu aos discípulos como que um redentor; a sua filosofia foi considerada como uma religião, a sua doutrina, resumida em catecismos, a sua imagem, gravada nas jóias, em sua honra celebravam-se festas comemorativas, mensais e anuais. Se não houve pensadores epicuristas notáveis depois de Epicuro no mundo clássico nem depois, houve todavia, em todos os tempos e lugares, homens famosos, pertencentes a classes sociais elevadas, os quais aplicaram a sua doutrina à vida e dela fizeram a substância de sua arte.

O Pensamento: Gnosiologia e Metafísica

Também o epicurismo - como o estoicismo - divide a filosofia em lógica, física e ética; também subordina a teoria à pratica, a ciência à moral, para garantir ao homem o bem supremo, a serenidade, a paz, a apatia. A filosofia é a arte da vida. Precisamente, é tarefa do conhecimento do mundo, da física - diz Epicuro - libertar o homem dos grandes temores que ele tem a respeito da sua vida, da morte, do além-túmulo, de Deus e fazer com que ele atue de conformidade. Portanto, recorre Epicuro à física atomista, mecanicista, democritiana, pela qual também os deuses vêm a ser compostos de átomos, e - habitadores felizes de intermundos - desinteressam-se por completo dos homens. Aliás, não é excluído o fato de que a necessidade universal oprimiria o homem ainda mais do que o arbítrio divino. Igualmente, a alma - formada de átomos sutis, mas sempre materiais - perece com o corpo; daí, nenhuma preocupação com a morte, nem com o além-túmulo: seria igualmente absurdo preocupar-se com aquilo que se segue à morte, como com aquilo que precede o nascimento
A gnosiologia (lógica, canônica) epicurista é rigorosamente sensista. Todo o nosso conhecimento deriva da sensação, é uma complicação de sensações. Estas nos dão o ser, indivíduo material, que constitui a realidade originária. O processo cognoscitivo da sensação é explicado mediante os assim chamados fantasmas, que seriam imagens em miniatura das coisas, arrancar-se-iam destas e chegariam até à alma imediatamente, ou mediatamente através dos sentidos. Dada tal gnosiologia coerentemente sensista, é natural que o critério fundamental e único da verdade seja a sensação, a percepção sensível, que é imediata, intuitiva, evidente. Como a sensação, a evidência sensível é o único critério de verdade no campo teorético, da mesma forma o sentimento (prazer e dor) será o critério supremo de valor no campo prático.
Como a gnosiologia epicurista é rigorosamente sensista, a metafísica epicurista é rigorosamente materialista: quer dizer, resolve-se numa física. Epicuro, seguindo as pegadas de Demócrito, concebe os elementos últimos constitutivos da realidade como corpúsculos inúmeros, eternos, imutáveis, invisíveis, homogêneos, indivisíveis (átomos), iguais qualitativamente e diversos quantitativamente - no tamanho, na figura, no peso. Também segundo Epicuro, os átomos estão no espaço vazio, infinito, indispensável para que seja possível o movimento e, consequentemente, a origem e a variedade das coisas. Os átomos são animados de movimento necessário para baixo. Entretanto, no movimento uniforme retilíneo para baixo introduz Epicuro desvios múltiplos, sem causa, espontâneos (clinamen); daí derivam encontros e choques de átomos e, por consequência, os vórtices e os mundos. Estes, de fato, não teriam explicações se os átomos caíssem todos com movimentos uniforme e retilíneos para baixo - como pensava Demócrito. Mediante o clinamen Epicuro justifica ainda o livre arbítrio, que é uma simples combinação da contingência, do indeterminismo universal. O universo não é concebido como finito e uno, mas infinito e resultante de mundos inúmeros divididos por intermundos, espalhado pelo espaço infindo, sujeitos ao nascimento e à morte. Nesse mundo o homem, sem providência divina, sem alma imortal, deve adaptar-se para viver como melhor puder. Nisto estão toda a sabedoria, a virtude, a moral epicuristas.

A Moral e a Religião

A moral epicurista é uma moral hedonista. O fim supremo da vida é o prazer sensível; critério único de moralidade é o sentimento. O único bem é o prazer, como o único mal é a dor; nenhum prazer deve ser recusado, a não ser por causa de consequências dolorosas, e nenhum sofrimento deve ser aceito, a não ser em vista de um prazer, ou de nenhum sofrimento menor. No epicurismo não se trata, portanto, do prazer imediato, como é desejado pelo homem vulgar; trata-se do prazer imediato, refletido, avaliado pela razão, escolhido prudentemente, sabiamente, filosoficamente. É mister dominar os prazeres, e não se deixar por eles dominar; ter a faculdade de gozar e não a necessidade de gozar. A filosofia toda está nesta função prática. Este prazer imediato deveria ficar sempre essencialmente sensível, mesmo quando Epicuro fala de prazeres espirituais, para os quais não há lugar no seu sistema, e nada mais seriam que complicações de prazeres sensíveis. O prazer espiritual diferenciar-se-ia do prazer sensível, porquanto o primeiro se estenderia também ao passado e ao futuro e transcende o segundo, que é unicamente presente. Verdade é que Epicuro mira os prazeres estéticos e intelectuais, como os mais altos prazeres. Aqui, porém, se ele faz uma afirmação profunda, está certamente em contradição com a sua metafísica materialista.
Em que consiste, afinal, esse prazer imediato, refletido, racionado? Na satisfação de uma necessidade, na remoção do sofrimento, que nasce de exigências não satisfeitas. O verdadeiro prazer não é positivo, mas negativo, consistindo na ausência do sofrimento, na quietude, na apatia, na insensibilidade, no sono, e na morte. Mas precisamente ainda, Epicuro divide os desejos em naturais e necessários - por exemplo, o instinto da reprodução; não naturais e não necessários - por exemplo, a ambição. O sábio satisfaz os primeiros, quando for preciso, os quais exigem muito pouco e cessam apenas satisfeito; renuncia os segundos, porquanto acarretam fatalmente inquietação e agitação, perturbam a serenidade e a paz; mas ainda renuncia os terceiros, pelos mesmos motivos. Assim, a vida ideal do sábio, do filósofo, que aspira a liberdade e à paz como bens supremos, consistiria na renúncia a todos os desejos possíveis, aos prazeres positivos, físicos e espirituais; e, por conseguinte, em vigiar-se, no precaver-se contra as surpresas irracionais do sentimento, da emoção, da paixão. Não sofrer no corpo, satisfazendo suas necessidades essenciais, para estar tranqüilo; não ser perturbado no espírito, renunciando a todos os desejos possíveis, visto ser o desejo inimigo do sossego: eis as condições fundamentais da felicidade, que é precisamente liberdade e paz.
Em realidade, Epicuro, se ensina a renúncia, não tem a coragem de ensinar a renúncia aos prazeres positivos espirituais, estéticos e intelectuais, a amizade genial, que representa o ideal supremo na concepção grega da vida. E sustenta isto em contradição com a sua ascética radical, bem como contradiz a sua metafísica materialista com a sua moral, que encontra precisamente a mais perfeita realização nestes bens espirituais. O mundo e a vida são um espetáculo: melhor é ser espectadores e atores, melhor é conhecer do que agir. No entanto, o bem espiritual não consiste unicamente na contemplação (cfr. a virtude dianoética de Aristóteles), mas também na ação (cfr. a virtude ética de Aristóteles), e precisamente em uma vida curta e refinada, esteticamente, a maneira grega, no isolamento do mundo, do vulgo, na unidade da amizade, na conversa arguta e delicada: numa palavra, vivendo ocultamente. É de fato, nos jardins de Epicuro, a vida se inspirava nos mais requintados costumes, preenchida com as mais nobres ocupações - como na Academia e no Liceu. Almejava, no entanto, dar uma unidade estética e racional à vida, mais do que ao mundo. O epicurismo, portanto, considerado vulgarmente como propulsor de devassidão e sensualidade, representa, inversamente, uma norma de vida ordinária e espiritual, até um verdadeiro pessimismo e ascetismo, praticamente ateu.
A serenidade do sábio não é perturbada pelo medo da morte, pois todo mal e todo bem se acham na sensação, e a morte é a ausência de sensibilidade, portanto, de sofrimento. Nunca nos encontraremos com a morte, porque quando nós somos, ela não é, quando ela é nós não somos mais, Epicuro, porém, não defende o suicídio que poderia justificar com maior razão do que os estoicos.
Dado este conceito da vida concebida como liberdade, paz e contemplação, é natural que Epicuro seja hostil ao matrimônio e à família, aliás geralmente desvalorizado no mundo grego. Epicuro é também hostil à atividade pública, à política considerando a família e a pátria como causas de agitações e inimigos da autarquia.
Não obstante o seu materialismo teórico e o seu ateísmo prático, Epicuro admite a divindade transcendente, diversamente do imanentismo estóico. A prova da existência da divindade estaria no fato de que temos na mente humana a sua ideia, que não pode ser senão cópia de realidade. Os fantasmas dos deuses proviriam dos próprios deuses - como os fantasmas de todas as outras coisas - desceriam até nós dos intermundos, especialmente durante o sono. Os deuses de Epicuro são muitos, constituídos de átomos etéreos, sutis e luzentes, dotados de corpos luminosos, tendo forma humana belíssima, imortais - diversamente dos deuses estoicos - beatos, contemplados - segundo ideal grego da vida - sempre acordados e sentados em jovial convívio, sorvendo ambrósia, conversando em grego! Mas - como as ideias transcendentes de Platão e ato puro de Aristóteles - não atuam sobre o mundo e a humanidade, para não serem contaminados, perturbados. Vivem, portanto, fora do mundo e dos mundos, nos espaços entre mundo e mundo, na beata solidão dos intermundos, escapando destarte a fatal destruição dos mundos. É uma teologia refinada de ateniense e de artista, que vive no mundo de estátuas divinas, encarnando na serenidade do mármore o ideal grego contemplativo e estético da vida.
Epicuro venera os deuses, não para receber auxílio, mas porque eles encarnam o ideal estético grego da vida, ideal que tem uma expressão concreta precisamente nas belas divindades do panteão helênico. Então, se os deuses não proporcionam ao homem nenhuma vantagem prática, proporcionam-lhe contudo o bem da elevação, que importa na contemplação do ideal. É preciso venerá-los para imitá-los. Deste modo, Epicuro, proclamado ateu, teria praticado - entre os limites impostos pelo pensamento grego e pelo seu pensamento - o mal da religião, uma religião desinteressada, uma espécie de puro amor de Deus dos ascetas e dos místicos.

Ceticismo e Ecletismo

O ceticismoapresenta-se mais coerente do que as escolas precedentes, especialmente do que o estoicismo, com os fins práticos de uma filosofia da renúncia, da indiferença, do sossego. É o ceticismo a última palavra da sabedoria antiga, desesperada por não ter podido resolver o problema da vida mediante a razão. O estoicismo procura realizar a apatia ainda mediante uma metafísica positiva, embora imperfeita, incoerente. O epicurismo tende a realizar o mesmo fim com uma metafísica negativa, negando todo absoluto e transcendente. O ceticismo visa sempre um fim último ético-ascético, sem qualquer metafísica, mesmo negativa.
Através da mais absoluta indiferença, prática e teorética, procura-se realizar finalmente tão almejada paz. A felicidade não é mais uma coisa positiva, nem está no saber e não se pode alcançar mediante o saber, mas pode ser alcançada unicamente negando o saber. Chega-se, destarte, à destruição de todos os valores. Substancialmente, a grande metafísica platônico-aristotélica é posta de lado, mas não é atacada pelo ceticismo. Persiste nos céticos uma fé nostálgica e realista e o conceito da objetividade da ciência: o ser, o objeto, existem, mas não se podem conhecer por falta de meios. Diz Argesilau: "Deus unicamente conhece a verdade, que é inacessível ao homem".

Pirro de Elis
O ceticismo clássico começa com Pirro de Elis (365-275 a.C., mais ou menos), cuja escola terminou pouco depois do seu discípulo Timon. Encarna-se na média academia com Argesilau e Carnéades. E, enfim, surge de novo na forma pirroniana com Enesidemo e Sexto Empírico, em princípios da era vulgar. O ceticismo critica o conhecimento sensível, bem como o intelectual, e também a opinião. A primeira escola cética serve-se, geralmente, do relativismo sofista; a segunda afirma-se de modo original graças a Carnéades; a terceira, de tendência pirroniana, faz uso da dialética eleática, da tese e da antítese.
O ecletismo apresenta-se como um sistema afim, embora imensamente inferior ao ceticismo. Também o ecletismo, como o ceticismo, substitui ao critério da verdade o da verossimilhança, embora acriticamente. O nem-nem dos céticos é mudado em e-e pelos ecléticos; se nada é verdadeiro, tudo vale igualmente. E isto basta aos fins ético-empíricos dos ecléticos, semelhantes e diversos ao mesmo tempo dos fins éticos-ascéticos dos céticos. É o ecletismo filosofia de espíritos pragmáticos ou decadentes, não filosóficos, que concebem a filosofia popularmente, moralisticamente, ou não têm a força da crítica, nem a da afirmação, que implica sempre numa crítica, pois a filosofia é escolha, construção, sistema, organismo especulativo, e não justaposição mecânica de peças sem vida.
O advento de uma semelhante filosofia foi favorecido pela permanência e pela coexistência, no período helenista e depois ainda, de várias escolas filosóficas, que surgiram em tempos diferentes, e por demais despersonalizadas, esvaziadas do seu conteúdo original, característico - como acontece nos períodos de decadência especulativa - de sorte que se torna fácil a síntese eclética, feita de abstratas generalidades ou de particularidades secundárias. O pragmatismo eclético foi, enfim, favorecido pelo contato do pensamento grego com a romanidade dominante, inteiramente voltada para a prática e para a ação, cuja grande obra, portanto será não a filosofia, e sim o jus.
O ecletismo apresenta-se como uma síntese prática ou, melhor ainda, como uma suma de elementos estoicos, acadêmicos e também peripatéticos. Contém muito menos elementos céticos e epicuristas, dada a natureza crítica do ceticismo, e a coerência materialista do epicurismo. Temos precisamente, em ordem cronológica, um ecletismo estóico, depois acadêmico e, enfim, peripatético, segundo os elementos de uma ou de outra escola na síntese prática do próprio ecletismo.

O Período Ético (ESTOICISMO)

Características Gerais

O terceiro período do pensamento grego abrange os três séculos que decorrem da morte de Aristóteles ao início da era vulgar. Na história da civilização e da cultura, este período toma o nome de helenismo, significando a expansão da cultura grega, helênica, no mundo civilizado; na história da filosofia denomina-se período ético, porquanto o interesse filosófico é voltado para os problemas morais. Primeiramente (estoicismo e epicurismo), retorna-se à metafísica naturalista dos pré-socráticos, bem como à moral das escolas socráticas menores, cínica e cirenaica; depois (ceticismo e ecletismo), anula-se toda metafísica e, consequentemente, toda moral, voltando-se para a sofística, menosprezando o grande desenvolvimento filosófico platônico-aristotélico.
Os motivos desta filosofia pragmatista devem ser procurados na decadência espiritual e moral da época, faltando ao homem interesse e a força para a especulação pura, bem como na profunda tristeza dos tempos e na profunda sensibilidade diante do mal. Tudo isto torna dolorosa a vida do homem, que procura na filosofia um conforto, uma orientação moral, encontrando-a na renúncia ao mundo e à própria vida. Do contingente e do temporal, o homem volta-se para o transcendente e para o eterno; a filosofia torna-se uma preparação para a morte, como julga Platão, e a sabedoria é desapego da ação, como opina Aristóteles.
O interesse teorético, o vigor especulativo, restringem-se ao particular, à erudição e às ciências especiais que se desenvolvem, ao passo que a metafísica esmorece. Não filosofia teorética, mas filologia, história, literatura; ciências naturais, medicina, geografia, física, astronomia, matemática. E, com relação às ciências especiais, desenvolve-se naturalmente a técnica, como na idade moderna. A arte resolve-se no virtuosismo e na imitação. Em conclusão, a cultura helenista reduz-se à erudição e ao virtuosismo, ciência e técnica, filosofia moral e moral prática. Nesta civilização cosmopolita encontram-se dois valores universais: o pensamento e a arte dos gregos, isto é, o helenismo; o jus e a política dos romanos. O primeiro valor dá o conteúdo, o segundo a forma - Graecia capta ferum victorem cepit.
No terceiro período do pensamento grego não se encontram mais alguns poucos e grandes pensadores, como no precedente, mas vastas orientações e escolas; não sistemas críticos, mas afirmações dogmáticas. Trataremos, antes de tudo, da escola estoica, em que ainda há uma metafísica, elementar, porém, e anacrônica, em contradição consigo mesma e com a moral; em segundo lugar, da escola epicuréia, em que a metafísica tem apenas uma função negativa, a saber, libertar o homem das preocupações transcendentais, do temor de além-túmulo; em terceiro lugar, da escola cética, em que não há mais metafísica alguma, e, portanto, nem moral, como na escola eclética, em que a metafísica e moral são sincretistas, e, por consequência, anuladas; enfim exporemos o pensamento latino, o qual, pelo que diz respeito à filosofia, depende de cultura grega, e precisamente desse terceiro período - ecletismo e estoicismo. A grandeza verdadeira e original do pensamento latino é o jus, o direito romano, valor universal como a filosofia grega.

O Estoicismo

Em seu conjunto, o estoicismo pode-se dividir em três períodos: um período antigo ou ético, um período médio ou eclético, um período recente ou religioso. Os dois últimos, bastante divergentes do estoicismo clássico.
O fundador da antiga escola estoica é Zenão de Citium (334-262 a.C., mais ou menos). Seu pai, mercador, leva para ele, de Atenas, uns tratados socráticos, que lhe despertam o entusiasmo para com os estudos filosóficos. Aos vinte e dois anos vai para Atenas; aí - perdidos seus bens - dedica-se à filosofia, frequentando por algum tempo várias escolas e mestres, entre os quais o cínico Crates. Finalmente, pelo ano 300, funda a sua escola, que se chamou estoica, do lugar onde ele costumava ensinar: pórtico em grego, stoá. Iniciou, juntamente com a atividade didática, a de escritor. Em seus escritos já se encontram a clássica divisão estoica da filosofia em lógica, física e ética, a primazia da ética e a união de filosofia e vida.
A escola estóica média ou eclética, surge pela influência de outras escolas e para responder às objeções dessas escolas. Podem-se, pois, agrupar na escola estóica nova ou religiosa os que entendiam absolutamente a filosofia, o estoicismo, não como ciência, metafísica, mas como uma missão e uma prática religiosa, sacerdotal.

O Pensamento: Gnosiologia e Metafísica

O estoicismo não apresenta o fenômeno de um grande filósofo, seguido por uma série de discípulos mais ou menos originais, mas sim uma turma bastante uniforme de pensadores medíocres. No dizer dos estoicos, a tarefa essencial da filosofia é a solução do problema da vida; em outras palavras, a filosofia é cultivada exclusivamente em vista da moral, para firmar a virtude e, logo, para assegurar ao homem a felicidade. Entende-se, pois, como a filosofia estoica chega a ser substancialmente pragmatista e, por conseguinte, no fundo, acaba não sendo mais filosofia. E compreende-se o seu vasto êxito em todos os tempos, amiúde apresentando-se como a filosofia dos não filósofos que têm pretensões filosóficas, moralizadoras, rigoristas. Não obstante esse absorvente moralismo, os estoicos distinguem na filosofia uma lógica, uma física, uma ética. Na lógica trata-se da gnosiologia; a física iguala a metafísica; a ética é o fim último e único de toda a filosofia, inclusive da política e da religião.
Os estoicos dividem a lógica em dialética e retórica, em correspondência com o discurso interior e exterior. A mente humana é concebida como uma tabula rasa. Como em Aristóteles, o conhecimento parte dos dados imediatos do sentido; mas, diversamente de Aristóteles, o conhecimento é limitado ao âmbito dos sentidos, não obstante as repetidas e múltiplas declarações estoicas em louvor da razão. O conhecimento intelectual nada mais pode ser que uma combinação, uma complicação quantitativa de elementos sensíveis. O conceito, pois, é destruído, seguindo-se o aniquilamento da ciência, da metafísica e, logo, também da moral.
A metafísica estoica reduz-se à física, porquanto é radicalmente materialista: se tudo é material, toda atividade é movimento, devem-se conceber materialisticamente também Deus, a alma, as propriedades das coisas. Esta matéria está em perpétuo vir-a-ser, conforme a concepção de Heráclito; e a lei desse princípio material só pode ser, naturalmente, uma necessidade mecânica, à maneira de Demócrito.
Devendo os estoicos, todavia, fornecer alguma base à sua ética do dever, e dar uma explicação à razão, que se manifesta no mundo, em especial no homem, incoerentemente declaram racional o fogo - substância metafísica da realidade -, atribuem-lhe arbitrariamente os atributos divinos da sabedoria e da providência, imaginam-no como espírito ordenador, razão da vida, fazendo emergir todas as qualidades da matéria, como o Sol faz brotar da semente a planta, segundo uma ordem teológica. Deus, providência, espírito, ordem são afirmados ao lado dos conceitos opostos de fado, destino, necessidade, mecanicismo. Como se vê, a metafísica dos estoicos é uma metafísica elementar, decadente, contraditória, e os estóicos não são filósofos, metafísicos, mas pragmatistas, moralistas, inteiramente absorvidos na prática, na ética.

A Moral e a Política

No pensamento dos estoicos, o fim supremo, o único bem do homem, não é o prazer, a felicidade, mas a virtude; não é concebida como necessária condição para alcançar a felicidade, e sim como sendo ela própria um bem imediato. Com o desenvolvimento do estoicismo, todavia, a virtude acaba por se tornar meio para a felicidade da tranqüilidade, da serenidade, que nasce da virtude negativa da apatia, da indiferença universal. A felicidade do homem virtuoso é a libertação de toda perturbação, a tranquilidade da alma, a independência interior, a autarquia.
Como o bem absoluto e único é a virtude, assim o mal único e absoluto é o vício. E não tanto pelo dano que pode acarretar ao vicioso, quanto pela sua irracionalidade e desordem intrínseca, ainda que se acabe por repudiá-lo como perturbador da indiferença, da serenidade, da autarquia do sábio. Tudo aquilo que não é virtude nem vício, não é nem bem nem mal, mas apenas indiferença; pode tornar-se bem se for unido com a virtude, mal se for ligado ao vício; há o vício quando à indiferença se ajunta a paixão, isto é, uma emoção, uma tendência irracional, como geralmente acontece.
A paixão, na filosofia estoica, é sempre e substancialmente má; pois é movimento irracional, morbo e vício da alma - quer se trate de ódio, quer se trate de piedade. De tal forma, a única atitude do sábio estóico deve ser o aniquilamento da paixão, até a apatia. O ideal ético estoico não é o domínio racional da paixão, mas a sua destruição total, para dar lugar unicamente à razão: maravilhoso ideal de homem sem paixão, que anda como um deus entre os homens. Daí a guerra justificada do estoicismo contra o sentimento, a emoção, a paixão, donde derivam o desejo, o vício, a dor, que devem ser aniquilados.
A virtude estoica é, no fundo, a indiferença e a renúncia a todos os bens do mundo que não dependem de nós, e cujo curso é fatalmente determinado. Por conseguinte, indiferença e renúncia a tudo, salvo e pensamento, a sabedoria, a virtude, que constituem os únicos bens verdadeiros: indiferença e renúncia à vida e à morte, à saúde e à doença, ao repouso e à fadiga, à riqueza e à pobreza, às honras e à obscuridade, numa palavra, ao prazer e ao sofrimento - pois o prazer é julgado insana vaidade da alma. Dada a indiferença estóica do suicídio como voluntário e moral afastamento do mundo; isto não se concilia, porém, com a virtude da fortaleza que o estoicismo reconhece e louva, e nem se pode explicar racionalmente o suicídio, se a ordem do universo é racional, como precisamente afirmam os estoicos.
O estóico pratica esta indiferença e renúncia para não ser perturbado, magoado pela possível e frequente carência dos bens terrenos, e para não perder, de tal maneira, a serenidade, a paz, o sossego, que são o verdadeiro, supremo, único bem da alma. O sábio é beato, porque, inteiramente fechado na sua torre de marfim, nada lhe acontece que não seja por ele querido, e se conforma com o demais, sem saudades e sem esperanças; pois sabe que tudo é efeito de um determinismo universal. A serenidade, a apatia dos estoicos seria, sem dúvida, fruto de uma fatigosa conquista, de uma dura virtude. Mas é uma virtude absolutamente negativa. Com efeito, quando o homem se torna indiferente a tudo, e a tudo renuncia, salvo o seu pensamento - cujo conteúdo é, em definitivo, esta mesma renúncia -, não lhe resta efetivamente mais nada. Não Deus, pois no sistema estoico, é uma pura palavra; não a alma, destinada a resolver-se na matéria. A sabedoria estoica é ação negadora da expansão das forças espirituais, virtude corrosiva, morte moral.
Pelo que diz respeito à política, manifesta-se na filosofia estoica um racionalismo cosmopolita radical a propósito da sociedade estatal: o homem, político por natureza, torna-se cosmopolita por natureza. Diz o estoico Musônio: "O mundo é a pátria comum de todos os homens". Tal cosmopolitismo foi fecundo em progresso, em civilização humana e moral. Abre-se caminho a um sentimento de caridade, de perdão, até para os infelizes e os escravos, os estrangeiros e os inimigos, em virtude da doutrina que afirma a identidade da natureza humana, sentimento este inteiramente desconhecido ao mundo antigo, clássico, onde campeia solitária uma justiça, que existe, porém, apenas para os concidadãos, livres e íntegros. E até começam a nascer instituições caritativas para com os pobres e os doentes. Destarte, esse cosmopolitismo, a que os estoicos não podem fornecer uma base racional e metafísica, promove todavia os conceitos de sociedade universal, de direito natural, de lei racional, conceitos que deveriam ser deduzidos da natureza racional do homem.

FILOSOFIA – MEDIEVAL

Características Gerais do Neoplatonismo

O neoplatonismo afirma certa transcendência de Deus, em que este é imaginado como o supra inteligível. Por isso, é inefável e pode ser atingido na sua plenitude unicamente mediante o êxtase, que é uma fulguração divina, superior à filosofia. Com esta doutrina do êxtase, em que é afirmada uma relação específica com a Divindade, parece abrir-se o caminho para uma nova filosofia religiosa, para a valorização da religião positiva. E outro caminho parece abrir-se na doutrina dos intermediários, que estão entre Deus e o homem, e por Plotino distintos em deuses invisíveis e visíveis, a que são assimiladas as divindades das religiões tradicionais.

As Características Filosóficas do Cristianismo

Agostinho
Não há propriamente uma história da filosofia cristã, assim como há uma história da filosofia grega ou da filosofia moderna, pois no pensamento cristão, o máximo valor, o interesse central, não é a filosofia, e sim a religião. Entretanto, se o cristianismo não se apresenta, de fato, como uma filosofia, uma doutrina, mas como uma religião, uma sabedoria, pressupõe uma específica concepção do mundo e da vida, pressupõe uma precisa solução do problema filosófico. É o teísmo e o cristianismo. O cristianismo fornece ainda uma - imprescindível - integração à filosofia, no tocante à solução do problema do mal, mediante os dogmas do pecado original e da redenção pela cruz. E, enfim, além de uma justificação histórica e doutrinal da revelação judaico-cristã em geral, o cristianismo implica uma determinação, elucidação, sistematização racional do próprio conteúdo sobrenatural da Revelação, mediante uma disciplina específica, que será a teologia dogmática.
Pelo que diz respeito ao teísmo, salientamos que o cristianismo o deve, historicamente, a Israel. Mas entre os hebreus o teísmo não tem uma justificação, uma demonstração racional, como, por exemplo, em Aristóteles, de sorte que, em definitivo, o pensamento cristão tomará na grande tradição especulativa grega esta justificação e a filosofia em geral. Isto se realizará graças especialmente à Escolástica e, sobretudo, a Tomás de Aquino. Pelo que diz respeito à solução do problema do mal, solução que constitui a integração filosófica proporcionada pelo cristianismo ao pensamento antigo - que sentiu profundamente, dramaticamente, este problema sem o poder solucionar - frisamos que essa representa a grande originalidade teórica e prática, filosófica e moral, do cristianismo. Soluciona este o problema do mal precisamente mediante os dogmas fundamentais do pecado original e da redenção da cruz. Finalmente, a justificação da Revelação em geral, e a determinação, dilucidação, sistematização racional do conteúdo da mesma, têm uma importância indireta com respeito à filosofia, porquanto implicam sempre numa intervenção da razão. Foi esta, especialmente, a obra da Patrística e, sobretudo, de Agostinho.
Esta parte, dedicada à história do pensamento cristão, será, portanto, dividida do seguinte modo: o Cristianismo, isto é, o pensamento do Novo Testamento, enquanto soluciona o problema filosófico do mal; a Patrística, a saber, o pensamento cristão desde o II ao VIII século, a que é devida particularmente a construção da teologia, da dogmática católica; a Escolástica, a saber, o pensamento cristão desde o século IX até o século XV, criadora da filosofia cristã verdadeira e própria.

Características Gerais do Pensamento Cristão

Foi conquistada a cidade que conquistou o universo. Assim definiu São Jerônimo o momento que marcaria a virada de uma época. Era a invasão de Roma pelos germanos e a queda do Império Romano.
A avalancha dos bárbaros arrasou também grande parte das conquistas culturais do mundo antigo.
A Idade Média inicia-se com a desorganização da vida política, econômica e social do Ocidente, agora transformado num mosaico de reinos bárbaros. Depois vieram as guerras, a fome e as grandes epidemias. O cristianismo propaga-se por diversos povos. A diminuição da atividade cultural transforma o homem comum num ser dominado por crenças e superstições.
O período medieval não foi, porém, a "Idade das Trevas", como se acreditava. A filosofia clássica sobrevive, confinada nos mosteiros religiosos. O aristotelismo dissemina-se pelo Oriente bizantino, fazendo florescer os estudos filosóficos e as realizações científicas. No Ocidente, fundam-se as primeiras universidades, ocorre a fusão de elementos culturais greco-romanos, cristãos e germânicos, e as obras de Aristóteles são traduzidas para o latim.
Sob a influência da Igreja, as especulações se concentram em questões filosófico-teológicas, tentando conciliar a fé e a razão. E é nesse esforço que Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino trazem à luz reflexões fundamentais para a história do pensamento cristão.

A Filosofia Medieval e o Cristianismo

Ao longo do século V d.C., o Império Romano do Ocidente sofreu ataques constantes dos povos bárbaros. Do confronto desses povos invasores com a civilização romana decadente desenvolveu-se uma nova estruturação européia de vida social, política e econômica, que corresponde ao período medieval.
Em meio ao esfacelamento do Império Romano, decorrente, em grande parte, das invasões germânicas, a Igreja católica conseguiu manter-se como instituição social mais organizada. Ela consolidou sua estrutura religiosa e difundiu o cristianismo entre os povos bárbaros, preservando muitos elementos da cultura pagã greco-romana.
Apoiada em sua crescente influência religiosa, a Igreja passou a exercer importante papel político na sociedade medieval. Desempenhou, por exemplo, a função de órgão supranacional, conciliador das elites dominantes, contornando os problemas da fragmentação política e das rivalidades internas da nobreza feudal. Conquistou, também, vasta riqueza material: tornou-se dona de aproximadamente um terço das áreas cultiváveis da Europa ocidental, numa época em que a terra era a principal base de riqueza. Assim, pôde estender seu manto de poder "universalista" sobre diferentes regiões européias.

Conflitos e Conciliação entre a Fé e Saber

No plano cultural, a Igreja exerceu amplo domínio, trançando um quadro intelectual em que a fé cristã era o pressuposto fundamental de toda sabedoria humana.

Em que consistia essa fé?

Consistia na crença irrestrita ou na adesão incondicional às verdades reveladas por Deus aos homens. Verdades expressas nas Sagradas Escrituras (Bíblia) e devidamente interpretadas segundo a autoridade da Igreja.
"A Bíblia era tão preciosa que recebia as mais ricas encadernações”.
De acordo com a doutrina católica, a fé representava a fonte mais elevada das verdades reveladas - especialmente aquelas verdades essenciais ao homem e que dizem respeito à sua salvação. Neste sentido, afirmava Santo Ambrósio (340-397, aproximadamente): Toda verdade, dita por quem quer que seja, é do Espírito Santo.
 Assim, toda investigação filosófica ou científica não poderia, de modo algum, contrariar as verdades estabelecidas pela fé católica. Segundo essa orientação, os filósofos não precisavam se dedicar à busca da verdade, pois ela já havia sido revelada por Deus aos homens. Restava-lhes, apenas, demonstrar racionalmente as verdades da fé.
Não foram poucos, porém, aqueles que dispensaram até mesmo essa comprovação racional da fé. Eram os religiosos que desprezavam a filosofia grega, sobretudo porque viam nessa forma pagã de pensamento uma porta aberta para o pecado, a dúvida, o descaminho e a heresia (doutrina contrária ao estabelecido pela Igreja, em termos de fé).
Por outro lado, surgiram pensadores cristãos que defendiam o conhecimento da filosofia grega, na medida em que sentiam a possibilidade de utilizá-la como instrumento a serviço do cristianismo. Conciliado com a fé cristã, o estudo da filosofia grega permitiria à Igreja enfrentar os descrentes e demolir os hereges com as armas racionais da argumentação lógica. O objetivo era convencer os descrentes, tento quanto possível, pela razão, para depois fazê-los aceitar a imensidão dos mistérios divinos, somente acessíveis à fé.
Entre os grandes nomes da filosofia católica medieval destacam-se Agostinho e Tomás de Aquino. Eles foram os responsáveis pelo resgate cristão das filosofias de Platão e de Aristóteles, respectivamente.
"Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganadoras especulações da "filosofia", segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo." (São Paulo).

Patrística

"A fé em busca de argumentos racionais a partir de uma matriz platônica"
Desde que surgiu o cristianismo, tornou-se necessário explicar seus ensinamentos às autoridades romanas e ao povo em geral. Mesmo com o estabelecimento e a consolidação da doutrina cristã, a Igreja católica sabia que esses preceitos não podiam simplesmente ser impostos pela força. Eles tinham de ser apresentados de maneira convincente, mediante um trabalho de conquista espiritual.
Foi assim que os primeiros Padres da Igreja se empenharam na elaboração de inúmeros textos sobre a fé e a revelação cristãs. O conjunto desses textos ficou conhecido como patrística por terem sido escritos principalmente pelos grandes Padres da Igreja.
Uma das principais correntes da filosofia patrística, inspirada na filosofia greco-romana, tentou munir a fé de argumentos racionais. Esse projeto de conciliação entre o cristianismo e o pensamento pagão teve como principal expoente o Padre Agostinho.

"Compreender para crer, crer para compreender". (Santo Agostinho)

Escolástica

"Os caminhos de inspiração aristotélica levam até Deus".

No século VIII, Carlos Magno resolveu organizar o ensino por todo o seu império e fundar escolas ligadas às instituições católicas. A cultura greco-romana, guardada nos mosteiros até então, voltou a ser divulgada, passando a Ter uma influência mais marcante nas reflexões da época. Era a renascença carolíngia.
Tendo a educação romana como modelo, começaram a ser ensinadas as seguintes matérias: gramática, retórica e dialética (o trivium) e geometria, aritmética, astronomia e música (o quadrivium). Todas elas estavam, no entanto, submetidas à teologia.
A fundação dessas escolas e das primeiras universidades do século XI fez surgir uma produção filosófico-teológica denominada escolástica (de escola).
A partir do século XIII, o aristotelismo penetrou de forma profunda no pensamento escolástico, marcando-o definitivamente. Isso se deveu à descoberta de muitas obras de Aristóteles, descobertas até então, e à tradução para o latim de algumas delas, diretamente do grego.
A busca da harmonização entre a fé cristã e a razão manteve-se, no entanto, como problema básico de especulação filosófica. Nesse sentido, o período escolástico pode ser dividido em três fases:
Primeira fase - (do século IX ao fim do século XII): caracterizada pela confiança na perfeita harmonia entre fé e razão.
Segunda fase - (do século XIII ao princípio do século XIV): caracterizada pela elaboração de grandes sistemas filosóficos, merecendo destaques nas obras de Tomás de Aquino. Nesta fase, considera-se que a harmonização entre fé e razão pôde ser parcialmente obtida.
Terceira fase - (do século XIV até o século XVI): decadência da escolástica, caracterizada pela afirmação das diferenças fundamentais entre fé e razão.

A Questão dos Universais:

O que há entre as palavras e as coisas

O método escolástico de investigação, segundo o historiador francês Jacques Le Goff, privilegiava o estudo da linguagem (o trivium) para depois passar para o exame das coisas (o quadrivium). Desse modo surgiu a seguinte pergunta: qual a relação entre as palavras e as coisas?
Rosa, por exemplo, é o nome de uma flor. Quando a flor morre, a palavra rosa continua existindo. Nesse caso, a palavra fala de uma coisa inexistente, de uma ideia geral. Mas como isso acontece? O grande inspirador da questão foi o inspirador neoplatônico Porfírio, em sua obra Isagoge : "Não tentarei enunciar se os gêneros e as espécies existem por si mesmos ou na pura inteligência, nem, no caso de subsistirem, se são corpóreos ou incorpóreos, nem se existem separados dos objetos sensíveis ou nestes objetos, formando parte dos mesmos".
Esse problema filosófico gerou muitas disputas. Era a grande discussão sobre a existência ou não das ideias gerais , isto é, os chamados universais de Aristóteles.

Os Precedentes do Cristianismo

Os fatores históricos do cristianismo são: em primeiro lugar, a religião israelita; em segundo lugar, o pensamento grego e, enfim, o direito romano. De Israel o cristianismo toma o teísmo. É o teísmo um privilégio único deste povo pequeno, obscuro e desprezado; os outros povos e civilizações, ainda que poderosos e ilustres, são, religiosamente, politeístas, ou, no máximo dualistas ou panteístas. De Israel toma o cristianismo, também, o conceito de uma revelação e assistência especial de Deus. Daí a ideia de uma história, que é desenvolvimento providencial da humanidade, ideia peculiar ao cristianismo e desconhecida pelo mundo antigo, especialmente pelo mundo grego.
Na revelação cristã é filosoficamente fundamental, básico, o conceito de uma queda original do homem no começo da sua história, e também o conceito de um Messias, um reparador, um redentor. Conceitos indispensáveis para explicar o problema do mal, racionalmente premente e racionalmente insolúvel. No entanto, o mundano e carnal Israel resistiu tenaz e longamente a esta ideia de uma radical miséria humana -, e, por consequência, à ideia de uma moral ascética. Idolatrou a vida longa e próspera, as riquezas da natureza e a prosperidade dos negócios, as satisfações conjugais e domésticas, o estado autônomo e privilegiado, o poder e a glória - até esquecer-se de Deus. Perseguiu os Profetas, que o chamavam ao temor de Deus e à penitência, e recalcitrou contra os flagelos com que Jeová o castigava, até que Israel, ainda que contra a sua vontade, foi submetido à sujeição e à renúncia, tendo adquirido, através de dolorosas experiências, o triste sentido da vaidade do mundo. A solução integral do problema do mal viria unicamente do mistério da redenção pela cruz - necessário complemento do mistério do pecado original.
Quanto ao pensamento grego , deve-se dizer que entrará no cristianismo como sistematizador das verdades reveladas, e como justificador dos pressupostos metafísicos do cristianismo; não, porém, como elemento constitutivo, essencial e característico, porquanto este é hebraico e cristão. E quanto ao direito romano, deve-se dizer que entrará no cristianismo como sistematizador do novo organismo social, a Igreja, e não como constitutivo de seus elementos essenciais e característicos, que são próprios e originais do cristianismo.

Jesus Cristo

Entretanto, o verdadeiro criador do cristianismo, em sua novidade e originalidade, é Jesus Cristo. Pode ele dar plena solução ao problema do mal - solução que representa o maior valor filosófico no cristianismo - unicamente se é Homem-Deus, o Verbo de Deus encarnado e redentor pela cruz. Diferentemente, a solução - ascética - cristã do problema do mal seria vã, como a estóica e todas as demais soluções filosóficas de tal problema, que ficaria, portanto, sem solução alguma. E, em geral, a pessoa de Cristo tornar-se-ia inteiramente ininteligível, se ele não fosse Homem-Deus.
Não é este o momento de fazer um exame crítico, filosófico e histórico, para determinar a personalidade de Cristo. Basta lembrar que, uma vez admitido e firmado o teísmo, logo se segue a possibilidade de uma revelação divina e da divindade de Cristo, para tanto não precisando, propriamente, senão de provas históricas. Os argumentos em contrário não são positivos, históricos, mas apriorísticos, filosóficos; quer dizer, dependem de uma filosofia racionalista e atéia em geral, humanista e imanentista em especial.
Eis o esquema lógico da demonstração da divindade de Jesus Cristo. Devem ser examinados à luz da crítica histórica, antes de tudo, os documentos fundamentais, relativos à revelação cristã - Novo Testamento. E achamo-nos diante de uma personalidade extraordinária - Jesus Cristo -, que ensina uma grande doutrina, leva uma vida santa, afirma-se a si mesma como divina e comprova explicitamente com prodígios e sinais - os milagres e as profecias - esta sua divindade. E como Jesus Cristo se torna garantia de toda uma tradição que o precedeu - o Velho Testamento -, também se responsabiliza por uma instituição que a ele se segue - a Igreja católica. A esta, portanto, caberá interpretar infalivelmente a revelação judaico-cristã e, evidentemente, também a parte que diz respeito à queda original e à relativa reparação, a qual, por certo, pode dar origem, humanamente, a várias interpretações.

O Novo Testamento

Como é notório, Cristo não deixou nada escrito, de sorte que o nosso conhecimento mais imediato em torno da sua personalidade se realiza através dos escritos dos seus discípulos. Temos de Cristo testemunhas também pagãs, além das testemunhas cristãs; estas são extracanônicas e canônicas. Estas últimas, porém, são fundamentais e mais do que suficientes para o nosso fim. Cronologicamente, são elas as seguintes: Paulo de Tarso, os Evangelhos sinópticos e o Evangelho de São João.
Paulo de Tarso, na Cilícia, fôra um inteligente e zeloso israelita. Não conheceu Jesus Cristo durante sua vida terrena, mas, convertido ao cristianismo e mudado o nome de Saulo para o de Paulo, tornou-se o maior apóstolo do cristianismo entre os gentios ou pagãos, revelando-lhes em Cristo crucificado o Deus padecente, vítima e Salvador, que eles procuravam em suas religiões misteriosóficas - e não acharam. A vida de Paulo é caracterizada por muitas e longas viagens, realizadas para finalidades apostólicas. Para o mesmo fim escreveu Paulo as famosas cartas às comunidades cristãs dos vários centros da Antigüidade, relacionados com ele. As grandes viagens apostólicas de Paulo são três e têm como ponto de irradiação Antioquia, tocando os centros mais importantes do mundo antigo: Jerusalém, Atenas e Roma. Nesta cidade encerra a sua vida mortal com o martírio. Destarte ele se pôs em contato com todas as formas de civilização do Oriente helenista e do mundo greco-romano. Quanto às Epístolas - escritas em grego - devemos dizer que não são cartas logicamente orgânicas e ordenadas, nem literariamente aprimoradas, tanto assim que podiam desagradar a um helenista refinado como Porfírio; são porém, densas de conteúdo, de forma incisiva e eficaz. O problema que, sobretudo, preocupa Paulo é o do mal, do sofrimento, do pecado, de que acha a solução em Cristo redentor, crucificado e ressuscitado. É este o aspecto do cristianismo que mais o impressionou, de sorte que é ele, por excelência, o teólogo da Redenção. No Velho Testamento Deus tinha dado aos homens a lei que, devido à miséria do homem decaído, não tirava o pecado, embora fosse uma lei moral; pelo contrário, até o agradava, tornando o homem consciente de sua falta. No Novo Testamento, Deus, mediante a graça de Cristo, tira o pecado do mundo, embora nos deixando na luta e no sofrimento, que Paulo sentia tão profundamente.
Os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas - chamados evangelhos sinópticos - formam um grupo à parte, por certa característica histórica e didática, que os torna comuns e os distingue do quarto evangelho, o de João, de caráter mais especulativo e teológico. O primeiro em ordem de tempo é o Evangelho de Mateus , o publicano, tornando em seguida um dos doze apóstolos. Escrito, originariamente, em armaico e destinado ao ambiente palestino, foi em seguida traduzido para o grego e, nesta língua, transmitido. É o mais amplos dos Evangelhos e relata amplamente os ensinamentos de Cristo. O segundo é o Evangelho de Marcos, que não foi discípulo direto de Cristo, mas nos transmitiu o ensinamento de Pedro. Foi escrito em grego e destinado a um público não palestino. O terceiro dos Evangelhos sinópticos é, enfim, o de Lucas, companheiro de Paulo, que o chamava o caro médico. Também ele não foi discípulo imediato de Cristo, e o seu evangelho foi também escrito em grego.
O quarto evangelho, inversamente - como o primeiro - foi escrito por um discípulo direto de Cristo, um dos doze apóstolos: João, o predileto do Mestre, testemunha da sua vida e da sua morte. O quarto Evangelho, juntamente com este valor histórico, tem um especial valor especulativo, teológico. Como Paulo pode ser considerado o teólogo da Redenção, João pode ser considerado o teólogo da Encarnação; Cristo é o Verbo de Deus encarnado para a redenção do gênero humano. Também o Evangelho de João foi escrito em grego; e, cronologicamente, é o último dos Evangelhos e dos escritos do Novo Testamento, os quais - no seu conjunto - podem se considerar compostos na Segunda metade do primeiro século, tomada com certa amplidão.

A Solução do Problema do Mal

Não há dúvida de que o problema do mal foi o escolho contra o qual debalde se bateu a grande filosofia grega, como qualquer outra filosofia, visto ser o mal um problema racionalmente insolúvel. Que coisa é, pois, precisamente este mal, que tem o poder de tornar teoricamente inexplicável a realidade, e praticamente dolorosa a vida? Não é, por certo, o mal assim chamado metafísico, a saber, a necessária limitação de todo ser criado: porquanto esta limitação nada tira à perfeição dos vários seres a eles devida por natureza, mas apenas aquela plenitude do ser, que pertence unicamente a Deus, rigorosamente, isto é, teisticamente concebido como transcendente e criador, pois esse gênero de mal, no teísmo, é plenamente explicável.
Não resta, então, senão o mal, o chamado físico e moral, porquanto é limitação da natureza, verdadeira imperfeição de um determinado ser. O mal, físico e moral, é um problema, precisamente se se considerar a natureza específica do homem, a qual é a natureza do animal racional, o que não significa certamente lhe pertença a racionalidade pura, devida ao puro espírito; mas certamente exige a subordinação do sensível ao inteligível, do material ao espiritual. Isto significa exigir que os sentidos sejam instrumentos do intelecto e o instinto seja instrumento da vontade, naquele característico processo que é o conhecimento e a operação humana; exige que o corpo humano e a natureza em geral sejam submetidos às imposições do espírito, como deveria ser em uma hierarquia racional dos valores.
Ora, se se considerar, sem preconceitos, o indivíduo e a humanidade, a psicologia e a história, as coisas serão bem diferentes. Com efeito, demais vezes o sentido - do qual o conhecimento deve no entanto partir - sobrepuja o intelecto. E bem poucos homens e só com muitas dificuldades e não sem graves erros, chegam ao conhecimento daquelas verdades racionais - Deus, a alma, etc. - que são, entretanto, indispensáveis para uma solução humana do problema da vida. E, mais frequentemente ainda, o instinto assenhoreia-se da vontade, e a maioria dos homens viveu e vive cegamente, contra as exigências da própria natureza racional, mesmo quando a verdade é conhecida pelo intelecto.
Este é o mal moral, espiritual, que domina o mundo humano. Pelo que diz respeito ao mal físico, a coisa é ainda mais patente: basta lembrar o sofrimento e a morte. Com isto, naturalmente, não se quer dizer que a impassibilidade e a imortalidade sejam uma exigência da natureza humana, como tal, mas unicamente se quer frisar que a dor e a morte - bem como a ignorância e a concupiscência - em sua atual intensidade, se evidenciam como um estado inatural com respeito ao nosso ser espiritual e racional.
Temos, pois, uma natureza, a natureza humana, que nos parece desordenada. A filosofia conhece a essência metafísica dessa natureza humana, deve reconhecer-lhe também a desordem, mas ignora-lhe a causa. A filosofia é certamente construtiva, metafísica; mas, chegada ao seu vértice, deve tornar-se crítica, isto é, deve reconhecer os próprios limites, porquanto não consegue resolver plenamente o seu problema, o problema da vida, precisamente por causa do mal. Não pode, todavia, renunciar absolutamente à solução deste problema, já que, desta maneira, comprometeria também a sua maior conquista: Deus. É antiga e famosa a objeção: de que modo concordar a absoluta sabedoria e poder de Deus com todo o mal que há no mundo, por ele criado? Deve-se entender, naturalmente, o mal físico e moral, e este propriamente em relação ao homem.

O Pecado Original

Se a filosofia é impotente para resolver plenamente o seu próprio problema, há, porventura, outro meio a que pode o espírito humano razoavelmente recorrer para a solução de um problema tão premente? Apresenta-se a religião, e especialmente uma religião entre as religiões, a qual nos fala de uma queda do homem no começo de sua história, e afirma esta verdade - bem como todo o sistema dos seus dogmas - como divinamente revelada.
Quanto à possibilidade de uma queda do espírito, em geral, isto é, quanto à possibilidade do mal moral, do pecado, basta lembrar que o ser criado pode, por sua natureza, desviar-se da ordem: porquanto há nele algo de não-ser, de potência , precisamente pelo fato de ser ele um ser criado. E o livre arbítrio proporciona-lhe o modo de realizar essa possibilidade, a saber, proporciona-lhe o modo de desviar-se efetivamente do ser, da racionalidade, enveredando pelo não-ser, pela irracionalidade. Quanto à realidade de uma queda original do homem, remetemos ao fato da Revelação em que é contida.
Da Escritura e da Tradição, garantidas pela interpretação da Igreja e sistematizadas pela teologia, evidencia-se, fundamentalmente, como o homem primigênio não só teria possuído aquela harmonia natural , de que agora é privado, mas teria sido outrossim elevado, como que por nova criação, à ordem sobrenatural , com um conveniente conjunto de dons preternaturais . Noutras palavras, o homem teria participado - com uma natureza extraordinariamente dotada - da vida de Deus, teria gozado de uma espécie de deificação, não por direito, mas por graça. E evidencia-se também que - devido a uma culpa de orgulho contra Deus, cometida pelo primeiro homem, do qual, pela natureza humana, devia descender toda a humanidade - teria o homem perdido aquela harmonia e a dignidade sobrenatural, juntamente com os dons conexos.
Há, portanto, uma enfermidade, uma debilitação espiritual e física na natureza humana, essencial desde o nosso nascimento, e que deve, por conseguinte, ser herdada. Basta, por exemplo, lembrar como, pela lei da hereditariedade, se podem transmitir deficiências materiais e, por consequência, também morais: deficiências que não dependem dos indivíduos, visto que eles a sofrem. O pecado original, pois - que importa na privação da ordem sobrenatural, isto é, na privação do único fim humano efetivo, até ao sofrimento e à concupiscência, quer dizer, até à vulneração da própria natureza - voluntário e culpado em Adão, seria culpado em seus descendentes, enquanto não quiserem servir-se das misérias provindas do pecado original como estímulo para a Redenção, praticando o Cristianismo, ingressando na Igreja.
O aspecto da condição primitiva do homem, concernente à elevação sobrenatural, por mais supereminente e central que seja no cristianismo, aqui não interessa. Com efeito, a elevação à ordem sobrenatural sendo, por definição, gratuita, isto é, não devida à natureza humana, bem como a nenhuma natureza criada, a privação da mesma, provinda do pecado, não podia causar vulneração em a natureza humana, nem a perda dos dons praternaturais. E, logo, não podia suscitar o problema do mal, que temos considerado insolúvel pela filosofia.

A Redenção pela Cruz

Mas, que sentido tem o mal no mundo? Conseguiu o homem, mediante o pecado, frustar o plano divino da criação? Ou o próprio mal soube Deus tirar, mediante uma divina dialética, o bem e até um bem maior? É o que explica um segundo dogma da revelação cristã, o dogma da redenção operada por Cristo. Segundo este dogma, Deus, isto é, o Verbo de Deus, a Segunda pessoa da Trindade divina, assume natureza humana, precisamente para reparar o pecado original e, por conseguinte, suas consequências naturais também. Visto a ofensa feita a Deus pelo pecado ser infinita com respeito ao Infinito ofendido, Deus precisava de uma reparação infinita, que unicamente Deus podia dar. Sendo, porém, o homem que devia pagar, entende-se como o verbo de Deus assuma em Cristo a natureza humana. Para a Redenção, teria sido suficiente o mínimo ato expiatório de Cristo, tendo todo ato seu um valor infinito, devido à dignidade do operante. Ao contrário, ele se sacrifica até à morte de cruz. Fez isto para dar toda a glória possível à infinita majestade de Deus no reino do mal e da dor proveniente do pecado; é, pois, a glória de Deus o fim último de toda atividade divina.

Consequente Praxe Ascética

Ascetismo e Teísmo

Das precedentes considerações segue-se que o cristianismo importa sempre e essencialmente numa praxe ascética com respeito ao mundo, e não pelo fato de o sobrenatural oprimir a natureza, mas por causa da desordem introduzida na ordem da natureza pelo pecado original.
Em verdade, a raiz metafísica desta praxe ascética acha-se no próprio teísmo, e, precisamente, no conceito de criação, tomando-se esta palavra "ascética" não no sentido rigoroso de renúncia aos bens criados, mas no sentido de que o homem, sendo criatura e, portanto dependendo totalmente de Deus, deve reconhecer praticamente esta sua dependência absoluta, este seu nada ser por si.
A razão humana constata, nem pode deixar de constatar, que o mundo, de que temos imediatamente experiência, não se pode explicar por si mesmo, e, logo, exige absolutamente uma explicação. Entretanto, para que o problema do mundo tenha verdadeiramente solução, é preciso chegar até Deus. E Deus, para que seja verdadeiramente a explicação do mundo, não pode certamente ser imanente, mas deve ser transcendente e criador, o que equivale dizer, a relação entre Deus e o mundo deve ser concebida segundo o conceito de criação, retamente definido como uma produção das coisas do nada por parte de Deus.
Ora, tal definição exclui que Deus organize uma pressuposta matéria qualquer, com respeito à qual Deus seria passivo e, logo, não mais ato-puro, não mais Deus, não mais explicação do mundo. Contrariamente a quanto pensava o dualismo grego, Deus cria toda a realidade. Daí nada se poder levantar contra ele e proclamar a sua autonomia. Além disso, é excluído que o mundo seja, de qualquer modo, formado pela mesma natureza de Deus, pois, neste caso, haveria a contradição de que Deus seria da mesma natureza do mundo, que não tem em si a sua explicação e, por isso, a procura em Deus. Contrariamente ao que pensa o panteísmo, Deus, criando, dispõe uma realidade essencialmente distinta de si, de modo que nenhum ser criado pode, de modo nenhum, exigir de participar da natureza divina e enaltecer como tal a sua natureza.
A este segundo princípio é conexa a absoluta liberdade da criação. Com efeito, se ela fosse necessária, ter-se-ia uma contradição semelhante à precedente, a saber: Deus teria necessidade do mundo que ele deve explicar. Deus, portanto, pode ou não pode criar, pode criar este ou um outro mundo, entre infinitos mundos possíveis, de modo que Deus, querendo criar o mundo, pode única e absolutamente criá-lo para a sua glória - embora esta já seja interiormente infinita, sendo Deus a atualidade, a perfeição plena. Se se admitisse para a obra de Deus uma finalidade diversa, extrínseca, seria também preciso admitir em Deus uma indigência, com todas as consequências acima mencionadas. Deus, portanto, cria o mundo do nada, e não o tira de sua substância, mas o cria livremente e para a sua glória. E o homem faz parte dessa criação.
Compreende-se, então, como a atitude prática, fundamental, da criatura racional deva ser, em consequência do conceito de criação, uma atitude de reconhecimento do próprio nada, não só na ordem do ser, mas também na ordem de operar, porque nada de quanto é real pode escapar à absoluta causalidade de Deus. Aqui falamos, evidentemente, do operar positivo, isto é, do bem, porquanto o mal, sendo negação, privação, não tem causa eficiente, mas deficiente, como diz Agostinho. Não Deus, por consequência, mas o homem é o autor do mal. Então, a humildade será a virtude essencial do sábio, como o orgulho será o pecado essencial do estulto; nas relações práticas com Deus - que constituem o objeto da religião em geral - e também nas relações com a remanente realidade, não em si, mas enquanto querida por Deus.

Ascetismo e Cristianismo

Deus quis remir o homem, exigindo ao mesmo tempo que a sua justiça fosse dignamente satisfeita mediante uma expiação infinita por parte do Verbo humanado. Esta expiação divina, porém, não dispensava, mas apenas tornava possível a expiação por parte do homem, precisamente através dos sofrimentos provenientes da desordem decorrida do pecado. Unicamente deste modo o homem era redimido, unicamente através da justiça se manifestava a misericórdia de Deus. Antes, quis Deus que fosse juntamente realizada a sua maior glória e o maior bem do homem, através do sacrifício mais completo por parte de Cristo, bem como por parte do homem, dada sempre a desordem das coisas, proveniente do pecado.
Esta - tão significativa - praxe ascética tem a sua primeira e perfeita realização em Cristo, redentor pela cruz. Tornando-se ele, deste modo, o modelo e o ideal da vida cristã. Mas, para o mundo, esta praxe ascética será loucura e escândalo . Os Gentios julgavam naturalmente loucura a renúncia cristã. Os próprios israelitas sonhavam o Redentor cercado de grandeza e poder, e não de humildade e sofrimento. Cristo, ao contrário, menosprezando a prudência e a fortaleza humanas, envereda pelo caminho da cruz, que repugna à natureza, mas já é a única via de salvação e de santificação. E, assim, Cristo - realizando a sua obra - foi julgado justo, mas não lhe foi feita justiça pela majestade do direito; foi condenado pelo povo que ele viera remir; foi abandonado pelos próprios e mais chegados discípulos, um dos quais - o que devia ser seu vigário - até o renegou, e um outro o traiu de morte. E morreu abandonado sobre a cruz, assistido por algumas pobres mulheres. Humanamente e também racionalmente falando, unicamente desta maneira se realizava a glória de Deus e a redenção do homem em toda a sua plenitude.
Cristo não apenas realizou na sua pessoa o sacrifício redentor, mas também apontou aos homens este caminho como sendo o caminho único para a salvação e a perfeição, e confirmou a doutrina com o exemplo, propondo-se como modelo de todos os cristãos: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. A vida cristã será, portanto, a imitação de Cristo crucificado - diversamente embora, segundo os graus de perfeição cristã e as concretas diferenças individuais. Tal ensinamento ascético de Cristo - que, em concreto, se acha em toda a sua vida e, em especial, na sua morte - em abstrato se acha em toda a sua doutrina, mas especialmente no sermão da montanha, o sermão das bem-aventuranças, que se pode considerar o compêndio do espírito do Cristianismo. Aí são invertidos os valores terrenos, e exaltados não os ricos, os gozadores, os poderosos, que o mundo inveja, mas os pobres, os sofredores, os mesquinhos, conforme a sabedoria cristã, o que à orgulhosa razão humana parece estultícia. Deste modo Cristo dirá que o busquemos - isto é, que procuremos a sua imagem, a sua imitação - não no homem feliz, para gozarmos a vida em sua companhia, mas no homem sofredor, com o qual e para o qual sofremos e, destarte, acharemos alimento ascético.
Este ensinamento, Cristo dirige a todos os seus seguidores, como condição necessária para a salvação - se alguém quer vir após mim, renuncia-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Entretanto, aos que aspiram à santidade, à plenitude da vida cristã, à perfeita imitação dele, impõe Cristo a renúncia total aos grandes bens do mundo: renúncia à riqueza, à família, à liberdade, para abraçar a pobreza, a castidade, a obediência. E esta a chamada via dos conselhos evangélicos, em contraposição com a vida comum dos preceitos. E realiza-se na clássica praxe cristã dos votos religiosos, sempre idêntica e imutável na substância, embora variável nas aplicações concretas.

Ascetismo e Caridade

Esta moral ascética cristã é racionalmente fundada sobre o teísmo e a Revelação. Garante, pois, ao homem, a consecução da felicidade na vida eterna, e de uma felicidade que transcende toda aspiração e capacidade humana. Na vida temporal esta moral ascética apresenta-se também como a mais sábia, porquanto torna conformada e voluntária a aceitação do sofrimento, já que não se apresenta mais como inesperado e trágico, pois não fica certamente dispensado da dor quem neste mundo entende de viver apenas moralmente e não heroicamente, e nem sequer quem entende de gozar livremente dos bens da terra. Provê igualmente esta moral ascética o bem dos outros, ou não parece, ao contrário, - por causa da renúncia ao mundo devastado pelo mal - isolar fatalmente os homens dos seus semelhantes? E este isolamento não é ainda mais acentuado, quando a perfeição se eleva dos preceitos aos conselhos?
Poderia assim parecer, mas assim não é. Antes de tudo, tal egoísmo está em franco contraste com o conceito de caridade, dominante na moral cristã, em lugar do clássico conceito de justiça. A caridade cristã purificou a civilização antiga da barbárie da exposição das crianças, da escravidão, das lutas dos gladiadores, barbárie que se repete, mais ou menos intensamente, no egoísmo de toda civilização puramente humana. A caridade cristã favoreceu ainda obras numerosas e fecundas para os infelizes, os velhos, os pobres, os doentes, mais ou menos desprezados e negligenciados na civilização antiga, bem como em toda civilização mundana em geral, apesar das aparências contrárias.
Em segundo lugar, a convivência social, moral, racional, não é possível nas atuais condições de egoísmo e malvadez humana, mas faz-se mister a ascética cristã para vencer este egoísmo mediante a paciência, a humildade, a caridade. Considere-se, por exemplo, a questão econômica e o problema da autoridade, que preocupam tão profundamente a sociedade humana. A questão econômica não se pode resolver naturalmente. Com efeito - prescindindo do fato de que o trabalho, em seus termos atuais, é uma pena, como claramente o prova a dura experiência, e a Revelação disto dá explicação e justificação - não somente a justiça não consegue abolir a pobreza, mas nem sequer a caridade, a própria caridade cristã, consegue tirar a humilhação do receber. Menos ainda conseguem isto a filantropia e os demais equivalentes humanistas. Resolve isto verdadeiramente só a ascética cristã, valorizando a dor, exaltando o sofrimento: bem-aventurados os pobres . E também não se pode resolver naturalmente o problema árduo da sujeição à autoridade, no entanto necessária para que a sociedade possa sustentar-se. O fato de a autoridade ser necessária à existência da sociedade, não é argumento suficiente para que todos obedeçam à autoridade; e isto é evidente se se examinam as paixões humanas, especialmente o orgulho, a violência, a fraude, frequentemente mais fortes em quem domina. E isto acontece não apenas na sociedade civil, mas também na religiosa, porquanto formada de homens. E, então, não fica senão a obediência no sentido cristão, ascético, como renúncia à própria vontade. Tal renúncia não é imoral, porque tem como objeto não a pessoa, mas o ofício, nem pode objetivamente, de modo nenhum, transpor os confins da ética.
Finalmente, a renúncia ascética não é estéril egoísmo, mas o contrário. Precisamente pelo fato de que o homem, renunciando a si mesmo e dando-se em holocausto a Deus, é disposto, até desejoso, imensamente capaz, cheio de boa vontade para sacrificar-se inteiramente para com todos. Não considera, todavia, a humanidade como fim último, como divina, mas conforme à transcendente vontade de Deus, que criou o homem à sua imagem, e o remiu com a Paixão do seu Verbo encarnado. A ética cristã da renúncia perfeita ao mundo é a mais proveitosa para a sociedade - familiar, nacional, universal. De fato, a prescindir dos demais, mesmo razoáveis, motivos de altruísmo, unicamente quem é indiferente às qualidades alheias, até solícito dos mais miseráveis, não encontra limites no altruísmo, no heroísmo, mas uma oportunidade de engrandecimento mediante o sacrifício.
Este será o caminho percorrido - embora de modos diferentes - pelos santos, os super-homens do cristianismo: o caminho dos conselhos evangélicos, que é o caminho mais perfeito do que o dos preceitos . E os santos mais facilmente florescem nas Ordens Religiosas, precisamente porque é característica das Ordens Religiosas a via dos conselhos, da renúncia ao mundo, cada qual realizando este ascetismo cristão com diversa intensidade, de modos muito diferentes, conforme os tempos, os lugares, os temperamentos pessoais e as necessidades sociais. E é mediante e através desta renúncia ascética, que os santos se tornam os grandes benfeitores da humanidade.

A Patrística Pré-agostiniana

Características Gerais

Com o nome de patrística entende-se o período do pensamento cristão que se seguiu à época neotestamentária, e chega até ao começo da Escolástica: isto é, os séculos II-VIII da era vulgar. Este período da cultura cristã é designado com o nome de Patrística, porquanto representa o pensamento dos Padres da Igreja, que são os construtores da teologia católica, guias, mestres da doutrina cristã. Portanto, se a Patrística interessa sumamente à história do dogma, interessa assaz menos à história, em que terá importância fundamental a Escolástica.
A Patrística é contemporânea do último período do pensamento grego, o período religioso, com o qual tem fecundo contato, entretanto dele diferenciado-se profundamente, sobretudo como o teísmo se diferencia do panteísmo. E é também contemporâneo do império romano, com o qual também polemiza, e que terminará por se cristianizar depois de Constantino. Dada a culminante grandeza de Agostinho, a Patrística será dividida em três períodos: antes de Agostinho, período em que, filosoficamente, interessam especialmente os chamados apologistas e os padres alexandrinos; Agostinho, que merece um desenvolvimento à parte, visto ser o maior dos Padres; depois de Agostinho vem o período que, logo após a sistematização, representa a decadência da Patrística.

O II Século

Os Apologistas e os Controvertistas

A Patrística do II século é caracterizada pela defesa que faz do cristianismo contra o paganismo, o hebraísmo e as heresias. Os padres deste período podem-se dividir em três grupos: os chamados padres apostólicos, os apologistas e os controversistas. Interessam-nos particularmente os segundos, pela defesa racional do cristianismo contra o paganismo; ao passo que os primeiros e os últimos têm uma importância religiosa, dogmática, no âmbito do próprio cristianismo.
Chamam-se apostólicos os escritos não canônicos, que nos legaram as duas primeiras gerações cristãs, desde o fim do primeiro século até a metade do segundo. Seus autores, quando conhecidos, recebem o apelido de padres apostólicos, porquanto floresceram no templo dos Apóstolos, ou os conheceram diretamente, ou foram discípulos imediatos deles.
Costuma-se designar como o nome de apologistas os escritores cristãos dos fins do segundo século, que procuram de um lado demonstrar a inocência dos cristãos para obter em favor deles a tolerância das autoridades públicas; e provar do outro lado o valor da religião cristã para lhe granjear discípulos. Seus escritos, portanto, são, por vezes, apologias propriamente ditas, por vezes, obras de controvérsia, às vezes, teses. E são dirigidas às vezes contra os pagãos, outras vezes contra os hebreus. Os apologistas, mais cultos do que os padres apostólicos, frequentemente são filósofos - por exemplo, São Justino Mártir - ainda que não apresentem uma unidade sistemática; continuam filósofos também depois da conversão, e se esforçam por defender a fé mediante a filosofia. Para bem compreendê-lo, é mister lembrar que o escopo por eles visado era, sobretudo, por em focos os pontos de contato existentes entre o cristianismo e a razão, entre o cristianismo e a filosofia. E apresentavam o cristianismo como uma sabedoria, aliás, como a sabedoria mais perfeita, para levarem, gradualmente, até à conversão os pagãos.
O maior dos apologistas é certamente São Justino. Flávio Justino Mártir nasceu em Siquém na Palestina em princípios do segundo século, e morreu mártir no ano 170. Depois de Ter peregrinado pelas mais diversas escolas filosóficas - peripatética, estóica, pitagórica - em busca da verdade para a solução do problema da vida, abandonando o platonismo, último estádio da sua peregrinação filosófica, entrou no cristianismo, onde encontrou a paz. Ufana-se ele de ser filósofo e cristão; leigo embora, Justino dedicou sua vida à difusão e ao ensino do cristianismo. Imitando os filósofos, abriu em Roma uma escola para o ensino da doutrina cristã. Suas obras são duas Apologias - contra os pagãos - e um Diálogo com o judeu Trifão - contra os hebreus. Escreveu suas obras nos meados do segundo século.
Justino procura a unidade, a conciliação entre paganismo e cristianismo, entre filosofia e revelação. E julga achá-la, primeiro, na crença de que os filósofos clássicos - especialmente Platão - dependem de Moisés e dos profetas, depois da doutrina famosa dos germes do Verbo, encarnado pessoalmente em Cristo, mas difundidos mais ou menos em todos os filósofos antigos.

O III Século:

Os Alexandrinos e os Africanos

O terceiro século apresenta um interesse particular pelo que diz respeito ao pensamento cristão. Tentou-se um renovamento do paganismo com bases no panteísmo neoplatônico e nos cultos orientais, fundidos numa característica síntese filosófico-religiosa em oposição ao cristianismo, que já ia afirmando mesmo culturalmente. Os Padres deste período polemizam filosoficamente com os pensadores pagãos, levados a estimarem seus adversários.
O cristianismo, sem mudar a sua fisionomia original, está em condições de desenvolver do seu seio um pensamento, uma filosofia, uma teologia, que representarão a sua essência doutrinal. Daí a distinção que então se afirmou entre os simples fiéis e os gnósticos - sábios - cristãos. Este gnosticismo cristão se afirmou especialmente em Alexandria do Egito, o grande centro cultural da época, mesmo do ponto de vista católico. Naquele famoso didascaléion, naquela celebrizada escola catequética, espécie de faculdade teológica, foram luminares Clemente e Orígenes.
O cristianismo filosófico é próprio e característico dos padres alexandrinos, que vivem na tradição cultural helenista, enaltecedora e potenciadora dos valores intelectuais, teoréticos, especulativos, metafísicos, dos quais teremos, em tempo oportuno, o primeiro sistema orgânico de teologia cristã, graças a Orígenes. É, entretanto, hostilizado pelos padres chamados africanos, pertencentes não à África oriental, ao Egito, mas África ocidental, latina, que se ressentem, por conseguinte, do espírito prático, pragmatista, jurídico, moralista latino - que produziu os estóicos e os cínicos romanos - em oposição ao gênio grego. Se bem que entres os padres africano-latinos apareçam vulto notáveis, como por exemplo Tertuliano, os padres africanos - bem como os padres latinos em geral - não apresentam interesse particular para a história da filosofia.
Clemente Alexandrino - Tito Flávio Clemente - nasceu no ano 150, provavelmente em Atenas, de família pagã. Converteu-se ao cristianismo talvez levado por exigências filosóficas; desejoso de um conhecimento mais profundo do cristianismo, empreendeu uma série de viagens em busca de mestres cristãos. Depois de ter visitado a Magna Grécia, a Síria e a Palestina, foi, pelo ano 180, para Alexandria do Egito, onde o seu espírito achou finalmente paz junto do eminente mestre Panteno. Falecido este no ano 200, Clemente foi chamado para dirigir a famosa escola catequética, cabendo-lhe a glória de ter o grande Orígines entre seus discípulos. Devido às perseguições anticristãs do imperador Setímio Severo, que mandou fechar a escola, Clemente teve de suspender o seu ensino alguns anos depois. Retirou-se para a Ásia Menor, junto de um seu antigo discípulo, o bispo Alexandre de Capadócia, e morreu nessa cidade entre 211 e 216.
Embora as preocupações de Clemente sejam, sobretudo, morais e pedagógicas, e os meios empregados, satisfatoriamente, religiosos e cristãos, sobretudo, valoriza ele também, e grandemente, a filosofia, à maneira de Justino, sendo ademais dotado de uma erudição prodigiosa e de uma cultura incomparável. As obras principais de Clemente são: o Protréptico - isto é, o Verbo promotor da vida cristã - pequena apologia em doze capítulos, perfeitamente acabada na forma e no conteúdo; o Pedagogo, em três livros, apresentado no primeiro o Verbo como educador das almas, e indicando nos demais dois livros os vícios mais graves, que os cristãos devem evitar; os Strômata - tapetes - que é uma coleção de pensamentos, considerações, dissertações filosóficas, morais e religiosas, de interesse especialmente ético.
Filosoficamente importante e característica é a distinção que faz Clemente dos cristãos em simples fiéis e gnósticos, isto é, sábios, perfeitos. O gnóstico cristão, diversamente do simples fiel ou crente, é consciente de sua fé, justificando-a e organizando-a racionalmente, filosoficamente. "Querendo harmonizar a doutrina cristã com a filosofia pagã, acentuava demasiadamente a última, negligenciando um tanto a Sagrada Escritura e a Tradição".
Discípulo de Clemente, Orígenes, chamado adamantino por sua energia incomparável, é o maior expoente filosófico da escola alexandrina. Nasceu em Alexandria do Egito, pelo ano 185, de família cristã. O precoce menino recebeu do pai, Leônidas, a primeira formação literária e, sobretudo, religiosa. Durante a perseguição de Septímio Severo, Orígenes, desprezando os mais graves perigos, foi encarregado pelo bispo de Alexandria, Demétrio, da direção da famosa escola didascaléion, que o seu mestre Clemente teve que abandonar. Tinha então Orígenes dezoito anos. Aos vinte e cinco, sentindo a necessidade de conhecer profundamente as doutrinas que desejava combater e querendo completar a sua formação, escutou - como Plotino - as lições de Amônio Saca. Empreendeu então longas viagens para se instruir, sobretudo, religiosamente, e para atender aos desejos de grandes personagens que queriam consultá-lo. Ordenado sacerdote no ano 230 pelos bispos de Cesaréia e de Jerusalém, contra a vontade de seu bispo, de volta à pátria, foi proibido por este de ensinar e foi condenado, devido também a algumas opiniões heterodoxas contidas na sua grande obra Sobre os Princípios, e também por ciúme, talvez, no dizer de São Jerônimo. Retirou-se então Orígenes para a Palestina, abrindo em Cesaréia uma escola teológica ( chamada depois neo-alexandrina - , que superou a de Alexandria pelo seu caráter científico. Aí lecionou ainda durante vinte anos, falecendo em Tiro pelo ano 254.
A atividade literária de Orígenes não conhece igual, atribuindo-se-lhe milhares de obras. Prescindindo dos escritos exegéticos e as céticos, que não nos interessam, mencionamos a obra Sobre os Princípios e os oito livros Contra Celso . Por princípios Orígenes entende os artigos principais do ensino da Igreja, e as verdades primordiais deduzidas mediante a razão teológica das premissas reveladas, por falta de revelação formal. A obra Sobre os Princípios nos proporciona a ciência baseada na Revelação, e representa uma suma teológica verdadeira e própria. Representa, talvez, a primeira grande síntese doutrinal da Igreja, segundo a tendência metafísica dos doutores orientais. Granjeou ao autor grande nomeada e contém o origenismo, que depois suscitou a grande polêmica origenista. A obra Contra Celso é a mais célebre de Orígenes sob o aspecto apologético. É uma resposta à obra Sermão Verdadeiro de Celso, filósofo pagão. Antes de tudo, declara Orígenes que a melhor apologia do cristianismo é constituída pela vitalidade divina da Igreja, isto é, pela sua força e virtude para a reforma moral dos homens e pela sua difusão universal, apesar dos ataques dos adversários. A maior parte do escrito é, todavia, dedicada ao exame atento e pormenorizado das profecias, dos milagres e das afirmações solenes de Cristo, visto que Celso, que tinha estudado as fontes do cristianismo, o ataca em todos os pontos. Nesta obra, Orígenes ostenta uma erudição extraordinária, uma serenidade nobre e inigualável, bem como uma fé inabalável. Orígenes pode ser considerado o verdadeiro fundador da teologia científica, bem como o primeiro sistematizador do pensamento cristão em uma vasta síntese filosófica.

O IV Século:

Os Luminares de Capadócia

O século quarto, especialmente a Segunda metade, representa a idade de ouro da Patrística. Basta lembrar, para a igreja oriental, Atanásio, o malho do arianismo, os luminares de Capadócia - Basílio, Gregório Nazianzeno e Gregório de Nissa -, e João Crisóstomo, o mais celebrado representante da escola de Antioquia; para a igreja ocidental, Ambrósio de Milão e Jerônimo. Os padres dessa época se exprimem em aprimorada forma clássica e possuem uma profunda cultura filosófica. Os maiores dentre eles são solidamente formados na solidão monástica e ascética e pertencem, geralmente, às altas classes sociais. A igreja católica, declarada livre pelo Edito de Milão, protegida por Constantino, torna-se religião do estado com Teodósio. Estas condições de paz e de privilégio, eram certamente favoráveis à cultura cristã.
Entretanto, a grandeza da Patrística, no quarto século, não é tanto científica, quanto dogmática, teológica. A teologia, sobretudo graças aos luminares de Capadócia, torna-se uma construção intelectual sistemática, imponente, devido naturalmente à filosofia, à lógica aristotélica, que proporcionam o instrumento, o método, para a precisão e a organização do dogma. As grandes heresias da época obrigaram os padres a defender racionalmente, filosoficamente, a doutrina católica, atacada especialmente por Ário (256-336), padre alexandrino oriundo da Líbia, negador da divindade do Verbo. A heresia ariana - arianismo - foi condenada pelo concílio de Nicéia (325), sendo Atanásio o mais destacado e forte opositor.
São João Crisóstomo, de Antioquia, nasceu de família ilustre, pelo ano 344. Recebeu uma educação clássica aprimorada, estudando retórica, filosofia, direito, que, depois de batizado, valorizou cristãmente na solidão e no ascetismo. Padre em Antioquia, e depois bispo de Constantinopla, faleceu, degredado pela fé, em 407. É significativo neste grande prelado o senso profundo da vaidade do mundo, e a grande estima do cristianismo, concebido como ascética.
Também os grandes representantes da escola neo-alexandrina, os luminares de Capadócia, foram grandes testemunhas do caráter fundamentalmente ascético do Cristianismo. São Basílio, nascido em Cesaréia de Capadócia pelo ano de 330 de família rica e cristã, fez longos e aprofundados estudos, aperfeiçoando-se em Atenas. Recebido o batismo, abandona o mundo e se retira para a vida ascética, organizando a vida solitária dos que o seguiram, e escrevendo uma Grande Regra e uma Pequena Regra , para a vida monástica, em que a atividade dos monges é distribuída entre o trabalho, o estudo, a oração, pelo que será considerado o legislador do monaquismo oriental. Trata-se, porém, de regras morais, e não jurídicas, destinadas a um monaquismo culto, aristocrático. Grande admirador de Orígenes, insigne promotor da beneficência cristã quando bispo de Cesaréia, e organizador da vida monástica na Capadócia, faleceu em 379. Também São Gregório, chamado Nizianzeno, nasceu pelo ano 330 em Capadócia, de família cristã, fez estudos aprofundados, que aperfeiçoou em Atenas. Também ele admirou e praticou a vida ascética com o amigo Basílio, compartilhando com ele a admiração para com Orígenes. Bispo de Sásima antes e, em seguida, de Constantinopla, inflamou os fiéis com a sua pregação brilhante e comovedora. Aristocrático e delicado, pouco afeito à vida prática, retirou-se depois para a solidão, em conformidade com o seu ideal ascético e contemplativo, falecendo pelo ano 390.
São Gregório de Nissa foi o maior dos luminares de Capadócia e, talvez, de todos os padres gregos sob o aspecto especulativo e filosófico. Irmão de Basílio, nasceu pelo ano 355 em Cesaréia e recebida uma informação cultural aprimorada, foi destinado ao estado eclesiástico; entretanto, deixou-se desviar da sua vocação, foi professor de retórica e casou-se. As exortações do irmão e de Gregório Nazianzeno persuadiram-no da vaidade do mundo, até que afinal, abandonando a cátedra de retórica, retirou-se para a vida ascética contemplativa. Em seguida, foi feito bispo de Nissa, cidadezinha da Capadócia, primando pela sua cultura teológica e filosófica. Faleceu, provavelmente, em 395. Gregório de Nissa é o maior filósofo dos padres gregos. Esforça-se para mostrar que os dados da razão e os ensinamentos da fé não se hostilizam, mas se harmonizam reciprocamente. Possui, como verdadeiro filósofo, o gosto das definições claras e das classificações metódicas. Como em teologia é origenista, em filosofia é neoplatônico.

SANTO AGOSTINHO

A Vida e as Obras

Aurélio Agostinho destaca-se entre os Padres como Tomás de Aquino se destaca entre os Escolásticos. E como Tomás de Aquino se inspira na filosofia de Aristóteles, e será o maior vulto da filosofia metafísica cristã, Agostinho inspira-se em Platão, ou melhor, no neoplatonismo. Agostinho, pela profundidade do seu sentir e pelo seu gênio compreensivo, fundiu em si mesmo o caráter especulativo da patrística grega com o caráter prático da patrística latina, ainda que os problemas que fundamentalmente o preocupam sejam sempre os problemas práticos e morais: o mal, a liberdade, a graça, a predestinação.
Aurélio Agostinho nasceu em Tagasta, cidade da Numídia, de uma família burguesa, a 13 de novembro do ano 354. Seu pai, Patrício, era pagão, recebido o batismo pouco antes de morrer; sua mãe, Mônica, pelo contrário, era uma cristã fervorosa, e exercia sobre o filho uma notável influência religiosa. Indo para Cartago, a fim de aperfeiçoar seus estudos, começados na pátria, desviou-se moralmente. Caiu em uma profunda sensualidade, que, segundo ele, é uma das maiores consequências do pecado original; dominou-o longamente, moral e intelectualmente, fazendo com que aderisse ao maniqueísmo, que atribuía realidade substancial tanto ao bem como ao mal, julgando achar neste dualismo maniqueu a solução do problema do mal e, por consequência, uma justificação da sua vida. Tendo terminado os estudos, abriu uma escola em Cartago, donde partiu para Roma e, em seguida, para Milão. Afastou-se definitivamente do ensino em 386, aos trinta e dois anos, por razões de saúde e, mais ainda, por razões de ordem espiritual.
Entrementes - depois de maduro exame crítico - abandonara o maniqueísmo, abraçando a filosofia neoplatônica que lhe ensinou a espiritualidade de Deus e a negatividade do mal. Destarte chegara a uma concepção cristã da vida - no começo do ano 386. Entretanto a conversão moral demorou ainda, por razões de luxúria. Finalmente, como por uma fulguração do céu, sobreveio a conversão moral e absoluta, no mês de setembro do ano 386. Agostinho renuncia inteiramente ao mundo, à carreira, ao matrimônio; retira-se, durante alguns meses, para a solidão e o recolhimento, em companhia da mãe, do filho e dalguns discípulos, perto de Milão. Aí escreveu seus diálogos filosóficos, e, na Páscoa do ano 387, juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alípio, recebeu o batismo em Milão das mãos de Santo Ambrósio, cuja doutrina e eloquência muito contribuíram para a sua conversão. Tinha trinta e três anos de idade.
Depois da conversão, Agostinho abandona Milão, e, falecida a mãe em Óstia, volta para Tagasta. Aí vendeu todos os haveres e, distribuído o dinheiro entre os pobres, funda um mosteiro numa das suas propriedades alienadas. Ordenado padre em 391, e consagrado bispo em 395, governou a igreja de Hipona até à morte, que se deu durante o assédio da cidade pelos vândalos, a 28 de agosto do ano 430. Tinha setenta e cinco anos de idade.
Após a sua conversão, Agostinho dedicou-se inteiramente ao estudo da Sagrada Escritura, da teologia revelada, e à redação de suas obras, entre as quais têm lugar de destaque as filosóficas. As obras de Agostinho que apresentam interesse filosófico são, sobretudo, os diálogos filosóficos: Contra os acadêmicos, Da vida beata, Os solilóquios, Sobre a imortalidade da alma, Sobre a quantidade da alma, Sobre o mestre, Sobre a música. Interessam também à filosofia os escritos contra os maniqueus: Sobre os costumes, Do livre arbítrio, Sobre as duas almas, Da natureza do bem.
Dada, porém, a mentalidade agostiniana, em que a filosofia e a teologia andam juntas, compreende-se que interessam à filosofia também as obras teológicas e religiosas, especialmente: Da Verdadeira Religião, As Confissões, A Cidade de Deus, Da Trindade, Da Mentira.

O Pensamento: A Gnosiologia

Agostinho considera a filosofia praticamente, platonicamente, como solucionadora do problema da vida, ao qual só o cristianismo pode dar uma solução integral. Todo o seu interesse central está, portanto, circunscrito aos problemas de Deus e da alma, visto serem os mais importantes e os mais imediatos para a solução integral do problema da vida.
O problema gnosiológico é profundamente sentido por Agostinho, que o resolve, superando o ceticismo acadêmico mediante o iluminismo platônico. Inicialmente, ele conquista uma certeza: a certeza da própria existência espiritual; daí tira uma verdade superior, imutável, condição e origem de toda verdade particular. Embora desvalorizando, platonicamente, o conhecimento sensível em relação ao conhecimento intelectual, admite Agostinho que os sentidos, como o intelecto, são fontes de conhecimento. E como para a visão sensível além do olho e da coisa, é necessária a luz física, do mesmo modo, para o conhecimento intelectual, seria necessária uma luz espiritual. Esta vem de Deus, é a Verdade de Deus, o Verbo de Deus, para o qual são transferidas as ideias platônicas. No Verbo de Deus existem as verdades eternas, as ideias, as espécies, os princípios formais das coisas, e são os modelos dos seres criados; e conhecemos as verdades eternas e as ideias das coisas reais por meio da luz intelectual a nós participada pelo Verbo de Deus. Como se vê, é a transformação do inatismo, da reminiscência platônica, em sentido teísta e cristão. Permanece, porém, a característica fundamental, que distingue a gnosiologia platônica da aristotélica e tomista, pois, segundo a gnosiologia platônica-agostiniana, não bastam, para que se realize o conhecimento intelectual humano, as forças naturais do espírito, mas é mister uma particular e direta iluminação de Deus.

A Metafísica

Em relação com esta gnosiologia, e dependente dela, a existência de Deus é provada, fundamentalmente, a priori, enquanto no espírito humano haveria uma presença particular de Deus. Ao lado desta prova a priori, não nega Agostinho as provas a posteriori da existência de Deus, em especial a que se afirma sobre a mudança e a imperfeição de todas as coisas. Quanto à natureza de Deus, Agostinho possui uma noção exata, ortodoxa, cristã: Deus é poder racional infinito, eterno, imutável, simples, espírito, pessoa, consciência, o que era excluído pelo platonismo. Deus é ainda ser, saber, amor. Quanto, enfim, às relações com o mundo, Deus é concebido exatamente como livre criador. No pensamento clássico grego, tínhamos um dualismo metafísico; no pensamento cristão - agostiniano - temos ainda um dualismo, porém moral, pelo pecado dos espíritos livres, insurgidos orgulhosamente contra Deus e, portanto, preferindo o mundo a Deus. No cristianismo, o mal é, metafisicamente, negação, privação; moralmente, porém, tem uma realidade na vontade má, aberrante de Deus. O problema que Agostinho tratou, em especial, é o das relações entre Deus e o tempo. Deus não é no tempo, o qual é uma criatura de Deus: o tempo começa com a criação. Antes da criação não há tempo, dependendo o tempo da existência de coisas que vem-a-ser e são, portanto, criadas.
Também a psicologia agostiniana harmonizou-se com o seu platonismo cristão. Por certo, o corpo não é mau por natureza, porquanto a matéria não pode ser essencialmente má, sendo criada por Deus, que fez boas todas as coisas. Mas a união do corpo com a alma é, de certo modo, extrínseca, acidental: alma e corpo não formam aquela unidade metafísica, substancial, como na concepção aristotélico-tomista, em virtude da doutrina da forma e da matéria. A alma nasce com o indivíduo humano e, absolutamente, é uma específica criatura divina, como todas as demais. Entretanto, Agostinho fica indeciso entre o criacionismo e o traducionismo, isto é, se a alma é criada diretamente por Deus, ou provém da alma dos pais. Certo é que a alma é imortal, pela sua simplicidade. Agostinho, pois, distingue, platonicamente, a alma em vegetativa, sensitiva e intelectiva, mas afirma que elas são fundidas em uma substância humana. A inteligência é divina em intelecto intuitivo e razão discursiva; e é atribuída a primazia à vontade. No homem a vontade é amor, no animal é instinto, nos seres inferiores cego apetite.
Quanto à cosmologia, pouco temos a dizer. Como já mais acima se salientou, a natureza não entra nos interesses filosóficos de Agostinho, preso pelos problemas éticos, religiosos, Deus e a alma. Mencionaremos a sua famosa doutrina dos germes específicos dos seres - rationes seminales. Deus, a princípio, criou alguns seres já completamente realizados; de outros criou as causas que, mais tarde, desenvolvendo-se, deram origem às existências dos seres específicos. Esta concepção nada tem que ver com o moderno evolucionismo , como alguns erroneamente pensaram, porquanto Agostinho admite a imutabilidade das espécies, negada pelo moderno evolucionismo.

A Moral

Evidentemente, a moral agostiniana é teísta e cristã e, logo, transcendente e ascética. Nota característica da sua moral é o voluntarismo, a saber, a primazia do prático, da ação - própria do pensamento latino -, contrariamente ao primado do teorético, do conhecimento - próprio do pensamento grego. A vontade não é determinada pelo intelecto, mas precede-o. Não obstante, Agostinho tem também atitudes teoréticas como, por exemplo, quando afirma que Deus, fim último das criaturas, é possuído por um ato de inteligência. A virtude não é uma ordem de razão, hábito conforme à razão, como dizia Aristóteles, mas uma ordem do amor.
Entretanto a vontade é livre, e pode querer o mal, pois é um ser limitado, podendo agir desordenadamente, imoralmente, contra a vontade de Deus. E deve-se considerar não causa eficiente, mas deficiente da sua ação viciosa, porquanto o mal não tem realidade metafísica. O pecado, pois, tem em si mesmo imanente a pena da sua desordem, porquanto a criatura, não podendo lesar a Deus, prejudica a si mesma, determinando a dilaceração da sua natureza. A fórmula agostiniana em torno da liberdade em Adão - antes do pecado original - é: poder não pecar; depois do pecado original é: não poder não pecar; nos bem-aventurados será: não poder pecar . A vontade humana, portanto, já é impotente sem a graça. O problema da graça - que tanto preocupa Agostinho - tem, além de um interesse teológico, também um interesse filosófico, porquanto se trata de conciliar a causalidade absoluta de Deus com o livre arbítrio do homem. Como é sabido, Agostinho, para salvar o primeiro elemento, tende a descurar o segundo.
Quanto à família , Agostinho, como Paulo apóstolo, considera o celibato superior ao matrimônio; se o mundo terminasse por causa do celibato, ele alegrar-se-ia, como da passagem do tempo para a eternidade. Quanto à política, ele tem uma concepção negativa da função estatal; se não houvesse pecado e os homens fossem todos justos, o Estado seria inútil. Consoante Agostinho, a propriedade seria de direito positivo, e não natural. Nem a escravidão é de direito natural, mas consequência do pecado original, que perturbou a natureza humana, individual e social. Ela não pode ser superada naturalmente, racionalmente, porquanto a natureza humana já é corrompida; pode ser superada sobrenaturalmente, asceticamente, mediante a conformação cristã de quem é escravo e a caridade de quem é amo.

O Mal

Agostinho foi profundamente impressionado pelo problema do mal - de que dá uma vasta e viva fenomenologia. Foi também longamente desviado pela solução dualista dos maniqueus, que lhe impediu o conhecimento do justo conceito de Deus e da possibilidade da vida moral. A solução deste problema por ele achada foi a sua libertação e a sua grande descoberta filosófico-teológica, e marca uma diferença fundamental entre o pensamento grego e o pensamento cristão. Antes de tudo, nega a realidade metafísica do mal. O mal não é ser, mas privação de ser, como a obscuridade é ausência de luz. Tal privação é imprescindível em todo ser que não seja Deus, enquanto criado, limitado. Destarte é explicado o assim chamado mal metafísico, que não é verdadeiro mal, porquanto não tira aos seres o lhes é devido por natureza. Quanto ao mal físico, que atinge também a perfeição natural dos seres, Agostinho procura justificá-lo mediante um velho argumento, digamos assim, estético: o contraste dos seres contribuiria para a harmonia do conjunto. Mas é esta a parte menos afortunada da doutrina agostiniana do mal.
Quanto ao mal moral, finalmente existe realmente a má vontade que livremente faz o mal; ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do homem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. O mal moral entrou no mundo humano pelo pecado original e atual; por isso, a humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral, além de o ter sido com a perda dos dons gratuitos de Deus. Como se vê, o mal físico tem, deste modo, uma outra explicação mais profunda. Remediou este mal moral a redenção de Cristo, Homem-Deus, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral; mas deixou permanecer o sofrimento, consequência do pecado, como meio de purificação e expiação. E a explicação última de tudo isso - do mal moral e de suas consequências - estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não permitir o mal. Resumindo a doutrina agostiniana a respeito do mal, diremos: o mal é, fundamentalmente, privação de bem (de ser); este bem pode ser não devido (mal metafísico) ou devido (mal físico e moral) a uma determinada natureza; se o bem é devido nasce o verdadeiro problema do mal; a solução deste problema é estética para o mal físico, moral (pecado original e Redenção) para o mal moral (e físico).

A História

Como é notório, Agostinho trata do problema da história na Cidade de Deus, e resolve-o ainda com os conceitos de criação, de pecado original e de Redenção. A Cidade de Deus representa, talvez, o maior monumento da antigüidade cristã e, certamente, a obra prima de Agostinho. Nesta obra é contida a metafísica original do cristianismo, que é uma visão orgânica e inteligível da história humana. O conceito de criação é indispensável para o conceito de providência, que é o governo divino do mundo; este conceito de providência é, por sua vez, necessário, a fim de que a história seja suscetível de racionalidade. O conceito de providência era impossível no pensamento clássico, por causa do basilar dualismo metafísico. Entretanto, para entender realmente, plenamente, o plano da história, é mister a Redenção, graças aos quais é explicado o enigma da existência do mal no mundo e a sua função. Cristo tornara-se o centro sobrenatural da história: o seu reino, a cidade de Deus , é representada pelo povo de Israel antes da sua vinda sobre a terra, e pela Igreja depois de seu advento. Contra este cidade se ergue a cidade terrena, mundana, satânica, que será absolutamente separada e eternamente punida nos fins dos tempos.
Agostinho distingue em três grandes seções a história antes de Cristo. A primeira concerne à história das duas cidades, após o pecado original, até que ficaram confundidas em um único caos humano, e chega até a Abraão, época em que começou a separação. Na Segunda descreve Agostinho a história da cidade de Deus , recolhida e configurada em Israel, de Abraão até Cristo. A terceira retoma, em separado, a narrativa do ponto em que começa a história da Cidade de Deus separada, isto é, desde Abraão, para tratar paralela e separadamente da Cidade do mundo, que culmina no império romano. Esta história, pois, fragmentária e dividida, onde parece que Satanás e o mal têm o seu reino, representa, no fundo, uma unidade e um progresso. É o progresso para Cristo, sempre mais claramente, conscientemente e divinamente esperado e profetizado em Israel; e profetizado também, a seu modo, pelos povos pagãos, que, consciente ou inconscientemente, lhe preparavam diretamente o caminho. Depois de Cristo cessa a divisão política entre as duas cidades; elas se confundem como nos primeiros tempos da humanidade, com a diferença, porém, de que já não é mais união caótica, mas configurada na unidade da Igreja. Esta não é limitada por nenhuma divisão política, mas supera todas as sociedades políticas na universal unidade dos homens e na unidade dos homens com Deus. A Igreja, pois, é acessível, invisivelmente, também às almas de boa vontade que, exteriormente, dela não podem participar. A Igreja transcende, ainda, os confins do mundo terreno, além do qual está a pátria verdadeira. Entretanto, visto que todos, predestinados e ímpios, se encontram empiricamente confundidos na Igreja - ainda que só na unidade dialética das duas cidades, para o triunfo da Cidade de Deus - a divisão definitiva, eterna, absoluta, justíssima, realizar-se-á nos fins dos tempos, depois da morte, depois do juízo universal, no paraíso e no inferno. É uma grande visão unitária da história, não é uma visão filosófica, mas teológica: é uma teologia, não uma filosofia da história.

ESCOLÁSTICA PRÉ- TOMISTA

Características Gerais

A Escolástica representa o último período do pensamento cristão, que vai do começo do século IX até o fim do século XVI, isto é, da constituição do sacro romano império bárbaro, ao fim da Idade Média, que se assinala geralmente com a descoberta da América (1492). Este período do pensamento cristão se designa com o nome de escolástica, porquanto era a filosofia ensinada nas escolas da época, pelos mestres, chamados, por isso, escolásticos. As matérias ensinadas nas escolas medievais eram representadas pelas chamadas artes liberais, divididas em trívio - gramática, retórica, dialética - e quadrívio - aritmética, geometria, astronomia, música. A escolástica surge, historicamente, do especial desenvolvimento da dialética.
A falta dessa distinção - específica do pensamento agostiniano - manifesta-se não apenas na corrente chamada mística, mas também na orientação denominada dialética do pensamento medieval pré-tomista. Misticismo e dialeticismo, todavia, se diferenciam profundamente entre si. O segundo, com efeito, embora parta da revelação e do sobrenatural, toma-os como dados e pretende penetrá-los mediante a filosofia, até procurar as razões necessárias dos mistérios, finalizando uma espécie de racionalismo (Anselmo de Aosta e Pedro Abelardo). É, porém, um racionalismo inconsciente, proveniente da ignorância da verdadeira natureza e dos verdadeiros limites da razão. E, mesmo que os resultados lógicos pudessem ser os mesmos do racionalismo verdadeiro e próprio, o escopo não era reduzir a religião aos limites da razão humana, mas levantar esta à compreensão do supra-inteligível, a uma espécie de intuição mística.
A tendência mística, pelo contrário, (São Pedro Damião e São Bernardo de Claraval) põe, acima e contra a razão e o intelecto, uma outra forma de conhecimento, de experiência do Divino: o sentimento, a fé, a vontade, o amor, culminando na união mística, no êxtase.
Depois destas premissas, podemos dividir a escolástica em três períodos, colocando o período central da escolástica a figura soberana de Tomás de Aquino. Teremos, assim, um período pré-tomista em que persiste a tendência teológica-agostiniana. Este primeiro período da escolástica vai do começo do século IX (Carlos Magno) até à metade do século XIII (Tomás de Aquino), e pode ser assim dividido: séculos IX e X (Scoto Erígena e a questão dos universais ); séculos XI e XII (místicos e dialéticos); século XIII (o triunfo do aristotelismo).
O segundo período da escolástica é dominado pela figura soberana de Tomás de Aquino, o Aristóteles do pensamento filosófico cristão; este período coincide com a Segunda metade do século XIII.
Depois de Tomás de Aquino, a escolástica declina como metafísica (séculos XIV e XV), devido a um anacrônico e ilógico retorno ao agostinianismo. Afirmam-se, entretanto, ao mesmo tempo, tendências novas para a experiência e a concretidade, representando como que o prelúdio do pensamento moderno. Tal desenvolvimento da escolástica no sentido da experiência e da concretidade, é devido em especial aos franciscanos ingleses de Osford - Rogério Bacon, Duns Scoto, Guilherme de Occam -, em conformidade com as tendências positivas e práticas do espírito anglo-saxônio.

Educação e Cultura na Idade Média

Carlos Magno pretendia dar uma unidade interior, espiritual, ao seu vasto e vário império e, portanto, educar intelectual, moral e religiosamente os povos bárbaros que o constituíam. Deste modo restauraria a civilização e a religião, a cultura clássica e o catolicismo e lhes daria incremento. Para tanto, o meio natural eram as escolas, e o clero se apresentava como o mais apto e preparado docente, quer pelo seu imanente caráter de mestre do povo, quer pela cultura de que era dotado. Na intenção de Carlos Magno, complexo devia ser o papel das escolas, que ele ia fundando e desenvolvendo: formar, antes de tudo, mestres adequados para as escolas, isto é, um clero culto; educar, em seguida, a massa popular, seu escopo final; preparar uma classe dirigente em geral e, em especial, os funcionários do império.
Havia nos mosteiros beneditinos escolas monásticas, surgidas da própria exigência de uma observância adequada da Regra de São Bento. Paulatinamente espalharam-se também as escolas episcopais, imitações atualizadas das escolas catequéticas do cristianismo primitivo. As escolas monásticas dos mosteiros visavam, antes de tudo, a formação dos monges futuros (escolas internas), e, depois, a formação dos leigos cultos (escolas externas), proporcionando, ao mesmo tempo, o ensino religioso e os rudimentos das ciências profanas. O programa de ensino era, inicialmente, bastante elementar: leitura, aprender a escrever, canto orfeônico e um tanto de aritmética. As escolas episcopais - que surgem nas cidades, ao passo que as escolas monásticas surgem nos mosteiros afastados das cidades - visavam, em especial, a formação do clero secular e também de leigos instruídos, para a vida civil. Presidia a estas escolas um eclesiástico chamado scholasticus, dependente diretamente do bispo, donde o nome de escolástica à doutrina e, por conseguinte, à filosofia ensinadas. Os docentes eram também eclesiásticos e denominados também scholastici. Carlos Magno dará muito incremento a ambas as escolas e, ademais, fundará junto da corte imperial a assim chamada escola palatina, que pode ser considerada como a primeira universidade medieval. Mencionamos também como, com o correr do tempo, no âmbito das paróquias, as escolas paroquiais, destinadas a ensinar ao povo os primeiros elementos do saber.
Para elaborar o seu vasto plano de política escolar, Carlos Magno chamou à corte Alcuíno (735-804, mais ou menos), que veio da Inglaterra, o viveiro da cultura naquela época. E sob a sua inspiração, a partir do ano 787, foram emanados os decretos capitulares para a organização das escolas, enquanto o douto inglês ditava-lhes o programa relativo, que se espalhou pelo vasto império e perdurou invariado, podemos dizer, durante toda a Idade Média.
O programa de Alcuíno abraçava as sete artes liberais, de que acima falamos, repartidas no trívio e no quadrívio. O trívio abraçava as disciplinas formais: gramática, retórica, dialética, esta última desenvolvendo-se, mais tarde, na filosofia; o quadrívio abraçava as disciplinas reais: aritmética, geometria, astronomia, música, e, mais tarde, a medicina.
Sob a direção de Alcuíno, foi constituída junto da corte de Carlos Magno a famosa escola palatina . Nela ensinaram os homens mais famosos da época, como, por exemplo, o historiador Paulo Diácono, o gramático Pedro de Pisa, o teólogo Paulino de Aquiléia. Frequentavam esta escolas o próprio imperador, os príncipes e os jovens da nobreza. Outras escolas surgiram, em seguida, especialmente na França, modeladas na escola palatina.
Ao lado desta instrução e educação eclesiásticas, ministradas por eclesiásticos e, sobretudo, a eclesiásticos, temos na Idade Média uma educação militar, ministrada por militares e a militares; a Igreja, bem cedo, imprimiu também a esta educação uma orientação ética, religiosa, católica. Como é sabido, o feudalismo é uma organização social, política, econômica, militar, inicialmente baseada na força, segundo o espírito dos bárbaros dominadores.

A Escolástica Pré-Tomista

Os Séculos IX e X:

Scoto Erígena e o Problema dos Universais

A história da filosofia escolástica começa propriamente com o nome de Scoto Erígena. João Scoto Erígena nasceu na Irlanda, dita Scotia maior , Eriu em língua céltica, donde o nome de Scoto Erígena. Pelo ano de 874 é chamado à corte culta e brilhante de Carlos o Calvo, para presidir e lecionar na escola palatina. Parece Ter falecido em França pelo ano 877. A sua obra principal é Da Divisão da Natureza (847), em cinco livros; é um diálogo entre mestre e discípulo e se inspira no neoplatonismo do pseudo Dionísio Areopagita, que Erígena traduziu do grego para o latim. Foi condenada pela Igreja (1225), e pode-se dizer que representa a falência definitiva das tentativas de síntese entre neoplatonismo emanatista e criacionismo cristão.
Erígena parte da revelação divina para, depois, penetrar os mistérios mediante a razão iluminada por Deus. Tal pretensão de penetrar racionalmente os mistérios revelados devia acabar logicamente no racionalismo e, por consequência, na supressão do sobrenatural, por mais ortodoxa que fosse a intenção do autor.
Eminentemente neoplatônico é o esquema especulativo de Da Divisão da Natureza: a descida da Unidade à multiplicidade, e retorno da multiplicidade à Unidade. De Deus desce-se às ideias supremas, aos gêneros, às espécies, aos indivíduos, e vice-versa. Deste modo, a divisão da natureza, da realidade, fica assim configurada:
1°. - A natureza que não é criada e cria (Deus Padre);
2°. - A natureza que é criada e cria (o Verbo de Deus, em que são contidas as ideias eternas, exemplares e causas das coisas);
3°. - A natureza que é criada e não cria (as coisas, realizadas mediante o Espírito de Deus);
4°. - A natureza que não é criada e não cria (isto é, Deus, concebido, porém, como ômega, termo, fim da realidade, e não como alfa, princípio). Como se vê, as fases primeira e quarta coincidem (Deus = não criado), bem como coincidem as fases segunda e terceira (mundo = criado).
O problema dos universais, isto é, do valor dos conceitos, das ideias, problema que tão cedo e tão longamente interessou a escolástica, teve uma solução radical no pensamento escotista. Que valor têm os conceitos, que são universais, em relação e enquanto representativos das coisas, que são, ao contrário, particulares? O problema tem uma importância fundamental filosófica, não apenas lógica e dialética, mas também gnosiológica e metafísica.
As soluções desse problema oferecidas pela escolástica são substancialmente, três: a solução chamada do realismo transcendente (platônica); a solução do realismo moderado, imanente (aristotélica); a solução nominalista.
Segundo a solução do realismo transcendente, o universal, a ideia de uma realidade em si, não existe apenas fora da mente, mas também fora do objeto (universal ante rem ): - é a solução platônica, geralmente adotada pela escolástica incipiente. Segundo a solução do realismo moderado , imanente, o universal tem em si uma realidade objetiva, fora da mente, mas é imanente nos objetos singulares de que é essência, forma, princípio ativo (universal in re): - corresponde à posição aristotélica, com a doutrina da forma que determina a matéria. A solução conceptualista-nominalista sustenta que o universal não tem nenhuma existência objetiva, mas apenas mental (universal post rem), ou até puramente nominal (nominalismo) - no mundo clássico esta posição é defendida pelos sofistas, estóicos, epicuristas, céticos, isto é, pelas gnosiologias empirista e sensitista.

Os Séculos XI e XII:

Místicos e Dialéticos

Depois da decadência cultural que se seguiu à renascença carolíngia, começa e se manifesta nos séculos XI e XII um renascimento especulativo. E isto não obstante a luta dos teólogos, dos místicos, contra a ciência (a filosofia) por eles considerada um resíduo pagão, uma distração mundana, vaidade e orgulho; e, portanto, contra os filósofos, e os dialéticos que a cultivavam. Os maiores representantes da corrente mística são: São Pedro Damião no século XI, São Bernardo de Claraval no século XII; da corrente dialética os maiores expoentes são: Santo Anselmo de Aosta no século XI e Pedro Abelardo no século XII.
São Pedro Damião, cardeal e arcebispo ostiense, conselheiro do monge Hildebrando, mais tarde Papa Gregório VII, escreveu Da Divina Onipotência. Nesta obra enaltece a onipotência de Deus, até colocá-la acima de toda lei racional, inclusive o princípio de contradição; daí a vaidade da ciência, da filosofia para entender Deus e as suas obras. São Bernardo de Claraval rejeita, asceticamente, o saber profano como um perigo e um luxo. A verdadeira sabedoria consiste no conhecimento da própria miséria, na compaixão para com a miséria do próximo, na contemplação de Deus, dos divinos mistérios, de Cristo crucificado, e culmina no êxtase. O caminho da sabedoria é a humildade.
Santo Anselmo (1033-1109) nasceu em Aosta; foi monge prior e abade do mosteiro beneditino de Bec na Normandia e, depois, arcebispo de Canterbury na Inglaterra. As suas obras principais são: O Monologium, onde se propõe demonstrar a existência de Deus com um argumento simples e evidente, capaz de convencer imediatamente o ateu. Anselmo de Aosta é o primeiro grande filósofo medieval, após Scoto Erígena. Também ele é um platônico-agostiniano. O seu lema é: creio para compreender, o que significa partir da revelação divina, da fé e não da razão; mas é preciso penetrar depois a fé mediante a razão.
O nome de Anselmo de Aosta é ligado ao famoso argumento ontológico , a priori , para demonstrar a existência de Deus; este argumento é contido no Proslogium . Pretende ele demonstrar a existência de Deus, partindo do mero conceito de Deus. O conceito que temos de Deus é o de um ser perfeitíssimo e, logo, Deus deve também existir realmente, do contrário não mais seria perfeitíssimo, faltando-lhe a existência. Em realidade, o argumento ontológico não vale: porquanto não podemos, no nosso conhecimento, passar da ordem lógica para a ordem ontológica, das ideias aos fatos, mas deve-se passar das coisas às ideias, da ordem real à ordem ideal.
Pedro Abelardo (1097-1142), natural de Bretanha, estudante e, mais tarde, professor famoso em Paris, centro cultural do mundo católico, tornou-se religioso e foi peregrinando por muitos mosteiros e cátedras, após uma aventura amorosa com Heloísa, que lhe acarretou trágicas consequências. Acusado de heresia, foi condenado por dois concílios. Abelardo é uma das mais originais figuras do mundo medieval, mesmo faltando-lhe a profundidade e a capacidade sistemática de Santo Anselmo. Em conclusão, Abelardo é, ao mesmo tempo, filósofo e teólogo, grego e cristão, cético e sistemático, com um grande pendor para a crítica e a dialética.
Escreveu as obras seguintes: História das Calamidades, conto biográfico da sua aventura com Heloísa; Dialética; Conhece-te a ti mesmo; Sic et non. No ensaio ético Conhece-te a ti mesmo valoriza, na vida moral, o elemento subjetivo, intencional, - elemento descurado na Idade Média - em confronto com o elemento objetivo, legal. Reconhecendo embora que são necessários os dois elementos, a fim de que haja ação plenamente moral, Abelardo sustenta ser mais moral um ato executado com reta intenção, ainda que objetivamente mau, do que um ato executado conforme a lei, mas com intenção má. Também interessante é a sua posição crítica na pesquisa filosófica: a dúvida nos leva para a investigação, a investigação nos leva à ciência. Na obra Sic et non - coleção de sentenças contrastantes dos padres sobre assuntos da Escritura e da teologia - Abelardo se integra nas fileiras dos sentenciários, isto é, dos autores dos libri sententiarum entre os quais o mais famoso é Pedro Lombardo, (século XII), chamado precisamente magister sententiarum. Os livros das sentenças eram coleções sistemáticas - mais ou menos críticas - das doutrinas das Padres, ordenadas segundo o esquema: Deus, criação, queda, redenção, meios de salvação. Preparam as grandes sumas medievais, especialmente as tomistas, que são construções sistemáticas elaboradas criticamente.
Encerra-se assim o século XII e está nos albores o século XIII, o século de ouro da escolástica e do pensamento filosófico cristão.

ESCOLÁSTICA PÓS-TOMISTA

O Século XIII: O Triunfo de Aristóteles

A atividade filosófica da escolástica pré-tomista foi essencialmente lógico-dialética e, logo, formal. Esta atividade formal, intensa e penetrante, esperava um conteúdo adequado, racional, filosófico. E tal conteúdo lhe foi proporcionado pela descoberta do sistema aristotélico integral, que representa o ápice do pensamento helênico. O mundo latino-cristão, escolástico, depois de conhecido Aristóteles através da cultura árabe, apaixonou-se pela filosofia aristotélica, que estudou intensamente. Este movimento cultural e filosófico se desenvolveu especialmente no âmbito das universidades, então surgidas e organizadas eficientemente, graças aos pensadores pertencentes às ordens religiosas, os quais a tudo renunciaram, salvo à ciência e à caridade.
A atitude do mundo latino-cristão perante Aristóteles foi tríplice: uma decidida aversão à filosofia que queria constituir-se unicamente com meios racionais, e um retorno ao agostianismo (São Boaventura); um culto idolátrico para com o Estagirita, que foi identificado com a própria razão humana e preferido, no fundo, à revelação cristã, quando não concordava com a razão (averroísmo latino); uma aceitação e valorização do sistema aristotélico, mas crítica e racional, pelo qual se chegou à construção de uma filosofia distinta e autônoma, mas em harmonia hierárquica com a fé (Tomás de Aquino).
Como dissemos, foram os árabes - e secundariamente os hebreus - que levaram ao conhecimento do mundo latino-cristão a filosofia de Aristóteles. Os árabes, após terem conquistado o oriente helenista, entraram em contato com a cultura grega, especialmente na Síria. Em seguida, estendendo suas conquistas até o ocidente europeu, trouxeram-lhe a própria cultura impregnada de aristotelismo. Os árabes foram admiradores de Aristóteles e da sua filosofia, que salvaram das invasões bárbaras durante as trevas medievais do Ocidente latino. E assim, originariamente bárbaros eles mesmos, os árabes, por sua vez, foram civilizados pelo pensamento grego, aristotélico. Os maiores filósofos árabes conhecedores de Aristóteles e que influíram profundamente sobre o Ocidente latino-cristão, foram Avicena e Averroés. Avicena tentou harmonizar a filosofia aristotélica com a religião islâmica. Averroés, - o famoso comentador de Aristóteles - afirmava ao invés a subordinação da religião a filosofia quando as argumentações delas fossem contrastantes, e considerava a religião como uma filosofia simbólica para o vulgo.
Era preciso traduzir do árabe para o latim as obras de Aristóteles e os comentários árabes. Foi o que fez, nos meados do século XII, uma sociedade de homens cultos surgida em Toledo, na Espanha. Mais tarde sentiu-se a necessidade de traduzir diretamente do grego as obras de Aristóteles, e, por conselho de Tomás de Aquino, Guilherme de Maerbeke (falecido em 1286) fez essa tradução, que proporcionou aos latinos o conhecimento do genuíno pensamento do Estagirita.
Ao mesmo tempo se desenvolveram as universidades, as grandes universidades medievais, surgidas geralmente das escolas episcopais; famosas mais que todas as outras, foram as universidades de Paris e de Oxford. A universidade de Paris, a mais ilustre universidade da Idade Média, desenvolveu especialmente a filosofia e a teologia, inspirando-se na mentalidade aristotélica, ao passo que a universidade de Oxford dedicou-se especialmente às ciências naturais, inspirando-se na mentalidade agostiniana. O conjunto dos professores e dos alunos da universidade de Paris, em princípios do século XII, constituiu um corpo único, uma universitas única, e obteve das autoridades civis e religiosas reconhecimento jurídico e grandes privilégios. Especialmente os papas protegeram a universidade de Paris, devido à importância que tinha naquele estabelecimento do ensino superior universitário a teologia. Desta sorte, tal universidade se tornou como que a cidadela cultural da ortodoxia católica, o seminário dos filósofos e dos teólogos de todo mundo.
Nessas universidades recém-organizadas, bem cedo, contra a vontade dos leigos e por desejo dos papas, entraram e tiveram preponderância professores pertencentes as duas ordens religiosas surgidas no século XIII: os Dominicanos , fundados por São Domingos de Gusmão, espanhol, e os Franciscanos , fundados por São Francisco de Assis, italiano. A característica nova e comum destas duas ordens religiosas foi a pobreza individual e coletiva, donde o nome de mendicantes a elas atribuído, e também certa liberdade a respeito das obrigações conventuais, para melhor facultar o cultivo do estudo e a pregação apostólica entre o povo. Os dominicanos dedicaram-se mais ao estudo, à ciência, inspirando-se no pensamento aristotélico, exercendo, destarte, sua maior influência entre as classes sociais elevadas; os franciscanos, ao contrário, propuseram-se como finalidade principal a caridade ativa e tiveram uma enorme influência sobre o povo, inspirando-se na mentalidade agostiniana.

Os Filósofos Franciscanos

Os filósofos franciscanos julgaram fosse mister dar uma forma teórica à atitude prática, afetiva, sentimental do Pobrezinho de Assis que entrevia Deus e Jesus Cristo em todas as coisas. E julgaram os filósofos franciscanos que, para tanto, se prestasse o agostinianismo, com o seu misticismo e voluntarismo - julgando inapto para esse fim o racionalismo, o empirismo e o intelectualismo aristotélicos.
O maior representante do agostinianismo antiaristotélico foi São Boaventura (1221-1274); nasceu na Itália, estudou em Paris e, mais tarde, foi geral da sua ordem e depois cardeal de Albano. Suas obras principais são: os Comentários a Pedro Lombardo, o Itinerário da Mente para Deus, sobre a Redução das Artes à Teologia.
Segundo São Boaventura, a tarefa da filosofia não é teórica e racional, mas prática e religiosa, isto é, a filosofia deve levar a Deus, que se atinge imediatamente em todas as coisas e se possui pela união mística, como ele descreve no Itinerário. A gnosiologia de Boaventura inspira-se no iluminismo agostiniano, que lhe sugeriu a prova intuitiva da existência de Deus, enquanto ele é imediatamente presente ao espírito humano. A metafísica de Boaventura, pois, afirma três princípios diretamente opostos ao aristotelismo tomista: a existência de uma matéria geral sem as formas específicas; a pluralidade das formas em um mesmo ser, tantas quantas são as suas propriedades essenciais; a universalidade da matéria fora de Deus, porque todos os seres são compostos de matéria e de forma, inclusive as essências angélicas e as almas humanas. A psicologia de Boaventura, pois, sustenta que a alma humana é uma substância completa independentemente do corpo, composta de forma e matéria, auto-suficiente.
Diametralmente oposto a este aristotelismo agostiniano, é o aristotelismo exagerado averroísta, que aceita o sistema aristotélico sem crítica nenhuma, e, por consequência, será inteiramente infecundo. Esta orientação filosófica é chamada averroísta, porquanto admite - como admitia Averroés - que haja teses filosóficas em contraste com o teísmo da religião, ainda que pareça limitar-se a sustentar a existência de duas verdades paralelas e contrastantes, e não chegar até subordinar a religião à filosofia. O maior representante do averroísmo latino é Siger de Brabante (falecido pelo ano de 1284), professor na universidade parisiense, condenado mais tarde pela Igreja. A sua obra principal é Da Alma Intelectiva. As teses mais notáveis de Siger em contraste com o cristianismo são: a negação da providência divina; a afirmação da eternidade do mundo; a afirmação da unidade do intelecto na espécie humana e a consequente negação da imortalidade pessoal do homem. Entre estas duas posições extremadas - de idolatria ou de irredutível hostilidade - a respeito de Aristóteles, medeia Tomás de Aquino, que realizará a justificação da filosofia e da teologia.

A Escolástica Pós-Tomista

O tomismo era, talvez, um movimento excessivamente novo e arrojado, para poder súbita e definitivamente impor-se no âmbito do pensamento cristão medieval. Houve, portanto, no mesmo século XIII, logo depois de uma reação violenta contra o tomismo, um retorno especulativo ao agostinianismo, que julgou encobrir o seu anacronismo, tentando uma superação do racionalismo tomista. Entretanto esse movimento terminará nas posições fideístas do pré-tomismo, acentuadas e tornadas piores após a poderosa construção crítica e racional do Aquinate; e terminará, consequentemente, na ruína da metafísica, da filosofia, da ciência. A escolástica pós-tomista, contudo, sentiu profundamente o problema da concretidade e da experiência, indubitavelmente negligenciado pela escolástica clássica, donde surgirão a história e a ciência modernas - com suas técnicas - que constituem o valor do pensamento moderno.
O centro desta escolástica pós-tomista é a universidade de Oxford, na Inglaterra, cujas características tendências empiristas, experimentais, positivas, práticas, são conhecidas.

Rogério Bacon

Rogério Bacon (1210-1294), nascido na Inglaterra, entrou na ordem franciscana e estudou nas universidades de Oxford e de Paris. Após Ter lecionado algum tempo em Oxford, foi obrigado a deixar a cátedra. Estabeleceu-se então em Paris, onde levou uma vida agitada e foi condenado à prisão pelos próprios superiores da sua ordem. Crítico agressivo das maiores autoridades da sua época, foi um temperamento genial e original, enciclopédico e místico, cientista e supersticioso. A sua obra mais importante é a chamada Obra Maior; publicou ainda a Obra Menor e a Terceira Obra .
Segundo Bacon, três são as fontes do saber: a autoridade, a razão, a experiência. A autoridade dá-nos a crença, a fé não, porém, a ciência, porquanto não nos fornece a compreensão das coisas que formam o objeto da crença. A razão proporciona essa compreensão, quer dizer, a ciência; no entanto, não consegue distinguir o sofisma da demonstração verdadeira, se não achar fundamento e confirmação na experiência. A ciência experimental constitui a fonte mais sólida da certeza. Conforme Bacon, todavia, deve-se entender por experiência não apenas a que se alcança pelos sentidos externos e nos oferece o mundo corpóreo, mas também a experiência proporcionada pela iluminação interior de Deus. É, como se vê, um vestígio do agostinianismo tradicional. Do agostinianismo, Bacon aceita também a unidade entre filosofia e teologia, que Tomás tinha distinguido.

João Duns Scoto
 
O maior expoente da escolástica pós-tomista é, sem dúvida, João Duns Scoto, o doutor sutil. Também ele, inglês e franciscano, foi aluno e professor nas universidades de Oxford e de Paris. Faleceu em 1308. Suas obras principais são: a Obra Oxoniense, isto é, o tradicional comentário das sentenças de Pedro Lombardo; os Teoremas Sutilíssimos , as Questões Várias , a Obra Parisiense. Nestas obras revela-se um crítico e um pensador de muito superior a São Boaventura.
O agostinianismo de Scoto manifesta-se, antes de tudo, no conceito de filosofia, entendida como instrumento para entender a fé e não como obra autônoma do espírito, como julga Tomás de Aquino. E, por sua vez, a teologia não é - segundo Scoto - disciplina essencialmente especulativa - como julga Aquinate - mas unicamente prática, em conformidade com o espírito do voluntarismo agostiniano.
A gnosiologia iluminista-intuicionista agostiniana firma-se no escotismo não tanto como participação da inteligência humana na luz divina, quanto como sendo a espontaneidade e a independência do intelecto com respeito ao sentido. Em todo caso, está contra o chamado empirismo aristotélico-tomista, conforme o qual o nosso conhecimento começa pela sensibilidade. Scoto concede, em linha de fato, o empirismo do nosso conhecimento; não o admite em linha de direito, como exige o tomismo. E isso seria devido - segundo o doutor sutil - à escravidão da alma com respeito ao corpo, decorrente do pecado. Pelo contrário, deveria a alma, por sua natureza, conhecer diretamente as essências, não só as materiais mas também as espirituais.
Na teodicéia, Scoto (contra a corrente agostiniana e em harmonia com o tomismo) ensina que Deus não é conhecido por intuição; a existência de Deus é demonstrável apenas com argumentos a posteriori , embora procure também combinar esta demonstração com o argumento ontológico, a priori . Quanto à natureza divina, o atributo essencial de Deus seria a infinidade.
Na psicologia escotista aparece ainda uma doutrina inspirada no agostinianismo. É a doutrina do conhecimento intuitivo da essência da alma, princípio de todos os demais conhecimentos. E também inspira-se no agostinianismo a doutrina de certa independência da alma com respeito ao corpo; seria a alma, por natureza, uma substância completa.
Com efeito, segundo Scoto, todos os seres, mesmos os espirituais, são compostos de matéria e de forma. A matéria não é mera potência, inexistente sem a forma, mas tem uma realidade sua própria; a forma não é única, mas há multiplicidade de formas em cada indivíduo. A individuação não depende da matéria (pelo que o indivíduo fica incognoscível intelectualmente), mas de um elemento formal individual, chamado haecceitas (que se sobrepõe à matéria por si subsistente e à hierarquia das formas); destarte, o indivíduo se tornaria intelectualmente cognoscível.
Contra o intelectualismo tomista, Scoto sustenta a primazia da vontade: a vontade não depende do intelecto, mas o intelecto depende da vontade. A tarefa do homem é conhecer para querer e amar; na vida eterna, Deus seria atingido, na visão beatífica, pela vontade, pelo amor e não pelo intelecto. Scoto põe também em Deus esse primado de vontade sobre o intelecto. Desse modo, as coisas criadas por Deus não dependem fundamentalmente da razão divina, e sim da vontade divina. E a própria ordem ética não é intrinsecamente boa por motivo racional, mas unicamente porquanto é querida por Deus, que poderia impor uma ordem moral oposta, em que, por exemplo, a mentira, o adultério, o furto, o homicídio, etc., seriam ações morais, e imorais as ações opostas.

Guilherme de Occam

Guilherme de Occam é, ao mesmo tempo, um opositor e um discípulo de Scoto: discípulo, no sentido de que desenvolve o individualismo de haecceitas escotista no nominalismo, que ele fez reviver no ambiente experimental da universidade de Oxford, depois do realismo imanente aristotélico-tomista. Guilherme nasceu em Occam na Inglaterra pouco antes do ano de 1300; fez-se franciscano, estudou e lecionou na Universidade de Oxford. Processado por heresia pela Santa Sé, refugiou-se junto do Imperador, então em luta contra o Papa, e escreveu várias obras para defender o imperador contra a Santa Sé. Faleceu pelo ano 1350. Suas obras especulativas são, além do Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo: Sete Várias Questões , Suma de Toda a Lógica , Centilóquio Teológico.
Segundo Occam, o conhecimento sensível é superior ao conhecimento intelectual, porquanto o primeiro é intuitivo, ao passo que o segundo é abstrato; o primeiro dá-nos a realidade, concreta e individual, ao passo que o segundo nos dá apenas as semelhanças entre seres reais (as ideias gerais), e, por conseguinte, um conhecimento vago e confuso deles, que não nos permite distingui-los um do outro. O conhecimento sensível dá-nos as relações reais entre as coisas reais (o nexo causal, que se conhece só pela experiência), ao passo que o conhecimento intelectual nos proporciona conhecer as relações lógicas entre conceitos abstratos, sem nada nos dizer em torno da realidade das coisas. Em conclusão, a sensação é o sinal de um objeto na alma; o conceito é sinal de mais objetos percebidos como semelhantes. O conceito, pois, é um sinal natural, representado pelo nome que é, porém, um sinal artificial, variável segundo as diversas línguas.
Estamos na linha do experimentalismo inglês da Universidade de Oxford; desse experimentalismo deriva o empirismo, e deste deriva logicamente a ruína do conceito e, consequentemente, da ciência, da filosofia, da moral, etc. E deriva também a ruína das próprias noções de substância e causa, indispensáveis à própria ciência natural, porquanto essas noções de substância e causa não são experimentáveis. Pelo fato de a alma e Deus não serem sensíveis, segue-se que não são cognoscíveis. Deus não se pode provar a posteriori mediante o princípio de causalidade, válido empiricamente; e também não se pode provar - pela via de causalidade - a alma, de que é impossível demonstrar cientificamente a imortalidade.
Dado que em torno de Deus nada conhecemos filosoficamente, e dado outrossim o voluntarismo divino escotista, a vontade de Deus é absolutamente livre para criar uma moral mesmo oposta à presente, e para estabelecer uma outra ordem sobrenatural (por exemplo, se Deus quisesse, o Verbo poderia Ter-se encarnado num burro). Destarte, a ciência humana reduz-se à física, que nos faz conhecer os seres materiais, sensíveis, a lógica que nos ilustra as relações entre os conceitos. Portanto, nenhuma metafísica: o conhecimento de Deus, da alma, da moral, etc., é abandonado inteiramente à Revelação, à fé (fideísmo). Esta absoluta divisão entre a razão e a fé, coloca o ocamismo em uma posição afim à do averroísmo da dupla verdade. Com o diminuir da fé medieval e com o firmar-se do humanismo moderno, bem cedo a razão se porá contra a fé e a substituirá. O ocamismo tem um êxito vasto e imediato nos séculos XIV e XV; mas logo declina, degenerando num formalismo lógico. Com ele declina e, historicamente, termina a escolástica medieval.

SÃO TOMAZ DE AQUINO

A Vida e as Obras

Após uma longa preparação e um desenvolvimento promissor, a escolástica chega ao seu ápice com Tomás de Aquino. Adquire plena consciência dos poderes da razão, e proporciona finalmente ao pensamento cristão uma filosofia. Assim, converge para Tomás de Aquino não apenas o pensamento escolástico, mas também o pensamento patrístico, que culminou com Agostinho, rico de elementos helenistas e neoplatônicos, além do patrimônio de revelação judaico-cristã, bem mais importante.
Para Tomás de Aquino, porém, converge diretamente o pensamento helênico, na sistematização imponente de Aristóteles. O pensamento de Aristóteles, pois, chega a Tomás de Aquino enriquecido com os comentários pormenorizados, especialmente árabes.
Nasceu Tomás em 1225, no castelo de Roccasecca, na Campânia, da família feudal dos condes de Aquino. Era unido pelos laços de sangue à família imperial e às famílias reais de França, Sicília e Aragão. Recebeu a primeira educação no grande mosteiro de Montecassino, passando a mocidade em Nápoles como aluno daquela universidade. Depois de ter estudado as artes liberais, entrou na ordem dominicana, renunciando a tudo, salvo à ciência. Tal acontecimento determinou uma forte reação por parte de sua família; entretanto, Tomás triunfou da oposição e se dedicou ao estudo assíduo da teologia, tendo como mestre Alberto Magno, primeiro na universidade de Paris (1245-1248) e depois em Colônia.
Também Alberto, filho da nobre família de duques de Bollstädt (1207-1280), abandonou o mundo e entrou na ordem dominicana. Ensinou em Colônia, Friburgo, Estrasburgo, lecionou teologia na universidade de Paris, onde teve entre os seus discípulos também Tomás de Aquino, que o acompanhou a Colônia, aonde Alberto foi chamado para lecionar no estudo geral de sua ordem. A atividade científica de Alberto Magno é vastíssima: trinta e oito volumes tratando dos assuntos mais variados - ciências naturais, filosofia, teologia, exegese, ascética.
Em 1252 Tomás voltou para a universidade de Paris, onde ensinou até 1269, quando regressou à Itália, chamado à corte papal. Em 1269 foi de novo à universidade de Paris, onde lutou contra o averroísmo de Siger de Brabante; em 1272, voltou a Nápoles, onde lecionou teologia. Dois anos depois, em 1274, viajando para tomar parte no Concílio de Lião, por ordem de Gregório X, faleceu no mosteiro de Fossanova, entre Nápoles e Roma. Tinha apenas quarenta e nove anos de idade.
As obras do Aquinate podem-se dividir em quatro grupos:
1. Comentários: à lógica, à física, à metafísica, à ética de Aristóteles; à Sagrada Escritura; a Dionísio pseudo-areopagita; aos quatro livros das sentenças de Pedro Lombardo.
2. Sumas: Suma Contra os Gentios, baseada substancialmente em demonstrações racionais; Suma Teológica, começada em 1265, ficando inacabada devido à morte prematura do autor.
3. Questões: Questões Disputadas (Da verdade, Da alma, Do mal, etc.); Questões várias.
4. Opúsculos: Da Unidade do Intelecto Contra os Averroístas; Da Eternidade do Mundo, etc.

O Pensamento: A Gnosiologia

Diversamente do agostinianismo, e em harmonia com o pensamento aristotélico, Tomás considera a filosofia como uma disciplina essencialmente teorética, para resolver o problema do mundo. Considera também a filosofia como absolutamente distinta da teologia, - não oposta - visto ser o conteúdo da teologia arcano e revelado, o da filosofia evidente e racional.
A gnosiologia tomista - diversamente da agostiniana e em harmonia com a aristotélica - é empírica e racional, sem inatismos e iluminações divinas. O conhecimento humano tem dois momentos, sensível e intelectual, e o segundo pressupõe o primeiro. O conhecimento sensível do objeto, que está fora de nós, realiza-se mediante a assim chamada espécie sensível . Esta é a impressão, a imagem, a forma do objeto material na alma, isto é, o objeto sem a matéria: como a impressão do sinete na cera, sem a materialidade do sinete; a cor do ouro percebido pelo olho, sem a materialidade do ouro.
O conhecimento intelectual depende do conhecimento sensível, mas transcende-o. O intelecto vê em a natureza das coisas - intus legit - mais profundamente do que os sentidos, sobre os quais exerce a sua atividade. Na espécie sensível - que representa o objeto material na sua individualidade, temporalidade, espacialidade, etc., mas sem a matéria - o inteligível, o universal, a essência das coisas é contida apenas implicitamente, potencialmente. Para que tal inteligível se torne explícito, atual, é preciso extraí-lo, abstraí-lo, isto é, desindividualizá-lo das condições materiais. Tem-se, deste modo, a espécie inteligível , representando precisamente o elemento essencial, a forma universal das coisas.
Pelo fato de que o inteligível é contido apenas potencialmente no sensível, é mister um intelecto agente que abstraia, desmaterialize, desindividualize o inteligível do fantasma ou representação sensível. Este intelecto agente é como que uma luz espiritual da alma, mediante a qual ilumina ela o mundo sensível para conhecê-lo; no entanto, é absolutamente desprovido de conteúdo ideal, sem conceitos diferentemente de quanto pretendia o inatismo agostiniano. E, ademais, é uma faculdade da alma individual, e não noa advém de fora, como pretendiam ainda i iluminismo agostiniano e o panteísmo averroísta. O intelecto que propriamente entende o inteligível, a essência, a ideia, feita explícita, desindividualizada pelo intelecto agente, é o intelecto passivo , a que pertencem as operações racionais humanas: conceber, julgar, raciocinar, elaborar as ciências até à filosofia.
Como no conhecimento sensível, a coisa sentida e o sujeito que sente, formam uma unidade mediante a espécie sensível, do mesmo modo e ainda mais perfeitamente, acontece no conhecimento intelectual, mediante a espécie inteligível, entre o objeto conhecido e o sujeito que conhece. Compreendendo as coisas, o espírito se torna todas as coisas, possui em si, tem em si mesmo imanentes todas as coisas, compreendendo-lhes as essências, as formas.
É preciso claramente salientar que, na filosofia de Tomás de Aquino, a espécie inteligível não é a coisa entendida, quer dizer, a representação da coisa (id quod intelligitur), pois, neste caso, conheceríamos não as coisas, mas os conhecimentos das coisas, acabando, destarte, no fenomenismo. Mas, a espécie inteligível é o meio pelo qual a mente entende as coisas extramentais (é, logo, id quo intelligitur). E isto corresponde perfeitamente aos dados do conhecimento, que nos garante conhecermos coisas e não idéias; mas as coisas podem ser conhecidas apenas através das espécies e das imagens, e não podem entrar fisicamente no nosso cérebro.
O conceito tomista de verdade é perfeitamente harmonizado com esta concepção realista do mundo, e é justificado experimentalmente e racionalmente. A verdade lógica não está nas coisas e nem sequer no mero intelecto, mas na adequação entre a coisa e o intelecto: veritas est adaequatio speculativa mentis et rei. E tal adequação é possível pela semelhança entre o intelecto e as coisas, que contêm um elemento inteligível, a essência, a forma, a ideia. O sinal pelo qual a verdade se manifesta à nossa mente, é a evidência; e, visto que muitos conhecimentos nossos não são evidentes, intuitivos, tornam-se verdadeiros quando levados à evidência mediante a demonstração.
Todos os conhecimentos sensíveis são evidentes, intuitivos, e, por consequência, todos os conhecimentos sensíveis são, por si, verdadeiros. Os chamados erros dos sentidos nada mais são que falsas interpretações dos dados sensíveis, devidas ao intelecto. Pelo contrário, no campo intelectual, poucos são os nossos conhecimentos evidentes. São certamente evidentes os princípios primeiros (identidade, contradição, etc.). Os conhecimentos não evidentes são reconduzidos à evidência mediante a demonstração, como já dissemos. É neste processo demonstrativo que se pode insinuar o erro, consistindo em uma falsa passagem na demonstração, e levando, destarte, à discrepância entre o intelecto e as coisas.
A demonstração é um processo dedutivo, isto é, uma passagem necessária do universal para o particular. No entanto, os universais, os conceitos, as ideias, não são inatas na mente humana, como pretendia o agostinianismo, e nem sequer são inatas suas relações lógicas, mas se tiram fundamentalmente da experiência, mediante a indução, que colhe a essência das coisas. A ciência tem como objeto esta essência das coisas, universal e necessária.

A Metafísica

A metafísica tomista pode-se dividir em geral e especial. A metafísica geral - ou ontologia - tem como objeto o ser em geral e as atribuições e leis relativas. A metafísica especial estuda o ser em suas grandes especificações: Deus, o espírito, o mundo. Daí temos a teologia racional - assim chamada, para distingui-la da teologia revelada; a psicologia racional (racional, porquanto é filosofia e se deve distinguir da moderna psicologia empírica, que é ciência experimental); a cosmologia ou filosofia da natureza (que estuda a natureza em suas causas primeiras, ao passo que a ciência experimental estuda a natureza em suas causas segundas).
O princípio básico da ontologia tomista é a especificação do ser em potência e ato. Ato significa realidade, perfeição; potência quer dizer não-realidade, imperfeição. Não significa, porém, irrealidade absoluta, mas imperfeição relativa de mente e capacidade de conseguir uma determinada perfeição, capacidade de concretizar-se. Tal passagem da potência ao ato é o vir-a-ser , que depende do ser que é ato puro; este não muda e faz com que tudo exista e venha-a-ser. Opõe-se ao ato puro a potência pura que, de per si, naturalmente é irreal, é nada, mas pode tornar-se todas as coisas, e chama-se matéria.

A Natureza

Uma determinação, especificação do princípio de potência e ato, válida para toda a realidade, é o princípio da matéria e de forma. Este princípio vale unicamente para a realidade material, para o mundo físico, e interessa, portanto, especialmente à cosmologia tomista. A matéria não é absoluto, não-ente; é, porém, irreal sem a forma, pela qual é determinada, como a potência é determinada, como a potência é determinada pelo ato. É necessária para a forma, a fim de que possa existir um ser completo e real (substância). A forma é a essência das coisas (água, ouro, vidro) e é universal. A individuação, a concretização da forma, essência, em vários indivíduos, que só realmente existem (esta água, este ouro, este vidro), depende da matéria, que portanto representa o princípio de individuação no mundo físico. Resume claramente Maritain esta doutrina com as palavras seguintes: "Na filosofia de Aristóteles e Tomás de Aquino, toda substância corpórea é um composto de duas partes substanciais complementares, uma passiva e em si mesma absolutamente indeterminada (a matéria), outra ativa e determinante (a forma)”.
Além destas duas causas constitutivas (matéria e forma), os seres materiais têm outras duas causas: a causa eficiente e a causa final. A causa eficiente é a que faz surgir um determinado ser na realidade, é a que realiza o sínolo, a saber, a síntese daquela determinada matéria com a forma que a especifica. A causa final é o fim para que opera a causa eficiente; é esta causa final que determina a ordem observada no universo. Em conclusão: todo ser material existe pelo concurso de quatro causas - material , formal , eficiente , final; estas causas constituem todo ser na realidade e na ordem com os demais seres do universo físico.

O Espírito

Quando a forma é princípio da vida, que é uma atividade cuja origem está dentro do ser, chama-se alma. Portanto, têm uma alma as plantas (alma vegetativa: que se alimenta, cresce e se reproduz), e os animais (alma sensitiva: que, a mais da alma vegetativa, sente e se move). Entretanto, a psicologia racional, que diz respeito ao homem, interessa apenas a alma racional. Além de desempenhar as funções da alma vegetativa e sensitiva, a alma racional entende e quer, pois segundo Tomás de Aquino, existe uma forma só e, por conseguinte, uma alma só em cada indivíduo; e a alma superior cumpre as funções da alma inferior, como a mais contém o menos.
No homem existe uma alma espiritual - unida com o corpo, mas transcendendo-o - porquanto além das atividades vegetativa e sensitiva, que são materiais, se manifestam nele também atividades espirituais, como o ato do intelecto e o ato da vontade. A atividade intelectiva é orientada para entidades imateriais, como os conceitos; e, por consequência, esta atividade tem que depender de um princípio imaterial, espiritual, que é precisamente a alma racional. Assim, a vontade humana é livre, indeterminada - ao passo que o mundo material é regido por leis necessárias. E, portanto, a vontade não pode ser senão a faculdade de um princípio imaterial, espiritual, ou seja, da alma racional, que pelo fato de ser imaterial, isto é, espiritual, não é composta de partes e, por conseguinte, é imortal.
Como a alma espiritual transcende a vida do corpo depois da morte deste, isto é, é imortal, assim transcende a origem material do corpo e é criada imediatamente por Deus, com relação ao respectivo corpo já formado, que a individualiza. Mas, diversamente do dualismo platônico-agostiniano, Tomás sustenta que a alma, espiritual embora, é unida substancialmente ao corpo material, de que é a forma. Desse modo o corpo não pode existir sem a alma, nem viver, e também a alma, por sua vez, ainda que imortal, não tem uma vida plena sem o corpo, que é o seu instrumento indispensável.

Deus

Como a cosmologia e a psicologia tomistas dependem da doutrina fundamental da potência e do ato, mediante a doutrina da matéria e da forma, assim a teologia racional tomista depende - e mais intimamente ainda - da doutrina da potência e do ato. Contrariamente à doutrina agostiniana que pretendia ser Deus conhecido imediatamente por intuição, Tomás sustenta que Deus não é conhecido por intuição, mas é cognoscível unicamente por demonstração; entretanto esta demonstração é sólida e racional, não recorre a argumentações a priori, mas unicamente a posteriori , partindo da experiência, que sem Deus seria contraditória.
As provas tomistas da experiência de Deus são cinco: mas todas têm em comum a característica de se firmar em evidência (sensível e racional), para proceder à demonstração, como a lógica exige. E a primeira dessas provas - que é fundamental e como que norma para as outras - baseia-se diretamente na doutrina da potência e do ato. "Cada uma delas se firma em dois elementos, cuja solidez e evidência são igualmente incontestáveis: uma experiência sensível, que pode ser a constatação do movimento, das causas, do contingente, dos graus de perfeição das coisas ou da ordem que entre elas reina; e uma aplicação do princípio de causalidade, que suspende o movimento ao imóvel, as causas segundas à causa primeira, o contingente ao necessário, o imperfeito ao perfeito, a ordem à inteligência ordenadora".
Se conhecermos apenas indiretamente, pelas provas, a existência de Deus, ainda mais limitado é o conhecimento que temos da essência divina, como sendo a que transcende infinitamente o intelecto humano. Segundo o Aquinate, antes de tudo sabemos o que Deus não é (teologia negativa), entretanto conhecemos também algo de positivo em torno da natureza de Deus, graças precisamente à famosa doutrina da analogia. Esta doutrina é solidamente baseada no fato de que o conhecimento certo de Deus se deve realizar partindo das criaturas, porquanto o efeito deve Ter semelhança com a causa. A doutrina da analogia consiste precisamente em atribuir a Deus as perfeições criadas positivas, tirando, porém, as imperfeições, isto é, toda limitação e toda potencialidade. O que conhecemos a respeito de Deus é, portanto, um conjunto de negações e de analogias; e não é falso, mas apenas incompleto.
Quanto aos problemas das relações entre Deus e o mundo, é resolvido com base no conceito de criação, que consiste numa produção do mundo por parte de Deus, total, livre e do nada.

A Moral

Também no campo da moral, Tomás se distingue do agostinianismo, pois a moral tomista é essencialmente intelectualista, ao passo que a moral agostiniana é voluntarista, quer dizer, a vontade não é condição de conhecimento, mas tem como fim o conhecimento. A ordem moral, pois, não depende da vontade arbitrária de Deus, e sim da necessidade racional da divina essência, isto é, a ordem moral é imanente, essencial, inseparável da natureza humana, que é uma determinada imagem da essência divina, que Deus quis realizar no mundo. Desta sorte, agir moralmente significa agir racionalmente, em harmonia com a natureza racional do homem.
Entretanto, se a vontade não determina a ordem moral, é a vontade todavia que executa livremente esta ordem moral. Tomás afirma e demonstra a liberdade da vontade, recorrendo a um argumento metafísico fundamental. A vontade tende necessariamente para o bem em geral. Se o intelecto tivesse a intuição do bem absoluto, isto é, de Deus, a vontade seria determinada por este bem infinito, conhecido intuitivamente pelo intelecto. Ao invés, no mundo a vontade está em relação imediata apenas com seres e bens finitos que, portanto, não podem determinar a sua infinita capacidade de bem; logo, é livre. Não é mister acrescentar que, para a integridade do ato moral, são necessários dois elementos: o elemento objetivo, a lei, que se atinge mediante a razão; e o elemento subjetivo, a intenção, que depende da vontade.
Analisando a natureza humana, resulta que o homem é um animal social (político) e portanto forçado a viver em sociedade com os outros homens. A primeira forma da sociedade humana é a família, de que depende a conservação do gênero humano; a Segunda forma é o estado, de que depende o bem comum dos indivíduos. Sendo que apenas o indivíduo tem realidade substancial e transcendente, se compreende como o indivíduo não é um meio para o estado, mas o estado um meio para o indivíduo. Segundo Tomás de Aquino, o estado não tem apenas função negativa (repressiva) e material (econômica), mas também positiva (organizadora) e espiritual (moral). Embora o estado seja completo em seu gênero, fica, porém, subordinado, em tudo quanto diz respeito à religião e à moral, à Igreja, que tem como escopo o bem eterno das almas, ao passo que o estado tem apenas como escopo o bem temporal dos indivíduos.

Filosofia e Teologia

Em torno do problema das relações entre filosofia e teologia, ciência e fé, razão e revelação, e mais precisamente em torno do problema da função da razão no âmbito da fé, Tomás de Aquino dá uma solução precisa e definitiva mediante uma distinção clara entre as duas ordens. Com base no sólido sistema aristotélico, é eliminada a doutrina da iluminação, agostiniana, que levava inevitavelmente a uma confusão da teologia com a filosofia. Destarte, é finalmente conquistada a consciência do que é conhecimento racional e demonstração racional, ciência e filosofia: é um lógico procedimento de princípios evidentes para conclusões inteligíveis. E compreende-se, portanto, que não é possível demonstração racional em matéria de fé, onde os princípios são, para nós, não evidentes, transcendentes à razão, mistérios, e igualmente ininteligíveis suas condições lógicas.
Em todo caso, segundo o sistema tomista, a razão não é estranha à fé, porquanto procede da mesma Verdade eterna. E, com relação à fé, deve a razão desempenhar os papéis seguintes:
1. A demonstração da fé, não com argumentos intrínsecos, de evidência, o que é impossível, mas com argumentos extrínsecos, de credibilidade (profecias, milagres, etc.), que garantem a autenticidade divina da Revelação.
2. A demonstração da não irracionalidade do mistério e da sua conveniência, mediante argumentos prováveis.
3. A determinação, enucleação e sistematização das verdades de fé, pelo que a sacra teologia é ciência, e ciência em grau eminente, porquanto essencialmente especulativa, ao passo que, para os agostinianos, é essencialmente prática.
Tomás, portanto, não confunde - como faz o agostinianismo - nem opõe - como faz o averroísmo - razão e fé, mas distingue-as e as harmoniza. De modo que nasce uma unidade dialética profunda entre a razão e a fé; tal unidade dialética nasce da determinação tomista do conceito metafísico de natureza humana; esta determinação tomista do conceito metafísico de natureza humana tornou possível a averiguação das reais, efetivas vulnerações da natureza humana; estas vulnerações são filosoficamente, racionalmente, inexplicáveis. E demandam, por conseguinte, a Revelação e, precisamente, os dogmas do pecado original e da redenção pela cruz.

O Tomismo

O tomismo afirma-se e caracteriza-se como uma crítica que valoriza a orientação do pensamento platônico-agostiniano em nome do racionalismo aristotélico, que pareceu um escândalo, no campo católico, ao misticismo agostiniano. Ademais, o tomismo se afirma e se caracteriza como o início da filosofia no pensamento cristão e, por conseguinte, como o início do pensamento moderno, enquanto a filosofia é concebida qual construção autônoma e crítica da razão humana.
Sabemos que, segundo a concepção platônico-agostiniana, o conhecimento humano depende de uma particular iluminação divina; segundo esta doutrina, portanto, o espírito humano está em relação imediata com o inteligível, e tem, de certo modo, intuição do inteligível. A esta gnosiologia inatista, Tomás opõe francamente a gnosiologia empírica aristotélica, em virtude da qual o campo do conhecimento humano verdadeiro e próprio é limitado ao mundo sensível. Acima do sentido há, sim, no homem, um intelecto; este intelecto atinge, sim, um inteligível; mas é um intelecto concebido como uma faculdade vazia, sem ideias inatas - é uma tabula rasa, segundo a famosa expressão - ; e o inteligível nada mais é que a forma imanente às coisas materiais. Essa forma é enucleada, abstraída pelo intelecto das coisas materiais sensíveis.
Essa gnosiologia é naturalmente conexa a uma metafísica e, em especial, a uma antropologia, assim como a gnosiologia platônico-agostiniana era conexa a uma correspondente metafísica e antropologia. Por isso a alma era concebida quase como um ser autônomo, uma espécie de natureza angélica, unida extrinsecamente a um corpo, e a materialidade do corpo era-lhe mais de obstáculo do que instrumento. Por conseguinte, o conhecimento humano se realizava não através dos sentidos, mas ao lado e acima dos sentidos, mediante contato direto com o mundo inteligível; precisamente como as inteligências angélicas, que conhecem mediante as espécies impressas , ideias inatas. Vice-versa, segundo a antropologia aristotélico-tomista, sobre a base metafísica geral da grande doutrina da forma, a alma é concebida como a forma substancial do corpo. A alma é, portanto, incompleta sem o corpo, ainda que destinada a sobreviver-lhe pela sua natureza racional; logo, o corpo é um instrumento indispensável ao conhecimento humano, que, por consequência, tem o seu ponto de partida nos sentidos.
Terceira característica do agostinianismo é o assim chamado voluntarismo, com todas as consequências de correntes da primazia da vontade sobre o intelecto. A característica do tomismo, ao contrário, é o intelectualismo, com a primazia do intelecto sobre a vontade, com todas as relativas consequências. O conhecimento, pois, é mais perfeito do que a ação, porquanto o intelecto possui o próprio objeto, ao passo que a vontade o persegue sem conquistá-lo. Esta doutrina é aplicada tanto na ordem natural como na ordem sobrenatural, de sorte que a bem-aventurança não consiste no gozo afetivo de Deus, mas na visão beatífica da Essência divina.

A Existência de Deus é Evidente?

Sobre a existência de Deus, três questões se colocam:
1. A existência de Deus é uma verdade evidente?
2. Ela pode ser demonstrada?
3. Deus existe?

1. - Parece que a existência de Deus é evidente. Com efeito, chamamos verdades evidentes aquelas cujo conhecimento está em nós naturalmente, como é o caso dos primeiros princípios. Ora, de acordo com o que diz Damasceno: "O conhecimento da existência de Deus é inato em todos". Por conseguinte, a existência de Deus é evidente.
2. - Por outro lado, são ditas evidentes as verdades que conhecemos desde que compreendamos os termos que as exprimem. É o que o Filósofo (Últimos Analíticos, I, 3) atribui aos primeiros princípios da demonstração. De fato, quando sabemos o significado de todo o significado da parte, sabemos, de imediato, que o todo é maior que a parte. Ora, desde que tenhamos compreendido o sentido da palavra "Deus", estabelece-se, de imediato, que Deus existe. De fato, essa palavra designa uma coisa de tal ordem que não podemos conceber algo que lhe seja maior. Ora, o que existe na realidade e no pensamento é maior do que o que existe apenas no pensamento. Daí resulta que o objeto designado pela palavra Deus, que existe no pensamento, desde que se compreenda a palavra, também existe na realidade. Por conseguinte, a existência de Deus é evidente.
3. - Além disso, a existência da verdade é evidente. Pois, aquele que nega a existência da verdade, concorda que a verdade não existe. Mas se a verdade não existe, a não-existência da verdade é uma afirmação verdadeira. E se alguma coisa há de verdadeira, a verdade existe. Ora, Deus é a própria verdade, segundo o que diz São João, 14, 6: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida". Por conseguinte, a existência de Deus é evidente.
Mas, em compensação, ninguém pode pensar o oposto do que é evidente, conforme nos mostra o Filósofo (Metafísica, 4 e Últimos Analíticos, I, 10), a propósito dos primeiros princípios da demonstração. Ora, o oposto da existência de Deus pode ser pensado, conforme diz o salmo 52, 1: "O insensato diz em seu coração que não há Deus". Logo, a existência de Deus não é evidente.
Resposta - Temos duas maneiras para dizer que uma coisa é evidente. Ela o pode ser em si mesma e não por nós; ela o pode ser em si mesma e por nós. De fato, uma proposição é evidente quanto o atributo está incluído no sujeito, por exemplo: o homem é um animal. Animal, de fato, pertence à noção de homem. Se, portanto, todos sabem o que são o sujeito e o atributo de uma proposição, essa proposição será conhecida de todos. É verdadeiro, pelos princípios das demonstrações, que os termos são coisas gerais que todos conhecem, como o ser e o não-ser, o todo e a parte, etc. Mas, se alguns não sabem o que são o atributo e o sujeito de uma proposição, é certo que a proposição será evidente em si mesma, mas não para aqueles que ignoram o que são sujeito e atributo. É por isso que Boécio diz: "Certos juízos só são conhecidos pelos sábios, por exemplo, aquele segundo o qual os seres incorpóreos não estão num mesmo lugar". Por conseguinte, eu afirmo que a proposição "Deus é", considerada em si mesma, é evidente por si mesma, uma vez que o atributo é idêntico ao sujeito. Deus, de fato, é seu ser. Mas como não sabemos o que é Deus, ela não é evidente para nós; tem necessidade de ser demonstrada pelas coisas que, menos conhecidas na realidade, o são mais para nós, isto é, pelos efeitos.
A primeira objeção devemos responder que, em estado vago e confuso, o conhecimento da existência é naturalmente inato em nós, uma vez que Deus é a felicidade do homem. De fato, o homem deseja naturalmente a felicidade e, aquilo que ele deseja naturalmente, ele conhece naturalmente. Mas isto não é, propriamente falando, conhecer a existência de Deus; exatamente como se pudéssemos saber que alguém chega, sem conhecer Pedro, quando é o próprio Pedro que chega. Muitos, de fato, colocam o supremo bem do homem nas riquezas, outros o colocam nos prazeres, outros alhures.
À segunda, podemos responder que aquele que ouve pronunciar a palavra Deus pode ignorar que essa palavra designa uma coisa tal que não se possa conceber algo que lhe seja maior. Alguns, com efeito, acreditaram que Deus fosse um corpo. Mesmo que sustentemos que todos entendem a palavra Deus nesse sentido, isto é, no sentido de uma coisa tal que não se possa conceber algo que lhe seja maior, isto não significa que todos representam a existência dessa coisa como real e não como representação da inteligência. E não se pode concluir sua existência real salvo se se admite que essa coisa existe realmente. Ora, isso não é admitido por aqueles que rejeitam a existência de Deus.
À terceira, devemos responder que a existência da verdade indeterminada é evidente por si mesma, mas que a existência da primeira verdade não é evidente em si mesma para nós.
A Vontade Quer Necessariamente Tudo o Que Deseja?
Dificuldades: Isso parece exato; de fato Dionísio diz que o mal está fora do objeto da vontade. Por conseguinte, ela tende necessariamente para o bem que lhe é proposto.
O objeto está para a vontade assim como o motor está para o móvel. Ora, o movimento do móvel segue, necessariamente, o impulso do motor. Por conseguinte, o objeto da vontade move-a necessariamente. Assim como o que é conhecido pelos sentidos é objeto da afetividade sensível, assim o que é conhecido pela inteligência é objeto do apetite intelectual ou vontade. Mas o objeto dos sentidos move, necessariamente, a afetividade sensível; segundo Santo Agostinho, os animais são arrastados pelo que vêem. Por conseguinte, parece que o objeto conhecido pela inteligência move a vontade necessariamente.
Entretanto: Santo Agostinho diz que a vontade é a faculdade pela qual pecamos ou vivemos segundo a justiça. Desse modo, ela é capaz de desejar coisas contrárias. Por conseguinte, ela não quer, por necessidade, tudo o que deseja.
Conclusão: Eis como podemos prová-lo. Assim como a inteligência adere, necessária e naturalmente, aos primeiros princípios, assim a vontade adere ao fim último. Ora, existem verdades que não possuem relação necessária com os primeiros princípios; tais são as proposições contingentes cuja negação não implica na negação desses princípios. A inteligência não concede, necessariamente, seu assentimento a tais verdades. Mas existem proposições necessárias que possuem esta relação necessária; tais são as conclusões demonstrativas cuja negação significa a negação dos princípios. A estas últimas a inteligência concede seu assentimento necessariamente, na medida em que reconhece a conexão das conclusões com os princípios por meio de uma demonstração. Faltando isto, o assentimento não é necessário.
O mesmo acontece com relação à vontade. Existem bens particulares que não possuem relação necessária com a felicidade, visto que se pode ser feliz sem eles. A tais bens, a vontade não adere necessariamente. Mas existem outros bens que implicam nessa relação; são aqueles pelos quais o homem adere a Deus, pois é só nele que se acha a verdadeira felicidade. Todavia, antes que essa conexão seja demonstrada como necessária pela certeza da visão divina, a vontade não adere necessariamente a Deus nem aos bens que a ele se relacionam. Mas a vontade daquele que vê Deus em sua essência adere necessariamente a Ele, do mesmo modo como agora nós queremos, necessariamente, ser felizes. Por conseguinte, é evidente que a vontade não quer, por necessidade, tudo o que deseja.
Solução: A vontade não pode tender para nenhum objeto, se este não se lhe apresenta como um bem. Mas como existe uma infinidade de bens, ela não é necessariamente determinada por um só.
A causa motora produz, necessariamente, o movimento do móvel, no caso em que a força dessa causa ultrapassa de tal maneira o móvel que toda capacidade que este tem de agir fica submetida à causa. Mas a capacidade da vontade, na medida em que se dirige para o bem universal e perfeito, não pode estar inteiramente subordinada a qualquer bem particular. Desse modo, ela não é, necessariamente, acionada por ele.

FILOSOFIA – PERÍODO MODERNO

Transcendência Cristã e Imanência Moderna

Achamos a característica específica do pensamento clássico na solução dualista do problema metafísico. Existem o mundo e Deus, mas são separados entre si: Deus não conhece, não cria, não governa o mundo. Tal dualismo não será negado, mas desenvolvido no pensamento cristão mediante o conceito de criação, em virtude da qual é ainda afirmada a realidade e a distinção entre o mundo e Deus, mas Deus é feito criador e regedor do mundo: o mundo não pode ter explicação a não ser em um Deus que transcende o mundo. O pensamento moderno, ao contrário, finaliza em uma concepção monista-imanentista do mundo e da vida: não somente Deus e o mundo são a mesma coisa, mas Deus é resolvido num mundo natural e humano. Consequentemente, não se pode mais falar em transcendência de valores teoréticos e morais, religiosos e políticos, pois "ser" e "dever ser" são a mesma coisa, o "dever ser" coincide com o "ser".

É evidente que a passagem da concepção dualista (clássica) à concepção teísta (cristã) é um desenvolvimento lógico, que se manifesta especulativamente no desenvolvimento tomista de Aristóteles. Pelo contrário, a passagem da concepção tradicional, teísta, à concepção moderna, imanentista, representa teoricamente uma ruptura. O pensamento moderno, todavia, especialmente o pensamento da Renascença, tem seu precedente lógico no panteísmo neoplatônico, que - após ter-se afirmado como extrema expressão do pensamento clássico - permanece através de todo o pensamento cristão em tentativas mais ou menos ortodoxas de síntese entre cristianismo e neoplatonismo (Pseudo Dionísio, Scoto Erígena, Mestre Eckart, etc.). E, por outra parte, o pensamento tradicional, helênico-escolástico, aristotélico-tomista, encontrará nos grandes valores da civilização moderna (a ciência natural, a técnica, a história, a política) sua integração lógica.
Não se julgue demolir a filosofia medieval, a metafísica tomista, opondo à sua elementar e fantástica ciência da natureza a ciência moderna com suas grandes aplicações técnicas, pois não é a ciência natural - capaz apenas de resolver os problemas da vida material, mas incapaz de resolver os problemas máximos da vida, espirituais, morais, religiosos - que pode decidir do valor de uma civilização. E a ciência natural da Idade Média não está absolutamente em conexão com o pensamento filosófico medieval; o próprio Tomás de Aquino julgava logicamente que a filosofia podia ser uma só, em adequação à realidade, ao passo que admitia a possibilidade de uma ciência natural diversa daquela do seu tempo. Além disso, se, de fato, a escolástica pós-tomista, decadente, alimentou suspeitas e combateu longamente contra a nascente ciência moderna, a favor da velha ciência natural aristotélica, a nova escolástica, isto é, o novo tomismo, não teve dificuldade alguma em aceitar toda a ciência natural moderna, e, como tal, porquanto esta representa uma valor infra-filosófico, e, como tal, indiferente à filosofia, à metafísica.
O valor da ciência moderna não é teorético, especulativo, metafísico, mas empírico e técnico. Tal era também o pensamento do grande fundador da ciência moderna, Galileu Galilei, que afirmava ser o objeto da ciência não as essências metafísicas das coisas, e sim os fenômenos naturais, experimentalmente provados e matematicamente conexos. E destes conhecimentos experimentais e matemáticos de fenômenos naturais derivava ele as primeiras grandes aplicações técnicas da ciência moderna. Aplicações técnicas que possuem também um valor espiritual, o do domínio natural do homem sobre a natureza: contanto que o homem reconheça, naturalmente, acima de si e de tudo, Deus.
O que dissemos da ciência, podemos dizê-lo analogamente da história. A historiografia medieval é, sem dúvida, insuficiente, ingênua, descuidada, pois, era escasso na mentalidade medieval o senso da concretidade e da individualidade, sem o qual não é possível a história verdadeira e própria. Mas a concepção medieval da história, que é a cristã e já teve a sua expressão clássica na Cidade de Deus de Agostinho é perfeitamente conciliável com a indagação histórica moderna, devendo esta última fornecer à primeira a sua rica contribuição de fatos, o seu profundo senso histórico, o seu interesse pela concretidade.
Costuma-se inculpar a civilização medieval por ter aniquilado o estado nacional concreto, orgânico, para construir uma unidade política grandiosa, mas abstrata, uma utopia universalista, como o Sacro Império Romano. No entanto, isto não foi senão uma expressão exterior daquela estrutura profunda que se chama a cristandade: equivalente civil da igreja católica, capaz de abraçar os mais diversos organismos políticos. Nem se deve esquecer que precisamente na comuna medieval se encontra a primeira origem do estado moderno, interiormente organizado e politicamente soberano. E é na Idade Média que se formam as grandes nações modernas. Noutras palavras, é na Idade Média que se formou o Estado distinto da Igreja, mas não leigo, imanentista, ateu, bem como o laicado distinto do clero e organizado civilmente em graus de corporações, mas cristão, católico, romano.
Poder-se-ia fazer notar que tal efetiva distinção e relativa autonomia do Estado (e do laicado) com respeito à Igreja (e ao clero) foram alcançadas através de uma longa luta contra o predomínio e a invasão destes últimos. Mas cumpre ter presente que, na alta Idade Média, no período bárbaro, nos séculos de ferro, a igreja romana e o clero católico desempenharam funções também leigas e profanas, como, por exemplo, a instrução cultural, a assistência hospitalar, e até a agricultura, a indústria, o comércio, as comunicações, etc., pelo fato de que ninguém estava em condições de fazê-lo. E é devido a isso que a civilização não pereceu, e foi conservada para a idade moderna. Aliás, a Igreja católica estava apta e disposta - a prescindir-se das intenções dos homens e de suas fraquezas fatais - a livrar-se desses cuidados estranhos gravosos e perigosos para o seu ministério transcendente e sobrenatural, quando os homens e os tempos estivessem maduros. Basta lembrar, a este respeito, a atitude da Igreja, praticamente liberal, compreensiva e ativa com respeito ao Estado, desde os comunas medievais até às grandes monarquias européias do século XVII e ainda além.

Os Precedentes do Pensamento Moderno

Dada a ruptura lógica entre o pensamento tradicional, teísta, e o pensamento moderno, imanentista, não se podem achar causas racionais dessa mudança, mas apenas práticas e morais. Em seguida virá a justificação teórica da nova atitude espiritual, que será constituída por todo o pensamento moderno em seu desenvolvimento lógico.
O grandioso edifício ideal da Idade Média, em que a religião e civilização, teologia e filosofia, Igreja e Estado, clero e laicado, estavam harmonizados na transcendente unidade cristã, foi, de fato, destruído pelo humanismo imanentista, que constitui o espírito característico do pensamento moderno. Este pensamento começa com a prevalência dada aos interesses e aos ideais materiais e terrenos, com o consequente esquecimento dos interesses e ideais espirituais e religiosos; e torna-se completo com a justificação dos primeiros e a exclusão dos segundos. É precisamente o que acontece com os homens inteiramente entregues aos cuidados mundanos: primeiro se esquecem das coisas transcendentes, e, em seguida, querendo ser coerentes, negam-nas.
Entretanto, se não há causas lógicas do pensamento moderno, há, porém, precedentes especulativos, que, valorizados pela nova atitude espiritual, se tornarão fontes especulativas do próprio pensamento moderno. Tais precedentes especulativos podem ser resumidos desta forma: o panteísmo neoplatônico, o aristotelismo averroísta e o nominalismo ocamista, os quais foram-se afirmando contemporaneamente a uma gradual decadência do genuíno pensamento escolástico (racional, teísta, cristão), especialmente tomista, com que se acham em oposição. E tal decadência cultural é acompanhada, por sua vez, pela decadência da Igreja e do Papado - o exílio avinhonês e o cisma do ocidente.
O panteísmo neoplatônico teve a sua primeira grande manifestação, no âmbito do cristianismo, com Scoto Erígena. Tentará afirmar-se de novo na própria época de Tomás de Aquino com Mestre Eckart, o iniciador da mística alemã. E receberá uma nova original elaboração do Humanismo com Nicolau de Cusa, que não pouco deve aos precedentes; e, sobretudo, com Giordano Bruno, o maior pensador da Renascença, o qual depende, por sua vez, de Nicolau de Cusa. O averroísmo latino afirmara na Idade Média a sua famosa doutrina das duas verdades: o que não é verdadeiro em filosofia pode ser verdadeiro em religião e vice-versa. Em uma idade cristã, como a Idade Média, a afirmação religiosa podia Ter a prevalência sobre a negação filosófica; obscurecendo-se a fé, como na Renascença, devia prevalecer uma concepção anti-cristã, aristotélica ou não. O occamismo marca a conclusão lógica da decadente escolástica pós-tomista, apesar de seus partidários se comprazerem em denominá-la via modernorum. E, ao mesmo tempo, apresenta um elemento fundamental da filosofia moderna com o seu empirismo e nominalismo. Nicolau de Cusa, Telésio, Bruno, Campanella serão também herdeiros do nominalismo empirista de Occam, que se combina, nos sistemas deles, com uma metafísica aventurosa de cunho particularmente neoplatônico.
Como é sabido, segundo Occam, o conhecimento humano é reduzido ao conhecimento sensível do singular e, portanto, ao nominalismo. Consequência lógica e consciente é a destruição da metafísica, que transcende o mundo empírico, sensível, bem como da ciência, que é entretecida de conceitos, impossíveis de nominalismo, de sorte que se esvai da teodicéia, porquanto não se pode provar racionalmente a existência de Deus, nem conhecer a sua natureza; e a psicologia racional, pelo mesmo motivo. E, consequentemente, torna-se impossível a ética racional, porque - sendo desconhecida a essência de Deus e destruída a do homem - a moral fica reduzida a um conjunto de preceitos arbitrários de Deus, que o homem tem que observar por fé. Occam procurará salvar-se do ceticismo - conclusão do seu sistema, com todas as consequências práticas - mediante a fé. Entretanto é uma posição insustentável, porquanto a fé - não podendo mais ser um racional obséquio - torna-se uma adesão cega. Em época de religiosidade ainda viva, esse fideísmo ocamista pôde praticamente ficar de pé. Mas ruirá quando a fé vier a faltar, deixando o terreno livre ao empirismo, ao naturalismo, ao nominalismo, ao ceticismo, imanentes ao ocamismo, e que constituirão tão grande parte do pensamento da Renascença, da Reforma e também do pensamento posterior.

Os Períodos do Pensamento Moderno

Este grande movimento especulativo, que é o pensamento moderno, naturalmente não se manifesta na sua significação imanentista senão na plenitude do seu desenvolvimento. Portanto, manifesta-se através de uma série de períodos, que se podem historicamente (e dialeticamente) indicar assim:
1. - Antes de tudo a Renascença, em que a concepção imanentista, humanista ou naturalista, é potentemente afirmada e vivida. Trata-se, porém, de uma afirmação ainda não plenamente consciente e sistemática, em que o novo é misturado com o velho. Este, muitas vezes, prevalece, ao menos na exterioridade da forma lógica e literária. A Renascença é preparada pelo Humanismo, e tem como seu equivalente religioso a reforma protestante.
2. - A este primeiro período do pensamento moderno, que, substancialmente, abrange os séculos XV e XVI, se seguem o racionalismo e o empirismo, que abrangem os séculos XVII e XVIII. Após a revolução renascentista e protestante, sente-se a necessidade de uma séria indagação crítica, não para demolir aquelas intuições revolucionárias, mas, ao contrário, para dar-lhes uma sistematização lógica. É o que fará especialmente o racionalismo em relação ao conhecimento racional.
3. - E outro tanto fará e empirismo em relação ao conhecimento sensível. Empirismo e racionalismo são tendências especulativas, gnosiológicas, opostas entre si, como a gnosiologia sensista está certamente em oposição à gnosiologia intelectualista. Entretanto, concordam em um comum fenomenismo, pois, em ambos, o sujeito é isolado do ser e fechado no mundo das suas representações. Não se conhecem as coisas e sim o nosso conhecimento das coisas.
4. - Empirismo e racionalismo, após uma lenta, gradual e silenciosa maturação, encontrarão uma saída prática, social, política, moral, religiosa no iluminismo e, portanto, na revolução francesa (Segunda metade do século XVIII); esta representa a concreta realização do pensamento moderno na civilização moderna. Esse movimento começa na Inglaterra, triunfa na França e se espalha, em seguida, na Alemanha e na Itália.

Características Gerais

A Renascença é uma poderosa afirmação, particularmente no campo da prática, de humanismo e de imanentismo, o que é manifestado pelo seu individualismo, pelo seu estetismo, pelo seu ardente interesse pelo mundo a conquistar, dominar, gozar com meios humanos; pelo seu naturalismo que diviniza o homem material - como já aconteceu no paganismo antigo, para o qual o Humanismo, de fato, apela, e de que parece um retorno. Entretanto, falta ao Humanismo moderno a espontaneidade e a serenidade do paganismo antigo: o Humanismo moderno não descansará em um tranqüilo gozo da vida, mas procurará alimento no ativismo agitado e sem meta, característico da idade moderna.
O Humanismo pode, com razão, definir-se pela palavra: o homem potenciado, celebrado, exaltado até à divindade, livre de si mesmo, dominador da natureza, senhor do mundo. É, logo, um paganismo ainda mais radical que o antigo, porquanto espiritual e interior. Dar uma documentação formal desse caráter pagão, imanentista, do Humanismo e da Renascença não é coisa fácil, pois trata-se de um período inicial, em que se entretecem motivos multíplices, e, sobretudo, o velho persiste ao lado do novo, dando origem àquela duplicidade especulativa e prática, tão característica dos homens da época.
Mas o início do Humanismo e da Renascença é rico de todos os germes que se desenvolverão no sucessivo período moderno, imanentista, em que se poderá claramente conhecer a árvore pelos frutos. É uma multiplicidade de motivos indiscutivelmente dominada pelo espírito panteísta do neoplatonismo, que atravessou toda a Idade Média; entretanto, na Idade Média, tal espírito era corrigido, religiosamente, pela teologia católica e, racionalmente, pela escolástica tomista. É uma dualidade composta de velho e de novo, em que não será difícil separar o elemento interior do elemento exterior: se se considerar, em geral, o ideal da vida daquela época, que chamava virtude a força, e enaltecia não o Pobrezinho de Assis e sim o Príncipe Valentino; se se tiver presente Nicolau Machiavelli, que - sem possuir uma metafísica consciente - está persuadido de que o Estado, mera obra do homem, é o vértice da humanidade, estando acima da religião e da moral transcendente, e prefere o paganismo ao cristianismo; se se pensar em Giordano Bruno, o maior filósofo da época, o qual parece reconhecer a obscuridade e a incoerência do seu pensamento, mas tem consciência de que a sua doutrina - racionalista, monista e humanista - é um crepúsculo preludiando o dia e não a noite.
Essa é a alma, o significado, não o valor, do Humanismo e da Renascença: uma alma pagã. Não há, ao lado do humanismo pagão, um humanismo cristão, que seria uma contradição em termos. Esses elementos são essencialmente formais e estéticos porque a grande valorização cristã da civilização clássica - do pensamento grego e do jus romano - era já um fato consumado. E os elementos novos do humanismo - a ciência, a técnica, a história, a política - não se podem dizer imanentistas antes que cristãos, pois, em si mesmos, são infrafilosóficos, e, portanto, indiferentes a qualquer concepção da realidade.
O renascimento cristão, a unidade real e potencial dos grandes valores da civilização no valor sumo da religião, não é obra dos séculos XV e XVI, mas do século que se abre com Inocêncio III e se encerra com Dante, e viu Francisco de Assis e Antonio de Lisboa, Domingos de Gusmão e Tomás de Aquino.

O Renovamento das Antigas Escolas Filosóficas

Uma das manifestações características da Renascença é o renovamento das antigas escolas filosóficas, clássicas, gregas. Na Idade Média o pensamento clássico foi bem conhecido e valorizado. No entanto, tal conhecimento e valorização diziam respeito aos maiores filósofos gregos, em especial a Aristóteles.
Na Renascença, ao contrário, volta-se à sancta antiquitas, em oposição ao espírito cristão. E valorizam-se as antigas escolas filosóficas, realçando-lhes o conteúdo de humanidade, presente em todas elas, não obstante a variedade de suas orientações. Naturalmente não são, nem podiam ser, as escolas filosóficas clássicas em sua espontaneidade original, pois, entre a classicidade e a Renascença, medeiam quinze séculos, profundamente influenciados pela mensagem cristã. E, após o aparecimento da Cruz, já não é mais possível o retorno à serenidade clássica de Aristóteles ou ao ascetismo imanentista dos estóicos.
Na Renascença são representadas, mais ou menos, todas as escolas filosóficas antigas: o platonismo, o aristotelismo, o estoicismo, o epicurismo, o ceticismo e o ecletismo. Especialmente as duas primeiras e, entre estas, precipuamente a primeira. O aristotelismo da Renascença exclui, naturalmente, a interpretação de Aristóteles dada por Tomás de Aquino, e sustenta ou a interpretação naturalista de Alexandre de Afrodísia, ou a panteísta de Averroés. O platonismo é, mais propriamente, neoplatonismo: já porque assim se tinha fixado na antigüidade e neste sentido influenciara toda a Idade Média (pseudo Dionísio Areopagita, Scoto Erígena, Mestre Eckart); já porque a sua fundamental concepção panteísta e o seu potenciamento do espírito humano podiam melhor corresponder ao imanentismo e humanismo da Renascença.

O Platonismo

O ídolo da Renascença é Platão: artista e dialético, teórico do amor e da beleza, iniciador da ciência matemática da natureza. Em 1404 Leonardo Bruni aretino (1369-1440) publicava a primeira tradução parcial de Platão, iniciando, destarte, a renascença platônica. Em 1429 o camaldulense frei Ambrósio Traversari, de volta de Constantinopla, levava para a Itália o conjunto completo dos escritos platônicos.
Entretanto foi o Concílio de Florença (1439) que deu um impulso decisivo aos estudos platônicos na Itália ¾ bem como aos estudos aristotélicos e dos filósofos clássicos, em geral. Esse Concílio foi convocado para a união da igreja grega com a igreja latina, e chamou para a Itália vários doutores orientais, conhecedores profundos de Platão. Outros vieram pouco depois, devido à queda de Constantinopla (1453) em mãos dos turcos. Famoso é Jorge Gemistos Pleton (1355-1450), autor da obra Sobre a Diferença da Filosofia Platônica e Aristotélica, que, realmente, é uma polêmica antiaristotélica.
Esse escrito provocou uma resposta violenta ao aristotélico Jorge de Trebizonda (Comparatio Platonis et Aristotelis). Este filósofo - apelando também para Tomás de Aquino - sustenta a superioridade de Aristóteles sobre Platão pelo seu espírito científico, pela sua doutrina em torno de Deus e da alma, e pela consequente possibilidade de concordar a sua filosofia com o cristianismo.
Da parte platônica, replicou contra Jorge de Trebizonda o seu concidadão Basílio Bessarione (1403-1472) com o escrito In calumniatorem Platonis. Bessarione, eminente prelado da igreja oriental, veio para a Itália com o séqüito do imperador João VII Paleólogo, para tratar da unificação da igreja grega com a igreja latina. Foi feito cardeal pelo Papa Eugênio IV e permaneceu na Itália, cooperando eficazmente para o incremento do ressuscitado helenismo.
Depois desse platonismo de importação oriental, na Segunda metade do século XV surge e firma-se um platonismo italiano. O centro foi precisamente Florença, onde foi celebrado o famoso Concílio. Seu principal representante foi Marsílio Ficino, animador da célebre academia platônica florentina. Esta academia nasceu graças a um cenáculo de literatos, artistas e pensadores, amigos da casa De Médicis. Fizeram parte deste cenáculo Poliziano, Pulci, João Pico della Mirandola e o próprio Lourenço, o Magnífico.
Marcílio Ficino nasceu em 1433 em Figline Valdarno. Protegido por Cosme De Médices, que o presenteou com uma Quinta, onde teve sua sede a academia platônica, pode consagrar toda a sua vida aos prediletos estudos filosóficos. Em 1473 foi ordenado padre e a sua vida foi muito austera no meio de Florença do século XV. Faleceu em 1499.
Sua atividade principal foi traduzir. Traduziu elegantemente, para o latim, Platão (1477) e Plotino (1485), além de outros neoplatônicos. Expôs o seu pensamento em uma grande obra (Theologia platonica de immortalitate animorum - 1491), em que procura concordar o platonismo, de que era entusiasta, com o cristianismo, em que acreditava seriamente. Entretanto não foi um metafísico, mas um eclético e suas finalidades eram morais. Sua ideia animadora é a exaltação do homem como microcosmo, síntese do universo: conceito antigo, neoplatônico, mas que teve no humanismo do Renascimento um valor e um significado particulares. Outra ideia sua inspiradora é o conceito de uma continuidade do desenvolvimento religioso, que vai desde os antigos sábios e filósofos - Zoroastro, Orfeu, Pitágoras, Platão - até o cristianismo: expressão do universalismo religioso da Renascença.
Depois de Marsílio Ficino, o mais famoso platônico pode ser considerado João Pico della Mirandolla (1463-1494), autor de De dignitate hominis, que professa verdadeiramente um ecletismo baseado no platonismo e no cabalismo. Dotado da mais vasta e heterogênea cultura, após várias peregrinações, estabeleceu-se em Florença junto de Lourenço, o Magnífico. Aí entrou em contato com Marsílio Ficino, que influiu no seu temperamento exuberante e passional, equilibrando-o filosófica e religiosamente. "Blasonava de poder disputar de omni rescibili - escreve Franca - e foi tido por seus contemporâneos como um prodígio de memória. Aos 18 anos sabia 22 línguas"!

O Aristotelismo

Não é sempre fácil distinguir o aristotelismo do platonismo da Renascença, porquanto, frequentemente, aparecem confusos no sincretismo neoplatônico, que é a tendência especulativa dominante na época. Também o aristotelismo, como o platonismo, teve impulso, graças aos sábios gregos vindos para a Itália, tradutores de Aristóteles e dos seus comentadores, entre os quais lembramos, no século XV, Teodoro de Gaza e o já mencionado Jorge de Trebizonda.
Como já foi dito, o aristotelismo da Renascença se distingue em duas correntes principais: a naturalista inspirando-se em Alexandre Afrodísio, e a panteísta-neoplatônica, inspirando-se em Averroés, ambas contrárias à interpretação tomista-cristã. Prevalece a escola alexandrina, cujo imanentismo naturalista é mais conforme ao espírito do Renascimento. A escola averroísta, entretanto, considerando o intelecto humano como sendo a atividade de uma essência transcendente e divina, contrasta o humanismo imanentista da mesma Renascença.
O mais famoso entre esses novos aristotélicos é Pedro Pomponazzi , alexandrista, nascido em Mântua em 1462, professor de filosofia nas universidades de Pádua, Ferrara e Bolonha, onde faleceu em 1525. É célebre o seu opúsculo Sobre a Imortalidade da Alma, publicado em Bolonha em 1516. Neste opúsculo conclui em favor da mortalidade da alma, sustentando que esta realiza o seu fim último na vida terrena. Para conciliar, pois, esse seu racionalismo com a religião cristã, recorre a certas distinções que relembram a velha teoria averroísta das duas verdades: a religião é, no fundo, justificada como sendo a filosofia do vulgo, para finalidade prática e pedagógica.
Respondiam a Pomponazzi, Nifo (averroísta) e Contarini (tomista) com dois ensaios tendo o mesmo título (Sobre a Imortalidade da Alma); e Pomponazzi replica como uma Apologia (contra Contarini) e com um Defensorium (contra Nifo). Nem a morte pôs termo àquela polêmica.
O aristotelismo teve, na Renascença, uma fortuna especial no campo da estética, da poética, em torno de que se disputou longa e fervidamente, em especial por parte dos literatos. Parte-se da Poética de Aristóteles, cuja primeira tradução remonta ao ano de 1498, por obra de Jorge Valla. Aristóteles sustentara ser a arte - bem como a história - uma imitação da realidade. Entretanto, a arte é superior à história, porquanto tem como objeto o universal, o necessário, a essência das coisas; ao passo que a história tem como objeto o particular, o contingente, o acidental. Em torno deste tema se travam as disputas mais variadas.

O Estoicismo

O espírito autônomo da Renascença devia provar viva simpatia para o sábio estóico, impassível, dominador das coisas e dos eventos. O estoicismo não foi apenas objeto de admiração cultural, literária, mas tornou-se ideal de vida moral em lugar do cristianismo, escola de energia e de conforto.
O estoicismo da Renascença, porém, é preso pela ação, diversamente do estoicismo clássico, negador da ação, considerada causa de perturbação. O estoicismo renascentista enaltece o homem, a vida, o mundo, contra a concepção transcendente e ascética cristã. Seja como for, a moral estóica, mais ou menos ajustada ao cristianismo, desfrutou de grande favor junto dos filósofos das mais diferentes tendências nos séculos XVI e XVII. O estóico mais notável da Renascença foi o belga Justo Lípsio (1547-1606), professor em Lovaina, autor de De Constantia, e de Manuductio ad stoicam philosophiam.

O Epicurismo

O epicurismo, melhor do que o estoicismo, condizia com o espírito humanista, imanentista e mundano da Renascença, em especial na vida gozadora e requintada, voluptuosa e artística da cortes esplêndidas da época, e também na literatura e no pensamento. João Boccaccio, autor do Decamerone, em o século XIV, e Lourenço, o Magnífico, no século XV, são duas expressões práticas desse espírito epicurista.

O expoente mais notável dessa tendência epicurista é Lourenço Valla (1407-1459), autor do famoso livro De voluptate ac de vero bono, onde o autor compara a moral estóica e a epicurista, simpatizando, naturalmente, com esta última. Quanto à vida futura, Valla oscila entre a sua negação e uma representação no sentido hedonista, e tente, uma certa conciliação entre epicurismo e cristianismo; mas fica decididamente hostil ao ascetismo, quer cristão, quer estóico.

O Ceticismo

Também o ceticismo da Renascença foi inspirado pelo ceticismo clássico. E também este novo ceticismo renascentista surgiu mais por fins práticos do que por motivos teoréticos. Os motivos mais específicos que deram origem ao ceticismo da Renascença foram: a sede do individual, da concretidade; a paixão pela observação detalhada própria do pensamento moderno em geral, em oposição ao pensamento antigo e medieval, voltados para o universo e o abstrato; a variedade e o contraste das diversas escolas e tradições (filosóficas e religiosas); a mentalidade literária da época, apaixonada pela estética, e incapaz de levantar grandes construções sistemáticas; a religiosidade persistente, que julgava salvar a fé deprimindo a razão, tendo esta atacado, frequente e violentamente, a religião; o contraste entre a exigência religiosa e o paganismo da vida que surgia de novo. O ceticismo da Renascença tem seus maiores expoentes fora da Itália, e o maior é Montaigne.
Miguel de Montaigne (1533-1592), francês, é o autor dos famosos Essais: "Que sais-je"? O seu interesse é voltado para o estudo do eu, não como substância espiritual, e sim como caráter, centro unitário das mais variadas experiências humanas. Tudo o mais lhe parece incerto: os sentidos enganam-nos, a razão perde-se num labirinto infindo, a moral varia conforme os tempos e os lugares. Daí a necessidade da fé, mas de uma fé em que Deus serve ao homem. Este - como já pensavam os céticos antigos - atinge a paz abandonando-se à diretriz da natureza. O que especialmente emerge em Montaigne é o individualismo da Renascença.
Quando Esparta bloqueou e derrotou Atenas em fins do século V a.C., a supremacia política saiu das mãos da mãe da filosofia e da arte gregas, e o vigor e a independência da inteligência ateniense decaíram. Quando, em 399 a.C., Sócrates foi executado, a alma de Atenas morreu com ele, sobrevivendo apenas em seu orgulhoso discípulo, Platão. E quando Felipe da Macedônia derrotou os atenienses em Queronéia em 388 a.C. e Alexandre incendiou a grande cidade de Tebas por completo três anos depois, nem mesmo o fato de a casa de Píndaro ter sido ostensivamente poupada conseguiu encobrir a realidade de que a independência ateniense, no que se referia a governo e pensamento, estava destruída de maneira irrevogável. O domínio da filosofia grega pelo macedônio Aristóteles refletia a sujeição política da Grécia pelos povos viris e mais jovens do norte.
A morte de Alexandre (323 a.C.) acelerou esse processo de decadência. O menino-imperador, ainda que continuasse bárbaro depois de toda educação recebida de Aristóteles, havia aprendido a reverenciar a rica cultura da Grécia e sonhara em divulgar essa cultura pelo Oriente, na onda de seus exércitos vitoriosos. O desenvolvimento do comércio grego e a multiplicação dos postos de comercialização gregos por toda a Ásia Menor haviam proporcionado uma base econômica para a unificação daquela região como parte de um império helênico; e Alexandre tinha a esperança de que, a partir daqueles movimentados postos, tanto o pensamento grego como os produtos gregos fossem irradiar-se e conquistar o mundo. Mas ele subestimara a inércia e a resistência da mentalidade oriental, e a massa e a profundidade da cultura oriental. Não passava de um sonho juvenil, afinal, supor que uma civilização tão imatura e instável quanto a da Grécia pudesse ser imposta a uma civilização incomensuravelmente mais dufundida e enraizada nas mais veneráveis tradições. A quantidade da Ásia mostrou-se demasiada para a qualidade da Grécia. O próprio Alexandre, na hora de seu triunfo, foi conquistado pela alma do Oriente; casou-se (dentre várias damas) com a filha de Dario; adotou o diadema e o manto de gala persas; introduziu na Europa a ideia oriental do divino direito dos reis; e por fim assombrou uma Grécia cética ao anunciar, num magnífico estilo oriental, que ele era um deus. A Grécia caiu na gargalhada; e Alexandre bebeu até morrer.
Essa sultil infusão de uma alma asiática no corpo fatigado do senhor dos gregos foi seguida rapidamente da abundante entrada de cultos e fés orientais na Grécia, pelas mesmas linhas de comunicação que o jovem conquistador havia aberto; os diques rompidos deixaram o oceano do pensamento ocidental inundar as terras baixas da ainda adolescente mente européia. As crenças místicas e supersticiosas que haviam adquirido raízes entre os povos mais pobres de Hélade foram reforçadas e divulgadas; e o espírito oriental de apatia e resignação encontrou um solo pronto na Grécia decadente e abatida. A introdução da filosofia estóica em Atenas, pelo mercador fenício Zenon (cerca de 310 a.C.), foi apenas uma das inúmeras infiltrações orientais. Tanto o estoicismo como o epicurismo - a apática aceitação da derrota e o esforço para esquecer a derrota nos braços do prazer - eram teorias sobre como o indivíduo ainda poderia ser feliz, embora subjugado ou escravizado; precisamente como o pessimista estoicismo oriental de Schopenhauer e o desalentado epicurismo de Renan foram, no século XIX, os símbolos de uma Revolução despedaçada e uma França quebrada.
Não que essas antíteses naturais da teoria ética fossem de todo novas para a Grécia. Nós a encontramos no sombrio Heráclito e no "filósofo que ri", Demócrito; e vemos os discípulos de Sócrates dividindo-se em cínicos e cirenaicos sob a chefia de Antístenes e Aristipo e exaltando, uma escola, a apatia, e a outra, a felicidade. No entanto, mesmo naquela época tratava-se de modos quase exóticos de pensamento: a Atenas imperial não aderiu a eles. Mas quando a Grécia havia visto Queronéia em sangue e Tebas em cinzas, passou a ouvir Diógenes; e quando a glória havia partido de Atenas, ela estava no ponto para Zenon e Epicuro.
Zenon ergueu sua filosofia da apatheia sobre um determinismo que um estóico posterior, Crisipo, achou difícil distinguir do fatalismo oriental. Quando Zenon, que não acreditava na escravidão, estava batendo num escravo seu por causa de algum delito, o escravo alegou como atenuante que, segundo a filosofia de seu senhor, ele tinha sido destinado, por toda a aternidade, a cometer aquela falta; ao que Zenon replicou, com a calma de um sábio, que, de acordo com a mesma filosofia, ele, Zenon, tinha sido destinado a bater nele por causa dela. Assim como Schopenhauer achava inútil a vontade individual lutar contra a vontade universal, os estóicos alegavam que a indiferença filosófica era a única atitude razoável para com uma vida na qual a luta pela existência está tão injustamente condenada a uma derrota inevitável. Se a vitória for inteiramente impossível, deve ser desdenhada. O segredo da paz não é tornar nossas realizações iguais aos nossos desejos, mas baixar nossos desejos ao nível de nossas realizações. "Se o que você possui lhe parece insuficiente, então, mesmo que você possua o mundo, ainda irá sentir-se infeliz", disse o estóico romano Sêneca (m. 65 d.C.).
Um princípio desses bradava aos céus pelo seu oposto, e Epicuro, embora tão estóico em vida quanto Zenon, forneceu-o. Epicuro, diz Fenelon, "comprou um belo jardim, que ele mesmo cultivava. Foi lá que instalou sua escola, e ali vivia uma vida tranqüila e agradável com seus discípulos, aos quais ensinava enquanto andava e trabalhava. (...) Era delicado e afável para com todos os homens... Afirmava que nada havia de mais nobre do que uma pessoa dedicar-se à filosofia". Seu ponto de partida é uma convicção de que a apatia é impossível, e que o prazer - embora não necessariamente o prazer sensual - é a única finalidade concebível, e perfeitamente legítima, da vida e da atividade. "A natureza faz com que cada organismo prefira o seu próprio bem a qualquer outro"; até mesmo o estóico sente um prazer sutil na renúncia. "Não devemos evitar os prazeres, mas selecioná-los." Epicuro, então, não é epicurista; ele exalta os prazeres do intelecto, mais do que os dos sentidos; previne contra os prazeres que excitem e disturbem a alma, à qual, ao contrário, deveriam acalmar e tranqülizar. No fim, propõe que se procure não o prazer no seu sentido usual, mas a ataraxia - tranqülidade, equanimidade, a paz do espírito; todos os quais oscilam à beira da "apatia" de Zenon.
Os romanos, quando foram saquear Heléia em 146 a.C., encontraram essas escolas rivais dividindo o campo filosófico; e, sem terem tempo nem sutileza para especulações, levaram de volta para Roma essas filosofias, juntamente com outros produtos do seu saque. Os grandes organizadores, tanto quanto os escravos inevitáveis, tendem a estados de espírito estóicos: é difícil ser senhor ou servo se a pessoa for sensível. Por isso, a filosofia que Roma adotava era, em sua maioria, da escola de Zenon, seja em Marco Aurélio, o imperador, ou em Epíteto, o escravo; e até Lucrécio difundia estoicamente o epicurismo (como o inglês de Heine, divertindo-se melancolicamente), e concluiu sua vigorosa pregação do prazer cometendo suicídio. Sua nobre epopéia, Sobre a Natureza das Coisas, acompanha Epicuro em condenar o prazer ao elogiá-lo sem entusiasmo. Quase contemporâneo de César e Pompéia, ele viveu em meio a torverlinhos e alarmes; sua pena nervosa está eternamente compondo orações à tranqülidade e à paz. Nós o imaginamos como uma alma tímida cuja juventude havia sido obscurecida por temores religiosos; porque ele nunca se cansa de dizer a seus leitores que não existe inferno, exceto aqui, e que não existem deuses, exceto deuses cavalheirescos, que vivem em um jardim de Epicuro nas nuvens e nunca se intrometem nos negócios dos homens. Ao crescente culto do céu e do inferno entre o povo de Roma, ele opõe um materialismo implacável. Alma e mente desenvolvem-se com o corpo, crescem com o seu crescimento, sofrem com seus sofrimentos, e morrem com a sua morte. Nada existe a não ser átomos, espaço e lei, e a lei das leis é a da evolução e da dissolução em toda parte
Coisa alguma perdura, mas todas as coisas fluem.
Fragmento se agarra a fragmento; as coisas crescem assim,
Até que ficamos conhecendo-as e lhes damos nomes. Aos poucos
Elas se dissolvem e já não são mais as coisas que conhecemos.
Englobados por átomos, caindo devagar ou depressa,
Vejo os sóis, vejo os sistemas erguerem
Suas formas; e até os sistemas e seus sóis
Irão voltar lentamente à eterna deriva.
Tu também, ó Terra - teus impérios, terras e mares -
A menor, com tuas estrelas, de todas as galáxias,
Englobada da deriva como aquelas, como aquelas também tu
Irás. Estás indo, a cada hora, como aquelas.
Nada perdura. Teus mares, em suave neblina,
Desaparecem; aquelas areias lunares abandonam seu lugar,
E onde estão, outros mares irão, por sua vez,
Cortar com suas alvas foices outras baías.
À evolução e à dissolução astronômicas, acrescentem a origem e a eliminação das espécies.

Muitos monstros também a Terra de antigamente tentou produzir, coisas de estranhas caras e membros; (...) alguns sem pés, alguns sem mãos, outros sem bocas, outros mais sem olhos. (...) Mais e mais monstros (...) desse tipo a Terra tentou produzir, mas em vão; porque a natureza proibiu o aumento do número deles, eles não podiam alcançar a cobiçada flor da idade, nem procurar comida, nem ser unidos em casamento; (...) e muitas raças de coisas vivas devem ter se extinguido, ficado impossibilitadas de procriar e continuar e continuar a linhagem. Porque no caso de todas as coisas que vós vedes respirando o sopro da vida, a astúcia, a coragem ou a velocidade vêm desde o início protegendo e preservando cada raça. (...) Aqueles aos quais a natureza não concedeu nenhuma dessas qualidades ficavam expostos para servirem de vítima e presa de outros, até que a natureza extinguisse a sua espécie.
Também as nações, como os indivíduos, crescem lentamente e, com toda certeza, morrem: "algumas nações prosperam, outras decaem, e em pouco tempo as raças das coisas vivas são alteradas e, como corredores, passam adiante a lâmpada da vida". Diante da guerra e da morte inevitável, não há sabedoria a não ser a ataraxia - "encarar todas as coisas com serenidade de espírito". Aqui, evidentemente, toda a velha alegria pagã de viver desapareceu, e um espírito quase exótico toca uma lira quebrada. A história, que nada é a não ser humorista, nunca foi tão brincalhona como quando deu a esse abstêmio e épico pessimista o nome de epicurista.
E se for esse o espírito do adepto de Epicuro, imaginem o inebriante otimismo de estóicos declarados como Aurélio ou Epíteto. Nada, em toda a literatura, é tão deprimente quanto as Dissertações do escravo, a menos que se trate das Meditações do imperador. "Não procure fazer com que as coisas aconteçam segundo a sua preferência, mas prefira que elas aconteçam como têm de acontecer, e assim viverá com prosperidade." Não há dúvida de que é possível assim, ditar o futuro e fingir que dominamos o universo. Segundo consta o senhor de Epíteto, que o tratava com uma crueldade inalterável, certo dia decidiu torcer-lhe a perna para passar o tempo. "Se continuar", disse Epíteto com calma, "vai quebrar a minha perna." O senhor continuou, e a perna se quebrou. "Eu não lhe disse", observou Epíteto mansamente, "que o senhor iria quebrar minha perna?" No entanto, há uma certa nobilidade mística nessa filosofia, como na tranqülia coragem de um pacifista dostoievskiano. "Nunca diga, de qualquer modo, 'perdi isso assim, assim'; e sim, 'eu restituí tal coisa'. Tua filha morreu? Foi restituída. Tua mulher morreu? Foi restituída. Perdeste os teus bens? Também não foram restituídos?" Em trechos assim, sentimos a proximidade do cristianismo e seus intrépidos mártires; de fato, não eram a ética cristã da abnegação, o ideal político cristão de uma fraternidade quase comunista do homem, e a escatologia cristã da conflagração final do mundo inteiro, fragmentos da doutrina estóica flutuando na corrente do pensamento? Em Epíteto, a alma greco-romana perdeu o seu paganismo e está pronta para uma nova fé. Seu livro teve a distinção de ser adotado como manual religioso pela primitiva Igrja Cristã. Dessas Dissertações e das Meditações de Aurélio há apenas um passo para A Imitação de Cristo.
Enquanto isso, o ambiente histórico derretia-se para formar cenas mais novas. Há um notável trecho em Lucrécio que descreve a decadência da agricultura no Estado romano e a atribui à exaustão do solo. Seja qual for a causa, a riqueza de Roma transformou-se em pobreza, a organização em desintegração, o poder e o orgulho em decadência e apatia. Cidades voltaram a fundir-se com o interior sem distinção; as estradas ficaram sem manutenção e já não ecoavam a agitação do comércio; as pequenas famílias dos romanos de instrução eram ultrapassadas, em número, pelos vigorosos alemães sem instrução que cruzavam, ano após ano, a fronteira; a cultura pagã cedeu aos cultos orientais; e, quase que imperceptivelmente, o império se transformou em papado.
A Igreja, apoiada nos primeiros séculos pelos imperadores cujos poderes ela absorveu aos poucos, teve um aumento rápido no número de adeptos, na riqueza e no raio de influência. No século XIII, já possuía um terço do solo da Europa, e seus cofres estavam inchados com donativos de ricos e pobres. Durante mil anos, ela uniu, com a magia de uma crença invariável, a maior parte dos povos de um continente; nunca houve, antes ou depois, uma organização tão difundida e tão pacífica. Mas essa unidade exigia, como pensava a Igreja, uma fé comum exaltada por sanções sobrenaturais acima das mudanças e das corrosões do tempo; portanto, o dogma, definitivo e definido, foi colocado como uma concha sobre a mentalidade adolescente da Europa medieval. Era dentro dessa concha que a filosofia escolástica se deslocava acanhadamente entre fé e razão e vice-versa, num desconcertante circuito de pressupostos não criticados e conclusões pré-ordenadas. No século XIII, toda a cristandade ficou assustada e estimulada por traduções árabes e judaicas de Aristóteles; mas o poder da Igreja ainda era suficiente para garantir, através de Tomás de Aquino e outros, a transformação de Aristóteles em um teólogo medieval. O resultado foi a sutileza, mas não a sabedoria. "A inteligência e a mentalidade do homem", como disse Bacon, "se trabalharem com a matéria, trabalham segundo a substância desta e por ela ficarão limitados; mas se trabalharem consigo mesmo, serão intermináveis e produzirão realmente teias de saber, admiráveis pela delicadeza do fio e do trabalho, mas sem substância ou proveito." Mais cedo ou mais tarde, o intelecto da Europa iria irromper de dentro dessa concha.
Depois de mil anos de cultivo, o solo voltou a florescer; os bens se multiplicaram, criando excedentes que levaram ao comércio; e o comércio em suas encruzilhadas voltou a construir grandes cidades nas quais os homens podiam cooperar para estimular a cultura e reconstruir a civilização. As Cruzadas abriram os caminhos para o Oriente e permitiram a entrada de uma torrente de artigos de luxo e heresias que condenaram à morte e ascetismo e o dogma. O papel, agora, chegava barato do Egito, substituindo o caro pergaminho que tornara o saber um monopólio dos sacerdotes; a imprensa, que durante muito tempo esperava por um meio barato, estourou como um explosivo libertado e espalhou sua influência destruidora e esclarecedora por toda parte. Bravos navegantes, armados agora de bússolas, aventuraram-se na imensidão dos mares e conquistaram a ignorância do homem a respeito da Terra; observadores pacientes, armados de telescópios, aventuraram-se para além dos confins do dogma e conquistaram a ignorância do homem quanto ao céu. Aqui e ali, em universidades, mosteiros e retiros escondidos, homens deixaram de disputar e começaram a investigar; por via indireta, graças aos esforços no sentido de transformar metais inferiores em ouro, a alquimia foi transformada em química; da astrologia, os homens foram tateando com tímida ousadia para a astronomia; e das fábulas dos animais que falavam veio a ciência da zoologia. O despertar começou com Roger Bacon (m. 1294); aumentou com o ilimitado Leonardo (1452-1519); alcançou sua plenitude na astronomia de Copérnico (1473-1543) e Galileu (1564-1642), nas pesquisas de Gilbert (1544-1603) sobre magnetismo e eletricidade, de Vesálio (1514-1564) em anatomia, e de Harvey (1578-1657) sobre a circulação do sangue. À medida que aumentava o conhecimento, diminuía o medo; os homens pensavam menos em adorar o desconhecido, e mais em dominá-lo. Todo espírito vital foi estimulado por uma nova confiança; barreiras foram derrubadas; não havia limites, agora, para o que o homem poderia fazer. "O fato de pequenos navios, como os corpos celestes, navegarem à volta do mundo inteiro, é a felicidade da nossa era. Esta época pode usar, com toda justiça, plus ultra" (mais além) "onde os antigos usavam non plus ultra." Foi uma era de realizações, esperança e vigor; de novos começos e empreendimentos em todos os campos; era uma era que esperava por uma voz, uma alma sintética para resumir o seu espírito e decidir. Foi Francis Bacon, "a mais poderosa inteligência dos tempos modernos, que tocou a sineta que reuniu as inteligências" e anunciou que a Europa havia atingido a maioridade.

OS PENSADORES

Do fundo eclético-neoplatônico do pensamento da Renascença se destacavam algumas figuras de maior vulto, cuja série começa com Nicolau de Cusa e termina com Giordano Bruno. É uma nova concepção filosófica do mundo e da vida, ainda não bem claramente esboçada, de que seus próprios autores, às vezes, não têm clara consciência. É uma época de transição, em que novo e velho se entretecem mutuamente.
Os sistemas filosóficos da época conservam a linguagem (latim) e a estrutura (silogística) da idade precedente. As intuições e afirmações naturalistas, humanistas e imanentistas estão ao lado das profissões de fé católica, feitas por motivos práticos, éticos e utilitários. Entretanto, debaixo dessas aparências, germina o pensamento moderno. É o crepúsculo que prenuncia a alvorada de um novo dia.

Nicolau de Cusa   

Nicolau Krebs nasceu em 1401 em Cusa, de família modesta. Foi educado junto dos Irmãos da vida comum em Deventer, onde sofreu a influência do misticismo alemão; em seguida estudou na Universidade de Heidelberg, foco de nominalismo, e na de Pádua, onde aprendeu a matemática, o direito, a astronomia. Ordenado padre, teve parte notável no concílio de Basiléia (1432); foi, a seguir, legado pontifício, cardeal, bispo. Viveu seus últimos anos na Itália, onde faleceu em 1464.
As obras fundamentais de Nicolau de Cusa são três: De docta ignorantia, De conjecturis, Apologia doctae ignorantiae. As fontes prediletas e principais são o misticismo alemão (Mestre Eckart), o platonismo e o neoplatonismo cristão (Santo Agostinho, Pseudo Dionísio, Scoto Erígena, São Boaventura), e os autores de tendência neoplatônica, em geral.
Nicolau de Cusa admite, acima dos sentidos, dois graus do saber humano; a ratio e o intellectus. A ratio - ou intelecto discursivo - é a faculdade que abstrai das noções particulares os conceitos universais, e forma, em seguida, os juízos e os raciocínios. O seu objeto próprio é o conhecimento da multíplice e do finito. No entanto, também a coisas finitas são imperfeitamente representadas pela ratio, cujo conhecimento se realiza mediante conceitos universais, ao passo que a realidade é constituída por seres individuais. Deus, uno e infinito, não pode certamente ser conhecido pela ratio, cujo objeto é o multíplice e o finito.
Acima da ratio está o intellectus, atividade supra-racional iluminada pela fé ou pela mística, cujo objeto próprio é o Uno e o infinito, Deus. O agnosticismo de Nicolau de Cusa é, portanto, corrigido pelo fideísmo e pelo misticismo. A docta ignorantia consiste precisamente na consciência dos limites e da relatividade da ratio, cujas deficiências são supridas pelo intellectus. Entretanto, esta iluminação é sobrenatural e nada tem que ver com a filosofia, nem é de modo nenhum fundamentada por Cusano. Admitindo, pois, ele, que a razão não nos dá a realidade, segue-se logicamente que a sua filosofia deve finalizar no agnosticismo gnosiológico, e no panteísmo metafísico.
Por certo, o piedoso cardeal foi, na intenção, ortodoxo, teísta, católico. Entretanto, o seu sistema encerra fatalmente uma tendência para o panteísmo. De fato, foi ele acusado de panteísmo emanatista, quando ainda vivia.

Bernardino Telésio   

Mais claramente manifesta-se o imanentismo da Renascença - em seu aspecto naturalista - em Bernardino Telésio . Nasceu em 1509 em Cosenza, estudou especialmente em Pádua e faleceu em 1588. A sua obra fundamental é De rerum natura iuxta propria principia. O pensamento de Telésio representa uma sistematização do naturalismo da Renascença: a saber, uma tentativa para explicar a natureza mediante os princípios universais imanentes à mesma natureza.
O mundo natural é constituído de matéria e de força. A matéria é homogênea, preenche o espaço (que existe antes da matéria) e é por si mesma inerte. A força anima, penetra, move, transforma continuamente toda a matéria.
O intelecto é reduzido aos sentidos, bem como o conceito universal é reduzido à sensação. Como é naturalizado o pensamento, é também naturalizada a vontade, no sentido materialista e hedonista.
Entretanto, haveria no homem também uma alma que transcende a natureza e o mundo material, criada e infundida por Deus. Por conseguinte, o homem pode pensar e querer o supra-sensível, o eterno, e dominar com a vontade livre as tendências naturais. Desse modo, acima da ciência é posta e justificada a fé e a revelação.

Giordano Bruno   

Giordano Bruno é a maior expressão do imanentismo renascentista. Nasceu em Nola em 1548, entrou na Ordem dos Dominicanos aos 15 anos. Acusado de heresia e afastado de sua ordem, iniciou uma vida giróvaga através da Europa. De volta a Veneza, foi processado pelo tribunal da Inquisição e reconheceu os seus erros. Entregue à Inquisição romana, foi de novo processado; mas, desta vez, recusou qualquer retratação e foi condenado à morte, que lhe foi infligida em 1600.
As obras principais de Bruno são: De la causa principio e uno; De l'infinito, universo e mondi; Eroici furori; De immenso et innumerabilibus. As fontes de Bruno são: o monismo eleático e heraclíteo; o atomismo democríteo; o panteísmo estóico; o emanatismo neoplatônico; o naturalismo telesiano.
A metafísica de Bruno é decididamente monista, pampsiquista e pan-materialista. A realidade é una e infinita, constituída por dois princípios fundamentais, ativo um - a alma do mundo -, passivo o outro - a matéria. São dois aspectos da mesma substância. A alma do mundo é concebida como sendo inteligente, ordenadora do mundo; mas não é transcendente, como o motor primeiro de Aristóteles e o Deus do cristianismo, e sim imanente ao mundo, de que é precisamente a alma. O Deus de Bruno é, pois, esta alma do mundo, concebida como imutável e infinita, gerando eternamente o mundo finito e que se acha em perpétuo vir-a-ser. As almas particulares não passam de individuações passageiras dessa alma cósmica. Acima desse Deus imanente, também Bruno afirma a existência de um Deus transcendente, apreendido só por fé, trata-se, porém, de uma fé imanente naturalista, bem diversa da fé cristã.
Com a metafísica de Bruno estão em conexão a sua gnosiologia e a sua moral. Na sua teoria do conhecimento Bruno distingue - neoplatonicamente - quatro graus, em ordem hierárquica ascendente. São eles:
• os sentidos, cujo objeto é o sensível, e a verdade que manifesta é mera aparência;
• a razão, mediante a qual a verdade é atingida por processo dialético, discursivo, sucessivo;
• o intelecto, que tem a intuição imediata da verdade;
• a mente, que atinge a verdade na sua unidade e simplicidade absoluta.

Quanto à moral deve-se dizer o seguinte: na moral de Bruno aparece de um modo característico o imanentismo e o humanismo do pensador. Bruno, em oposição à moral ascética e transcendente do cristianismo, sustenta que o homem realiza a sua natureza, atinge a sua perfeição no furor heróico, a saber, na sua imanente e jubilosa participação racional na vida do Todo-um. É, pois, natural, que Bruno considere toda religião histórica, positiva (inclusive o cristianismo), como um saber infra-racional, mítico, simbólico, útil para dirigir moralmente o vulgo ignorante, e não como uma revelação supra-racional de um Deus transcendente. Pois não é isto possível no seu sistema imanentista.

Tomás Campanella   

Tomás Campanella nasceu em Stilo, na Calábria, em 1568, e também ele entrou ainda moço na ordem dos Dominicanos. É o maior continuador de Telésio. Várias vezes processado por heresia, foi, porém, absolvido; entretanto, condenaram-no por motivos políticos e passou no cárcere 27 anos, sendo, enfim, libertado. Suas obras principais são: Civitas solis; Universalis philosophia seu metaphisicarum rerum iuxta propria dogmata partes tres; De sensu rerum et magia libri X.
As fontes principais do seu pensamento são: o naturalismo telesiano e o idealismo neoplatônico. Mais do que os pensadores precedentes, Campanella parece oscilar entre imanentismo e catolicismo, devido ao fato de que se acha ele já no clima espiritual da contra reforma católica. E como Giordano Bruno prenuncia a Spinoza, assim Campanella prenuncia a Descartes, Malenbranche e Leibniz, marcando destarte a passagem da Renascença à Idade Moderna.
Quanto à gnosiologia, Campanella diz o seguinte: Admite ele um sensus inditus e um sensus additus. O primeiro oferece um conhecimento imediato de si mesmo; é um conhecimento fundamental, certíssimo, visto que o objeto coincide com o sujeito. Entretanto, o conhecimento do eu, a consciência, revela imediatamente as limitações do eu e, logo, a existência as coisas que limitam o eu. Estas coisas são conhecidas pela percepção externa, isto é, pelo sensus additus que nos dá um conhecimento mediato das coisas. Este, porém, não nos revela a natureza das coisas, e sim o sujeito modificado pelas coisas.
Ainda inferiores ao sensus additus, pela certeza, são o intelecto e a razão, porque ainda mais se afastam do sensus inditus, da imediata intuição de si mesmo. A razão, a saber, o poder de inferir o semelhante do semelhante, é um sentido imperfeito; o intelecto, a saber, o conhecimento do universal é um sentido elanguescido, pois o universal é uma noção genérica e confusa, cujo valor é unicamente prático, cômodo para resumir vários particulares. Campanella, como Telésio, desvaloriza a razão e o intelecto e admite, ao lado e acima deles, um princípio divino, uma mente, o pensamento, que desempenha a função de garantir o nosso conhecimento e libertar-nos do ceticismo.
Quanto à metafísica, salientamos que Campanella afirma de novo e acentua a animação universal, o pampsiquismo telesiano. Propriamente, a metafísica de Campanella é a doutrina dos primeiros princípios do ser; são eles o poder, a sabedoria, o amor. Tais princípios são absolutos e puros em Deus, relativos e imperfeitos nas criaturas. Daí as coisas e o espírito serem uma mistura de ser e de não-ser (ser limitado), ao passo que Deus é puro ser (ser infinito).
Sobre essa nossa limitação ontológica, Campanella alicerça a religião, que é aspiração do ser limitado para o ser infinito. Para Campanella, a religião fundamental é a religião natural, racional; as religiões positivas, históricas, seriam expressões empíricas da religião natural. A característica essencial da própria revelação cristã e da igreja católica seria a restauração da religião natural, racional, universal, obscurecida pela ignorância e pela concupiscência. Portanto, o cristianismo seria reduzido à religião natural, a que a Renascença em geral aspira.
Tal concepção filosófico-religiosa de Campanella teve uma expressão prática, política e pedagógica, na Cidade do Sol (Civitas solis), em que é exposta a sua utopia teocrático-comunista. Imagina ele uma república ideal, professando uma religião natural, governada por leis universais, em que, à maneira de Platão, o sábio é, ao mesmo tempo, monarca e sacerdote. Mais tarde, essa sua utopia teocrático-filosófica tomará uma forma teocrático-católica, com o papa à frente. Entretanto, o papa é concebido mais como chefe concreto de uma religião natural, do que como chefe de uma religião positiva e sobrenatural, como o cristianismo. Campanella viveu longamente na prisão, afastado da vida real; suas obras, escritas no cárcere, manifestam uma mentalidade fantástica, idealista, utópica, em que falta a experiência de uma vida social-concreta. "Tumultuária e aventurosa em muitos pontos - escreve Leonel Franca - a obra de Campanella encerra não poucas ideias aproveitáveis. Cabe-lhe a prioridade de várias teorias, atribuídas depois a Descartes e Bacon".

RENÉ DESCARTES

Sua Vida

René Descartes, nascido em 1596 em La Haye - não a cidade dos Países-Baixos, mas um povoado da Touraine, numa família nobre - terá o título de senhor de Perron, pequeno domínio do Poitou, daí o aposto "fidalgo poitevino".
De 1604 a 1614, estuda no colégio jesuíta de La Flèche. Aí gozará de um regime de privilégio, pois levanta-se quando quer, o que o leva a adquirir um hábito que o acompanhará por toda sua vida: meditar no próprio leito. Apesar de apreciado por seus professores, ele se declara, no "Discurso sobre o Método", decepcionado com o ensino que lhe foi ministrado: a filosofia escolástica não conduz a nenhuma verdade indiscutível, "Não encontramos aí nenhuma coisa sobre a qual não se dispute". Só as matemáticas demonstram o que afirmam: "As matemáticas agradavam-me sobretudo por causa da certeza e da evidência de seus raciocínios". Mas as matemáticas são uma exceção, uma vez que ainda não se tentou aplicar seu rigoroso método a outros domínios. Eis por que o jovem Descartes, decepcionado com a escola, parte à procura de novas fontes de conhecimento, a saber, longe dos livros e dos regentes de colégio, a experiência da vida e a reflexão pessoal: "Assim que a idade me permitiu sair da sujeição a meus preceptores, abandonei inteiramente o estudo das letras; e resolvendo não procurar outra ciência que aquela que poderia ser encontrada em mim mesmo ou no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha juventude em viajar, em ver cortes e exércitos, conviver com pessoas de diversos temperamentos e condições".
Após alguns meses de elegante lazer com sua família em Rennes, onde se ocupa com equitação e esgrima (chega mesmo a redigir um tratado de esgrima, hoje perdido), vamos encontrá-lo na Holanda engajado no exército do príncipe Maurício de Nassau. Mas é um estranho oficial que recusa qualquer soldo, que mantém seus equipamentos e suas despesas e que se declara menos um "ator" do que um "espectador": antes ouvinte numa escola de guerra do que verdadeiro militar. Na Holanda, ocupa-se sobretudo com matemática, ao lado de Isaac Beeckman. É dessa época (tem cerca de 23 anos) que data sua misteriosa divisa "Larvatus prodeo". Eu caminho mascarado. Segundo Pierre Frederix, Descartes quer apenas significar que é um jovem sábio disfarçado de soldado.
Em 1619, ei-lo a serviço do Duque de Baviera. Em virtude do inverno, aquartela-se às margens do Danúbio. Podemos facilmente imaginá-lo alojado "numa estufa", isto é, num quarto bem aquecido por um desses fogareiros de porcelana cujo uso começa a se difundir, servido por um criado e inteiramente entregue à meditação. A 10 de novembro de 1619, sonhos maravilhosos advertem que está destinado a unificar todos os conhecimentos humanos por meio de uma "ciência admirável" da qual será o inventor. Mas ele aguardará até 1628 para escrever um pequeno livro em latim, as "Regras para a direção do espírito" (Regulae ad directionem ingenii). A ideéia fundamental que aí se encontra é a de que a unidade do espírito humano (qualquer que seja a diversidade dos objetos da pesquisa) deve permitir a invenção de um método universal. Em seguida, Descartes prepara uma obra de física, o Tratado do Mundo, a cuja publicação ele renuncia visto que em 1633 toma conhecimento da condenação de Galileu. É certo que ele nada tem a temer da Inquisição. Entre 1629 e 1649, ele vive na Holanda, país protestante. Mas Descartes, de um lado é católico sincero (embora pouco devoto), de outro, ele antes de tudo quer fugir às querelas e preservar a própria paz.
Finalmente, em 1637, ele se decide a publicar três pequenos resumos de sua obra científica: A Dióptrica, Os Meteoros e A Geometria. Esses resumos, que quase não são lidos atualmente, são acompanhados por um prefácio e esse prefácio foi que se tornou famoso: é o Discurso sobre o Método. Ele faz ver que o seu método, inspirado nas matemáticas, é capaz de provar rigorosamente a existência de Deus e o primado da alma sobre o corpo. Desse modo, ele quer preparar os espíritos para, um dia, aceitarem todas as consequências do método - inclusive o movimento da Terra em torno do Sol! Isto não quer dizer que a metafísica seja, para Descartes, um simples acessório. Muito pelo contrário! Em 1641, aparecem as Meditações Metafísicas, sua obra-prima, acompanhadas de respostas às objeções. Em 1644, ele publica uma espécie de manual cartesiano. Os Princípios de Filosofia, dedicado à princesa palatina Elisabeth, de quem ele é, em certo sentido, o diretor de consciência e com quem troca importante correspondência. Em 1644, por ocasião da rápida viagem a Paris, Descartes encontra o embaixador da frança junto à corte sueca, Chanut, que o põe em contato com a rainha Cristina.
Esta última chama Descartes para junto de si. Após muitas tergiversações, o filósofo, não antes de encarregar seu editor de imprimir, para antes do outono, seu Tratado das Paixões - embarca para Amsterdã e chega a Estocolmo em outubro de 1649. É ao surgir da aurora (5 da manhã!) que ele dá lições de filosofia cartesiana à sua real discípula. Descartes, que sofre atrozmente com o frio, logo se arrepende, ele que "nasceu nos jardins da Touraine", de ter vindo "viver no país dos ursos, entre rochedos e geleiras". Mas é demasiado tarde. Contrai uma pneumonia e se recusa a ingerir as drogas dos charlatões e a sofrer sangrias sistemáticas ("Poupai o sangue francês, senhores"), morrendo a 9 de fevereiro de 1650. Seu ataúde, alguns anos mais tarde, será transportado para a França. Luís XIV proibirá os funerais solenes e o elogio público do defunto: desde 1662 a Igreja Católica Romana, à qual ele parece Ter-se submetido sempre e com humildade, colocará todas as suas obras no Index.

O Método

Descartes quer estabelecer um método universal, inspirado no rigor matemático e em suas "longas cadeias de razão".
1. - A primeira regra é a evidência: não admitir "nenhuma coisa como verdadeira se não a reconheço evidentemente como tal". Em outras palavras, evitar toda "precipitação" e toda "prevenção" (preconceitos) e só ter por verdadeiro o que for claro e distinto, isto é, o que "eu não tenho a menor oportunidade de duvidar". Por conseguinte, a evidência é o que salta aos olhos, é aquilo de que não posso duvidar, apesar de todos os meus esforços, é o que resiste a todos os assaltos da dúvida, apesar de todos os resíduos, o produto do espírito crítico. Não, como diz bem Jankélévitch, "uma evidência juvenil, mas quadragenária".
2. - A segunda, é a regra da análise: "dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quantas forem possíveis".
3. - A terceira, é a regra da síntese: "concluir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer para, aos poucos, ascender, como que por meio de degraus, aos mais complexos".
4. - A última á a dos "desmembramentos tão complexos... a ponto de estar certo de nada ter omitido".

Se esse método tornou-se muito célebre, foi porque os séculos posteriores viram nele uma manifestação do livre exame e do racionalismo.
a) Ele não afirma a independência da razão e a rejeição de qualquer autoridade? "Aristóteles disse" não é mais um argumento sem réplica! Só contam a clareza e a distinção das ideias. Os filósofos do século XVIII estenderão esse método a dois domínios de que Descartes, é importante ressaltar, o excluiu expressamente: o político e o religioso (Descartes é conservador em política e coloca as "verdades da fé" ao abrigo de seu método).
b) O método é racionalista porque a evidência de que Descartes parte não é, de modo algum, a evidência sensível e empírica. Os sentidos nos enganam, suas indicações são confusas e obscuras, só as ideias da razão são claras e distintas. O ato da razão que percebe diretamente os primeiros princípios é a intuição. A dedução limita-se a veicular, ao longo das belas cadeias da razão, a evidência intuitiva das "naturezas simples". A dedução nada mais é do que uma intuição continuada.

A Metafísica

No Discurso sobre o Método, Descartes pensa sobretudo na ciência. Para bem compreender sua metafísica, é necessário ler as Meditações.
1. - Todos sabem que Descartes inicia seu itinerário espiritual com a dúvida. Mas é necessário compreender que essa dúvida tem um outro alcance que a dúvida metódica do cientista. Descartes duvida voluntária e sistematicamente de tudo, desde que possa encontrar um argumento, por mais frágil que seja. Por conseguinte, os instrumentos da dúvida nada mais são do que os auxiliares psicológicos, de uma ascese, os instrumentos de um verdadeiro "exército espiritual". Duvidemos dos sentidos, uma vez que eles frequentemente nos enganam, pois, diz Descartes, nunca tenho certeza de estar sonhando ou de estar desperto! (Quantas vezes acreditei-me vestido com o "robe de chambre", ocupado em escrever algo junto à lareira; na verdade, "estava despido em meu leito").
Duvidemos também das próprias evidências científicas e das verdades matemáticas! Mas quê? Não é verdade - quer eu sonhe ou esteja desperto - que 2 + 2 = 4? Mas se um gênio maligno me enganasse, se Deus fosse mau e me iludisse quanto às minhas evidências matemáticas e físicas? Tanto quanto duvido do Ser, sempre posso duvidar do objeto (permitam-me retomar os termos do mais lúcido intérprete de Descartes, Ferdinand Alquié).
2. - Existe, porém, uma coisa de que não posso duvidar, mesmo que o demônio queira sempre me enganar. Mesmo que tudo o que penso seja falso, resta a certeza de que eu penso. Nenhum objeto de pensamento resiste à dúvida, mas o próprio ato de duvidar é indubitável. "Penso, cogito, logo existo, ergo sum" . Não é um raciocínio (apesar do logo, do ergo), mas uma intuição, e mais sólida que a do matemático, pois é uma intuição metafísica, metamatemática. Ela trata não de um objeto, mas de um ser. Eu penso, Ego cogito (e o ego, sem aborrecer Brunschvicg, é muito mais que um simples acidente gramatical do verbo cogitare). O cogito de Descartes, portanto, não é, como já se disse, o ato de nascimento do que, em filosofia, chamamos de idealismo (o sujeito pensante e suas ideias como o fundamento de todo conhecimento), mas a descoberta do domínio ontológico (estes objetos que são as evidências matemáticas remetem a este ser que é meu pensamento).
3. - Nesse nível, entretanto, nesse momento de seu itinerário espiritual, Descartes é solipsista. Ele só tem certeza de seu ser, isto é, de seu ser pensante (pois, sempre duvido desse objeto que é meu corpo; a alma, diz Descartes nesse sentido, "é mais fácil de ser conhecida que o corpo").
É pelo aprofundamento de sua solidão que Descartes escapará dessa solidão. Dentre as ideias do meu cogito existe uma inteiramente extraordinária. É a ideia de perfeição, de infinito. Não posso tê-la tirado de mim mesmo, visto que sou finito e imperfeito. Eu, tão imperfeito, que tenho a ideia de Perfeição, só posso tê-la recebido de um Ser perfeito que me ultrapassa e que é o autor do meu ser. Por conseguinte, eis demonstrada a existência de Deus. E nota-se que se trata de um Deus perfeito, que, por conseguinte, é todo bondade. Eis o fantasma do gênio maligno exorcizado. Se Deus é perfeito, ele não pode ter querido enganar-me e todas as minhas ideias claras e distintas são garantidas pela veracidade divina. Uma vez que Deus existe, eu então posso crer na existência do mundo. O caminho é exatamente o inverso do seguido por São Tomás. Compreenda-se que, para tanto, não tenho o direito de guiar-me pelos sentidos (cujas mensagens permanecem confusas e que só têm um valor de sinal para os instintos do ser vivo). Só posso crer no que me é claro e distinto (por exemplo: na matéria, o que existe verdadeiramente é o que é claramente pensável, isto é, a extensão e o movimento). Alguns acham que Descartes fazia um circulo vicioso: a evidência me conduz a Deus e Deus me garante a evidência! Mas não se trata da mesma evidência. A evidência ontológica que, pelo cogito, me conduz a Deus fundamenta a evidência dos objetos matemáticos. Por conseguinte, a metafísica tem, para Descartes, uma evidência mais profunda que a ciência. É ela que fundamenta a ciência (um ateu, dirá Descartes, não pode ser geômetra!).
4. - A Quinta meditação apresenta uma outra maneira de provar a existência de Deus. Não mais se trata de partir de mim, que tenho a ideia de Deus, mas antes da ideia de Deus que há em mim. Apreender a ideia de perfeição e afirmar a existência do ser perfeito é a mesma coisa. Pois uma perfeição não-existente não seria uma perfeição. É o argumento ontológico, o argumento de Santo Anselmo que Descartes (que não leu Santo Anselmo) reencontra: trata-se, ainda aqui, mais de uma intuição, de uma experiência espiritual (a de um infinito que me ultrapassa) do que de um raciocínio.

FRANCIS BACON   

O iniciador do empirismo é Francis Bacon. Enalteceu ele a experiência e o método dedutivo de tal modo, que o transcendente e a razão acabam por desaparecer na sombra. Falta-lhe, no entanto, a consciência crítica do empirismo, que foram aos poucos conquistando os seus sucessores e discípulos até Hume. Ademais, Bacon continua afirmando - mais ou menos logicamente - o mundo transcendente e cristão; antes, continua a considerar a filosofia como esclarecedora da essência da realidade, das formas, sustentáculo e causa dos fenômenos sensíveis. É uma posição filosófica que apela para a metafísica tradicional, grega e escolástica, aristotélica e tomista. Entretanto, acontece em Bacon o que aconteceu a muitos pensadores da Renascença, e o que acontecerá a muitos outros pensadores do empirismo e do racionalismo: isto é, a metafísica tradicional persiste neles todos histórica e praticamente ao lado da nova filosofia, tanto mais quanto esta é menos elaborada, acabada e consciente de si mesma.

Vida e Obras

Francis Bacon nasceu no dia 22 de janeiro de 1561 na York House, Londres, residência de seu pai sir Nicholas Bacon, que nos primeiros vinte anos do reinado de Elizabeth tinha sido o Guardião do Sinete. "A fama do pai", diz Maucaulay, "foi ofuscada pela do filh". Mas sir Nicholas não era um homem comum." A mãe de Bacon foi lady Anne Cooke, cunhada de sir William Cecil, lorde Burghley, que foi tesoureiro-mor de Elizabeth e um dos homens mais poderosos da Inglaterra. O pai dela tinha sido o tutor-chefe do rei Eduardo VI; ela mesma era lingüista e teóloga, e não tinha dificuldade em se corresponder em grego com bispos. Tornou-se instrutora do filho e não poupou esforços para que ele tivesse instrução. Bacon frequentou a Universidade de Cambridge, e viveu também em Paris. Começou a sua carreira de homem político e jurista, antes sob a rainha Isabel, e, depois, sob Jaime I, subindo até aos mais altos cargos: advogado geral em 1613, membro do Conselho particular em 1616, chanceler do reino em 1618. Foi agraciado por Jaime I com os títulos de Barão de Verulamo e Visconde de S. Albano. Entretanto foi acusado de concussão e condenado pelo Parlamento a uma multa avultuada. Perdoado pelo rei, retirou-se para as suas terras, dedicando-se inteiramente aos estudos. Faleceu em 1626. Teve uma inteligência muito esclarecida, convencido da sua missão de cientista, segundo o espírito positivo e prático da mentalidade anglo-saxônia.
A obra principal de Bacon é a Instauratio magna scientiarum, vasta síntese que deveria ter compreendido seis grandes partes. Mas terminou apenas duas, deixando sobre o resto esboços e fragmentos. As duas partes acabadas são precisamente: I - De dignitate et argumentis scientiarum; II - Novum organum scientiarum. Como se vê pelos títulos, e mais ainda pelo conteúdo, trata-se de pesquisas gnosiológicas, críticas e metodológicas, para lançar as bases lógicas da nova ciência, da nova filosofia, que deveria dar ao homem o domínio da realidade.

Os Ensaios

Sua ascensão parecia tornar realidade os sonhos de Platão de um rei-filósofo. Porque, passo a passo com a sua subida para o poder político, Bacon estivera escalando os píncaros da filosofia. É quase inacreditável que o imenso saber e as realizações literárias desse homem fossem apenas os incidentes e as digressões de uma turbulenta carreira política. Era seu lema que se vivia melhor na vida oculta - bene vixit qui bene latuit. Não conseguia chegar a uma conclusão sobre se gostava mais da vida contemplativa ou da ativa. Sua esperança era de ser filósofo e estadista, também, como Sêneca; embora desconfiasse de que essa dupla direção de sua vida fosse encurtar o seu alcance e reduzir suas realizações. "É difícil dizer", escreve ele, e "se a mistura de contemplações com uma vida ativa ou o retiro inteiramente dedicado a contemplações é o que mais incapacita ou prejudica a ment." Achava que os estudos não podiam ser um fim ou a sabedoria por si sós, e que o conhecimento não aplicado em ação era uma pálida vaidade acadêmica. "Dedicar-se em demasia aos estudos é indolência; usá-los em demasia como ornamento é afetação; fazer julgamentos seguindo inteiramente suas regras é o capricho de um scholar. (...) Os homens astutos condenam os estudos, os homens simples os admiram, e os homens sábios se utilizam deles, obtida graças à observação." Eis uma nova nota que marca o fim da escolástica - isto é, o divórcio entre o conhecimento e o uso e a observação - e coloca aquela ênfase na experiência e nos resultados que distingue a filosofia inglesa, e culmina no pragmatismo. Não que Bacon tivesse, por um instante, deixado de amar os livros e a meditação; em palavras que lembram Sócrates, ele escreve: "sem filosofia, não quero viver", e descreve a si mesmo como, afinal de contas, "um homem naturalmente mais propenso à literatura do que a qualquer outra coisa, e levado por algum destino, contra a inclinação de seu gênio" (isto é caráter), "a vida ativa". Quase que a sua primeira publicação recebeu o título de O Elogio do Conhecimento (1592); o entusiasmo do trabalho pela filosofia nos obriga a uma citação.
"Meu elogio será dedicado à própria mente. A mente é o homem, e o conhecimento é a mente; um homem é apenas aquilo que ele sabe. (...) Não são os prazeres das afeições maiores do que os prazeres dos sentidos, e não são os prazeres do intelecto maiores do que os prazeres das afeições? Não se trata, apenas, de um verdadeiro e natural prazer do qual não há saciedade? Não é só esse conhecimento que livra a mente de todas as perturbações? Quantas coisas existem que imaginamos não existirem? Quantas coisas estimamos e valorizamos mais do que são? Essas vãs imaginações, essas avaliações desproporcionadas, são as nuvens do erro que se transformam nas tempestades das perturbações. Existirá, então, felicidade igual à possibilidade da mente do homem elevar-se acima da confusão das coisas de onde ele possa ter uma atenção especial para com a ordem da natureza e o erro dos homens? De contentamento e não de benefício? Será que não devemos perceber tanto a riqueza do armazém da natureza quanto a beleza de sua loja? Será estéril a verdade? Não poderemos, através dela, produzir efeitos dignos e dotar a vida do homem com uma infinidade de coisas úteis?"
Sua mais bela produção literária, os Ensaios (1597-1623), mostram-no ainda indeciso entre dois amores, a política e a filosofia. No Ensaio sobre a Honra e a Reputação, ele dá todos os graus de honra a realizações políticas e militares, nenhum a literárias e filosóficas. Mas no ensaio Da Verdade, ele escreve: "A indagação da verdade, que é namorá-la ou cortejá-la; o conhecimento da verdade, que é o elogio a ela; e a crença na verdade, que é gozá-la, são o bem soberano das naturezas humanas." Nos livros, "conversamos com os sábios, como na ação conversamos com tolos". Isto é, se soubermos escolher os nossos livros. "Certos livros são para serem provados", outros para serem engolidos, e alguns poucos para serem mastigados e digeridos"; todos esses grupos formam, sem dúvida, uma porção infinitesimal dos oceanos e cataratas de tinta nos quais o mundo é diariamente banhado, envenenado e afogado.
Não há dúvida de que os >Ensaios devem ser incluídos entre os poucos livros que merecem ser mastigados e digeridos. Raramente se encontrará uma refeição tão substanciosa, tão admiravelmente preparada e temperada, em um prato tão pequeno. Bacon abomina os recheios e detesta desperdiçar uma palavra; ele nos oferece uma infinita riqueza numa pequena frase; cada um desses ensaios fornece, em uma ou duas páginas, a destilada sutileza de uma mente de mestre sobre um importante aspecto da vida. É difícil dizer o que é mais excelente, se a matéria ou o estilo; porque ali se acha uma linguagem de tão alta qualidade na prosa quanto é a de Shakespeare em verso. É um estilo como o do vigoroso Tácito, compacto mas refinado; e na verdade uma parte de sua concisão se deve a uma habilidosa adaptação do idioma e do frasear latinos. Mas a sua riqueza no que se refere a metáforas é caracteristicamente elizabetana e reflete a exuberância da Renascença; nenhum homem, na literatura inglesa, é tão fértil em comparações significativas e substanciosas. A excessiva sucessão dessas comparações constitui o único defeito do estilo de Bacon: as intermináveis metáforas, alegorias e alusões caem como chicotes sobre os nossos nervos e acabam por nos exaurir. Os Ensaios são como um alimento rico e pesado, que não pode ser digerido em grandes quantidades de uma só vez; mas tomados quatro ou cinco de cada vez, constituem o melhor alimento intelectual.
No ensaio"Da Juventude e da Idade"ele condensa um livro em um parágrafo. "Os jovens são mais aptos para inventar do que para julgar, mais aptos para a execução do que para o assessoramento, e mais aptos para novos projetos do que para atividades já estabelecidas; porque a experiência da idade em coisas que estejam ao alcance dessa idade os dirige; mas em coisas novas, os maltrata. (...) Os jovens, na conduta e na administração dos atos, abraçam mais do que podem segurar, agitam mais do que podem acalmar; voam para o fim sem consideração para com os meios e os graus; perseguem absurdamente alguns princípios com que toparam por acaso; não se importam em "(isto é, em como)" inovar, o que provoca transtornos desconhecidos. (...) Os homens maduros fazem objeções demais, demoram-se demais em consultas, arriscam-se muito pouco, arrependem-se cedo demais e raramente levam o empreendimento até o fim, mas se contentam com uma mediocridade de sucesso. Não há dúvida de que é bom forçar o emprego de ambos (...), porque as virtudes de qualquer um deles poderão corrigir os defeitos dos dois." Bacon acha, apesar de tudo, que a juventude e a infância podem ter uma liberdade demasiada e, assim, crescer desordenadas e relaxadas. "Que os pais escolhem cedo as vocações e os cursos que pretendem que seus filhos sigam, pois é nessa fase que eles são mais flexíveis; e que não se concentrem demais no pensor dos filhos, pensando que estes irão dedicar-se melhor àquilo para que estejam mais inclinados. É verdade que se os pendores ou a aptidão dos filhos forem extraordinários, é bom não contrariá-los; mas em geral, é bom o preceito" dos pitagóricos: "Optimum lege, suave et facile illud faciet consuetudo" - escolha o melhor; o hábito irá torná-lo agradável e fácil. Porque "o hábito é o principal magistrado da vida do homem."
A política dos Ensaios prega um conservantismo natural em que aspira ao governo. Bacon quer um forte poder central. A monarquia é a melhor forma de governo; e em geral, a eficiência de um Estado varia com a concentração do poder. "Deve haver três pontos essenciais nas atividades" do governo: "a preparação; o debate, ou exame; e a conclusão" (ou execução). "Se quiserdes presteza, que só o do meio fique a cargo de muitos, com o primeiro e o último ficando a cargo de uns poucos." Ele é um militarista confesso; deplora o crescimento da indústria por considerar que isso deixa os homens despreparados para a guerra, e lamenta uma paz prolongada, por aplacar o guerreiro que existe no homem. Apesar disso, reconhece a importância das matérias-primas: "Sólon disse a Creso (quando, por ostentação, Creso lhe mostrou o seu ouro): "Senhor, se chegar qualquer outro que tenha melhor ferro do que vós, ele será dono de todo esse ouro."
Tal como Aristóteles, Bacon dá alguns conselhos para se evitarem revoluções. "O meio mais seguro de evitar sedições (...) é afastar a causa; porque se o combustível estiver preparado, é difícil dizer de onde virá a fagulha que irá atear-lhe fogo. (...) Tampouco se segue que a supressão dos rumores" (isto é, da discussão) "com demasiada severidade deva ser o remédio para os problemas; porque muitas vezes o desprezo é a melhor forma de contê-los, e as providências para reprimi-los só fazem dar vida longa à especulação. (...) A substância da sedição é de dois tipos: muita pobreza e muito descontentamento. (...) As causas e motivos das sedições são as inovações na religião; os impostos; as modificações de leis e costumes; o cancelamento de privilégios; a opressão generalizada; o progresso de pessoas indignas, estranhas, as privações; soldados desmobilizados; facções desesperadas; e tudo aquilo que, ao ofender um povo, faz com que ele se una em uma casa comum." A sugestão de todos os líderes, claro, é dividir seus inimigos e unir os amigos. "De modo geral, é dividir e enfraquecer todas as facções (...) contrárias ao Estado, e colocá-las longe uma das outras, ou pelo menos semear a desconfiança entre elas, não é um dos piores remédios; porque é desesperador o caso em que aqueles que apóiam o governo estão cheios de discórdia e cisões, e os que estão contra ele estão inteiros e unidos." Uma receita melhor para evitar as revoluções é uma distribuição eqüitativa da riqueza: "O dinheiro é como o esterco, só é bom se for espalhado."Mas isso não significa socialismo ou, mesmo, democracia; Bacon não confia no povo, que na sua época praticamente não tinha acesso à educação; "a mais baixa das lisonjas é a lisonja do homem do povo", e "Fócion compreendeu bem quando, ao ser aplaudido pela multidão, perguntou o que tinha feito de errado." O que Bacon quer é, primeiro, uma pequena burguesia de proprietários rurais; depois, uma aristocracia para a administração; e acima de todos, um rei-filósofo. "Quando não há exemplos de que um governo não tenha prosperado com governos cultos." Ele cita Sêneca, Antonio Pio e Aurélio; tinha a esperança de que aos nomes deles a posteridade acrescentasse o seu.

O Pensamento: A "Instauratio Magna"

A Instauratio magna scientiarum deveria ter precisamente representado a reforma do saber, deveria ter constituído a summa philosophica dos tempos novos, e lançado o fundamento do regnum hominis, tão audazmente iniciado pela ciência e pela política da Renascença. Essa obra deveria ter abraçado a enciclopédia das ciências e compreendido também as técnicas, segundo o novo ideal humano e prático e imanentista. Começa-se, portanto, com a classificação geral das disciplinas humanas, baseada no respectivo predomínio das três faculdades que presidem à organização do saber: memória, fantasia, razão. Essa classificação é baseada não no objeto do conhecimento, e sim no sujeito que conhece. 1) História tanto civil quanto natural, que registra (memória) os dados de fato; 2) Poesia, elaboração imaginativa desses dados; 3) Ciência ou filosofia, isto é, conhecimento racional de Deus, do homem e da natureza.

A teologia natural de Bacon não exclui, mas prescinde da revelação cristã e da religião positiva. A ciência do homem divide-se em ciência do homem individual (philosophia humanitatis), e em ciência da sociedade humana (philosophia civilis). A primeira diz respeito ao homem todo, espírito e matéria. A segunda diz respeito à arte de governar e às relações sociais e aos negócios. A filosofia natural ou física, divide-se em especulativa e operativa. A primeira, por sua vez, se divide emfísica especial ("que procura a causa eficiente e material"), e em metafísica ("que procura a causa final e a forma"). Pertencem pois à física operativa as artes mecânicas. Acima das ciências filosóficas particulares, Bacon põe uma ciência filosófica comum, denominando-a philosophia prima. Esta não é a ontologia tradicional, a ciência do ser em geral, mas a ciência dos princípios comuns às várias ciências.

O "Novum Organum"

Entretanto, o que interessa mais a Bacon não é esta ciência dos princípios comuns, e sim a ciência da natureza, e, portanto, o Novum organum, que deveria conter precisamente as regras para a construção da ciência da natureza. Como é sabido, Bacon reivindica, contra Aristóteles e a Escolática, o método indutivo. Aristóteles e Tomás de Aquino afirmaram claramente este método, e até o reconheceram como único procedimento inicial do conhecimento humano; entretanto a eles interessavam muito mais as causas do que a experiência, o que transcende a experiência do que a experiência; muito mais a metafísica do que a ciência.
Segundo Bacon, o verdadeiro método da indução científica compreende uma parte negativa ou crítica, e uma parte positiva ou construtiva. A parte negativa consiste, antes de tudo, em alertar a mente contra os erros comuns, quando procura a conquista da ciência verdadeira. Na sua linguagem imaginosa Bacon chama as causas destes erros comuns, fantasmas - idola - e os divide em quatro grupos fundamentais.
1) Idola tribus, a saber, os erroa da raça humana "fundamentados em a natureza como tal" (não se sabe, pois, o verdadeiro porquê);
2) Idola specus (por alusão à caverna de Platão) determinados pelas disposições subjetivas de cada um;
3) Idola fori, erros da praça, provenientes do comércio social ou da linguagem imperfeita;
4) Idola theatri, isto é, os erros provenientes das escolas filosóficas, que substituem o mundo real por um mundo fantástico, por um jogo cênico.

Desembaraçado o terreno destes erros, Bacon passa a tratar da natureza positiva, construtiva, da genuína interpretação da natureza para dominá-la. Mas, para tanto, é mister conhecer as que Bacon chama de >formas, isto é, os princípios imanentes, causa e lei da ação e da ordem das naturezas. As naturezas são precisamente os fenômenos experimentais, objeto da física especial (luz, calor, pêso, etc.); as formas são leis genéticas e organizadoras das naturezas, as essências ou causas formais, objeto da metafísica de Bacon.
Esta pesquisa, esta passagem das naturezas às formas, dos fenômenos às essências - bem conhecida pela filosofia tradicional - é determinada por Bacon, segundo um método preciso, desconhecido dos predecessores, nas famosas tabulae baconianas. Para determinar de um modo certo as causas e as leis dos fenômenos - isto é, as formas das naturezas - Bacon recolhe, antes de tudo, o maior número possível de exemplos, em que um determinado fenômeno aparece; depois enumera os casos que mais se assemelham às primeiras, em que, porém, o mesmo fenômeno não aparece. Enfim registra o aumentar ou o diminuir do fenômeno em questão, quer no mesmo objeto, quer em objetos diferentes. Têm-se, desta maneira, três espécies de registros ou tabelas: 1) tabelas de presença; 2) tabelas de ausência; 3) tabelas de gradações. É evidente que nos casos onde uma determinada natureza ou fenômeno aparecem, aí se encontrará também a sua causa e lei; nos casos em que o fenômeno não se manifesta, aí faltará também a sua causa e lei; e nos casos onde o fenômeno aumenta ou diminui, aí aumentará ou diminuirá também a sua causa e lei. A causa (forma) dos fenômenos (naturezas) será procurada, portanto, com base nos fenômenos presentes na primeira tabela; não sendo fácil, a princípio, ter-se tabelas completas e isolar as naturezas simples, e desta maneira pôr em evidência a causa, é mister estabelecê-la por hipótese, que será, em seguida, averiguada pelas experimentações.
Essa gnosiologia, metodologia (empírica) é baseada em uma metafísica, uma física materialista e, mais precisamente, atomista, bastante semelhante à de Demócrito. O mundo material é constituído de corpúsculos, qualitativamente idênticos, diversos apenas por grandeza, forma e posição. Estes corpúsculos são animados por uma força, em virtude da qual se agrupam em determinados complexos, que constituem as formas baconianas.

FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Immanuel Kant

Immanuel Kant nasceu, estudou, lecionou e morreu em Koenigsberg. Jamais deixou essa grande cidade da Prússia Oriental, cidade universitária e também centro comercial muito ativo para onde afluíam homens de nacionalidade diversa: poloneses, ingleses, holandeses. A vida de Kant foi austera (e regular como um relógio). Levantava-se às 5 horas da manhã, fosse inverno ou verão, deitava-se todas as noites às dez horas e seguia o mesmo itinerário para ir de sua casa à Universidade. Duas circunstâncias fizeram-no perder a hora: a publicação do Contrato Social de Rosseau, em 1762, e a notícia da vitória francesa em Valmy, em 1792. Segundo Fichte, Kant foi "a razão pura encarnada".
Kant sofreu duas influências contraditórias: a influência do pietismo, protestantismo luterano de tendência mística e pessimista (que põe em relevo o poder do pecado e a necessidade de regeneração), que foi a religião da mãe de Kant e de vários de seus mestres, e a influência do racionalismo: o de Leibnitz, que Wolf ensinara brilhantemente, e o da Aufklärung (a Universidade de Koenigsberg mantinha relações com a Academia Real de Berlim, tomada pelas novas ideias). Acrescentemos a literatura de Hume que "despertou Kant de seu sono dogmático" e a literatura de Russeau, que o sensibilizou em relação do poder interior da consciência moral.
A primeira obra importante de Immanuel Kant - assim como uma das últimas, o Ensaio sobre o mal radical - consagra-o ao problema do mal: o Ensaio para introduzir em filosofia a noção de grandeza negativa (1763) opõe-se ao otimismo de Leibnitz, herdeiro do otimismo dos escoláticos, assim como do da Aufklärung. O mal não é a simples "privatio bone", mas o objeto muito positivo de uma liberdade malfazeja. Após uma obra em que Kant critica as ilusões de "visionário" de Swedenborg (que pretende tudo saber sobre o além), segue-se a Dissertação de 1770, que vale a seu autor a nomeação para o cargo de professor titular (professor "ordinário", como se diz nas universidades alemãs).
Nela, Kant distingue o conhecimento sensível (que abrange as instituições sensíveis) e o conhecimento inteligível (que trata das ideias metafísicas). Em seguida, surgem as grandes obras da maturidade, onde o criticismo kantiano é exposto. Em 1781, temos a Crítica da Razão Pura, cuja segunda edição, em 1787, explicará suas intenções "críticas" (um estudo sobre os limites do conhecimento). Os prolegômenos a toda metafísica futura (1783) estão para a Crítica da Razão Pura assim como a Investigação sobre o entendimento de Hume está para o Tratado da Natureza Humana: uma simplificação brilhante para o uso de um público mais amplo. A Crítica da Razão Pura explica essencialmente porque as metafísicas são voltadas ao fracasso e porque a razão humana é impotente para conhecer o fundo das coisas. A moral de Kant é exposta nas obras que se seguem: o Fundamento da Metafísica dos Costumes (1785) e a Crítica da Razão Prática (1788). Finalmente, a Crítica do Juízo (1790) trata das noções de beleza (e da arte) e de finalidade, buscando, desse modo, uma passagem que una o mundo da natureza, submetido à necessidade, ao mundo moral onde reina a liberdade.
Kant encontrara proteção e admiração em Frederico II. Seu sucessor, Frederico-Guilherme II, menos independente dos meios devotos, inquietou-se com a obra publicada por Kant em 1793 e que, apesar do título, era profundamente espiritualista e anti-Aufklärung: A religião nos limites da simples razão. Ele fez com que Kant se obrigasse a nunca mais escrever sobre religião, "como súdito fiel de Sua Majestade". Kant, por mais inimigo que fosse da restrição mental, achou que essa promessa só o obrigaria durante o reinado desse príncipe! E, após o advento de Frederico-Guilherme III, não hesitou em tratar, no Conflito das Faculdades (1798), do problema das relações entre a religião natural e a religião revelada! Dentre suas últimas obras citamos A doutrina do direito, A doutrina da virtude e seu Ensaio filosófico sobre a paz perpétua (1795).

A Ciência e a Metafísica

O método de Immanuel Kant é a "crítica", isto é, a análise reflexiva. Consiste em remontar do conhecimento às condições que o tornam eventualmente legítimo. Em nenhum momento Kant duvida da verdade da física de Newton, assim como do valor das regras morais que sua mãe e seus mestres lhe haviam ensinado. Não estão, todos os bons espíritos, de acordo quanto à verdade das leis de Newton? Do mesmo modo todos concordam que é preciso ser justo, que a coragem vale mais do que do que a covardia, que não se deve mentir, etc... As verdades da ciência newtoniana, assim como as verdades morais, são necessárias (não podem não ser) e universais (valem para todos os homens e em todos os tempos). Mas, sobre que se fundam tais verdades? Em que condições são elas racionalmente justificadas? Em compensação, as verdades da metafísica são objeto de incessantes discussões. Os maiores pensadores estão em desacordo quanto às proposições da metafísica. Por que esse fracasso?
Os juízos rigorosamente verdadeiros, isto é, necessários e universais, são a priori, isto é independentes dos azares da experiência, sempre particular e contigente. À primeira vista, parece evidente que esses juízos a priori são juízos analíticos. Juízo analítico é aquele cujo predicado está contido no sujeito. Um triângulo é uma figura de três ângulos: basta-me analisar a própria definição desse termo para dizê-lo. Em compensação, os juízos sintéticos, aqueles cujo atributo enriquece o sujeito (por exemplo: esta régua é verde), são naturalmente a posteriori; só sei que a régua é verde porque a vi. Eis um conhecimento sintético a posteirori que nada tem de necessário (pois sei que a régua poderia não ser verde) nem de universal (pois todas as réguas não são verdes).
Entretanto, também existem (este enigma é o ponto de partida de Kant) juízos que são, ao mesmo tempo, sintéticos e a priori! Por exemplo:a soma dos ângulos de um triângulo equivale a dois retos. Eis um juízo sintético (o valor dessa soma de ângulos acrescenta algo à ideia de triângulo) que, no entanto, é a priori. De fato eu não tenho necessidade de uma constatação experimental para conhecer essa propriedade. Tomo conhecimento dela sem ter necessidade de medir os ângulos com um transferidor. Faço-o por intermédio de uma demonstração rigorosa. Também em física, eu digo que o aquecimento da água é a causa necessária de sua ebulição (se não houvesse aí senão uma constatação empírica, como acreditou Hume, toda ciência, enquanto verdade necessária e universal, estaria anulada). Como se explica que tais juízos sintéticos e a priori sejam possíveis?
Eu demonstro o valor da soma dos ângulos do triângulo fazendo uma construção no espaço. Mas por que a demonstração se opera tão bem em minha folha de papel quanto no quadro negro... ou quanto no solo em que Sócrates traçava figuras geométricas para um escravo? É porque o espaço, assim como o tempo, é um quadro que faz parte da própria estrutura de meu espírito. O espaço e o tempo são quadros a priori, necessários e universais de minha percepção (o que Kant mostra na primeira parte da Crítica da Razão Pura, denominada Estética transcendental. Estética significa teoria da percepção, enquanto transcendental significa a priori, isto é, simultaneamente anterior à experiência e condição da experiência). O espaço e o tempo não são, para mim, aquisições da experiência. São quadros a priori de meu espírito, nos quais a experiência vem se depositar. Eis por que as construções espaciais do geômetra, por mais sintéticas que sejam, são a priori, necessárias e universais. Mas o caso da física é mais complexo. Aqui, eu falo não só do quadro a priori da experiência, mas, ainda, dos próprios fenômenos que nela ocorrem. Para dizer que o calor faz ferver a água, é preciso que eu constate. Como, então, os juízos do físico podem ser a priori, necessários e universais?
É porque, responde Kant, as regras, as categorias, pelas quais unificamos os fenômenos esparsos na experiência, são exigências a priori do nosso espírito. Os fenômenos, eles próprios, são dados a posteriori, mas o espírito possui, antes de toda experiência concreta, uma exigência de unificação dos fenômenos entre si, uma exigência de explicação por meio de causas e efeitos. Essas categorias são necessárias e universais. O próprio Hume, ao pretender que o hábito é a causa de nossa crença na causalidade, não emprega necessariamente a categoria a priori de causa na crítica que nos oferece? "Todas as intuições sensíveis estão submetidas às categorias como às únicas condições sob as quais a diversidade da intuição pode unificar-se em uma consciência". Assim sendo, a experiência nos fornece a matéria de nosso conhecimento, mas é nosso espírito que, por um lado, dispõe a experiência em seu quadro espacio-temporal (o que Kant mostrará na Estética transcendental) e, por outro, imprime-lhe ordem e coerência por intermédio de suas categorias (o que Kant mostra na Analítica transcendental). Aquilo a que denominamos experiência não é algo que o espírito, tal como cera mole, receberia passivamente. É o próprio espírito que, graças às suas estruturas a priori, constrói a ordem do universo. Tudo o que nos aparece bem relacionado na natureza, foi relacionado pelo espírito humano. É a isto que Kant chama de sua revolução copernicana. Não é o Sol, dissera Copérnico, que gira em torno da Terra, mas é esta que gira em torno daquele. O conhecimento, diz Kant, não é o reflexo do objeto exterior. É o próprio espírito humano que constrói - com os dados do conhecimento sensível - o objeto do seu saber.
Na terceira parte de sua Crítica da Razão Pura, na dialética transcendental, Kant se interroga sobre o valor do conhecimento metafísico. As análises precedentes, ao fundamentar solidamente o conhecimento, limitam o seu alcance. O que é fundamentado é o conhecimento científico, que se limita a por em ordem, graças às categorias, os materiais que lhe são fornecidos pela intuição sensível.
No entanto, diz Immanuel Kant, é por isso que não conhecemos o fundo das coisas. Só conhecemos o mundo refratado através dos quadros subjetivos do espaço e do tempo. Só conhecemos os fenômenos e não as coisas em si ou noumenos. As únicas intuições de que dispomos são as intuições sensíveis. Sem as categorias, as intuições sensíveis seriam "cegas", isto é, desordenadas e confusas, mas sem as intuições sensíveis concretas as categorias seriam "vazias", isto é, não teriam nada para unificar. Pretender como Platão, Descartes ou Spinoza que a razão humana tem intuições fora e acima do mundo sensível, é passar por "visionário" e se iludir com quimeras: "A pomba ligeira, que em seu vôo livre fende os ares de cuja resistência se ressente, poderia imaginar que voaria ainda melhor no vácuo. Foi assim que Platão se aventurou nas asas das ideias, nos espaços vazios da razão pura. Não se apercebia que, apesar de todos os seus esforços, não abria nenhum caminho, uma vez que não tinha ponto de apoio em que pudesse aplicar suas forças".
Entretanto, a razão não deixa de construir sistemas metafísicos porque sua vocação própria é buscar unificar incessantemente, mesmo além de toda experiência possível. Ela inventa o mito de uma "alma-substância" porque supõe realizada a unificação completa dos meus estados d'alma no tempo e o mito de um Deus criador porque busca um fundamento do mundo que seja a unificação total do que se passa neste mundo... Mas privada de qualquer ponto de apoio na experiência, a razão, como louca, perde-se nas antinomias, demonstrando, contrária e favoravelmente, tanto a tese quanto a antítese (por exemplo: o universo tem um começo? Sim pois o infinito para trás é impossível, daí a necessidade de um ponto de partida. Não, pois eu sempre posso me perguntar: que havia antes do começo do universo?). Enquanto o cientista faz um uso legítimo da causalidade, que ele emprega para unificar fenômenos dados na experiência (aquecimento e ebulição), o metafísico abusa da causalidade na medida em que se afasta deliberadamente da experiência concreta (quando imagino um Deus como causa do mundo, afasto-me da experiência, pois so o mundo é objeto de minha experiência). O princípio da causalidade, convite à descoberta, não deve servir de permissão para inventar.

Thomás Hobbes   

Thomás Hobbes nasceu em Westport, em 1588. Filho de clérigo, Hobbes, em 1608, sai da Universidade de Oxford e se torna preceptor do filho de Lord Cavendish. Durante toda sua vida, ele será o amigo devotado dos Stuarts. Antes mesmo da revolução de 1648, que vai suprimir o poder real, ele foge da Inglaterra, onde se sente ameaçado por causa de suas convicções monarquistas. Viajará por diversos países da Europa, notadamente pela Itália (encontrará Galileu em Florença) e sobretudo pela França (encontrará o padre Mersenne em Paris). Retornará à Inglaterra por ocasião da restauração de Carlos II em 1660.
Em 1642, ele publica em Paris o De Cive e, em 1651, faz publicar em Londres o Leviatã ou matéria, forma e autoridade de uma comunidade eclesiástica e civil. O Leviatã será traduzido para o latim em 1688, em Amsterdam, mas nunca foi integralmente traduzido para o francês.
Hobbes é um empirista inglês e nele encontramos os temas fundamentais que serão sempre os da escola. A origem de todo conhecimento é a sensação, princípio original do conhecimento dos próprios princípios: a imaginação é um agrupamento inédito de fragmentos de sensação e a memória nada mais é do que o reflexo de antigas sensações.
Todavia, Hobbes crê na possibilidade de uma lógica pura, de um raciocínio demonstrativo muito rigoroso. Ao lado de uma indução empírica aproximativa, que da experiência passada conclui, sem prova decisiva, o que se passará amanhã (e que não tem outro fundamento além da associação de ideias, the trayan of imagination), Hobbes admite a existência de uma lógica pura, perfeitamente racional. Mas a essa lógica só concernem símbolos, palavras (Hobbes é nominalista). Se definirmos rigorosamente as palavras e as regras do emprego dos signos, podemos chegar a conclusões rigorosas, isto é, idênticas aos princípios de que partimos. Mas trata-se de um jogo do pensamento, estranho às realidades concretas.
A filosofia de Hobbes é materialista e mecanicista. Assim como a percepção é explicada mecanicamente a partir das excitações transmitidas pelo cérebro, assim a moral se reduz ao interesse e à paixão. Na fonte de todos os nossos valores, há o que Hobbes denomina endeavour, em inglês, e conatus, em latim, isto é, o instinto de conservação ou, mais exatamente, de afirmação e de crescimento de si próprio; esforço próprio a todos os seres para unir-se ao que lhes agrada e fugir do que lhes desagrada (esse tema do conatus será reencontrado no spinozismo).
É partindo de tais fundamentos psicológicos que Hobbes elabora sua justificação do despotismo. O absolutismo da época de Hobbes geralmente se apóia na teologia (Deus teria investido os reis de seu poder absoluto). Hobbes, ao justificar o poder absoluto do soberano, descobre-lhe uma origem natural.
Para ele, o direito, em todos os casos, reduz-se à força; mas distingue dois momentos na história da humanidade: o estado natural e o estado político. No estado natural, o poder de cada um é medido por seu poder real; cada um tem exatamente tanto de direito quanto de força e todos só pensam na própria conservação e nos interesses pessoais. Para Hobbes, o homem se distingue dos insetos sociais, como as abelhas e as formigas; por isso, o homem não possui instinto social. Ele não é sociável por natureza e só o será por acidente.
Para compreender como o homem se resolve a criar a instituição artificial do governo, basta descrever o que se passa no estado natural; o homem, por natureza, procura ultrapassar todos os seus semelhantes: ele não busca apenas a satisfação de suas necessidades naturais, mas sobretudo as alegrias da vaidade (pride). O maior sofrimento é ser desprezado. Assim sendo, o ofendido procura vingar-se, mas - observa Hobbes, antecipando aqui os temas hegelianos - comumente não deseja a morte de seu adversário e deseja seu cativeiro a fim de poder ler, em seu olhar atemorizado e submisso, o reconhecimento de sua própria superioridade.
É claro que esse estado, em que cada um procura senão a morte, ao menos a sujeição do outro, é um estado extremamente infeliz. As expressões pelas quais Hobbes o descreve são célebres: "Homo homini lupus", o homem é o lobo do homem; "Bellum omnium contra omnes", é a guerra de todos contra todos. Não pensemos que mesmo os homens mais robustos desfrutem tranqüilamente as vitórias que sua força lhe assegura. Aquele que possui grande força muscular não está ao abrigo da astúcia do mais fraco. Este último - por maquinação secreta ou a partir de hábeis alianças - sempre é o suficientemente forte para vencer o mais forte. Por conseguinte, ao invés de uma desigualdade, é uma espécie de igualdade dos homens no estado natural que faz sua infelicidade. Pois, em definitivo, ninguém está protegido; o estado natural é, para todos, um estado de insegurança e de angústia.
Assim sendo, o homem sempre tem medo de ser morto ou escravizado e esse temor, em última instância mais poderoso do que o orgulho, é a paixão que vai dar a palavra à razão. (Essa psicologia da vaidade e do medo é, em Hobbes, uma espécie de laicização da oposição teológica entre o orgulho espiritual e o temor a Deus ou humildade.) É o medo, portanto, que vai obrigar os homens a fundarem um estado social e a autoridade política.
Os homens, portanto, vão se encarregar de estabelecer a paz e a segurança. Só haverá paz concretizável se cada um renunciar ao direito absoluto que tem sobre todas as coisas. Isto só será possível se cada um abdicar de seus direitos absolutos em favor de um soberano que, ao herdar os direitos de todos, terá um poder absoluto. Não existe aí a intervenção de uma exigência moral. Simplesmente o medo é maior do que a vaidade e os homens concordam em transmitir todos os seus poderes a um soberano. Quanto a este último, notemo-lo bem, ele é o senhor absoluto desde então, mas não possui o menor compromisso em relação a seus súditos.
Seu direito não tem outro limite que seu poder e sua vontade. No estado de sociedade, como no de natureza, a força é a única medida do direito. No estado social, o monopólio da força pertence ao soberano. Houve, da parte de cada indivíduo, uma atemorizada renúncia do seu próprio poder. Mas não houve pacto nem contrato, o que houve, como diz Halbwachs, foi "uma alienação e não uma delegação de poderes". O efeito comum do poder consistirá, para todos, na segurança, uma vez que o soberano terá, de fato, o maior interesse em fazer reinar a ordem se quiser permanecer no poder. Apesar de tudo, esse poder absoluto permanece um poder de fato que encontrará seus limites no dia em que os súditos preferirem morrer do que obedecer. Em todo caso, esta á a origem psicológica que Hobbes atribui ao poder despótico. Ele chama de Leviatã ao seu estado totalitário em lembrança de uma passagem da Bíblia (Jó XLI) em que tal palavra designa um animal monstruoso, cruel e invencível que é o rei dos orgulhosos.
Finalmente, o totalitarismo de Hobbes submete - apesar de prudentes reservas - o poder religioso ao poder político. Assim é que ele exclui o "papismo" e o "presbiterianismo" por causa "dessa autoridade que alguns concedem ao papa em reinos que não lhe pertencem ou que alguns bispos, em suas dioceses, querem usurpar".

O Estado Natural e o Pacto Social


Leviatã, 1.ª parte: Do Homem


Cap. XIII


... O Estado de natureza, essa guerra de todos contra todos tem por consequência o fato de nada ser injusto. As noções de certo e errado, de justiça e de injustiça não têm lugar nessa situação. Onde não há Poder comum, não há lei; onde não há lei, não há injustiça: força e astúcia são virtudes cardeais na guerra. Justiça e injustiça não pertencem à lista das faculdades naturais do Espírito ou do Corpo; pois, nesse caso, elas poderiam ser encontradas num homem que estivesse sozinho no mundo (como acontece com seus sentidos ou suas paixões). Na realidade, justiça e injustiça são qualidades relativas aos homens em sociedade, não ao homem solitário. A mesma situação de guerra não implica na existência da propriedade... nem na distinção entre o Meu e o Teu, mas apenas no fato de que a cada um pertence aquilo que for capaz de o guardar. Eis então, e por muito tempo, a triste condição em que o homem é colocado pela natureza com a possibilidade, é bem verdade, de sair dela, possibilidade que, por um lado, se apóia na Paixões e, por outro, em sua Razão. As paixões que inclinam o homem para a paz são o temor à morte violenta e o desejo de tudo o que é necessário a uma vida confortável... E a Razão sugere artigos de paz convenientes sobre os quais os homens podem ser levados a concordar.


Cap. XIV


... O direito natural que os escritores comumente chamam de Jus naturale é a Liberdade que tem cada um de se servir da própria força segundo sua vontade, para salvaguardar sua própria natureza, isto é, sua própria vida. E porque a condição humana é uma condição de guerra de cada um contra cada um... daí resulta que, nessa situação, cada um tem direito sobre todas as coisas, mesmo até o corpo dos outros... Enquanto dura esse direito natural de cada um sobre tudo e todos, não pode existir para nenhum homem (por mais forte ou astucioso que seja) a menor segurança...


Cap. XV


... Antes que se possa utilizar das palavras justo e injusto, é preciso que haja um Poder constrangedor; inicialmente, para forçar os homens a executar seus pactos pelo temor de uma punição maior do que o benefício que poderiam esperar se os violassem, em seguida, para garantir-lhes a propriedade do que adquirem por Contrato mútuo em substituição e no lugar do Direito universal que perdem. E não existe tal poder constrangedor antes da instituição de um Estado. É o que também resulta da definição que as Escolas dão geralmente da justiça, a saber, que a justiça é a vontade de atribuir a cada um o que lhe cabe pertencer; pois, quando nada é próprio, ou seja, quando não há propriedade, não há injustiça; e onde não há Poder Constrangedor estabelecido, em outras palavras, onde não há Estado, não há Propriedade e cada homem tem direito a todas as coisas. Por conseguinte, enquanto não há Estado, nada há que seja Injusto.


JEAN-JAQUE ROUSSEAU 


Filósofo e romancista suíço de língua francesa (28/6/1712-2/7/1778). Considerado o representante mais radical do iluminismo e um dos ideólogos da Revolução Francesa. Nasce em Genebra. Órfão de mãe, é abandonado pelo pai aos 10 anos e entregue aos cuidados de um pastor. Em 1728 vai para Annecy, na França. Muda-se para Paris 13 anos depois, onde se torna amigo do filósofo Denis Diderot e escreve para a Enciclopédia. Em Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens (1755), afirma que o homem nasce bom e sem vícios – o bom selvagem –, mas é pervertido pela sociedade civilizada. Em sua obra mais conhecida, O Contrato Social (1762), defende um Estado baseado na democracia e voltado para o bem comum e para a vontade geral. É o primeiro a atribuir soberania ao povo. Prega liberdade, igualdade e fraternidade, lema assumido pela Revolução Francesa. Escreve também romances, como Júlia ou a Nova Heloísa, que obtêm grande sucesso, tratados sobre música e uma ópera, O Adivinho da Aldeia. Suas ideias causam polêmica com outros pensadores e com as autoridades francesas. Obrigado a sair do país, exila-se na Inglaterra, mas volta para Paris em 1770. Mais tarde se muda para o castelo do marquês de Girardin, em Ermenonville, onde morre.

John Locke   

Sobre a linha do desenvolvimento do empirismo, Locke representa um progresso em confronto com os precedentes: no sentido de que a sua gnosiologia fenomenista-empirista não é dogmaticamente acompanhada de uma metafísica mais ou menos materialista. Limita-se a nos oferecer, filosoficamente, uma teoria do conhecimento, mesmo aceitando a metafísica tradicional, e do senso comum pelo que concerne a Deus, à alma, à moral e à religião. Com relação à religião natural, não muito diferente do deísmo abstrato da época; o poder político tem o direito de impor essa religião, porquanto é baseada na razão. Locke professa a tolerância e o respeito às religiões particulares, históricas, positivas.
Locke viajou fora da Inglaterra, especialmente em França, onde ampliou o seu horizonte cultural, entrou em contato com movimentos filosóficos diversos, em especial com o racionalismo. Tornou-se mais consciente do seu empirismo, que procurou completar com elementos racionalistas (o que, entretanto, representa um desvio na linha do desenvolvimento do empirismo, procedente de Bacon até Hume).

Vida e Obras 


João Locke nasceu em Wrington, em 1632. Estudou na Universidade de Oxford filosofia, ciências naturais e medicina. Em 1665 foi enviado para Brandenburgo como secretário de legação. Passou, em seguida, ao serviço de Loed Ashley, futuro conde de Shaftesbury, a quem ficou fiel também nas desgraças políticas. Foi, portanto, para a França, onde conheceu as personalidades mais destacadas da cultura francesa do "grand siècle". Em 1683 refugiou-se na Holanda, aí participando no movimento político que levou ao trono da Inglaterra Guilherme de Orange. De volta à pátria, recusou o cargo de embaixador e dedicou-se inteiramente aos estudos filosóficos, morais, políticos. Passou seus últimos anos de vida no castelo de Oates (Essex), junto de Sir Francisco Masham. Faleceu em 1704.

As suas obras filosóficas mais notáveis são: o Tratado do Governo Civil (1689); o Ensaio sobre o Intelecto Humano (1690); os Pensamentos sobre a Educação (1693). As dontes principais do pensamento de Locke são: o nominalismo escolástico, cujo centro famoso era Oxford; o empirismo inglês da época; o racionalismo cartesiano e a filosofia de Malebranche.


O Pensamento: A Gnosiologia


Locke julga, como Bacon, que o fim da filosofia é prático. Entretanto - diversamente de Bacon, que julgava fim da filosofia o conhecimento da natureza para dominá-la (fim econômico) - Locke pensa que o fim da filosofia é essencialmente moral; quer dizer: a filosofia deve proporcionar uma norma racional para a vida do homem. E, como os seus predecessores empiristas, ele sente, antes de mais nada, a necessidade de instituir uma investigação sobre o conhecimento humano, elaborar uma gnosiologia, para achar um critério de verdade. Podemos dizer que a sua filosofia se limita a este problema gnosiológico, para logo passar a uma filosofia moral (e política, pedagógica, religiosa), sem uma adequada e intermédia metafísica.
Locke não parte, realisticamente, do ser, e sim, fenomenisticamente, do pensamento. No nosso pensamento acham-se apenas idéias (no sentido genérico das representações): qual é a sua origem e o seu valor? Locke exclui absolutamente as idéias e os princípios que deles se formam, derivam da experiência; antes da experiência o espírito é como uma folha em branco, uma tabula rasa.
No entanto, a experiência é dúplice: externa e interna. A primeira realiza-se através da sensação, e nos proporciona a representação dos objetos (chamados) externos: cores, sons, odores, sabores, extensão, forma, movimento, etc. A segunda realiza-se através da reflexão, que nos proporciona a representação das próprias operações exercidas pelo espírito sobre os objetos da sensação, como: conhecer, crer, lembrar, duvidar, querer, etc. Nas idéias proporcionadas pela sensibilidade externa, Locke distingue as qualidades primárias, absolutamente objetivas, e as qualidades secundárias, subjetivas (objetivas apenas em sua causa).
As idéias ou representações dividem-se em idéias simples e idéias complexas, que são uma combinação das primeiras. Perante as idéias simples - que constituem o material primitivo e fundamental do conhecimento - o espírito é puramente passivo; pelo contrário, é ele ativo na formação das idéias complexas. Entre estas últimas, a mais importante é a substância: que nada mais seria que uma coleção constante de idéias simples, referida pelo espírito a um misterioso substrato unificador. O espírito é também ativo nas sínteses que são as idéias de relação, e nas análises que são as idéias gerais. Às idéias de ralação pertencem as relações temporais e espaciais e de idéias simples dos complexos a que pertencem e da universalização da idéia assim isolada, obtendo-se, desse modo, a idéia abstrata (por exemplo, a brancura). Locke é, mais ou menos, nominalista: existem, propriamente, só indivíduos com uma essência individual, e as idéias gerais não passam de nomes, que designam caracteres comuns a muitos indivíduos. Entretanto, os nomes que designam uma idéia abstrata, isto é, uma propriedade semelhante em muitas coisas, têm um valor e um escopo práticos: auxiliar os homens a se conduzirem na vida.
Dado o nominalismo de Locke, compreende-se como, para ele, é impossível a ciência verdadeira da natureza, considerada como conhecimento das leis universais e necessárias. Locke julga também inaplicável à natureza a matemática - reconhecendo-lhe embora o caráter de verdadeira ciência - isto é, não acredita na físico-matemática, à maneira de Galileu. Entretanto, mesmo que a ciência da natureza não nos desse senão a probabilidade, a opinião, seria útil enquanto prática.
Até aqui foram analisados e descritos os conteúdos de consciência. É mister agora propor a questão do seu valor lógico. Costuma-se dizer que as idéias são "verdadeiras ou falsas"; melhor seria chamá-las "justas ou erradas", porque, propriamente, "a verdade e a falsidade pertencem às proposições", em que se afirma ou se nega uma relação entre duas idéias. E esta relação, afirmada ou negada, pode ser precisamente falsa ou verdadeira. O conhecimento da relação positiva ou negativa entre as ideias é, segundo Locke, de dois tipos: intuitivo e demonstrativo. No primeiro caso a relação é colhida intuitiva, imediata e evidentemente. Por exemplo: 3 = 2 + 1. No segundo caso a relação é colhida mediatamente, recorrendo às ideias intermediárias, ao raciocínio. Por exemplo: a existência de Deus demonstrada pela nossa existência e pelo princípio de causalidade. Naturalmente, a demonstração é inferior à intuição.

Ideias Metafísicas


Estamos, porém, ainda fechados no mundo subjetivo, fenomênico; de fato, tratou-se, até agora, de relações positivas ou negativas, concordes ou desacordes com as ideias. Podemos nós sair desse mundo subjetivo e atingir o mundo objetivo, isto é, podemos conhecê-lo imediatamente ou mediatamente na sua existência e na sua natureza? Locke afirma-o, sem mostrar, entretanto, como este conhecimento do mundo externo possa concordar com a sua geral (fenomenista) concepção e definição do conhecimento. É a sólita posição de um fenomenismo ainda não plenamente consciente de si mesmo. Corta as relações com o ser e vai para o fenomenismo absoluto, mas tem ainda saudade desse ser do qual se isolou.
Em todo caso, Locke acredita poder atingir, antes de tudo, o nosso ser, depois o de Deus, e, finalmente, o das coisas. O nosso ser seria intuitivamente percebido através da reflexão. A existência de Deus seria racionalmente demonstrada mediante o princípio de causa, partindo do conhecimento imediato de uma outra existência (a nossa). A existência das coisas, alfim, seria sentida invencivelmente, porque nos sentimos passivos em nossas sensações, que deveriam ser causadas por seres externos a nós.
Entretanto, pelo que diz respeito ao nosso ser, é mister ter presente que nós não conhecemos intuitivamente a substância da alma, e sim as suas atividades. Pelo que diz respeito a Deus, a prova da sua existência vale, se vale absolutamente o princípio de causa - o que Locke não demonstrou. Enfim, pelo que diz respeito às coisas externas, mesmo admitida a prova aduzida por Locke - segundo a confissão do próprio filósofo - tal prova vale apenas pelo que concerne à existência das coisas, e não pelo que concerne à natureza delas. De fato, segundo a filosofia de Locke, não sabemos se as ideias da natureza das coisas correspondem à realidade das coisas.

Moral e Política


Locke não admite, naturalmente, ideias e princípios inatos nem sequer no campo da moral. A sua moral, todavia, é muito mais intelectualista do que empirista, pois ele lhe reconhece o caráter de verdadeira ciência, universal e necessária.
Entretanto, não basta ter construído uma moral em abstrato, embora racional. É preciso torná-la praticamente eficaz, isto é, faz-se mister uma obrigação moral, que se imponha à nossa vontade. Ora, visto que é natural, no homem, a tendência para o próprio bem-estar, é natural que ele seja atingido pelas penas, pelas sanções, que precisamente lhe impedem tal realização. Que parte tem a liberdade da vontade em tudo isto? Locke nega, propriamente, o livre arbítrio, porquanto nós nos inclinamos necessariamente para um bem determinado e devemos desejar o bem maior.
Quanto à política, Locke deriva a lei civil da lei natural, racional, moral, em virtude da qual todos os homens - como seres racionais - são livre iguais, têm direito à vida e à propriedade; e, entretanto na vida política, não podem renunciar a estes direitos, sem renunciar à própria dignidade, à natureza humana. Locke admite um originário estado de natureza antes do estado civilizado. Não, porém, no sentido brutal e egoísta de inimizade universal, como dizia Hobbes; mas em um sentido moral, em virtude do qual cada um sente o dever racional de respeitar nos outros a mesma personalidade que nele se encontra.
Também Locke admite a passagem do estado de natureza ao estado civilizado, porquanto, no primeiro, falta a certeza e a regularidade da defesa e da punição, que existe no segundo, graças à autoridade do superior. Entretanto, estipulando este contrato social, os indivíduos não renunciam a todos os direitos, porquanto os direitos que constituem a natureza humana (vida, liberdade, bens), são inalienáveis; mas renunciam unicamente ao direito de defesa e de fazer justiça, para conseguir que os direitos inalienáveis sejam melhor garantidos. Antes, se o estado violasse esses direitos inalienáveis, os indivíduos teriam o direito e o dever de a ele resistir e de se revoltar contra o poder usurpador. A doutrina política de Locke, contida no seu Tratado sobre o Governo Civil, é a expressão teórica do constitucionalismo liberal inglês, em contraste com a doutrina do absolutismo naturalista de Hobbes.

 Ideias pedagógicas




Com respeito à religião, Locke toma uma atitude racionalista moderada. Admite uma religião natural, exigível também politicamente, porquanto fundamentada na razão. E professa a tolerância a respeito das religiões particulares, históricas, positivas.
Locke interessou-se especialmente pelos problemas pedagógicos, escrevendo os Pensamentos sobre a Educação. Aí afirma a nossa passividade, pois nascemos todos ignorantes e recebemos tudo da experiência; mas, ao mesmo tempo, afirma a nossa parte ativa, enquanto o intelecto constrói a experiência, elaborando as ideias simples.
Afirma-se que todos nascemos iguais, dotados de razão; mas, ao mesmo tempo, todos temos temperamentos diferentes, que devem ser desenvolvidos de conformidade com o temperamento de cada um. Esta educação individual não exclui, mas implica a educação, a formação social, para ampliar, enriquecer a própria personalidade. Tem muita importância a obra do educador, mas é fundamental a colaboração do discípulo, pois trata-se da formação do intelecto, da razão, que é, necessariamente, autônoma. A formação educacional consiste, portanto, fundamentalmente, no desenvolvimento do intelecto mediante a moral, precisamente pelo fato de que se trata de formar seres conscientes, livres, senhores de si mesmos. Por conseguinte, a educação deve ser formativa, desenvolvendo o intelecto, e não informativa, erudita, mnemônica. Igualmente Locke é fautor de educação física, mas como o meio para o domínio de si mesmo.

O Idealismo Lógico: Hegel   


Com o idealismo absoluto de Hegel, o idealismo fenomênico kantiano alcança logicamente o seu vértice metafísico. Hegel fica fiel ao historicismo romântico, concebendo a realidade como vir-a-ser, desenvolvimento. Este vir-a-ser, porém, é racionalizado por Hegel, elevado a processo dialético; e este processo dialético não é um movimento a quo adi quod, e sim um processo circular, emanentista.
Jorge Guilherme Frederico Hegel nasceu em Stutgart, em 1770. Estudou teologia e filosofia. Interessou-se pelos problemas religiosos e políticos, simpatizando-se pelo criticismo e pelo iluminismo; em seguida se dedicou ao historicismo romântico. Aproximou-se dos sistemas de Fichte e de Schelling, afastando-se deles em seguida até combatê-los quando professor nas universidades de Jena, Heidelberg e Berlim. Nessa última universidade lecionou até há morte, adquirindo grande renome e exercendo vasta influência. Faleceu em 1831 vítima de cólera. Renunciara, entrementes, aos ideais revolucionários e críticos, para favorecer as tendências absolutistas e intransigentes do estado prussiano.
Em seus últimos anos, torna-se suspeito de panteísmo; alguns o ridicularizaram (apelidando-o de Absolutus von Hegelingen); corre o boato de que ele duvida da imortalidade da alma. Na realidade, Hegel era ao mesmo tempo suficientemente prudente e sufucientemente hermético para que se tornasse muito difícil fazer-lhe acusações precisas dessa ordem! O poeta Heinrich Heine, que seguiu seus cursos de 1821 a 1823, conta, no entanto, que ele, um dia, respondeu bruscamente a um estudante que lhe falava do Paraíso: "O senhor então precisa de uma gorjeta porque cuidou de sua mãe enferma e porque não envenenou ninguém!" Em todo caso, o futuro mostraria amplamente que a filosofia do pensador oficial da monarquia escondia um grande poder explosivo!
Como a filosofia de Spinoza, a de Hegel é uma filosofia da inteligibilidade total, da imanência absoluta. A razão aqui não é apenas, como em Kant, o entendimento humano, o conjunto dos princípios e das regras segundo as quais pensamos o mundo. Ela é igualmente a realidade profunda das coisas, a essência do próprio Ser. Ela é não só um modo de pensar as coisas, mas o próprio modo de ser das coisas: "O racional é real e o real é racional". Podemos, portanto, considerar Hegel como o filósofo idealista por excelência, uma vez que, para ele, o fundo do Ser (longe de ser uma coisa em si inacessível) é, em definitivo, Ideia, Espírito. Sua filosofia representa, ao mesmo tempo, com relação à crítica kantiana do conhecimento, um retorno à ontologia. É o ser em sua totalidade que é significativo e cada acontecimento particular no mundo só tem sentido finalmente em função do Absoluto do qual não é mais do que um aspecto ou um momento.
Hegel porém se distingue de Spinoza e surge para nós como um filósofo essencialmente moderno, pois, para ele, o mundo que manifesta a Idéia não é uma natureza semelhante a si mesma em todos os tempos, que dizia que a leitura dos jornais era "sua prece matinal cotidiana", como todos os seus contemporâneos, muito meditou sobre a Revolução Francesa, e esta lhe mostra que as estruturas sociais, assim como os pensamentos dos homens, podem ser modificadas, subvertidas no decurso da história. O que há de original em seu idealismo é que, para Hegel, a idéia se manifesta como processo histórico: "A história universal nada mais é do que a manifestação da razão".
As principais obras de Hegel são: A Fenomenologia do Espírito; A Lógica; A Enciclopédia das Ciências Filosóficas; A Filosofia do Direito. Foi um gênio poderoso; sua cultura foi vastíssima, bem como a sua capacidade sistemática, tanto assim que se pode considerar o Aristóteles e o Tomás de Aquino do pensamento contemporâneo. No entanto, frequentemente deforma os fatos para enquadrá-los no esquema lógico do seu sistema racionalista-dialético, bem como altera este por interesses práticos e políticos.
É preciso compreender também que a história é um progresso. O vir-a-ser de muitas peripécias não é senão a história do Espírito universal que se desenvolve e se realiza por etapas sucessivas para atingir, no final, a plena posse, a plena consciência de si mesmo. "O absoluto, diz Hegel, só no final será o que ele é na realidade". O panteísmo de Spinoza identificava Deus com a natureza: Deus sive natura. O panteísmo hegeliano identifica Deus com a História. Deus não é o que é - ao menos só é parcial e muito provisoriamente o que atualmente é - Deus é o que se realizará na História. (Neste sentido, ainda há algo de hegeliano na filosofia de Teilhard de Chardin). Por conseguinte, a história, para Hegel, é uma odisséia do Espírito Universal", em suma, se nos permitem o jogo de palavras, uma "teodisséia". Consideremos a história da terra. De início só existem minerais, depois, vegetais e, em seguida, animais. Não temos a impressão de que seres cada vez mais complexos, cada vez mais organizados, cada vez mais autônomos surgem no Universo? O Espírito, de início adormecido, dissimulado e como que estranho a si mesmo, "alienado" no universo, surge cada vez mais manifestamente como ordem, como liberdade, logo como consciência. Esse progresso do Espírito continua e se concluirá através da história dos homens. Cada povo cada civilização, de certo modo, tem por missão realizar uma etapa desse progresso do Espírito. O Espírito humano é de início uma consciência confusa, um espírito puramente subjetivo, é a sensação imediata. Depois, ele consegue encarnar-se, objetivar-se sob a forma de civilizações, de instituições organizadas. Tal é o espírito objetivo que se realiza naquilo que Hegel chama de "o mundo da cultura". Enfim, o Espírito se descobre mais claramente na consciência artística e na consciência religiosa para finalmente apreender-se na Filosofia (notadamente na filosofia de Hegel, que pretende totalizar sob sua alçada todas as outras filosofias) como Saber Absoluto. Desse modo, a filosofia é o saber de todos os saberes: a sabedoria suprema que, no final, totaliza todas as obras da cultura (é só no crepúsculo, diz Hegel, que o pássaro de Minerva levanta vôo). Compreendemos bem, em todo caso, que, nessa filosofia puramente imanentista, Deus só se realiza na história. Em outras palavras, a forma de civilização que triunfa a cada etapa da história é aquela que, naquele momento, melhor exprime o Espírito. Após ter saudado em Napoleão "o espírito universal a cavalo", Hegel verá no estado prussiano de seu tempo a expressão mais perfeita do Espírito Absoluto. Por conseguinte, Hegel é daqueles que acham que a força não "oprime" o direito (essa fórmula, abusivamente atribuída a Bismarck, nada significa), mas que o exprime, que aquele que é vitorioso na História é, simultaneamente, o mais dotado de valor e que a virtude, como ele diz, "exprime o curso do mundo".
Segundo as normas da lógica clássica, essa identificação da Razão com o Devir histórico é absolutamente paradoxal. De fato, a lógica clássica considera que uma proposição fica demonstrada quando é reduzida, identificada a uma proposição já admitida. A lógica vai do idêntico ao idêntico. A história, ao contrário, é o domínio do mutável. O acontecimento de hoje é diferente do de ontem. Ele o contradiz. Aplicar a razão à história, por conseguinte, seria mostrar que a mudança é aparente, que no fundo tudo permanece idêntico. Aplicar a razão à história seria negar a história, recusar o tempo. Ora, contrariando tudo isso, o racionalismo de Hegel coloca o devir, a história, em primeiro plano. Como isso é possível?
É possível porque Hegel concebe um processo racional original - o processo dialético - no qual a contradição não mais é o que deve ser evitado a qualquer preço, mas, ao contrário, se transforma no próprio motor do pensamento, ao mesmo tempo em que é o motor da história, já que esta última não é senão o Pensamento que se realiza. Repudiando o princípio da contradição de Aristóteles e de Leibnitz, em virtude do qual uma coisa não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser, Hegel põe a contradição no próprio núcleo do pensamento e das coisas simultaneamente. O pensamento não é mais estático, ele procede por meio de contradições superadas, da tese à antítese e, daí, à sintese, como num diálogo em que a verdade surge a partir da discussão e das contradições. Uma proposição (tese) não pode se pôr sem se opor a outra (antítese) em que a primeira é negada, transformada em outra que não ela mesma ("alienada"). A primeira proposição encontrar-se-á finalmente transformada e enriquecida numa nova fórmula que era, entre as duas precedentes, uma ligação, uma "mediação" (síntese).

A Dialética

A dialética para Hegel é o procedimento superior do pensamento é, ao mesmo tempo, repetimo-la, "a marcha e o ritmo das próprias coisas". Vejamos, por exemplo, como o conceito fundamental de ser se enriquece dialeticamente. Como é que o ser, essa noção simultaneamente a mais abstrata e a mais real, a mais vazia e a mais compreensiva (essa noção em que o velho Parmênides se fechava: o ser é, nada mais podemos dizer), transforma-se em outra coisa? É em virtude da contradição que esse conceito envolve. O conceito de ser é o mais geral, mas também o mais pobre. Ser, sem qualquer qualidade ou determinação - é, em última análise, não ser absolutamente nada, é não ser! O ser, puro e simples, equivale ao não-ser (eis a antítese). É fácil ver que essa contradição se resolve no vir-a-ser (posto que vir-a-ser é não mais ser o que se era). Os dois contrários que engendram o devir (síntese), aí se reencontram fundidos, reconciliados.
Vejamos um exemplo muito célebre da dialética hegeliana que será um dos pontos de partida da reflexão de Karl Marx. Trata-se de um episódio dialético tirado da Fenomenologia do Espírito, o do senhor e o escravo. Dois homens lutam entre si. Um deles é pleno de coragem. Aceita arriscar sua vida no combate, mostrando assim que é um homem livre, superior à sua vida. O outro, que não ousa arriscar a vida, é vencido. O vencedor não mata o prisioneiro, ao contrário, conserva-o cuidadosamente como testemunha e espelho de sua vitória. Tal é o escravo, o "servus", aquele que, ao pé da letra, foi conservado.
a) O senhor obriga o escravo, ao passo que ele próprio goza os prazeres da vida. O senhor não cultiva seu jardim, não faz cozer seus alimentos, não acende seu fogo: ele tem o escravo para isso. O senhor não conhece mais os rigores do mundo material, uma vez que interpôs um escravo entre ele e o mundo. O senhor, porque lê o reconhecimento de sua superioridade no olhar submisso de seu escravo, é livre, ao passo que este último se vê despojado dos frutos de seu trabalho, numa situação de submissão absoluta.
b) Entretanto, essa situação vai se transformar dialeticamente porque a posição do senhor abriga uma contradição interna: o senhor só o é em função da existência do escravo, que condiciona a sua. O senhor só o é porque é reconhecido como tal pela consciência do escravo e também porque vive do trabalho desse escravo. Nesse sentido, ele é uma espécie de escravo de seu escravo.
c) De fato, o escravo, que era mais ainda o escravo da vida do que o escravo de seu senhor (foi por medo de morrer que se submeteu), vai encontrar uma nova forma de liberdade. Colocado numa situação infeliz em que só conhece provações, aprende a se afastar de todos os eventos exteriores, a libertar-se de tudo o que o oprime, desenvolvendo uma consciência pessoal. Mas, sobretudo, o escravo incessantemente ocupado com o trabalho, aprende a vencer a natureza ao utilizar as leis da matéria e recupera uma certa forma de liberdade (o domínio da natureza) por intermédio de seu trabalho. Por uma conversão dialética exemplar, o trabalho servil devolve-lhe a liberdade. Desse modo, o escravo, transformado pelas provações e pelo próprio trabalho, ensina a seu senhor a verdadeira liberdade que é o domínio de si mesmo. Assim, a liberdade estóica se apresenta a Hegel como a reconciliação entre o domínio e a servidão.
Hegel parte, fundamentalmente, da síntese a priori de Kant, em que o espírito é constituído substancialmente como sendo o construtor da realidade e toda a sua atividade é reduzida ao âmbito da experiência, porquanto é da íntima natureza da síntese a priori não poder, de modo nenhum, transcender a experiência, de sorte que Hegel se achava fatalmente impelido a um monismo imanentista, que devia necessariamente tornar-se panlogista, dialético. Assim, deviam se achar na realidade única da experiência as características divinas do antigo Deus transcendente, destruído por Kant. Hegel devia, portanto, chegar ao panteísmo imanentista, que Schopenhauer, o grande crítico do idealismo racionalista e otimista, declarará nada mais ser que ateísmo imanentista.
No entanto, para poder elevar a realidade da experiência à ordem da realidade absoluta, divina, Hegel se achava obrigado a mostrar a racionalidade absoluta da realidade da experiência, a qual, sendo o mundo da experiência limitado e deficiente, por causa do assim chamado mal metafísico, físico e moral, não podia, por certo, ser concebida mediante o ser (da filosofia aristotélica), idêntico a si mesmo e excluindo o seu oposto, e onde a limitação, a negação, o mal, não podem, de modo nenhum, gerar naturalmente valores positivos de bem verdadeiro. Mas essa racionalidade absoluta da realidade da experiência devia ser concebida mediante o vir-a-ser absoluto (de Heráclito), onde um elemento gera o seu oposto, e a negação e o mal são condições de positividade e de bem.
Apresentava-se, portanto, a necessidade da invenção de uma nova lógica, para poder racionalizar o elemento potencial e negativo da experiência, isto é, tudo que há no mundo de arracional e de irracional. E por isso Hegel inventou a dialética dos opostos, cuja característica fundamental é a negação, em que a positividade se realiza através da negatividade, do ritmo famoso de tese, antítese e síntese. Essa dialética dos opostos resolve e compõe em si mesma o elemento positivo da tese e da antítese. Isto é, todo elemento da realidade, estabelecendo-se a si mesmo absolutamente (tese) e não esgotando o Absoluto de que é um momento, demanda o seu oposto (antítese), que nega e o qual integra, em uma realidade mais rica (síntese), para daqui começar de novo o processo dialético. A nova lógica hegeliana difere da antiga, não somente pela negação do princípio de identidade e de contradição - como eram concebidos na lógica antiga - mas também porquanto a nova lógica é considerada como sendo a própria lei do ser. Quer dizer, coincide com a ontologia, em que o próprio objeto já não é mais o ser, mas o devir absoluto.
Dispensa-se acrescentar como, a experiência sendo a realidade absoluta, e sendo também vir-a-ser, a história em geral se valoriza na filosofia; igualmente não é preciso salientar como o conceito concreto, isto é, o particular conexo historicamente com o todo, toma o lugar do conceito abstrato, que representa o elemento universal e comum dos particulares. Estamos, logo, perante um panlogismo, não estático, como o de Spinoza, e sim dinâmico, em que - através do idealismo absoluto - o monismo, que Hegel considerava panteísmo, é levado às suas extremas consequências metafísicas imanentistas.
Podemos resumir assim:
1.° - A lógica tradicional afirma que o ser é idêntico a si mesmo e exclui o seu oposto (princípio de identidade e de contradição); ao passo que a lógica hegeliana sustenta que a realidade é essencialmente mudança, devir, passagem de um elemento ao seu oposto;
2.° - A lógica tradicional afirma que o conceito é universal abstrato, enquanto apreende o ser imutável, realmente, ainda que não totalmente; ao passo que a lógica hegeliana sustenta que o conceito é universal concreto, isto é, conexão histórica do particular com a totalidade do real, onde tudo é essencialmente conexo com tudo;
3.° - A lógica tradicional distingue substancialmente a filosofia, cujo objeto é o universal e o imutável, da história, cujo objeto é o particular e o mutável; ao passo que a lógica hegeliana assimila a filosofia com a história, enquanto o ser é vir-a-ser;
4.° - A lógica tradicional distingue-se da ontologia, enquanto o nosso pensamento, se apreende o ser, não o esgota totalmente - como faz o pensamento de Deus; ao passo que a lógica hegeliana coincide com a ontologia, porquanto a realidade é o desenvolvimento dialético do próprio "logos" divino, que no espírito humano adquire plena consciência de si mesmo.

Visto que a realidade é o vir-a-ser dialético da Idéia, a autoconsciência racional de Deus, Hegel julgou dever deduzir a priori o desenvolvimento lógico da idéia, e demonstrar a necessidade racional da história natural e humana, segundo a conhecida tríade de tese, antítese e síntese, não só nos aspectos gerais, nos momentos essenciais, mas em toda particularidade da história. E, com efeito, a realidade deveria transformar-se rigorosamente na racionalidade em um sistema coerente de pensamento idealista e imanentista.
Não é mister dizer que essa história dialética nada mais é que a história empírica, arbitrariamente potenciada segundo a não menos arbitrária lógica hegeliana, em uma possível assimilação do devir empírico do desenvolvimento lógico - ainda que entendido dialeticamente, dinamicamente. Tal história dialética deveria, enfim, terminar com o advento da filosofia hegeliana, em que a Idéia teria acabado a sua odisséia, adquirindo consciência de si mesma, isto é, da sua divindade, no espírito humano, como absoluto. Mas, desse modo, viria a ser negada a própria essência da filosofia hegeliana, para a qual o ser, isto é, o pensamento, nada mais é que o infinito vir-a-ser dialético.

A Idéia, A Natureza, O Espírito

Os três grandes momentos hegelianos no devir dialético da realidade são a idéia, a natureza, o espírito. A idéia constitui o princípio inteligível da realidade; a natureza é a exteriorização da idéia no espaço e no tempo; o espírito é o retorno da idéia para si mesma. A primeira grande fase no absoluto devir do espírito é representada pela idéia, que, por sua vez, se desenvolve interiormente em um processo dialético, segundo o sólito esquema triádico (tese, antítese, síntese), cujo complexo é objeto da Lógica; a saber, a idéia é o sistema dos conceitos puros, que representam os esquemas do mundo natural e do espiritual. É, portanto, anterior a estes, mas apenas logicamente.

NIETZSCHE  

Vida e Obra

Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu a 15 de outubro de 1844 em Röcken, localidade próxima a Leipzig. Karl Ludwig, seu pai, pessoa culta e delicada, e seus dois avós eram pastores protestantes; o próprio Nietzsche pensou em seguir a mesma carreira.
Em 1849, seu pai e seu irmão faleceram; por causa disso a mãe mudou-se com a família para Naumburg, pequena cidade às margens do Saale, onde Nietzsche cresceu, em companhia da mãe, duas tias e da avó. Criança feliz, aluno modelo, dócil e leal, seus colegas de escola o chamavam "pequeno pastor"; com eles criou uma pequena sociedade artística e literária, para a qual compôs melodias e escreveu seus primeiros versos.
Em 1858, Nietzsche obteve uma bolsa de estudos na então famosa escola de Pforta, onde haviam estudado o poeta Novalis o filósofo Fichte (1762-1814). Datam dessa época suas leituras de Schiller (1759-1805), Hölderlin (1770-1843) e Byron (1788-1824); sob essa influência e a de alguns professores, Nietzsche começou a afastar-se do cristianismo. Excelente aluno em grego e brilhante em estudos bíblicos, alemão e latim, seus autores favoritos, entre os clássicos, foram Platão (428-348 a.C.) e Ésquilo (525-456 a.C.). Durante o último ano em Pforta, escreveu um trabalho sobre o poeta Teógnis (séc. VI a.C.). Partiu em seguida para Bonn, onde se dedicou aos estudos de teologia e filosofia, mas, influenciado por seu professor predileto, Ritschl, desistiu desses estudos e passou a residir em Leipzig, dedicando-se à filologia. Ritschl considerava a filologia não apenas história das formas literárias, mas estudos das instituições e do pensamento. Nietzsche seguiu-lhe as pegadas e realizou investigações originais sobre Diógenes Laércio (séc. III), Hesíodo (séc. VIII a.C.) e Homero. A partir desses trabalhos foi nomeado, em 1869, professor de filologia em Basiléia, onde permaneceu por dez anos. A filosofia somente passou a interessá-lo a partir da leitura de O Mundo como Vontade e Representação, de Schopenhauer (1788-1860). Nietzsche foi atraído pelo ateísmo de Schopenhauer, assim como pela posição essencial que a experiência estética ocupa em sua filosofia, sobretudo pelo significado metafísico que atribui à música.
Em 1867, Nietzsche foi chamado para prestar o serviço militar, mas um acidente em exercício de montaria livrou-o dessa obrigação. Voltou então aos estudos na cidade de Leipzig. Nessa época teve início sua amizade com Richard Wagner (1813-1883), que tinha quase 55 anos e vivia então com Cosima, filha de Liszt (1811-1886). Nietzsche encantou-se com a música de Wagner e com seu drama musical, principalmente com Tristão e Isolda e com Os Mestres Cantores. A casa de campo de Tribschen, às margens do lago de Lucerna, onde Wagner morava, tornou-se para Nietzsche lugar d "refúgio e consolação". Na mesma época, apaixonou-se por Cosima, que viria a ser, em obra posterior, a "sonhada Ariane". Em cartas ao amigo Erwin Rohde, escrevia: "Minha Itália chama-se Tribschen e sinto-me ali como em minha própria casa". Na universidade, passou a tratar das relações entre a música e a tragédia grega, esboçando seu livro O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música.

O Filósofo e o Músico

Em 1870, a Alemanha entrou em guerra com a França; nessa ocasião, Nietzsche serviu o exército como enfermeiro, mas por pouco tempo, pois logo adoeceu, contraindo difteria e disenteria. Essa doença parece ter sido a origem das dores de cabeça e de estômago que acompanharam o filósofo durante toda a vida. Nietzsche restabeleceu-se lentamente e voltou a Basiléia a fim de prosseguir seus cursos.
Em 1871, publicou O Nascimento da Tragédia, a respeito da qual se costuma dizer que o verdadeiro Nietzsche fala através das figuras de Schopenhauer e de Wagner. Nessa obra, considera Sócrates (470 ou 469 a.C.-399 a.C.) um "sedutor", por ter feito triunfar junto à juventude ateniense o mundo abstrato do pensamento. A tragédia grega, diz Nietzsche, depois de ter atingido sua perfeição pela reconciliação da "embriaguez e da forma", de Dioniso e Apolo, começou a declinar quando, aos poucos, foi invadida pelo racionalismo, sob a influência "decadente" de Sócrates. Assim, Nietzsche estabeleceu uma distinção entre o apolíneo e o dionisíaco: Apolo é o deus da clareza, da harmonia e da ordem; Dioniso, o deus da exuberância, da desordem e da música. Segundo Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco, complementares entre si, foram separados pela civilização. Nietzsche trata da Grécia antes da separação entre o trabalho manual e o intelectual, entre o cidadão e o político, entre o poeta e o filósofo, entre Eros e Logos. Para ele a Grécia socrática, a do Logos e da lógica, a da cidade-Estado, assinalou o fim da Grécia antiga e de sua força criadora. Nietzsche pergunta como, num povo amante da beleza, Sócrates pôde atrair os jovens com a dialética, isto é, uma nova forma de disputa (ágon), coisa tão querida pelos gregos. Nietzsche responde que isso aconteceu porque a existência grega já tinha perdido sua "bela imediatez", e tornou-se necessário que a vida ameaçada de dissolução lançasse mão de uma "razão tirânica", a fim de dominar os instintos contraditórios.
Seu livro foi mal acolhido pela crítica, o que o impeliu a refletir sobre a incompatibilidade entre o "pensador privado" e o "professor público". Ao mesmo tempo, esperava-se com seu estado de saúde: dores de cabeça, perturbações oculares, dificuldades na fala. Interrompeu assim sua carreira universitária por um ano. Mesmo doente foi até Bayreuth, para assistir à apresentação de O Anel dos Nibelungos, de Wagner. Mas o "entusiasmo grosseiro" da multidão e a atitude de Wagner embriagado pelo sucesso o irritaram.
Terminada a licença da universidade para que tratasse da saúde, Nietzsche voltou à cátedra. Mas sua voz agora era tão imperceptível que os ouvintes deixaram de frequentar seus cursos, outrora tão brilhantes. Em 1879, pediu demissão do cargo. Nessa ocasião, iniciou sua grande crítica dos valores, escrevendo Humano, Demasiado Humano; seus amigos não o compreenderam. Rompeu as relações de amizade que o ligavam a Wagner e, ao mesmo tempo, afastou-se da filosofia de Schopenhauer, recusando sua noção de "vontade culpada" e substituindo-a pela de "vontade alegre"; isso lhe parecia necessário para destruir os obstáculos da moral e da metafísica. O homem, dizia Nietzsche, é o criador dos valores, mas esquece sua própria criação e vê neles algo de "transcendente", de "eterno" e "verdadeiro", quando os valores não são mais do que algo "humano, demasiado humano".
Nietzsche, que até então interpretara a música de Wagner como o "renascimento da grande arte da Grécia", mudou de opinião, achando que Wagner inclinava-se ao pessimismo sob a influência de Schopenhauer. Nessa época Wagner voltara-se, ao mesmo tempo, a recusa do cristianismo e de Schopenhauer; para Nietzsche, ambos são parentes porque são a manifestação da decadência, isto é, da fraqueza e da negação. Irritado com o antigo amigo, Nietzsche escreveu: "Não há nada de exausto, nada de caduco, nada de perigoso para a vida, nada que calunie o mundo no reino do espírito, que não tenha encontrado secretamente abrigo em sua arte; ele dissimula o mais negro obscurantismo nos orbes luminosos do ideal. Ele acaricia todo o instinto niilista (budista) e embeleza-o com a música; acaricia toda a forma de cristianismo e toda expressão religiosa de decadência".

Solidão, Agonia e Morte

Em 1880, Nietzsche publicou O Andarilho e sua Sombra: um ano depois apareceu Aurora, com a qual se empenhou "numa luta contra a moral da auto-renúncia". Mais uma vez, seu trabalho não foi bem acolhido por seus amigos; Erwin Rohde nem chegou a agradecer-lhe o recebimento da obra, nem respondeu à carta que Nietzsche lhe enviara. Em 1882, veio à luz A Gaia Ciência, depois Assim falou Zaratustra (1884), Para Além de Bem e Mal (1886), O Caso Wagner, Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche contra Wagner (1888). Ecce Homo, Ditirambos Dionisíacos, O Anticristo e Vontade de Potência só apareceram depois de sua morte.
Durante o verão de 1881, Nietzsche residiu em Haute-Engandine, na pequena aldeia de Silvaplana, e, durante um passeio, teve a intuição de O Eterno Retorno, redigido logo depois. Nessa obra defendeu a tese de que o mundo passa indefinidamente pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal. De Silvaplana, Nietzsche transferiu-se para Gênova, no outono de 1881, e depois para Roma, onde permaneceu por insistência de Fräulein von Meysenburg, que pretendia casá-lo com uma jovem finlandesa, Lou Andreas Salomé. Em 1882, Nietzsche propôs-lhe casamento e foi recusado, mas Lou Andreas Salomé desejou continuar sua amiga e discípula. Encontraram-se mais tarde na Alemanha; porém, não houve a esperada adesão à filosofia nietzschiana e, assim, acabaram por se afastar definitivamente.
Em seguida, retornou à Itália, passando o inverno de 1882-1883 na baía de Rapallo. Em Rapallo, Nietzsche não se encontrava bem instalado; porém, "foi durante o inverno e no meio desse desconforto que nasceu o meu nobre Zaratustra".
No outono de 1883 voltou para a Alemanha e passou a residir em Naumburg, em companhia da mãe e da irmã. Apesar da companhia dos familiares, sentia-se cada vez mais só. Além disso, mostrava-se muito contrariado, pois sua irmã tencionava casar-se com Herr Foster, agitador anti-semita, que pretendia fundar uma empresa colonial no Paraguai, como reduto da cristandade teutônica. Nietzsche desprezava o anti-semitismo, e, não conseguindo influenciar a irmã, abandonou Naumburg.
Em princípio de abril de 1884 chegou a Veneza, partindo depois para a Suíça, onde recebeu a visita do barão Heinrich von Stein, jovem discípulo de Wagner. Von Stein esperava que o filósofo o acompanhasse a Bayreuth para ouvir o Parsifal, talvez pretendendo ser o mediador para que Nietzsche não publicasse seu ataque contra Wagner. Por seu lado, Nietzsche viu no rapaz um discípulo capaz de compreender o seu Zaratustra. Von Stein, no entanto, veio a falecer muito cedo, o que o amargurou profundamente, sucedendo-se alternâncias entre euforia e depressão. Em 1885, veio a público a Quarta parte de Assim falou Zaratustra; cada vez mais isolado, o autor só encontrou sete pessoas a quem enviá-la. Depois disso, viajou para Nice, onde veio a conhecer o intelectual alemão Paul Lanzky, que lera Assim falou Zaratustra e escrevera um artigo, publicado em um jornal de Leipzig e na Revista Européia de Florença. Certa vez, Lanzky se dirigiu a Nietzsche tratando-o de "mestre" e Nietzsche lhe respondeu: "Sois o primeiro que me trata dessa maneira".
Depois de 1888, Nietzsche passou a escrever cartas estranhas. Um ano mais tarde, em Turim, enfrentou o auge da crise; escrevia cartas ora assinando "Dioniso", ora "o Crucificado" e acabou sendo internado em Basiléia, onde foi diagnosticada uma "paralisia progressiva". Provavelmente de origem sifilítica, a moléstia progrediu lentamente até a apatia e a agonia. Nietzsche faleceu em Weimar, a 25 de agosto de 1900. 

O Dionisíaco e o Socrático


Nietzsche enriqueceu a filosofia moderna com meios de expressão: o aforismo e o poema. Isso trouxe como conseqüência uma nova concepção da filosofia e do filósofo: não se trata mais de procurar o ideal de um conhecimento verdadeiro, mas sim de interpretar e avaliar. A interpretação procuraria fixar o sentido de um fenômeno, sempre parcial e fragmentário; a avaliação tentaria determinar o valor hierárquico desses sentidos, totalizando os fragmentos, sem, no entanto, atenuar ou suprimir a pluralidade. Assim, o aforismo nietzschiano é, simultaneamente, a arte de interpretar e a coisa a ser interpretada, e o poema constitui a arte de avaliar e a própria coisa a ser avaliada. O intérprete seria uma espécie de fisiologista e de médico, aquele que considera os fenômenos como sintomas e fala por aforismos; o avaliador seria o artista que considera e cria perspectivas, falando pelo poema. Reunindo as duas capacidades, o filósofo do futuro deveria ser artista e médico-legislador, ao mesmo tempo.
Para Nietzsche, um tipo de filósofo encontra-se entre os pré-socráticos, nos quais existe unidade entre o pensamento e a vida, esta "estimulando" o pensamento, e o pensamento "afirmando" a vida. Mas o desenvolvimento da filosofia teria trazido consigo a progressiva degeneração dessa característica, e, em lugar de uma vida ativa e de um pensamento afirmativo, a filosofia ter-se-ia proposto como tarefa "julgar a vida", opondo a ela valores pretensamente superiores, mediando-a por eles, impondo-lhes limites, condenando-a. Em lugar do filósofo-legislador, isto é, crítico de todos os valores estabelecidos e criador de novos, surgiu o filósofo metafísico. Essa degeneração, afirma Nietzsche, apareceu claramente com Sócrates, quando se estabeleceu a distinção entre dois mundos, pela oposição entre essencial e aparente, verdadeiro e falso, inteligível e sensível. Sócrates "inventou" a metafísica, diz Nietzsche, fazendo da vida aquilo que deve ser julgado, medido, limitado, em nome de valores "superiores" como o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem. Com Sócrates, teria surgido um tipo de filósofo voluntário e sutilmente "submisso", inaugurando a época da razão e do homem teórico, que se opôs ao sentido místico de toda a tradição da época da tragédia.
Para Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como característica o saber místico da unidade da vida e da morte e, nesse sentido, constitui uma "chave" que abre o caminho essencial do mundo. Mas Sócrates interpretou a arte trágica como algo irracional, algo que apresenta efeitos sem causas e causas sem efeitos, tudo de maneira tão confusa que deveria ser ignorada. Por isso Sócrates colocou a tragédia na categoria das artes aduladoras que representam o agradável e não o útil e pedia a seus discípulos que se abstivessem dessas emoções "indignas de filósofos". Segundo Sócrates, a arte da tragédia desvia o homem do caminho da verdade: "uma obra só é bela se obedecer à razão", formula que, segundo Nietzsche, corresponde ao aforismo "só o homem que concebe o bem é virtuoso". Esse bem ideal concebido por Sócrates existiria em um mundo supra-sensível, no "verdadeiro mundo", inacessível ao conhecimento dos sentidos, os quais só revelariam o aparente e irreal. Com tal concepção, criou-se, segundo Nietzsche, uma verdadeira oposição dialética entre Sócrates e Dioniso: "enquanto em todos os homens produtivos o instinto é uma força afirmativa e criadora, e a consciência uma força crítica e negativa, em Sócrates o instinto torna-se crítico e a consciência criadora". Assim, Sócrates, o "homem teórico", foi o único verdadeiro contrário do homem trágico e com ele teve início uma verdadeira mutação no entendimento do Ser. Com ele, o homem se afastou cada vez mais desse conhecimento, na medida em que abandonou o fenômeno do trágico, verdadeira natureza da realidade, segundo Nietzsche. Perdendo-se a sabedoria instintiva da arte trágica, restou a Sócrates apenas um aspecto da vida do espírito, o aspecto lógico-racional; faltou-lhe a visão mística, possuído que foi pelo instinto irrefreado de tudo transformar em pensamento abstrato, lógico, racional. Penetrar a própria razão das coisas, distinguindo o verdadeiro do aparente e do erro era, para Sócrates, a única atividade digna do homem. Para Nietzsche, porém, esse tipo de conhecimento não tarda a encontrar seus limites: "esta sublime ilusão metafísica de um pensamento puramente racional associa-se ao conhecimento como um instinto e o conduz incessantemente a seus limites onde este se transforma em arte".
Por essa razão, Nietzsche combateu a metafísica, retirando do mundo supra-sensível todo e qualquer valor eficiente, e entendendo as ideias não mais como "verdades" ou "falsidades", mas como "sinais". A única existência, para Nietzsche, é a aparência e seu reverso não é mais o Ser; o homem está destinado à multiplicidade, e a única coisa permitida é sua interpretação.

O Vôo da Águia, a Ascensão da Montanha

A crítica nietzschiana à metafísica tem um sentido ontológico e um sentido moral: o combate à teoria das ideias socrático-platônicas é, ao mesmo tempo, uma luta acirrada contra o cristianismo.
Segundo Nietzsche, o cristianismo concebe o mundo terrestre como um vale de lágrimas, em oposição ao mundo da felicidade eterna do além. Essa concepção constitui uma metafísica que, à luz das ideias do outro mundo, autêntico e verdadeiro, entende o terrestre, o sensível, o corpo, como o provisório, o inautêntico e o aparente. Trata-se, portanto, diz Nietzsche, de "um platonismo para o povo", de uma vulgarização da metafísica, que é preciso desmistificar. O cristianismo, continua Nietzsche, é a forma acabada da perversão dos instintos que caracteriza o platonismo, repousando em dogmas e crenças que permitem à consciência fraca e escava escapar à vida, à dor e à luta, e impondo a resignação e a renúncia como virtudes. São os escravos e os vencidos da vida que inventaram o além para compensar a miséria; inventaram falsos valores para se consolar da impossibilidade de participação nos valores dos senhores e dos fortes; forjaram o mito da salvação da alma porque não possuíam o corpo; criaram a ficção do pecado porque não podiam participar das alegrias terrestres e da plena satisfação dos instintos da vida. "Este ódio de tudo que é humano", diz Nietzsche, "de tudo que é 'animal' e mais ainda de tudo que é 'matéria', este temor dos sentidos... este horror da felicidade e da beleza; este desejo de fugir de tudo que é aparência, mudança, dever, morte, esforço, desejo mesmo, tudo isso significa... vontade de aniquilamento, hostilidade à vida, recusa em se admitir as condições fundamentais da própria vida".
Nietzsche propôs a si mesmo a tarefa de recuperar a vida e transmutar todos os valores do cristianismo: "munido de uma tocha cuja luz não treme, levo uma claridade intensa aos subterrâneos do ideal". A imagem da tocha simboliza, no pensamento de Nietzsche, o método filológico, por ele concebido como um método crítico e que se constitui no nível da patologia, pois procura "fazer falar aquilo que gostaria de permanecer mudo". Nietzsche traz à tona, por exemplo, um significado esquecido da palavra "bom". Em latim, bonus significa também o "guerreiro", significado este que foi sepultado pelo cristianismo. Assim como esse, outros significados precisariam ser recuperados; com isso se poderia constituir uma genealogia da moral que explicaria as etapas das noções de "bem" e de "mal". Para Nietzsche essas etapas são o ressentimento ("é tua culpa se sou fraco e infeliz"); a consciência da culpa (momento em que as formas negativas se interiorizam, dizem-se culpadas e voltam-se contra si mesmas); e o ideal ascético (momento de sublimação do sofrimento e de negação da vida). A partir daqui, a vontade de potência torna-se vontade de nada e a vida transforma-se em fraqueza e mutilação, triunfando o negativo e a reação contra a ação. Quando esse niilismo triunfa, diz Nietzsche, a vontade de potência deixa de querer significar "criar" para querer dizer "dominar"; essa é a maneira como o escravo a concebe. Assim, na fórmula "tu és mau, logo eu sou bom", Nietzsche vê o triunfo da moral dos fracos que negam a vida, eu negam a "afirmação"; neles tudo é invertido: os fracos passam a se chamar fortes, a baixeza transforma-se em nobreza. A "profundidade da consciência" que busca o Bem e a Verdade, diz Nietzsche, implica resignação, hipocrisia e máscara, e o intérprete-filólogo, ao percorrer os signos para denunciá-las, deve ser um escavador dos submundos a fim de mostrar que a "profundidade da interioridade" é coisa diferente do que ela mesma pretende ser. Do ponto de vista do intérprete que desça até os bas-fonds da consciência, o Bem é a vontade do mais forte, do "guerreiro", do arauto de um apelo perpétuo à verdadeira ultrapassagem dos valores estabelecidos, do super-homem, entendida esta expressão no sentido de um ser humano que transpõe os limites do humano, é o além-do-homem. Assim, o vôo da águia, a ascensão da montanha e todas as imagens de verticalidade que se encontram em Assim falou Zaratustra representam a inversão da profundidade e a descoberta de que ela não passa de um jogo de superfície.
A etimologia nietzschiana mostra que não existe um "sentido original", pois as próprias palavras não passam de interpretações, antes mesmo de serem signos, e se elas só significam porque são "interpretações essenciais". As palavras, segundo Nietzsche, sempre foram inventadas pelas classes superiores e, assim, não indicam um significado, mas impõem uma interpretação. O trabalho do etimologista, portanto, deve centralizar-se no problema de saber o que existe para ser interpretado, na medida em que tudo é máscara, interpretação, avaliação. Fazer isso é "aliviar o que vive, dançar, criar". Zaratustra, o intérprete por excelência, é como Dioniso.

Os Limites do Humano: O Além-do-Homem 

Em Ecce Homo, Nietzsche assimila Zaratustra a Dioniso, concebendo o primeiro como o triunfo da afirmação da vontade de potência e o segundo como símbolo do mundo como vontade, como um deus artista, totalmente irresponsável, amoral e superior ao lógico. Por outro lado, a arte trágica é concebida por Nietzsche como oposta à decadência e enraizada na antinomia entre a vontade de potência, aberta para o futuro, e o "eterno retorno", que faz do futuro numa repetição; esta, no entanto, não significa uma volta do mesmo nem uma volta ao mesmo; o eterno retorno nietzschiano é essencialmente seletivo. Em dois momentos de Assim falou Zaratustra (Zaratustra doente e Zaratustra convalescente), o eterno retorno causa ao personagem-título, primeiramente, uma repulsa e um medo intoleráveis que desaparecem por ocasião de sua cura, pois o que o tornava doente era a idéia de que o eterno retorno estava ligado, apesar de tudo, a um ciclo, e que ele faria tudo voltar, mesmo o homem, o "homem pequeno". O grande desgosto do homem, diz Zaratustra, aí está o que me sufocou e que me tinha entrado na garganta e também o que me tinha profetizado o adivinho: tudo é igual. E o eterno retorno, mesmo do mais pequeno, aí está a causa de meu cansaço e de toda a existência. Dessa forma, se Zaratustra se cura é porque compreende que o eterno retorno abrange o desigual e a seleção. Para Dioniso, o sofrimento, a morte e o declínio são apenas a outra face da alegria, da ressurreição e da volta. Por isso, "os homens não têm de fugir à vida como os pessimistas", diz Nietzsche, "mas, como alegres convivas de um banquete que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma vez mais".
Para Nietzsche, portanto, o verdadeiro oposto a Dioniso não é mais Sócrates, mas o Crucificado. Em outros termos, a verdadeira oposição é a que contrapõe, de um lado, o testemunho contra a vida e o empreendimento de vingança que consiste em negar a vida; de outro, a afirmação do devir e do múltiplo, mesmo na dilaceração dos membros dispersos de Dioniso. Com essa concepção, Nietzsche responde ao pessimismo de Schopenhauer: em lugar do desespero de uma vida para a qual tudo se tornou vão, o homem descobre no eterno retorno a plenitude de uma existência ritmada pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal. O eterno retorno, e apenas ele, oferece, diz Nietzsche, uma "saída fora da mentira de dois mil anos", e a transmutação dos valores traz consigo o novo homem que se situa além do próprio homem.
Esse super-homem nietzschiano não é um ser, cuja vontade "deseje dominar". Se se interpreta vontade de potência, diz Nietzsche, como desejo de dominar, faz-se dela algo dependente dos valores estabelecidos. Com isso, desconhece-se a natureza da vontade de potência como princípio plástico de todas as avaliações e como força criadora de novos valores. Vontade de potência, diz Nietzsche, significa "criar", "dar" e "avaliar".
Nesse sentido, a vontade de potência do super-homem nietzschiano o situa muito além do bem e do mal e o faz desprender-se de todos os produtos de uma cultura decadente. A moral do além-do-homem, que vive esse constante perigo e fazendo de sua vida uma permanente luta, é a moral oposta à do escravo e à do rebanho. Oposta, portanto, à moral da compaixão, da piedade, da doçura feminina e cristã. Assim, para Nietzsche, bondade, objetividade, humildade, piedade, amor ao próximo, constituem valores inferiores, impondo-se sua substituição pela virtù dos renascentistas italianos, pelo orgulho, pelo risco, pela personalidade criadora, pelo amor ao distante. O forte é aquele em que a transmutação dos valores faz triunfar o afirmativo na vontade de potência. O negativo subsiste nela apenas como agressividade própria à afirmação, como a crítica total que acompanha a criação; assim, Zaratustra, o profeta do além-do-homem, é a pura afirmação, que leva a negação a seu último grau, fazendo dela uma ação, uma instância a serviço daquele que cria, que afirma.
Compreende-se, assim, porque Nietzsche desacredita das doutrinas igualitárias, que lhe parecem "imorais", pois impossibilitam que se pense a diferença entre os valores dos "senhores e dos escravos". Nietzsche recusa o socialismo, mas em Vontade de Potência exorta os operários a reagirem "como soldados".

Uma Filosofia Confiscada

Apoiado na crítica nietzschiana aos valores da moral cristã, em sua teoria da vontade de potência e no seu elogio do super-homem, desenvolveu-se um pensamento nacionalista e racista, de tal forma que se passou a ver no autor de "Assim Falou Zaratustra" um percursor do nazismo. A principal responsável por essa deformação foi sua irmã Elisabeth, que, ao assegurar a difusão de seu pensamento, organizando o Nietzsche-Archiv, em Weimar, tentou colocá-lo a serviço do nacional-socialismo. Elisabeth, depois do suicídio do marido, que fracassara em um projeto colonial no Paraguai, reuniu arbitrariamente notas e rascunhos do irmão, fazendo publicar Vontade de Potência como a última e a mais representativa das obras de Nietzsche, retendo até 1908 Ecce Homo, escrita em 1888. Esta obra constitui uma interpretação, feita por Nietzsche, de sua própria filosofia, que não se coaduna com o nacionalismo e o racismo germânicos. Ambos foram combatidos pelo filósofo, desde sua participação na guerra franco-prussiana (1870-1871).
Por ocasião desse conflito, Nietzsche alistou-se no exército alemão, mas seu ardor patriótico logo se dissolveu, pois, para ele, a vitória da Alemanha sobre a França teria como consequência "um poder altamente perigoso para a cultura". Nessa época, aplaudia as palavras de seu colega em Basiléia, Jacob Burckhardt (1818-1897), que insistia junto a seus alunos para que não tomassem o triunfo militar e a expansão de um Estado como indício de verdadeira grandeza.
Em Para Além de Bem e Mal, Nietzsche revela o desejo de uma Europa unida para enfrentar o nacionalismo ("essa neurose") que ameaçava subverter a cultura européia. Por outro lado, quando confiou ao "louro" a tarefa de "virilizar a Europa", Nietzsche levou até a caricatura seu desprezo pelos alemães, homens "que introduziram no lugar da cultura a loucura política e nacional... que só sabem obedecer pesadamente, disciplinados como uma cifre oculta em um número". No mesmo sentido, Nietzsche caracterizou os heróis wagnerianos como germanos que não passam de "obediência e longas pernas". E acabou rompendo definitivamente com Wagner, por causa do nacionalismo e anti-semitismo do autor de Tristão e Isolda: "Wagner condescende a tudo que desprezo, até o anti-semitismo".
Para compreender corretamente as ideias políticas de Nietzsche, é necessário, portanto, purificá-lo de todos os desvios posteriores que foram cometidos em seu nome. Nietzsche foi ao mesmo tempo um antidemocrático e um antitotalitário. "A democracia é a forma histórica de decadência do Estado", afirmou Nietzsche, entendendo por decadência tudo aquilo que escraviza o pensamento, sobretudo um Estado que pensa em si em lugar de pensar na cultura. Em Considerações Extemporâneas essa tese é reforçada: "estamos sofrendo as consequências das doutrinas pregadas ultimamente por todos os lados, segundo as quais o estado é o mais alto fim do homem, e, assim, não há mais elevado fim do que servi-lo. Considero tal fato não um retrocesso ao paganismo mas um retrocesso à estupidez". Por outro lado, Nietzsche não aceitava as considerações de que a origem do Estado seja o contrato ou a convenção; essas teorias seriam apenas "fantásticas"; para ele, ao contrário, o Estado tem uma origem "terrível", sendo criação da violência e da conquista e, como consequência, seus alicerces encontram-se na máxima que diz: "o poder dá o primeiro direito e não há direito que no fundo não seja arrogância, usurpação e violência".
O Estado, diz Nietzsche, está sempre interessado na formação de cidadãos obedientes e tem, portanto, tendência a impedir o desenvolvimento da cultura livre, tornando-a estática e estereotipada. Ao contrário disso, o Estado deveria ser apenas um meio para a realização da cultura e para fazer nascer o além-do-homem.

Assim Falou Zaratustra

Em Ecce Homo, Nietzsche intitulou seus capítulos: "Por que sou tão finalista?", "Por que sou tão sábio?", "Por que sou tão inteligente?", "Por que escrevo livros tão bons?". Isso levou muitos a considerarem sua obra como anormal e desqualificada pela loucura. Essa opinião, no entanto, revela um superficial entendimento de seu pensamento. Para entendê-lo corretamente, é necessário colocar-se dentro do próprio núcleo de sua concepção da filosofia: Nietzsche inverteu o sentido tradicional da filosofia, fazendo dela um discurso ao nível da patologia e considerando a doença "um ponto de vista" sobre a saúde e vice-versa. Para ele, nem a saúde, nem a doença são entidades; a fisiologia e a patologia são uma única coisa; as oposições entre bem e mal, verdadeiro e falso, doença e saúde são apenas jogos de superfície. Há uma continuidade, diz Nietzsche, entre a doença e a saúde e a diferença entre as duas é apenas de grau, sendo a doença um desvio interior à própria vida; assim, não há fato patológico.
A loucura não passa de uma máscara que esconde alguma coisa, esconde um saber fatal e "demasiado certo". A técnica utilizada pelas classes sacerdotais para a cura da loucura é a "meditação ascética", que consiste em enfraquecer os instintos e expulsar as paixões; com isso, a vontade de potência, a sensualidade e o livre florescimento do eu são considerados "manifestações diabólicas". Mas, para Nietzsche, aniquilar as paixões é uma "triste loucura", cuja decifração cabe à filosofia, pois é a loucura que torna mais plano o caminho para as ideias novas, rompendo os costumes e as superstições veneradas e constituindo uma verdadeira subversão dos valores. Para Nietzsche, os homens do passado estiveram mais próximos da idéia de que onde existe loucura há um grão de gênio e de sabedoria, alguma coisa de divino: "Pela loucura os maiores feitos foram espalhados foram espalhados pela Grécia". Em suma, aos "filósofos além de bem e mal", aos emissários dos novos valores e da nova moral não resta outro recurso, diz Nietzsche, a não ser o de proclamar as novas leis e quebrar o jugo da moralidade, sob o travestimento da loucura. É dentro dessa perspectiva, portanto, que se deve compreender a presença da loucura na obra de Nietzsche. Sua crise final apenas marcou o momento em que a "doença" saiu de sua obra e interrompeu seu prosseguimento. As últimos cartas de Nietzsche são o testemunho desse momento extremo e, como tal, pertencem ao conjunto de sua obra e de seu pensamento. A filosofia foi, para ele, a arte de deslocar as perspectivas, da saúde à doença, e a loucura deveria cumprir a tarefa de fazer a crítica escondida da decadência dos valores e aniquilamento: "Na verdade, a doença pode ser útil a um homem ou a uma tarefa, ainda que para outros signifique doença... Não fui um doente nem mesmo por ocasião da maior enfermidade".

A Moral de Kant

É só no domínio da moral que a razão poderá, legitimamente, manifestar-se em toda sua pujança. A razão teórica tinha necessidade da experiência para não se perder no vácuo da metafísica. A razão prática, isto é, ética, deve ao contrário, ultrapassar, para ser ela própria, tudo que seja sensível ou empírico.
Toda ação que toma seus móveis da sensibilidade, dos desejos empíricos, é estranha à moral, mesmo que essa ação seja materialmente boa. Por exemplo: se me empenho por alguém por cálculo interessado ou mesmo por afeição, minha conduta não é moral. Com efeito, amanhã, meus cálculos e meus sentimentos espontâneos poderiam levar-me a atos contrários. A vontade que tem por fim o prazer, a felicidade, fica submetida às flutuações de minha natureza. Nesse ponto, Kant se opõe não só ao naturalismo dos filósofos iluministas, mas, também, à ontologia otimista de São Tomás, para quem a felicidade é o fim legítimo de todas as nossas ações. Em Kant, há o que Hegel mais tarde denominará uma visão oral do mundo que afasta a ética dos equívocos da natureza. O imperativo moral não é um imperativo hipotético que submeteria o bem ao desejo (cumpre teu dever se nele satisfazes teu interesse, ou então, se teus sentimentos espontâneos a ele te conduzem), mas o imperativo categórico: Cumpre teu dever incondicionalmente.
Em que consiste esse dever? Uma vez que as leis que a Razão se impõe não podem, em nenhum caso, receber um conteúdo da experiência e que devem exprimir a autonomia da razão pura prática, as regras morais só podem consistir na própria forma da lei. "Age sempre de tal maneira que a máxima de tua ação possa ser erigida em regra universal" (primeira regra). O respeito pela razão estende-se ao sujeito racional: "Age sempre de maneira a tratares a humanidade em ti e nos outros sempre ao mesmo tempo como um fim e jamais como um simples meio" (segunda regra). Desse modo, o princípio do dever, para ser absolutamente rigoroso, não implica em nenhuma "alienação", como diríamos hoje, em nenhuma "heteronomia", como diz Kant.
Para se unirem numa justa reciprocidade de direitos e obrigações, os homens só têm que obedecer às exigências de sua própria razão: "Age como se fosses ao mesmo tempo legislador e súdito na república das vontades" (terceira regra).
O único sentimento que tem por si mesmo um valor moral nessa ética racionalista é o sentimento do respeito, pois não é anterior à lei, mas é a própria lei moral que o produz em mim; ele me engrandece, ele me realiza como ser racional que obedece à lei moral. Vimos que, pelo fato de ser puramente formal, essa moral não me propõe, efetivamente, um ato concreto a realizar. Ela simplesmente autoriza ou proíbe este ou aquele ato que tenho vontade de praticar. Por exemplo, vejo de imediato que não tenho o direito de mentir, mesmo que me diga: e se todos fizessem o mesmo? A mentira de todos para com todos é contraditória, portanto, proibída. A moral formal, por conseguinte, apresenta-se como essencialmente negativa. Como diz Jan Kélévitch, o imperativo categórico é um "proibitivo categórico".
A moral de Kant, ao privilegiar a razão humana, exprime sua desconfiança com relação à natureza humana, aos instintos, às tendências de tudo o que é empírico, passivo, passional, ou, como diz Kant, patológico. Tal é o rigoríssimo kantiano. A razão fala sobre a forma severa do dever porque é preciso impor silêncio à natureza carnal, porque é preciso, ao preço de grande esforço, submeter a humana vontade à lei do dever. Por conseguinte, o domínio da moral não é o da natureza (submissão animal aos instintos) nem o da santidade (em que a natureza, transfigurada pela graça, sentiria uma atração instintiva e irresistível pelos valores morais). O mérito moral é medido precisamente pelo esforço que fazemos para submeter nossa natureza às exigências do dever.

Moral e Metafísica

A moral de Kant é o que chamamos de uma moral independente. Ela não possui outro fundamento além da consciência humana, essa consciência que é essencialmente razão. Mesmo que o universo não tenha o menor sentido, mesmo que a alma seja mortal, o discípulo de Kant se sabe obrigado a respeitar as máximas da razão.
Todavia, Kant vai reerguer a metafísica - essa metafísica cuja demonstração era impossível, segunda a crítica da razão pura. A originalidade de Kant está no fato de que, ao invés de buscar os fundamentos de sua moral na metafísica, ele vai estabelecer os fundamentos de uma metafísica na moral, a título de "postulados da razão prática". Por exemplo: o dever me prescreve a realização de certa perfeição moral que não consigo atingir na vida presente (posto que não chego a purificar totalmente a determinação de querer dos móveis sensíveis). Kant então postula a imortalidade da alma.
Por outro lado, Kant constata que a virtude e a felicidade quase não estão juntas, neste mundo em que, de um modo geral, os maus são muito prósperos. Ele então postula que um Deus justiceiro, por intermédio de um sistema de recompensa e punições, restabelecerá no além a harmonia entre virtude e felicidade.
Finalmente, partindo da consciência da obrigação moral, Kant vai postular a liberdade humana. Com efeito, a obrigação moral exclui a necessidade dos atos humanos. A obrigação não teria o menor sentido se minha conduta fosse automaticamente determinada por minhas tendências ou pelas influências que sofri. Ser moralmente obrigado é ter o poder de responder sim ou não à regra moral, é ter a liberdade de escolher entre o bem e o mal. "Tu deves, diz Kant, então podes."
Esta liberdade não poderia ser demonstrada. No plano dos fenômenos, isto é, da experiência, do que hoje denominamos ciência psicológica, eu vejo que meus atos, ao contrário, são determinados uns pelos outros no tempo. Aquele crime pode ser explicado pelas paixões de seu autor, pela deplorável educação que recebeu, etc... E, no entanto, o homem se sente responsável, por conseguinte, livre. Não esqueçamos que o mundo dos fenômenos, isto é, do determinismo, é um mundo de aparências. Por trás desse determinismo aparente, pelo qual o mundo se me apresenta no conhecimento, esconde-se a realidade numenal de minha liberdade. Por conseguinte, é fora do tempo, é nas profundezas do ser inacessível ao saber científico, que o mau escolheu livremente o seu caráter de mau. Em tal sistema, portanto, não existe liberdade parcial nem meia-responsabilidade. Totalmente determinados nas aparências fenomenais, seríamos totalmente livres em nossa realidade numenal: daí se segue que nenhum pecado poderia ser escusável. 

A Crítica do Juízo 

Desse modo, a filosofia de Kant nos surge como uma filosofia essencialmente trágica, já que afirma simultaneamente a necessidade da natureza (na Crítica da Razão Pura) e a exigência de uma liberdade absoluta (na Crítica da Razão Prática).
Em sua terceira grande obra, A Crítica do Juízo, Kant se esforça por mostrar a possibilidade de uma reconciliação entre o mundo natural e o da liberdade. A natureza talvez não seja apenas o domínio do determinismo, mas também o da finalidade que aparece notadamente na organização harmoniosa dos seres vivos. Todavia, se o princípio de causalidade (determinismo) é constitutivo da experiência (não posso dispensá-lo para explicar a natureza), o princípio de finalidade permanece facultativo, puramente regulador (posso interpretar o agrupamento de certas condições como a manifestação de um fim). Tudo se passa como se o pássaro fosse feito para voar, mas uma coisa apenas é certa: o pássaro voa porque é constituído de tal maneira.
Os valores de beleza, presentes na obra de arte, igualmente nos oferecem uma espécie de reconciliação entre a razão e a imaginação, já que, na contemplação estética, a bela aparência que admiramos parece inteiramente penetrada dos valores do espírito. Finalidade sem fim (isto é, harmonia pura, fora de todo móvel exterior à obra de arte), a beleza oferece à nossa imaginação a oportunidade de uma satisfação inteiramente desinteressada. Ela é, no mundo kantiano, o exemplo único de uma satisfação ao mesmo tempo sensível e pura de todo egoísmo, o momento privilegiado em que uma emoção, longe de manifestar meu egoísmo dominador, dele me liberta e, como se diz muito bem, me "arrebata".

KARL MARX


Como pareceria o mundo hoje, se Karl Marx tivesse realizado seu projeto de vida original? É que o jovem Marx se considerava um porta nato, e alguns produtos de suas inspirações poéticas chegaram até nós. Eles trazem títulos altamente líricos, algo como "Canto dos elfos", "Canto dos gnomos" ou "Canto das sereias", ou seja, trata-se de fúteis cantilenas mitológicas. Uma poesia particularmente comovedora, ainda que profundamente triste, é intitulada "Tragédia do destino". Vale citar algumas estrofes:

"A menina está ali tão reservada,
tão silente e pálida;
a alma, como um anjo delicada,
está turva e abatida...
Tão suave, tão fiel ela era,
devotada ao céu,
da inocência imagem pura,
que a Graça teceu.
Aí chega um nobre senhor
sobre portentoso cavalo,
nos olhos um mar de amor
e flechas de fogo.
Feriu-a no peito tão fundo;
mas ele tem de partir,
em gritos de guerra bramando:
nada o pode impedir".
Mas Marx também encontra outro tom:
"Os mundos uivam o próprio canto fúnebre.
e nós somos macacos de um Deus frio".

Após essa amostra, surge a pergunta se a poesia alemã perdeu muito com a decisão de Marx, ainda que sob profusos sofrimentos da alma, de abdicar da carreira poética. Em todo caso, o pai, um advogado bem-sucedido, exprime-se assim: "Lamentaria ver você como um poetinha." Sugere, entretanto, que o filho escreva uma "ode em grande estilo" sobre a Batalha de Waterloo. Os pósteros, porém, dependendo de se enxergar no marxismo a salvação ou a perdição do mundo, sentem-se aliviados ou angustiados por Marx ter desistido, após longo tempo, de cavalgar o Pégaso.

Trier, Alemanha
Karl Marx nasce em 1818, em Trier, "a menor e mais desgraçada aldeia, cheia de mexericos e ridículos endeusamentos locais". De sua juventude não se sabe nada de significativo. Interessante é no máximo observar que o futuro ateísta fanático tenha escrito um ensaio de conclusão do curso secundário sobre o tema "A Unificação dos Crentes em Cristo". Depois, quando segue para Bonn a fim de estudar Direito, encontra notoriamente dificuldades em lidar com as coisas exteriores. Em todo caso, assim lhe escreve a mãe apreensiva: "Você não deve considerar de modo algum uma fraqueza feminina, se eu agora estiver curiosa para saber como tem administrado sua vida doméstica, se a economia representa também algum papel, o que é uma necessidade inevitável tanto para grandes como para pequenas casas. Permito-me assim observar, querido Karl, que você nunca deve considerar limpeza e ordem coisas secundárias, pois disso depende a saúde e o bem-estar. Observe rigorosamente que seu quarto seja lavado. E lave-se você também, querido Karl, semanalmente com esponja e sabonete." Essa advertência certamente não é sem fundamento, pois as condições sob as quais Marx conduz seus estudos são tudo menos ordeiras: ingressa em uma corporação e, se as notícias sobre isso procedem, é ferido em um duelo. É encarcerado por "perturbar a ordem com alarido noturno e bebedeira". É indiciado por "porte ilegal de arma". Acumula dívida sobre dívida. Não obstante, fica noivo de Jenny von Westphalen, se bem que a nobre família da noiva só tenha aceito o zé-ninguém com hesitação. Até seu pai o adverte sobre o "exagero e exaltação do amor de uma índole poética" de ligar-se a uma mulher.
Após dois semestres, Marx continua seus estudos em Berlim, mas também lá se evidencia que ele não é nenhum estudante modelar. Seu pai tem razão em se queixar. "Desordem, divagação apática por todas as áreas do saber, meditação indolente junto da sedenta lamparina de azeite; embrutecimento erudito em robe de chambre em vez de embrutecimento junto da caneca de cerveja, insociabilidade repugnante com menosprezo total pelas boas maneiras", tudo isso ele censura no filho. Marx assiste apenas a poucas aulas, e mesmo essas antes do âmbito da Filosofia e da História do que do âmbito do Direito. Por semestres inteiros quase não frequenta a universidade. De qualquer modo ele se forma aos 23 anos com um trabalho sobre um tema filosófico, em Jena, sem nem sequer ter estado lá por uma única hora. Mas esses acontecimentos não o impressionam. Para ele mais importante é pertencer ao "Clube do Doutor", uma agremiação de jovens discípulos de Hegel, e lá discutir dia e noite. Seus amigos atestam que ele é um "arsenal de pensamentos", uma "alma-danada de ideias". Ao mesmo tempo escreve "um novo sistema metafísico fundamental". Naturalmente, quer se tornar professor; mas desiste quando vê que seus amigos, os hegelianos de esquerda, quase sem exceção naufragavam no governo reacionário.
Em vez disso, Marx torna-se redator no Jornal Renano, de tendência liberal, publicado em Colônia. Essa atividade força-o a ocupar-se com problemas concretos de natureza política e econômica. Ele redige a folha em um espírito intrépido e liberal. Porém, recusa rudemente o comunismo, do qual mais tarde deveria tornar-se o cabeça. Após breve tempo, contudo, tem de suspender sua atividade de editor sob pressão policial. O jornal – "a meretriz do Reno", como o rei prussiano havia por bem chamá-lo – deixa de ser publicado.
Depois de ter-se casado com sua noiva de longos anos, Marx dirigi-se para Paris, onde edita juntamente com seu amigo Arnold Ruge os Anuários Franco-Germânicos. Por um tempo vive juntamente com a família Ruge em uma "comunidade comunista", que porém logo se desagregaria devido à incompatibilidade de gênios. Em Paris, Marx entra em contato com Heine e com socialistas franceses. Mas também sua permanência nesta cidade não é muito longa. A pedido do governo prussiano é expulso da França e estabelece-se provisoriamente em Bruxelas, onde funda o primeiro partido comunista do mundo (com 17 membros). Marx vai por pouco tempo para Londres, retornando então durante a Revolução de 1848 – por ocasião da qual escreve O Manifesto Comunista –, à França e à Alemanha a fim de promover seus planos revolucionários. Em Colônia, funda o Novo Jornal Renano. Mas é novamente expulso e vive até seus últimos dias, com apenas algumas interrupções para breves viagens ao continente, em Londres. Porém, todos esses anos em Paris e Bruxelas são cheios de contendas amargas e não particularmente tolerantes conduzidas contra revolucionários dissidentes; há também um trabalho intensivo em manuscritos filosóficos e econômicos, os quais em grande parte só serão publicados após sua morte.
Em Londres, Marx vive em situações muito limitadas com uma família que se multiplica com rapidez. Frequentemente padecem necessidades. A fundação de um jornal fracassa. Marx tem de levar a vida em grande parte por meio de donativos, sobretudo de seu amigo Friedrich Engels. As condições de moradia são na maioria das vezes catastróficas; ocasionalmente, até a mobília é penhorada. Ocorre inclusive de Marx nem sequer poder sair de casa por sua roupa ter sido penhorada. As doenças perseguem a família; apenas algumas das crianças sobrevivem aos primeiros anos. Pressionado por dívidas, Marx pensa em declarar bancarrota; apenas o fiel amigo Engels consegue impedir esse ato extremo. A senhora Jenny desespera-se frequentemente e deseja para si e suas crianças antes a morte do que viver uma vida tão miserável. Acresce que Marx se envolve em um caso amoroso com a empregada doméstica, que não fica sem consequências e prejudica sensivelmente o clima doméstico já afetado pela miséria financeira. Continuam também as desavenças com os correligionários.
Apesar de tudo, Marx trabalha ferreamente, ainda que interrompido por períodos de inatividade causada por esgotamento, em sua obra-prima, O Capital. Ele consegue enfim publicar o primeiro volume; como quase não aparecem comentários, ele mesmo escreve críticas positivas e negativas. Em 1883 porém, antes que a obra de três volumes esteja completa, Marx morre aos 65 anos.
O aspecto e a personalidade de Marx são descritos por um amigo russo de modo bem intuitivo, ainda que sua magnífica barba seja esquecida: "Ele representa o tipo de homem constituído por energia, força de vontade e convicção inflexível, um tipo que também segundo a aparência era extremamente estranho. Uma grossa juba negra sobre a cabeça, as mãos cobertas pelos pêlos, o paletó abotoado totalmente, possuía contudo o aspecto de um homem que tem o direito e o poder de atrair a atenção, por mais esquisitos que parecessem seu aspecto e seu comportamento. Seus movimentos eram desastrados, porém ousados e altivos; suas maneiras iam frontalmente de encontro a toda forma de sociabilidade. Mas eram orgulhosas, com um laivo de desprezo, e sua voz aguda, que suava como metal, combinava-se estranhamente com os juízos radicais que fazia sobre homens e coisas. Não falava senão em palavras imperativas, intolerantes contra toda resistência, que aliás eram ainda intensificadas por um tom que me tocava quase dolorosamente e que impregnava tudo o que falava. Esse tom expressava a firme convicção de sua missão de dominar os espíritos e de prescrever-lhes leis. Diante de mim estava a encarnação de um ditador democrático, assim como se fosse em momentos de fantasia."
Desde o início de sua atividade filosófica, Marx insere-se na maior disputa espiritual de seu tempo, determinada pela vultosa figura de Hegel, cujo pensamento ele chama de "a filosofia atual do mundo". Inicialmente, Marx dedica-se a Hegel com paixão para, depois, distanciar-se dele com tanto maior aspereza.
Sua crítica inicia-se pela concepção da história de Hegel. Para este, a história não é uma mera sequência casual de acontecimentos, mas um suceder racional que se desenvolve segundo um princípio imanente, ou seja, uma dialética interna. O decisivo nisso é que o verdadeiro sujeito da história não são os homens que agem. Na história antes dominaria um espírito que tudo abrange, ao qual Hegel designa como "espírito do mundo" ou "espírito absoluto" ou mesmo "Deus". Esse, o Deus que vem-a-ser, realiza no curso da história sua autoconsciência. Ele chega, por meio dos diferentes momentos do processo histórico, a si mesmo.
Hegel era da opinião de que em seu tempo e em seu próprio sistema o espírito absoluto teria, após todos seus descaminhos através da história, finalmente alcançado seu objetivo: a perfeita autoconsciência. "O espírito universal chegou ora até aqui. A última filosofia é o resultado de todas as anteriores; nada está perdido, todos os princípios foram preservados. Esta idéia concreta é o resultado dos esforços do espírito por quase 2500 anos, seu fervoroso trabalho, de reconhecer-se." Portanto, após o surgimento da filosofia hegeliana, não pode haver mais nada realmente inconcebível. Esse é o sentido da conhecida frase do Prefácio à Filosofia do Direito: "O que é racional é real; e o que é real é racional." Razão e realidade chegaram portanto, segundo Hegel, finalmente à adequação uma com a outra; elas foram verdadeiramente conciliadas. O espírito absoluto compreendeu a si mesmo como a realidade total e a realidade total como manifestação sua.
Marx e Hegel
Aqui entra o protesto de Marx. Aquele pensamento de Hegel, de que a realidade toda tinha de ser entendida a partir de um espírito absoluto, consiste para ele em um injustificado "misticismo". Pois assim se filosofa a partir de um ponto acima da realidade factual, não a partir dessa mesma. Em oposição a isso a decidida exigência de Marx – de colocar a filosofia, ora de ponta-cabeça, de volta sobre os pés – é que a visão da realidade deveria ser invertida. A realidade deste mundo não deve ser explicada com base em uma realidade divina. Contrariamente, o ponto de partida do pensamento tem de ser a realidade concreta. Esse pensamento imprime à filosofia de Marx seu cunho ateísta. "A missão da história é, após o além da verdade ter desaparecido, estabelecer a verdade do aquém."
Quando Hegel afirma que a realidade estaria conciliada com a razão, ele não poderia, segundo Marx, ter em vista a realidade concreta. Em Hegel, tudo se passa no âmbito do mero pensamento. Mesmo a realidade sobre a qual ele fala, é a mera realidade pensada. Para Marx, porém, a realidade factual mostra-se contraditória, inconcebível e portanto não conciliada com a razão. Todo o empenho filosófico de Hegel fracassa porque ele não é capaz de incluir essa realidade efetiva em seu pensar, por mais abrangente que esse seja. "O mundo é portanto um mundo dilacerado, que se opõe a uma filosofia fechada em sua própria totalidade."
Para Marx, portanto, a realidade concreta é a realidade do homem. "As pressuposições com as quais iniciamos são os indivíduos reais." A filosofia como Marx a postula – em contraposição a Hegel e em concordância com Feuerbach – é uma filosofia da existência humana. "A raiz do homem é o próprio homem." Marx denomina sua filosofia por isso mesmo de "humanismo real". O real primeiro e originário para o homem é o próprio homem. É dele, portanto, que o novo pensar também tem de partir.
Mas o que é o homem? O significativo aqui é que Marx não considera o homem, como o faz Hegel, essencialmente a partir de sua faculdade de conhecer. Ao contrário, trata-se decisivamente da práxis humana, da ação concreta. "Na práxis, o homem tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade, o poder e a mundanalidade de seu pensamento." "Parte-se do homem real que age."

É da essência da práxis humana que ela se realize na relação com o outro. Se Feuerbach queria conceber o homem como indivíduo isolado, Marx ressalta com toda clareza: o homem vive desde sempre em uma sociedade que o supera. "O indivíduo é o ser social." "O homem, isto é o mundo do homem: Estado, sociedade." Essa natureza social constitui para Marx o ponto de partida para toda reflexão subsequente. Assim deve-se entender a muito discutida frase: "Não é a consciência do homem que determina seu ser, mas é seu ser social que determina sua consciência."
Mas por que meio se constitui a sociedade humana? Marx responde: basicamente, não por meio da consciência comum, mas por meio do trabalho comum. Pois o homem é originariamente um ser econômico. As relações econômicas e particularmente as forças produtivas a elas subjacentes são a base (ou a "infra-estrutura") de sua existência. Apenas na medida em que essas relações econômicas se modificam, também se desenvolvem os modos da consciência, que representam a "superestrutura ideológica". Desta superestrutura fazem parte o Estado, as leis, as ideias, a moral, a arte, a religião e similares. Na base econômica reencontram-se também aquelas leis do desenvolvimento histórico, como as que Hegel atribuiu ao espírito. As relações econômicas desdobram-se de modo dialético, mais precisamente, no conflito de classes. Por isso, para Marx, a história é principalmente a história das lutas de classes.
Até aqui tudo poderia parecer como uma das muitas teorias antropológicas e histórico-filosóficas, em que a história da filosofia é bastante rica, isto é, até interessante mas realmente apenas mais uma interpretação entre muitas outras. Por que, então, o que Marx diz é tão estimulante? Como se explica que seu pensamento tenha determinado tão amplamente o tempo seguinte? Isso reside obviamente em que Marx não se detém no âmbito do pensamento puro, mas que se põe a trabalhar decisivamente na transformação da realidade: "Os filósofos têm apenas interpretado diversamente o mundo; trata-se de modificá-lo."
Nessa intenção, Marx empreende uma crítica de seu tempo. Observa que em seus dias a verdadeira essência do homem, sua liberdade e independência, "a atividade livre e consciente", não se podem fazer valer. Por toda parte o homem é tirado a si mesmo. Por toda parte perdeu as autênticas possibilidades humanas de existência. Esse é o sentido daquilo que Marx chama de "auto-alienação" do homem. Ela significa uma permanente "depreciação do mundo do homem".
Também aqui Marx recorre às relações econômicas. A auto-alienação do homem tem sua raiz em uma alienação do trabalhador do produto de seu trabalho: este não pertence àquele para seu usufruto, mas ao empregador. O produto do trabalho torna-se uma "mercadoria", isto é, uma coisa estranha ou alheia ao trabalhador, que o coloca em posição de dependência, porque ele precisa compará-la para poder subsistir. "O objeto que o trabalho produz, seu produto, apresenta-se a ele como uma essência estranha, como um poder independente do produtor." Da mesma forma também o trabalho se torna "trabalho alienado": não a ele imposto de sua autoconservação; o trabalho torna-se, em sentido próprio, "trabalho forçado". Esse desenvolvimento atinge sua culminância no capitalismo, no qual o capital assume a função de um poder separado dos homens.
A alienação do produto do trabalho conduz também a uma "alienação do homem". Isso não vale apenas para a "luta de inimigos entre capitalista e trabalhador". As relações interpessoais em geral perdem cada vez mais a sua imediação. Elas são mediadas pelas mercadorias e pelo dinheiro, "a meretriz universal". Enfim, os próprios proletários assumem caráter de mercadoria; sua força de trabalho é comercializada no mercado de trabalho, no qual se encontra à mercê do arbítrio dos compradores. Seu "mundo interior" torna-se "cada vez mais pobre"; sua "destinação humana e sua dignidade" perdem-se cada vez mais. O trabalhador é "o homem extraviado de si mesmo"; sua existência é "a perda total do homem"; sua essência é uma "essência desumanizada".
Mas, no ápice desse desenvolvimento – o que Marx crê poder demonstrar –, tem de sobrevir a guinada. Ela se torna possível desde que o proletariado se conscientize de sua alienação. Ele se compreende então como "a miséria consciente de sua miséria espiritual e física, a desumanização que, consciente de sua desumanização, supera por isso a si mesma". Concretamente, segundo os prognósticos de Marx, chega-se a uma concentração do capital nas mãos de poucos, a um crescente desemprego e empobrecimento das massas. Com isso, porém, o capital torna-se seu próprio coveiro. Pois a essa concentração de capital devem seguir-se, segundo "leis infalíveis" – com necessidade histórica, cientificamente reconhecida e dialética –, a subversão e a revolução. A missão dessa revolução é "transformar o homem em homem", para que "o homem seja o ser supremo para o homem". Trata-se de "derrubar todas as relações em que o homem é um ser degradado, escravizado, abandonado e desprezado". Importa realizar "o verdadeiro reino da liberdade", desenfronhar o homem em "toda a riqueza de sua essência" e, com isso, superar definitivamente a alienação.

Marx considera tudo isso tarefa do movimento comunista. É chegado o tempo do "comunismo como superação positiva da propriedade privada enquanto auto-alienação do homem e por isso como apropriação real da essência humana por meio de e para o homem; por isso, como regresso – perfeito, consciente e dentro da riqueza total do desenvolvimento até aqui –, do homem para si mesmo enquanto homem social, ou seja, humano. Esse comunismo é a verdadeira dissolução do antagonismo entre o homem e a natureza e entre o homem e o homem. A verdadeira solução do conflito entre liberdade e necessidade. Ele é o enigma decifrado da história, a verdadeira realização da essência do homem". Com o comunismo, "encerra-se a pré-história da sociedade humana" e inicia-se a sociedade "realmente humana". Mas sobre como essa sociedade comunista deve ser, Marx não nos dá nenhuma informação adicional.

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JEAN-PAUL SARTRE

Filósofo, romancista e dramaturgo francês (21/6/1905-15/4/1980). Um dos maiores nomes da filosofia existencialista do século XX, que tem como instrumento de conhecimento a existência do ser no mundo. Nasce em Paris e estuda na Escola Normal Superior, onde conhece a escritora Simone de Beauvoir em 1924, com quem estabelece uma relação afetiva até sua morte. De 1931 a 1945 leciona filosofia em várias escolas secundárias. Recrutado em 1939 para a II Guerra Mundial, acaba prisioneiro dos alemães entre 1940 e 1941. Depois de libertado, volta a lecionar e se integra à Resistência Francesa, de oposição ao nazismo, fundando o movimento Socialismo e Liberdade. Finda a guerra, aproxima-se dos comunistas. Em 1945 cria com outros intelectuais a revista Les Temps Modernes, que exerce grande influência sobre a intelectualidade francesa. É o primeiro diretor do hoje tradicional jornal esquerdista Libération. Em 1956 rompe com os comunistas após a intervenção das tropas soviéticas na Hungria. Escreve peças de teatro, como Entre Quatro Paredes (1944) e O Diabo e o Bom Deus (1951), e romances, como A Idade da Razão (1945) e Com a Morte na Alma (1949). Entre seus escritos filosóficos, estão os livros O Ser e o Nada (1943) e Crítica da Razão Dialética (1960). Morre em Paris.

BIBLIOGRAFIA 

DURANT, Will, História da Filosofia - A Vida e as Ideias dos Grandes Filósofos, São Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.
FRANCA S. J., Padre Leonel, Noções de História da Filosofia.

PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís, História da Filosofia, Edições Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição, 1974.

VERGEZ, André e HUISMAN, Denis, História da Filosofia Ilustrada pelos Textos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.

Coleção Os Pensadores, Os Pré-socráticos, Abril Cultural, São Paulo, 1.ª edição, vol.I, agosto 1973.

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