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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

CRISTIANISMO E GNOSTICISMO

CRISTIANISMO E GNOSTICISMO: UMA AVALIAÇÃO DE SUA INCOMPATIBILIDADE AO ENSEJO DA PUBLICAÇÃO DO “EVANGELHO DE JUDAS”

RESUMO

Com a publicação do chamado Evangelho de Judas, novamente é levantada a questão do relacionamento entre o gnosticismo e o cristianismo nos primeiros séculos da era cristã. O gnosticismo pode ser considerado um ramo dissidente do cristianismo? Os evangelhos gnósticos devem ser considerados documentos do cristianismo, tais como os canônicos? O Evangelho de Judas traz alguma contribuição para o estudo das raízes do cristianismo? São questões que o autor responde pela negativa, demonstrando que as premissas do gnosticismo são incompatíveis com as do cristianismo e que, por essa razão, não se pode chamar o gnosticismo de cristão, qualquer que seja a sua modalidade. Além de fazer uma comparação das principais crenças do gnosticismo com as do cristianismo bíblico-histórico, o autor apresenta uma breve análise do conteúdo do Evangelho de Judas para situá-lo no contexto literário dos escritos gnósticos e deixar evidente a sua incompatibilidade com a literatura canônica do Novo Testamento, especialmente com a dos evangelhos. Para o autor, a descoberta e publicação do Evangelho de Judas podem contribuir para o estudo do gnosticismo em si, em suas diversas modalidades, mas não para o estudo do cristianismo em suas raízes históricas.

PALAVRAS-CHAVE 

Gnosticismo; Cristianismo; Evangelho de Judas; Evangelhos canônicos; Jesus Cristo; Apóstolos.

INTRODUÇÃO 

No dia 6 de abril de 2006, a  National  Geographic  Society (Sociedade Geográfica Nacional), com sede em Washington (EUA), convocou a imprensa para anunciar o restauro e a tradução para o inglês de um manuscrito que se supõe ser uma cópia em copta do original grego do Evangelho de Judas, do 2º século. Esse documento, supostamente escrito no 3º ou 4º século na forma de códice, teria ficado escondido por 1.700 anos até ser descoberto numa caverna de El  Minya,  no  deserto  do  Egito,  em  1978.  Durante muitos anos desde a sua descoberta, ficou em mãos de negociantes de antiguidades até ser adquirido por Frieda Nussberger-Tchacos, uma comerciante suíça, em 2000.

Dessa pessoa o documento herdou a sua identificação como Códice Tchacos.

Antes já havia sido levado para os Estados Unidos, onde, guardado no cofre de um banco por dezesseis anos, sofreu séria deterioração. O documento foi depois transferido para a Fundação Mecenas para Arte Antiga, em Basiléia (Suíça), em 2001, para ser restaurado e traduzido pelo coptólogo Rodolphe Kasser e sua equipe. O projeto de restauração, autenticação e tradução contou com o patrocínio da National Geographic Society, que o apresentou ao público às vésperas da páscoa de 2006.

Vários testes científicos comprovaram a antiguidade e autenticidade do documento. Por autenticidade se quer dizer que ele não foi forjado ou falsificado. Acredita-se que seja realmente um valioso achado arqueológico, talvez o mais importante depois da descoberta dos papiros de Nag Hammadi (também no Egito), em 1945, e dos manuscritos do Mar Morto, em 1947.

O códice contém não apenas o Evangelho de Judas, mas também outros escritos, como um documento chamado “Tiago” (também conhecido como O Primeiro Apocalipse de Tiago), a Carta de Pedro a Filipe e fragmentos de um texto que os estudiosos estão chamando de “Livro de Alógenes” (ou do Estranho). A parte do documento que foi traduzida, referente ao Evangelho de Judas, é composta de 26 páginas, de um total de 62 do documento.


1.  A IMPORTÂNCIA DA DESCOBERTA

Irineu
Eliminando-se o apelo sensacionalista que a mídia faz em casos como este, o que chama a atenção nessa descoberta é que ela pode estabelecer uma ligação  direta  entre  o  documento e  o  seu  suposto  original  em  grego,  do  2º  século, ao qual Irineu (bispo de Lião, na Gália Romana) fez referência em sua obra Contra as Heresias, por volta de 180 a.D. Esta seria, então, a primeira cópia encontrada desse evangelho, ainda que em outra língua. A descoberta pode comprovar uma versão que circulava no 2º e no 3º séculos, entre os gnósticos, sobre Jesus e Judas, inteiramente conflitante com o que encontramos nos evangelhos canônicos, escritos no 1º século (período apostólico), e em toda a tradição antiga.

Os quatro evangelistas bíblicos se referem a Judas Iscariotes como um traidor (Mt 10.4; Mc 3.19; Lc 6.16 e Jo 6.71). João é mais enfático e o chama de ladrão e diabo (Jo 6.7-71; 12.4-6). 

Ele diz que foi o diabo quem colocou no coração de Judas que traísse a Jesus e que, na ceia, depois de receber o pão molhado, Satanás entrou nele (Jo 13.2,21-27). Lucas também menciona que Satanás entrou nele (Lc 22.3). Conforme Mateus e Marcos, Jesus disse que a traição seria necessária, mas teria sido melhor para o traidor nem haver nascido, tal a gravidade desse ato (Mt 26.24; Mc 14.21). João interpreta a traição como cumprimento do Salmo 41.9 quando diz: “... é, antes, para que se cumpra a Escritura: Aquele que come do meu pão levantou contra mim o seu calcanhar” (Jo 13.18). Lucas registra que Pedro, por ocasião da escolha do substituto de Judas, disse que ele se transviou do apostolado “indo para o seu próprio lugar” e que isto aconteceu em cumprimento das Escrituras do Antigo Testamento (At 1.16,25). Mateus afirma que Judas, tocado de remorso por ter traído sangue inocente, devolveu o dinheiro da recompensa e foi enforcar-se (Mt 27.3-5). Lucas também registra um fim trágico para Judas (At 1.18).

Por outro lado, na versão do Evangelho de Judas, o Iscariotes é o único dos apóstolos que compreendeu Jesus, tendo-se sobressaído sobre os demais. Foi ele quem recebeu revelações especiais, não dadas aos outros. O fato de entregar Jesus nas mãos das autoridades não foi um gesto de traição, mas de ajuda, para que o seu mestre pudesse se libertar da sua humanidade, isto é, do seu corpo material, e entrar numa dimensão espiritual.

Até a segunda metade do século passado, o gnosticismo do 2º e 3º séculos a.D. praticamente só era conhecido pelo combate que lhe tinha sido feito por seus críticos. Tanto Irineu (130-200), em "Contra as Heresias", quanto Tertuliano (160-225), em "Contra Marcião", tiveram que confrontar os seus ensinamentos. Com a descoberta dos manuscritos de Nag Hammadi – uma pequena biblioteca de conteúdo eminentemente gnóstico, em 1945, o estudo das crenças e ensinamentos gnósticos ganhou grande impulso. Dentre esses documentos estavam o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Filipe, o Evangelho dos Egípcios e o Evangelho da Verdade. O Evangelho de Judas vem juntar-se a esse grupo de escritos, que se caracterizam não apenas por “preencher” supostas lacunas nas informações dos canônicos (como, por exemplo, sobre a infância de Jesus), mas por apresentar versões diferentes dos fatos e pessoas retratados nesses evangelhos.

Irineu de Lyon
A versão sobre Judas encontrada nesse documento não é inédita. Irineu combateu, nos seus dias, uma seita denominada “cainita”, cuja característica era reinterpretar o papel de personagens bíblicos negativos como Caim (que empresta o seu nome à seita), atribuindo-lhes funções importantes, de acordo com a sua visão gnóstica. Para essa seita, Caim foi um herói e não um vilão, porque se voltou contra o deus criador deste mundo mau e colocou-se ao lado do deus verdadeiro, aquele que de fato deve ser adorado. Contrariar o deus criador do mundo, como fez Caim, seria uma forma de reconhecer as prerrogativas do deus verdadeiro.
Coré
Nesse mesmo grupo eram colocados outros que também se levantaram contra o criador, como Coré e seus aliados, os homens de Sodoma e Gomorra e o próprio Judas Iscariotes. Em sua obra Contra as Heresias, Irineu assim se expressa:

Outros ainda dizem que Caim deriva da Potência Suprema e que Esaú, Coré, os sodomitas e semelhantes eram todos da mesma raça dela; motivo pelo qual, mesmo combatidos pelo Criador, nenhum deles sofreu algum dano, porque Sofia atraiu a si tudo o que lhe era próprio. Dizem que Judas, o traidor, sabia exatamente todas estas coisas e por ser o único dos discípulos que conhecia a verdade, cumpriu o mistério da traição e que por meio dele foram destruídas todas as coisas celestes e terrestres. E apresentam, à confirmação, um escrito produzido por eles, que intitulam Evangelho de Judas.

A descoberta não vai muito além daquilo que já se sabia com respeito a essa seita do 2º século. Como o documento é do 3º ou do 4º século, se tão remota assim for a sua origem, nenhuma informação histórica acrescentará para o estudo das correntes antagônicas do cristianismo no 1º século. Não parece razoável o entusiasmo de alguns críticos se eles, de fato, procuram conhecer, através deste documento, o cristianismo nos seus primórdios, nas suas raízes. Para isto, ainda terão que se contentar com as informações contidas nos evangelhos canônicos como as únicas fontes confiáveis do cristianismo apostólico. 

2. COMO ALGUNS ESTUDIOSOS VEEM A DESCOBERTA 

A National Geographic Society convidou quatro especialistas em literatura gnóstica para dar o seu ponto de vista sobre a descoberta: Marvin Meyer, professor da Universidade Chapman, na Califórnia (EUA), que ajudou a traduzir o documento; Barth Ehrman, da Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill (EUA); Elaine Pagels, da Universidade de Princeton, em Nova Jersey (EUA), e Craig Evans, da Universidade de Acádia, Nova Escócia (Canadá).

Os três primeiros, de orientação heterodoxa, defendem a ideia de que, nos seus primórdios, o cristianismo era uma mistura de diferentes concepções do mundo e de Deus e não um “bloco monolítico” como veio a ser, depois que um dos seus segmentos se tornou hegemônico. Para Barth Ehrman e Elaine Pagels, os conceitos de ortodoxia e heresia foram definidos pela ótica do grupo vencedor, em disputas que foram mais políticas do que religiosas. Como a sua abordagem da religião e da história da igreja é meramente sociológica, esses autores entendem que o Evangelho de Judas é mais uma prova do suposto pluralismo cristão que vicejava nos primeiros séculos. Craig Evans, considerado de linha ortodoxa, acredita que esse evangelho não pode ser comparado com os canônicos em confiabilidade, mas ainda assim vê aspectos positivos em seu conteúdo. Estes são alguns dos comentários dos estudiosos consultados:

Marvin  Meyer
2.1  Marvin  Meyer 

Para Meyer, o Evangelho de Judas é um belo exemplo de texto gnóstico setiano. Ele o classifica nesse grupo pelo destaque que o documento dá a Sete, o filho de Adão e Eva, como fazem outros documentos gnósticos dessa escola. Com Sete foi possível recomeçar a história religiosa que teve um começo trágico com a morte de Abel e o exílio de Caim. De acordo com Meyer, esses gnósticos se consideravam descendentes de Sete, pois os seres humanos que tinham conhecimento de Deus (gnose) viriam, de acordo com essa seita, dessa linhagem. Relacionavam com Sete o próprio Jesus, como também faz o Evangelho de Judas. O espírito e o poder de Sete teriam se encarnado na figura de Jesus.

Meyer acredita que parte do conflito que houve entre os gnósticos e a igreja primitiva (que ele chama de “ortodoxia”) se deveu ao fato de eles se recusarem a ouvir os bispos ou os sacerdotes, porque os gnósticos não precisavam de intermediários. De acordo com a sua crença, a voz de Deus estava dentro de cada um.

Barth  Ehrman
2.2  Barth  Ehrman 

Ehrman acredita que o evangelho pertence à seita dos cainitas, que Irineu combateu. De acordo  com  essa  seita,  Jesus  teria  transmitido  ensinamentos  secretos aos discípulos e a Judas em particular. Irineu, ao combater e proibir a leitura desse evangelho, teria feito com que ele se perdesse para ser descoberto só agora.

Ehrman  vê  aspectos  importantes  nessa descoberta:  possibilitar  que  os  estudiosos conheçam certas variedades do gnosticismo existente nos séculos 2º e 3º da era cristã e, ao mesmo tempo, conhecer a história de Jesus do ponto de vista do escritor desse evangelho. Segundo ele, neste segundo ponto está o maior valor da descoberta. Ainda segundo  Ehrman, a  descoberta  pode  ter um impacto no modo como as pessoas compreendem o cristianismo hoje. Ele crê que havia diferentes versões da verdade no início, assim como há hoje, e que todas devem ser respeitadas. O evangelho nos ensinaria a ser mais tolerantes com as diferentes formas de cristianismo que existem atualmente, todas verdadeiras, porque, segundo ele, ninguém tem a verdade toda. Estas são as suas palavras:

O Evangelho de Judas nos mostra uma compreensão bem diferente da verdade, uma compreensão bem diferente da religião cristã, em relação à que se tornou dominante.  A razão por que é importante compreender esta diversidade no início do cristianismo é porque ainda existe diversidade hoje. E seria um erro achar que o cristianismo é apenas uma coisa hoje se, de fato, o cristianismo é uma ampla gama de coisas. A minha visão é que, uma vez que alguém compreende a diversidade desta religião que remonta a seus primeiros séculos, esta pessoa se torna mais tolerante em relação a essa diversidade. Em vez de insistir que você tem um pedaço da verdade, faz com que você perceba que, de fato, existem muitas versões da verdade que merecem nosso respeito e admiração. Então, em vez de insistir que você está certo e todo mundo está errado, em vez disso é preciso compreender que o cristianismo é e sempre foi um movimento amplamente diverso.

Elaine  Pagels
2.3  Elaine  Pagels 


Pagels vê como o aspecto mais fascinante do Evangelho de Judas a noção de que Jesus e Judas agiam em mútuo acordo e o fato de Judas ter uma estrela particular, um destino especial e uma compreensão espiritual superior à dos demais discípulos. Ela não entra no mérito se o que o evangelho diz é histórico ou não, mas acha interessante conhecer uma nova perspectiva a respeito de personagens bíblicos como Judas, Maria Madalena, Tomé e até Pedro e Paulo, à luz desses “evangelhos secretos”. Ela acha improvável que esse evangelho contenha as palavras reais de Jesus e de Judas, mas levanta a mesma dúvida com respeito aos evangelhos do Novo Testamento e prefere descartar essa discussão. Pagels entende que “o que chamamos de textos gnósticos são de fato um apanhado bem variado de fontes dos primórdios do cristianismo” e diz que “existem mais de 55 textos e evangelhos conhecidos desses ‘primórdios’ que ficaram fora  do  Novo  Testamento”,  e  que  estes guardam  muitas diferenças  entre si.

Ela atribui a Irineu a unidade do cristianismo posterior, quando, no final do 2º século, preocupado com a divisão dos cristãos em vários grupos e com tradições conflitantes, ele “resolveu e declarou que apenas quatro dos muitos evangelhos disponíveis seriam os verdadeiros evangelhos, os autênticos”.

Craig  Evans


2.4  Craig  Evans

Também para Evans o elemento mais interessante desse evangelho é o fato de Jesus ter pedido a Judas que o traísse para ele poder completar a sua missão. Ele destaca que os evangelhos canônicos não dizem por que Judas fez isso. Teria ele agido nos bastidores, como outros personagens dos evangelhos canônicos agiram? Ele menciona dois desses fatos: o de se trazer um animal para Jesus entrar em Jerusalém e a preparação do lugar onde comeriam a Páscoa. Não se diz quem fez isso e quais foram os detalhes. Apenas que cumpriam uma ordem de Jesus. Evans pergunta: Seria possível que Judas também estivesse agindo nos bastidores, obedecendo a uma ordem ou pedido de Jesus, mas como a coisa acabou mal, com a sua prisão e morte, então esse ato passou a ser lembrado como uma traição?

Na sua opinião, essa é uma questão muito interessante, a mais importante desse evangelho, e que só ele abre para nós. Evans pergunta:

Será que Jesus tinha combinado alguma coisa com Judas sem que os outros discípulos soubessem, mas algo deu muito errado e, quando Jesus foi preso, os discípulos só puderam interpretar o fato como uma traição, pois na verdade nunca souberam por que Judas fez o que fez?

E conclui: no Evangelho de Judas pode ser que haja essa explicação. Embora ache interessante essa suposta informação do evangelho, o que não deixa de ser estranho  para  um  estudioso considerado  ortodoxo,  Evans  coloca  a  tradição  dos  evangelhos  canônicos  como  sendo mais  fiel  e  à  qual  se  deve  dar  preferência  por  ser  mais  antiga  e  remontar  ao  período de  vida  de  pessoas  que  conviveram  com  Jesus  e  o  ouviram.  Lembra que houve um controle no corpo dessas tradições e na sua preservação na comunidade cristã, naquela primeira geração. Evangelhos posteriores como o de Tomé, de Pedro e de Maria, que surgiram nas gerações seguintes, não refletem o pensamento dos primeiros cristãos e por isso não têm o mesmo valor. Ele diz:

É por isso que eu penso que sempre é necessário dar prioridade aos evangelhos do Novo Testamento, se quisermos entender aquele que é conhecido como o verdadeiro e histórico Jesus de Nazaré.

Evans também cita Irineu, que, no final do 2º século, reconhecia o valor dos quatro evangelhos do Novo Testamento, sabendo que eram mais antigos e, por isso, só eles deveriam ser aceitos. Ao contrário da opinião de Pagels, e com mais acerto, ele argumenta que Irineu não estabeleceu isso por conta própria, mas que foram os primeiros cristãos que o fizeram. Aqueles quatro foram os evangelhos que esses primeiros cristãos escolheram para ler e copiar e aos quais deram valor.

Evans finaliza com o argumento de que o Jesus dos evangelhos canônicos é consistente com o judaísmo conhecido antes de 70 a.D. Neles Jesus não aparece falando de éons, de sete camadas de céus, de mistérios gnósticos especiais ou coisas dessa natureza. Ele diz:

Temos um Jesus consistente com todas as fontes que conhecemos, tais como Josefo, os pergaminhos do Mar Morto e outros textos da sinagoga sobre como era o judaísmo antes do ano de 70. Mas, quando consultamos evangelhos como o de Judas, de Tomé ou de Maria, deparamos com ideias novas e bem posteriores. Elas não representam o judaísmo pré-70, da maneira como o vemos em São Mateus, São Marcos e São Lucas. São diferentes, são estranhos, vieram de algum outro lugar. Vêm de um lugar posterior, e é isso que chamamos, que os padres [sic] da igreja chamam de “gnosticismo”. 

3. CONHECENDO O GNOSTICISMO 

Definir o gnosticismo não é tarefa fácil. Isso é reconhecido pelos próprios gnósticos atuais. É que há tantas variantes dessa filosofia que se torna mais fácil ir do particular para o geral, isto é, estudar um texto gnóstico para, através dele, conhecer o tipo de gnosticismo que é encontrado ali. Um autor gnóstico diz que na verdade, “gnosticismo”, assim como “protestantismo”, é uma palavra que perdeu grande parte do seu significado. Assim como deveríamos saber se um escritor “protestante” é calvinista, luterano, anabatista ou qualquer outro para avaliá-lo devidamente, também o termo “gnóstico” deveria ser identificado.

Nesse ponto talvez resida o maior valor dessa descoberta, se não o único. O Evangelho de Judas nos possibilita conhecer mais alguns aspectos do gnosticismo. Irineu menciona vários sistemas gnósticos, como os postulados por Marcos, Valentim,  Simão,  o  mago,  Menandro, Saturnino  e  Basílides,  Carpócrates, Cerinto e Marcião. Também descreve a crença dos ebionitas e dos nicolaítas, bem como as de outras seitas menos influentes como as dos barbelonitas, dos ofitas e dos setianos, e finalmente a dos cainitas. É na descrição dessa seita menor, a dos cainitas, que ele menciona o Evangelho de Judas, como foi mencionado anteriormente.

Embora este movimento só tenha se tornado proeminente a partir do 2º século, devido à sua associação com o cristianismo, geralmente se acredita que a sua origem seja mais antiga, não só recuando aos primeiros dias da igreja cristã, mas remontando até mesmo às tradições mais antigas da Babilônia e da Pérsia. Por isso, ele não deve ser visto apenas como uma dissidência ou ramificação do cristianismo, mas como um movimento de raízes próprias, pré-cristãs. Quando surgiu o cristianismo, certos grupos acharam que podiam associar a ele algumas dessas crenças antigas, numa espécie de sincretismo religioso comparável, até certo ponto, com aquele que se faz no Brasil entre rituais e santos do catolicismo romano com rituais e entidades dos cultos africanos.

A Enciclopédia Encarta conceitua o gnosticismo como um... 

movimento  religioso  esotérico  que  floresceu  durante  os  séculos  2º  e  3º  e trouxe um desafio para os cristão ortodoxos. A maioria das seitas gnósticas professavam o cristianismo, mas suas crenças eram diferentes das dos cristãos dos primeiros tempos da Igreja. Para seus seguidores, o gnosticismo prometia um conhecimento secreto do reino divino. Segundo os gnósticos, sementes do Ser Divino caíram até o universo material – que, em sua totalidade, é mau – e foram encarceradas nos corpos humanos. O conhecimento ou gnose poderia despertar estes elementos que voltariam à própria casa, isto é, o reino espiritual.

De acordo com essa mesma fonte,

Para explicar a ordem do universo material, os gnósticos desenvolveram uma complicada mitologia. Do Deus original, não cognoscível, uma série de divindades menores tinham sido geradas, por emanação. Assim nasceu um Deus mau, criador do Universo e identificado com o Deus do Antigo Testamento. Os cristãos gnósticos se negavam a identificar o Deus do Novo Testamento, pai de Cristo, com o Deus do Antigo Testamento. Para se justificarem, escreveram evangelhos apócrifos (como os evangelhos de Tomás e de Maria) afirmando que Jesus expôs a seus discípulos a interpretação gnóstica de seus ensinamentos. Ou seja, Cristo, o espírito divino, habitou o corpo do homem Jesus, mas não morreu na cruz. Desta maneira, os gnósticos rejeitavam o sofrimento, a morte e a ressurreição do corpo terreno. Os gnósticos também não aceitavam outras interpretações literais e tradicionais do Evangelho.

Essa conceituação do gnosticismo naturalmente não contempla todas as suas modalidades e vertentes. No caso da seita que escreveu o Evangelho de Judas, o sofrimento e a morte de Jesus não são negados, antes explicados de acordo com a sua visão de libertação e salvação. Uma tentativa de conceituação mais abrangente, englobando as suas principais modalidades em todos os tempos e, provavelmente com mais autoridade, é oferecida pelo bispo gnóstico Stephan A. Hoeller, em seu artigo What is a Gnostic? (O que é um gnóstico?). Nesse texto é apresentada uma síntese feita por Clark Emery, professor da Universidade de Miami, com doze pontos  que  Hoeller  considera uma  descrição  precisa  das  características do  gnosticismo. Para ele essas características podem ser consideradas normativas para se descrever um gnóstico, tanto na era clássica como nos dias de hoje.

São as seguintes:

1.  Os gnósticos postulam uma unidade espiritual que veio a se dividir numa pluralidade.

2.   O universo foi criado como resultado dessa divisão pré-cósmica. Isto foi feito por um líder possuidor de poderes espirituais inferiores e que frequentemente é assemelhado ao Jeová do Antigo Testamento.

3.   Uma  emanação  feminina  de  Deus  estava  envolvida  na  criação  cósmica  (embora num papel mais positivo do que o do líder).

4.   No cosmos, o espaço e o tempo têm um caráter malévolo e podem ser personificados como seres demoníacos que separam o homem de Deus.

5.   Para o homem, o universo é uma vasta prisão. Ele está escravizado tanto pelas leis físicas da natureza como por leis morais, como o código mosaico.

6.   A humanidade pode ser personificada como Adão, que jaz no profundo sono da ignorância, com seus poderes de autoconsciência espiritual entorpecidos pela materialidade.

7.   Dentro de cada homem natural está um “homem interior”, uma centelha apagada da substância divina. Desde que esta existe em cada homem, temos a possibilidade de nos despertar desse nosso estupor.

8.  O que efetua esse despertamento não é a obediência, nem a fé, nem boas obras, mas o conhecimento.

9.   Antes do despertamento, os homens devem passar por sonhos perturbadores.

10.  O homem não obtém o conhecimento que o desperta desses sonhos por cognição, mas através de experiências de revelação, e este conhecimento não é informação, mas uma modificação do ser sensorial.

11. O despertamento (i.e., a salvação) de qualquer indivíduo é um evento cósmico.

12. Desde que o esforço seja para restaurar a inteireza e unidade de Deus, uma rebelião  ativa  contra  a  lei  moral  do  Antigo  Testamento  é  exigida  de  todo  homem.

Em sua obra Gnosticismo, já traduzida para o português, Hoeller encampa esses pontos e acrescenta mais alguns a respeito de Jesus Cristo e da salvação. Para ele, Jesus foi o maior dos mensageiros da luz dentre todos os que têm sido enviados, desde os primeiros tempos da história, para “fazer avançar a gnose nas almas dos humanos”. Seu ministério foi tanto o de dar “instruções referentes ao caminho da gnose como o de comunicar mistérios”. Esses mistérios, também conhecidos como sacramentos, são “auxílios sagrados para a gnose e foram confiados por ele aos seus apóstolos e seus sucessores”. Ele afirma:

Por meio da prática espiritual dos mistérios (sacramentos) e de uma luta inexorável e inflexível pela gnose, os humanos podem avançar firmemente para a libertação de todo confinamento, material e outros.  O objetivo final deste processo de liberação é a realização do conhecimento salvador e com ele a libertação da existência corporificada e o retorno para a unidade última. 

4.  COMPARANDO O GNOSTICISMO COM O CRISTIANISMO 

Estes pontos do gnosticismo, expostos por um dos seus líderes, deixam claro que não há como harmonizar essa crença com o cristianismo das Escrituras Sagradas. 

4.1  Deus 

O gnosticismo é politeísta, pois acredita que Deus se dividiu em diversas hierarquias de entidades ou emanações divinas (ou éons). É assim que ele tenta explicar a existência do mal e a natureza imperfeita do mundo criado.
O universo teria sido criado não pelo Deus soberano e único revelado nas Escrituras, mas por um demiurgo (artesão ou criador), uma entidade emanada do Deus Pai (o Éon perfeito), mas que não preservou a sua bondade e perfeição.

Stephan  A.  Hoeller
Segundo  o  gnóstico  Stephan  A.  Hoeller,  citado  acima,  o  gnosticismo  tenta unir e reconciliar conceitos do monoteísmo, do politeísmo, do teísmo, do deísmo e do panteísmo, tudo ao mesmo tempo. Para ele, o conceito gnóstico da divindade pode ser resumido da seguinte forma:

a.  Há um Deus verdadeiro, transcendente e último, que está acima dos universos criados e que nada criou, no sentido em que entendemos a criação. Embora esse Deus verdadeiro nada tenha criado, ele fez emanar de si a substância de tudo que há no mundo, visível e invisível. Num certo sentido, então, é possível dizer que tudo é Deus, pois tudo consiste da substância de Deus. Muitas porções dessa essência original foram projetadas para longe de sua fonte e sofreram mudanças corruptoras no processo. Assim, adorar o cosmos, a natureza ou criaturas corpóreas é equivalente a adorar porções corruptas e alienadas da essência divina, ainda que emanadas dela.

b. A crença gnóstica tem muitas variações, mas todas elas se referem aos Éons, que seriam seres divinos intermediários que existem entre o Deus último e verdadeiro e nós. Esses seres, juntamente com o Deus verdadeiro, formam o  reino  da  Plenitude  (ou  Pleroma),  em  que  a potência  da  divindade  opera  plenamente.  A  Plenitude  se  contrasta  com  o  nosso  estado existencial  que,  comparado a ela, pode ser chamado de vacuidade ou vazio.

c.  Um desse seres eônicos, chamado Sofia (Sabedoria), é de grande importância na cosmologia gnóstica. Em suas jornadas, Sofia veio a emanar do seu ser uma consciência imperfeita, um outro ser que se tornou o criador do mundo material e psíquico, mundo esse criado à imagem de sua própria imperfeição.

Este ser, não ciente de sua origem, imaginou-se ser o deus último e absoluto. Por ter adquirido a essência divina já existente e tê-la moldado em diversas outras formas, é também chamado de Demiurgo, ou “meio-criador”. Assim, há uma metade autêntica, um componente divino autêntico na criação, mas que não é reconhecido pelo “meio-criador” nem por seus subordinados cósmicos, os Arcontes ou “governantes”.

Essa teogonia é a que tenta explicar a natureza do Deus do Antigo Testamento, ao qual classifica como cruel, vingativo e mau. A emanação feminina que esteve envolvida na criação, a que se refere a conceituação de Clark Emery, seria a essência de Sofia, de quem o demiurgo teria emanado. Por causa dessa essência o criador pôde transmitir à criatura um pouco da divindade, quando formou Adão e Eva. Deste modo, toda a humanidade traz em si, embora apagada, uma centelha divina.

Quem  conhece  as  Escrituras  Sagradas  é  capaz  de  perceber  que  esse  conceito  de divindade  não  guarda  qualquer  paralelo  com  o  do  Deus  único  e  soberano  do cristianismo.  O  cristianismo  não  reconhece  qualquer  outra  divindade, nem qualquer outro criador que não seja o Deus único do Antigo e do Novo Testamento. A doutrina da Trindade não serve de paralelo para a ideia de uma pluralidade de deuses, pois Pai, Filho e Espírito Santo são vistos como um só Deus verdadeiro e eterno, da mesma substância, iguais em poder e glória. Toda a criação é atribuída nas Escrituras tanto ao Pai quanto ao Filho e ao Espírito Santo. O cristianismo não tem uma hierarquia de deuses, com poderes e naturezas diferentes.

4.2  O  mundo

No gnosticismo, o mundo é visto como essencialmente defeituoso e mau, desde a sua criação. O mundo é imperfeito porque foi criado imperfeito, e não por causa do homem, dizem os gnósticos. A culpa deve ser atribuída ao criador.

A doutrina do pecado original e da queda pela desobediência de Adão e Eva, e a sua consequente ruína e maldição, extensivas a todo o universo (cf. Gênesis 3), é considerada inaceitável pelo gnosticismo. Hoeller afirma:

Os monoteístas imaginam Deus como o criador e geralmente também como mantenedor, doador das leis e executante das leis do universo. Como os gnósticos – bem razoavelmente – não podiam acreditar que um par pecador de ancestrais humanos pudesse ter realizado os inumeráveis males e aspectos desagradáveis do mundo, sobrou somente um culpado: o Criador, o próprio Deus. O mundo não caiu, dizem os gnósticos; certamente, ele foi imperfeito desde o começo.

Assim, para os gnósticos o criador do mundo não é o “Deus último, verdadeiro e bom”, mas “uma deidade menor, ignorante de um poder além dele mesmo” que “decide usurpar a posição da divindade maior”. É essa divindade secundária (demiurgo) quem deu origem ao mal e à imperfeição no mundo.

Para o cristianismo, toda a criação era originariamente perfeita, por ter sido feita por um Deus único e perfeito. No relato de Gênesis 1, ao final de cada etapa da criação se afirma: “Viu Deus que isso era bom” (Gn 1.10,12,18,21,25), para depois concluir de modo enfático no versículo 31: “Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom”. Para o cristianismo, o mal entrou no mundo como resultado da rebelião da criatura contra o criador (primeiro dos anjos e depois do homem – Judas 6; Gênesis 3), e não como obra direta do criador.


4.3  A  moralidade


O  (em particular a lei mosaica), como um instrumento para escravizá-lo.  O Evangelho de Judas revela esse ponto de vista em algumas de suas passagens, especialmente aquela em que Jesus parece dizer a Judas que ele lhe prestaria um serviço por ajudá-lo a libertar-se do corpo humano.  É como têm sido interpretadas estas palavras de Jesus a Judas no documento: “Tu sacrificarás o homem que me veste”. Esse dualismo “matéria versus espírito” se manifesta no conceito expresso por Emery de que “o universo é uma vasta prisão” para o homem. Quando diz que o homem “está escravizado tanto pelas leis físicas da natureza como por leis morais como o código mosaico”, ele revela a sua recusa de relacionar o corpo com o espírito, negando  a  unidade  e  a  integralidade  desses  dois elementos  no  ser humano. 

Segundo Hoeller, os gnósticos ganharam esse epíteto de dualistas porque acreditam que o corpo se origina da terra, mas o espírito humano vem do reino da Plenitude, onde habita a verdadeira divindade. Segundo ele,

um ser humano consiste de componentes físicos e psíquicos que são perecíveis, e também de um componente espiritual, que é um fragmento da essência divina, algumas vezes chamado de centelha divina.

Esse ponto de vista tem a sua conseqüência direta no conceito de ética e moral do gnosticismo. Ao discorrer sobre essas questões, Hoeller argumenta:

Se as palavras “ética” ou “moralidade” forem tomadas como significando um sistema de regras, então o gnosticismo é contrário a ambas. Tais sistemas comumente se originaram com o Demiurgo e são dissimuladamente designadas para servir aos propósitos dele. Se, por outro lado, a moralidade for considerada  como  consistindo de  uma  integridade  interior  surgida  da  iluminação  da  centelha que habita o homem, então, o gnóstico abraçará esta ética existencial, espiritualmente informada, como um ideal.

Em que pese essa suposta visão de moralidade que, segundo esse autor, deve caracterizar os ideais do gnosticismo, o fato é que ela não faz uma ligação entre o homem interior e o exterior, entre o corpo e o espírito. A moralidade é descrita apenas como uma integridade interior, fruto da “iluminação da centelha divina que habita o homem” e como uma “ética existencial espiritualmente informada”, qualquer que seja o sentido que se dê a isto. Essa oposição às leis morais, especialmente à lei mosaica, levou muitas seitas gnósticas do passado a terem um baixo padrão moral de conduta. Irineu descreve os nicolaítas, uma das seitas gnósticas da sua época e já conhecida nos dias do apóstolo João (Ap 2.6), como pessoas que viviam desordenadamente, ensinando que a fornicação e o comer carne oferecida aos ídolos eram coisas indiferentes.

A moral do cristianismo, por não fazer essa dissociação ente o homem interior e o exterior, prescreve um padrão de conduta compatível com a pureza, tanto do espírito quanto do corpo. Paulo, escrevendo contra a fornicação diz:

Fugi da impureza. Qualquer outro pecado que uma pessoa cometer é fora do corpo; mas aquele que pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo. Acaso, não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que está em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo (1Co 6.18-20).

Para o cristianismo, corpo e espírito (ou alma) estão intimamente associados na constituição humana e não podem ser separados.

4.4  O  conhecimento

Os efeitos do pecado em Adão e sua descendência são interpretados pelo gnosticismo como sendo mera ignorância, devido à sua condição de matéria, um entorpecimento da autoconsciência, do qual é possível sair através do conhecimento (gnose). Assim se expressa Hoeller:

Os humanos estão presos num imbróglio que consiste na existência física combinada com a ignorância de sua verdadeira origem, sua natureza essencial e seu destino último.  Para  se  livrar  deste  imbróglio  os  seres  humanos  precisam  de  ajuda, embora possam também contribuir com seus próprios esforços.

Esse conhecimento libertador é adquirido, segundo os gnósticos, não por meio de experiências objetivas e conscientes, como a fé, a obediência e uma conduta que corresponda a elas (boas obras), mas através de uma experiência mística, um evento cósmico que vai acender a fagulha adormecida em cada um. São experiências sensoriais de revelação que vêm depois de sonhos atribulados e visões, como as que Judas supostamente teve, conforme o “seu” evangelho. A isto o gnosticismo chama de libertação espiritual, o que na sua linguagem equivale à salvação.

O cristianismo também prega um conhecimento libertador, mas que vem pela fé em Cristo, e que é adquirido através da revelação que ele dá em sua Palavra, e não por meio de experiências cósmicas ou meramente sensoriais. A obediência aos mandamentos de Jesus e uma conduta de vida compatível com o que ele ensinou são a demonstração prática de se possuir esse conhecimento (Jo 8.32; 15.14). Essa não é uma libertação apenas da ignorância espiritual, mas do próprio pecado que escraviza o homem e o coloca em antagonismo e rebelião contra Deus. O Jesus do cristianismo disse: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8.32). Mas esse conhecimento da verdade está diretamente relacionado ao conhecimento do próprio Jesus e da palavra de Deus, ambos apresentados como “a verdade” (Jo 14.6; 17.7).

4.5  A  salvação

Para o gnosticismo, a salvação é obtida não pelo sofrimento e morte de Cristo, mas através da sua obra de revelação de mistérios e ensinos esotéricos.

Conforme Hoeller,

os  gnósticos  não  buscam  uma  salvação  do  pecado  (seja  o  original  ou  outro qualquer), mas da ignorância, da qual o pecado é uma consequência. A ignorância – pela qual se quer dizer ignorância das realidades espirituais – é afastada apenas pela gnose, e a revelação decisiva da Gnose é trazida pelo Mensageiro da Luz, especialmente por Cristo, o Logos do Verdadeiro Deus. Não é pelo seu sofrimento e morte, mas pela sua vida de ensino e pelo estabelecimento dos mistérios que ele realizou sua obra de salvação.

Em outro lugar, Hoeller diz:

Resumindo, a salvação para os gnósticos não significa uma reconciliação com um Deus zangado através da morte do seu filho, mas uma libertação do estupor induzido pela existência terrena e um despertar pela gnose. Eles não consideram que qualquer tipo de pecado, incluindo o de Adão e Eva, seja poderoso o suficiente para causar a degradação de todo o mundo manifesto. O mundo é falho porque esta é a sua natureza, porém os seres humanos podem se libertar deste confinamento neste mundo falho e da inconsciência que acompanha este confinamento. Jesus veio como mensageiro e libertador, e aqueles que assumem no coração esta mensagem e participam dos seus mistérios são, como o discípulo Tomé, salvos pela gnose.

O cristianismo bíblico ensina que Jesus veio para dar a sua vida em resgate de muitos (Mt 20.28) e não para dar ensinamentos esotéricos. Paulo ensina que a redenção é obtida pelo sangue de Cristo (Ef 1.7), o qual, para nos resgatar da maldição da lei, fez-se ele próprio maldição em nosso lugar (Gl 3.13).

4.6 A encarnação

A verdadeira divindade de Jesus é negada pelos gnósticos, assim como a  sua  verdadeira encarnação.  O  conceito  gnóstico  de divindade  não  deixa  espaço para que se reconheça Jesus como o Deus único e verdadeiro. Alguns gnósticos até veem em Jesus “uma manifestação da mais alta divindade”, mas não o verdadeiro e único Deus. Ele é considerado um mestre gnóstico ou mensageiro de luz. Seu ministério foi o de ensinamentos gnósticos e “iniciação nos mistérios libertadores”. É até considerado por alguns como o maior de todos esses mensageiros e “a principal figura salvadora”, mas dentro do conceito de que se é salvo não do pecado, mas da ignorância, da qual o pecado é apenas uma consequência.

Com respeito à encarnação, há diferentes conceitos entre os gnósticos. Há os que consideram Jesus como um ser sagrado e sobrenatural desde o nascimento, bem como os que creem que o Cristo espiritual desceu e entrou na pessoa de Jesus no momento do seu batismo.

Nos dias de João havia os que negavam que Jesus tivesse vindo em carne e que já adotavam uma crença que mais tarde ficou conhecida como “docetismo” (1Jo 4.1-3).

O cristianismo crê que Jesus é o Filho eterno de Deus e que ele assumiu uma natureza humana tornando-se Deus-homem, verdadeiro Deus e verdadeiro homem (Jo 1.14; 1Jo 5.20). O apóstolo João, ao defrontar-se com esse docetismo incipiente, que bem podia ser de origem gnóstica, deu grande ênfase tanto à humanidade verdadeira de Jesus, o Filho de Deus, a quem pôde ver e tocar (1Jo 1.1-3), como à sua divindade. Ele foi enfático:

Também sabemos que o Filho de Deus é vindo e nos tem dado entendimento para reconhecermos o verdadeiro; e estamos no verdadeiro, em seu Filho, Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna (1Jo 5.20).

Essa linguagem sugere uma veemente condenação de ideias gnósticas já presentes em sua época.

A encarnação de Jesus, para o cristianismo, foi uma necessidade em virtude de sua obra salvadora. Ele precisou fazer-se carne (Jo 1.14) para viver e morrer em lugar do homem e pela sua morte destruir “aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo” (Hb. 2.14; cf. Rm 8.3 e 1Pe 2.24; 4.1).

4.7  O  mediador

Para o gnosticismo Jesus não é o único mediador entre Deus e os homens (cf. 1Tm 2.5), mas um dos mensageiros da luz que auxiliam o homem nessa tarefa de ser libertado pela gnose.

Hoeller afirma que

desde os tempos mais antigos Mensageiros da Luz têm vindo do Verdadeiro Deus para assistir os humanos na sua busca pela gnose. Apenas algumas dessas figuras salvíficas são mencionadas nos escritos gnósticos; alguns dos mais importantes são Sete (o terceiro filho de Adão), Jesus, e o Profeta Mani. A maioria dos gnósticos sempre viu a Jesus como a principal figura salvadora (o Soter).

Para o cristianismo, Jesus não é apenas um dos mensageiros vindos de Deus, ainda que fosse o principal. Ele é o único caminho pelo qual se pode chegar a Deus e à vida eterna. Ele próprio reivindicou essa exclusividade quando disse: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim" (Jo 14.6). Pedro deixou claro que “não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12). Paulo foi igualmente incisivo ao afirmar que “há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem” (1Tm 2.5).

Estes são alguns dos pontos fundamentais que mostram a total incompatibilidade entre o cristianismo e a doutrina gnóstica. Não há como considerar o gnosticismo uma dissidência ou variação do cristianismo, pelo menos daquele cristianismo que foi registrado pelos autores canônicos do 1º século e que chegou até nós.

5.  SERIA ESSE EVANGELHO REALMENTE DE JUDAS?

Nenhum estudioso sério, nem mesmo os que acreditam que esse documento pode ser uma tradução do original mencionado por Irineu, crê que ele foi escrito por Judas Iscariotes. Na época em que se supõe ter sido escrito o seu original grego, em meados do 2º século, todos os apóstolos já haviam morrido. Segundo os evangelhos canônicos e o livro de Atos, Judas morreu logo após a traição, suicidando-se. Esse documento, segundo estimam os estudiosos, data do 3º ou do 4º século, portanto cerca de 200 ou 300 anos depois de Jesus e de Judas. O próprio Irineu já estava distanciado dos fatos relatados nos evangelhos bíblicos por mais de 100 anos. O documento, mesmo na sua versão original, é da época em que proliferavam na igreja cristã inúmeros escritos apócrifos que traziam em sua apresentação o nome de algum apóstolo para ganhar credibilidade ou apenas para parecer respeitáveis.

Quando se aceita que esse Evangelho de Judas possa ser autêntico, não se está admitindo que tenha autoridade apostólica e deva ser considerado como um documento legítimo da igreja cristã. Nesse ponto, é preciso estabelecer uma diferença entre documentos que sempre foram reconhecidos e aceitos por toda a Igreja e em todo tempo (chamados pelos estudiosos de homologoumena), os documentos que por algum tempo e em alguns lugares foram questionados, mas depois tiveram sua aceitação geral estabelecida (chamados de antilegomena), os que foram durante algum tempo e em alguns lugares aceitos e reconhecidos por algumas igrejas locais, mas depois vieram a ser unanimemente rejeitados (chamados de apócrifos) e os que nunca foram reconhecidos em nenhuma época e em nenhum lugar como legítimos (chamados de pseudepígrafos).

A lista dos pseudepígrafos é enorme e comporta evangelhos, atos, epístolas, apocalipses e obras de outros gêneros literários, todos escritos depois do período apostólico. No século 19 já eram conhecidas e catalogadas mais de 280 dessas obras. O Evangelho de Judas pode ser classificado como pertencendo a esse grupo, por nunca ter sido aceito ou reconhecido em qualquer tempo e lugar. Não figurava em nenhuma lista anterior. Cabe até indagar se essa é de fato uma cópia do original a que Irineu se referiu. Irineu classifica o evangelho de Judas como pertencendo à seita dos cainitas. Todavia, nesse documento recém-publicado nenhuma menção é feita a Caim. Nele, o filho de Adão que é mencionado e que ocupa posição de destaque é Sete, que é até mesmo identificado com Cristo. É por essa razão que Marvin Meyer o considera um evangelho setiano, como vimos anteriormente.

Por outro lado, quanto aos evangelhos canônicos, nenhum deles jamais foi questionado em qualquer tempo e em qualquer lugar pela igreja. Eles circularam e foram aceitos desde o início da igreja cristã, quando as pessoas que testemunharam os fatos neles narrados ainda viviam e, se quisessem, poderiam contestá-los.

6.  O GNOSTICISMO DO EVANGELHO DE JUDAS

Antes que esse documento pudesse ser traduzido foi necessário primeiro reconstruí-lo. Mais de mil fragmentos precisaram ser ajuntados e postos em seu devido lugar, como se fossem peças de um quebra-cabeça. Ainda assim, restaram muitas lacunas que dificultam o entendimento do texto, exigindo um trabalho não apenas de tradução, mas de interpretação e complementação de sentido. Contudo, os especialistas afirmam ter conseguido reconstruir cerca de 80% do seu conteúdo e o que apresentaram acreditam ser uma tradução compreensível.

O que segue são alguns dos aspectos do gnosticismo encontrados nessa descoberta. O documento começa com a seguinte apresentação: “O relato secreto da revelação que Jesus fez em conversa com Judas Iscariotes por uma semana, três dias  antes  de  celebrar  a  Páscoa”. Relatos secretos a pessoas especiais constituem uma das marcas dos escritos gnósticos. Segundo essa doutrina, poucos eram capazes de apreender o verdadeiro conhecimento interior ou espiritual. Conforme esse documento, Judas foi um deles. Em outras passagens desse evangelho essa preferência por Judas é manifesta, como veremos mais adiante.  A seguir,  o  documento  trata  do  ministério  terreno  de  Jesus,  com  o  seguinte resumo:

Quando Jesus apareceu na terra, realizou milagres e grandes maravilhas para a salvação da humanidade. E visto que alguns [andaram] no caminho da justiça enquanto outros andaram no caminho de suas transgressões, foram chamados os doze discípulos. Ele começou a falar-lhes acerca dos mistérios além do mundo e do que aconteceria no final. Muitas vezes não aparecia aos discípulos como ele próprio, mas era visto entre eles como uma criança.

Essa descrição do modo como Jesus aparecia aos discípulos pode levantar uma certa dúvida sobre a aceitação da sua verdadeira corporalidade por parte dos autores do documento. Uma cena inicial apresenta um diálogo entre Jesus e os seus discípulos sobre a oração de ação de graças ou eucaristia. Nesse diálogo, Jesus parece zombar da atitude dos discípulos, rindo de sua ignorância das coisas espirituais. O texto diz:

Certo dia ele estava com os seus discípulos na Judéia e os encontrou reunidos e assentados em piedosa celebração. Quando ele [se aproximou] dos seus discípulos reunidos, assentados e fazendo uma oração de ação de graças pelo pão, [ele] riu. Os discípulos [lhe] disseram: “Mestre, porque estás rindo de [nossa] oração de ação de graças? Nós fizemos o que era certo”. Ele respondeu e disse [-lhes]: “Eu não estou rindo de vós. Vós não estais fazendo isto por vossa própria vontade, mas porque é através disto que o vosso deus [será] louvado. Eles disseram: “Mestre, tu és [...] o filho do nosso deus”. Jesus lhes disse: “Como me conheceis? Verdadeiramente [eu] vos digo, nenhuma geração das pessoas que estão entre vós me conhecerá.

Nessa passagem, fica claro que, segundo esse evangelho, o deus a quem os discípulos serviam não era o deus verdadeiro. Era o deus criador do mundo mau e não o deus de quem Jesus era filho. Jesus zomba da ignorância dos discípulos. O documento diz que os discípulos se irritaram com essas palavras de Jesus, o que lhes custou mais algumas observações de censura e ensejou a Judas destacar-se sobre os demais como o único que conhecia o seu mestre e o único que sabia de onde ele tinha vindo:

Quando os  seus  discípulos  ouviram  isto,  começaram  a  irar-se  e  enfurecer-se  e  a blasfemar  contra  ele  em  seus  corações.  Ao observar  Jesus  a  sua  falta  de entendimento, [disse-] lhes: “Por que este debate vos conduziu à ira? O vosso Deus, que está dentro de vós [...] vos provocou à ira [em] vossas almas. [Que] qualquer de vós que seja [suficientemente forte] dentre os seres humanos ponha para fora o perfeito humano e se coloque diante de mim. Eles todos disseram: “Nós somos fortes”. Mas os seus espíritos não ousaram se colocar diante [dele], a não ser Judas Iscariotes. Ele foi capaz de se colocar diante dele, mas não pôde fitá-lo nos olhos, e desviou o seu rosto.

Judas lhe [disse]: “Eu sei quem tu és e de onde vens. Tu és do domínio imortal de Barbelo. E eu não sou digno de pronunciar o nome daquele que te enviou”.

É nesse contexto que Jesus chama Judas à parte e lhe faz revelações em secreto:

Sabendo que Judas estava refletindo sobre algo que era elevado, Jesus lhe disse: “Separa-te dos  outros  e  eu  te  narrarei  os  mistérios  do  reino.  É  possível  para  ti  atingi-lo, mas tu serás muito afligido. Mas uma outra pessoa tomará o teu lugar, para que os doze [discípulos] possam novamente vir à inteireza (conclusão) com o seu deus”. Judas disse-lhe: “Quando me narrarás estas coisas e [quando] o grande dia da luz raiará para a geração?” Mas quando ele disse isto, Jesus retirou-se.

Depois disto, Jesus apresenta-se aos discípulos numa segunda cena, na qual é mencionada uma espécie de transmigração para outra esfera ou geração:

Na manhã seguinte, depois desse acontecimento, Jesus [apareceu] novamente aos seus discípulos. Eles lhe disseram: “Mestre, onde foste e o que fizeste quando nos deixaste?” Jesus lhes disse: “Fui a uma outra grande e santa geração”. Seus discípulos lhe disseram: “Qual é a grande geração que nos é superior e mais santa do que nós, que não está agora nestes domínios?” Quando Jesus ouviu isto, riu e lhes disse: “Por que estais pesando em vossos corações a respeito da geração forte e santa? Verdadeiramente [eu] vos digo, ninguém nascido neste éon verá aquela [geração] e nenhuma hoste de anjos das estrelas governará sobre aquela geração, e nenhuma pessoa de nascimento mortal pode se associar a ela, porque aquela geração não vem do [...] que veio a ser [...]. A geração de pessoas dentre [vós] é da geração da humanidade [...] poder, a qual [... os] outros poderes [...] pelos [quais] vos governais”. Quando os [seus] discípulos ouviram isto, cada um deles ficou perturbado em espírito. Não podiam dizer palavra.

A seguir, é narrada uma visão que os discípulos tiveram do templo e a interpretação que Jesus dá sobre a mesma. O texto é de difícil compreensão devido às muitas falhas no manuscrito, mas as partes traduzidas falam de doze sacerdotes que recebem as ofertas de pessoas  de comportamento  repreensível:  uns sacrificavam  os  seus  próprios  filhos; outros, as suas esposas; alguns dormiam com outros homens; outros se envolviam com assassinatos e com uma multidão de outros pecados, invocando a Jesus e sacrificando em seu nome.

A  interpretação  que  Jesus  dá  é  que  esses  sacerdotes  haviam  “plantado  árvores sem fruto, de um modo vergonhoso”, e tudo isso em seu nome. E assim, desqualifica os próprios apóstolos e o deus a quem eles serviam, identificando-os com aqueles que praticavam tais coisas, as quais, não obstante, eram aceitas como sacrifício perfeito pelo seu deus. Ele diz:

Estes que vistes recebendo as ofertas no altar representam o que vós sois. Este é o deus a quem servis e vós sois esses doze homens que vistes. O gado que vistes trazido para o sacrifício são as muitas pessoas que fizestes desviar diante daquele altar.

Depois, ele se dirige às gerações humanas dizendo que o seu deus havia recebido o seu sacrifício pelas mãos de um sacerdote a quem qualifica como “ministro do erro”, mas adverte que “é o Senhor, o Senhor do Universo, quem determina que no último dia eles serão envergonhados”. Judas, então, pergunta a Jesus a respeito daquela geração e das gerações humanas e recebe a resposta de que as almas um dia se libertarão de seus corpos para se tornarem imortais:

Judas diz [a ele: “Rabb]i, que tipo de fruto esta geração produz?”. Jesus disse: “A almas de toda geração humana morrerão. Todavia, quando essas pessoas tiverem completado  o  tempo  do  reino  e  o  espírito  as  deixar,  os  seus  corpos  morrerão, mas as suas almas estarão vivas, e elas serão assuntas”.

Numa terceira cena, Judas relata uma visão a Jesus na qual ele é perseguido e castigado, mas Jesus diz que ele fora extraviado por sua estrela, porém havia recebido a revelação dos mistérios. Jesus o chama de décimo terceiro espírito e menciona os doze éons. O texto é de difícil compreensão devido às lacunas existentes, mas poderia ser uma referência à sua primazia sobre os demais apóstolos.  Mas por que doze e não onze?  Estaria o seu substituto (Matias) incluído neste número? Por que ele seria o décimo terceiro espírito?

 Judas disse: “Mestre, como tens ouvido a todos eles, ouve também a mim agora. Pois eu tive uma grande visão”. Quando Jesus ouviu isto, riu e lhe disse: “Ó tu, décimo terceiro espírito, por que te esforças tanto? Mas fala e eu te sofrerei (tolerarei)”. Judas lhe disse: “Na visão eu me vi enquanto os doze discípulos me apedrejavam e perseguiam [a mim severamente]. Também vim ao lugar onde [...] depois de ti. Eu vi [uma casa...] e meus olhos não podiam [compreender] o seu tamanho. Muita gente estava ao redor dela, e aquela casa [tinha] um telhado de ramagens, e no meio da casa estava [uma multidão – faltam duas linhas] dizendo: ‘Mestre, leva-me para dentro junto com essas pessoas’”.

[Jesus] respondeu e disse: “Judas, a tua estrela te fez extraviar”. E continuou: “Nenhuma pessoa de mortal nascimento é digna de entrar na casa que tens visto, pois aquele lugar é reservado para o santo. Nem o sol nem a lua governarão lá, nem o dia, mas o santo habitará ali sempre, no domínio eterno com os santos anjos. Vê, eu te expliquei os mistérios do reino e te ensinei acerca do erro das estrelas; e [...] enviei [...] sobre os doze éons”.

Em outro lugar do diálogo Judas pergunta a respeito de seu próprio destino e Jesus lhe diz que ele seria o décimo terceiro e seria amaldiçoado pelas outras gerações sobre as quais viria a governar, por causa da sua ascensão à geração santa:

Judas disse: “Mestre, poderia ser que minha semente estivesse sob o controle dos governantes?

”Jesus respondeu e lhe disse: “Vem, que eu [faltam duas linhas], mas tu serás muito afligido quando vires o reino e toda a sua geração”. Quando ouviu isto, Judas lhe disse: “Que bem é esse que eu tenho recebido? Pois tu me tens separado desta geração”. Jesus respondeu e disse: “Tu te tornarás no décimo terceiro, e serás amaldiçoado pelas outras gerações – e virás a governar sobre elas. Nos últimos dias elas amaldiçoarão a tua ascensão à [geração] santa”.

Na sequencia Jesus ensina a Judas a respeito da cosmologia, do Espírito e do Auto-gerado. A narrativa segue o conceito gnóstico de emanações a partir de uma divindade originalmente una e perfeita. Jesus fala sobre um reino grande e ilimitado e um grande e invisível Espírito. Anjos e éons são criados ao mando desse Espírito, para o seu serviço. De uma nuvem emerge um grande anjo, o iluminado e divino Auto-Gerado. Outros anjos são criados para o seu serviço. Então o Auto-Gerado cria luminares para reinar sobre eles e miríades de anjos para o servirem.

A narrativa continua com a história de um ser chamado Adamas e dos luminares. É nela que a geração de Sete é mencionada como incorruptível.

Adamas estava na primeira nuvem luminosa que nenhum anjo jamais viu entre todos os que são chamados “Deus”. Ele [...] que [...] a imagem [...] e à semelhança d[este] Anjo. E fez aparecer a incorruptível [geração] de Sete [...] os doze [...] os vinte e quatro [...]. Ele fez com que aparecessem setenta e dois luminares na geração incorruptível, de acordo com a vontade do Espírito.  Os setenta e dois luminares fizeram, por sua vez, com que aparecessem trezentos e sessenta luminares na geração incorruptível, de acordo com a vontade do Espírito, para que o seu número fosse cinco para cada uma.

A cosmologia prossegue com a descrição do cosmos, do caos e do mundo inferior. O cosmos é chamado de “perdição” pelo Auto-Gerado, seus luminares e os éons. Doze anjos são chamados à existência para reinar sobre o caos e o mundo inferior. Um anjo, chamado Nebro, que quer dizer “rebelde”, aparece de uma nuvem tendo o rosto flamejante como fogo e a aparência conspurcada com  sangue.  Esse  anjo  é  também  chamado  Yaldabaoth.

Da  nuvem  surge  outro anjo, chamado Saklas, e cada um deles cria outros seis anjos para serem seus assistentes.

Cinco governantes são apresentados falando com doze anjos: Seth (Sete), que é chamado Cristo, Harmathoth, Galila, Yobel e Adonaios. Segundo a narrativa, “estes são os cinco que governaram sobre o mundo inferior, e antes de tudo sobre o caos”. Também se descreve como foi criada a humanidade:

Então Saklas disse aos seus anjos: “Criemos um ser humano à nossa semelhança e imagem”. Eles formaram a Adão e sua mulher Eva, que é chamada, na nuvem, Zoe. Pois por este nome todas as gerações buscam o homem, e cada um deles chama a mulher por estes nomes.

Judas então pergunta sobre o destino de Adão e da humanidade:

Judas disse a Jesus: “[Qual] é a duração de tempo que o ser humano viverá?” Jesus disse: “Por que estás querendo saber sobre isto, que Adão, com a sua geração, viveu seu tempo de vida no lugar onde ele recebeu o seu reino, com longevidade com seu governante?” Judas disse a Jesus: “O espírito humano morre?”. Jesus disse: “Esta é a razão por que Deus ordenou que Miguel desse os espíritos das pessoas a elas como um empréstimo, de forma que elas pudessem oferecer serviço, mas aquele que é O Grande ordenou que Gabriel concedesse espíritos à grande geração sem governante sobre ela – isto é, o espírito e a alma”. 

A seguir, Jesus discorre sobre a destruição dos maus:

Judas disse a Jesus: “Então, que farão essas gerações?” Jesus disse: “Verdadeiramente eu te digo, para todas elas as estrelas trazem as coisas à consumação. Quando Saklas completar o lapso de tempo que lhe foi atribuído, a primeira estrela delas aparecerá com as gerações, e elas completarão o que disseram que fariam. Então eles vão fornicar em meu nome e sacrificar os seus filhos e eles vão [...] e [faltam cerca de seis linhas e meia] meu nome, e ele irá [...] tua estrela sobre o [décimo] terceiro éon”. Depois disso Jesus [se riu]. [Judas disse]: “Mestre, [por que estás rindo de nós]?” [Jesus] respondeu [e disse]: “Eu não estou rindo [de vós], mas do erro das estrelas, porque essas seis estrelas vagueiam com esses cinco combatentes, e todas elas serão destruídas junto com as suas criaturas”.

Então, Jesus fala daqueles que são batizados e da traição de Judas. É nessa passagem que se encontra a expressão destacada pelos estudiosos como sendo o ponto que elucidaria a “verdadeira” missão de Judas:

Judas disse a Jesus: “Olha, que farão aqueles que foram batizados em teu nome?”. Jesus disse: “Verdadeiramente [te] digo, este batismo [...] meu nome [faltam cerca de nove linhas] para mim. Verdadeiramente [eu] te digo, Judas, [estes que] oferecem sacrifícios a Saklas [...] Deus [faltam três linhas] tudo o que é mau. “Mas tu excederás a todos eles. Pois tu sacrificarás o homem que me veste”.

Depois de mais algumas observações de difícil entendimento, devido às lacunas no texto, Jesus fala sobre o futuro da geração de Adão e do próprio Judas:

E então a imagem da grande geração de Adão será exaltada, pois antes do céu, da terra e dos anjos, aquela geração, que é dos reinos eternos, existe. Olha, tudo te foi contado. Levanta os olhos e olha para a nuvem e para a luz dentro dela e para as estrelas que a circundam. A estrela que guia o caminho é a tua estrela”. Judas ergueu os olhos e viu a nuvem luminosa, e entrou nela.

O evangelho conclui com a traição, da seguinte forma:

 [...] Os seus sumo-sacerdotes murmuravam porque [ele] tinha entrado na sala de hóspedes  para  a  sua  oração.  Mas  alguns  escribas  estavam  ali observando cuidadosamente para o prender durante a oração, porque temiam o povo, pois ele era considerado por todos como um profeta. Eles se aproximaram de Judas e lhe disseram:  “O  que  estás  fazendo  aqui?  Tu  és  discípulo  de  Jesus”.  Judas lhes respondeu como desejavam. E tendo recebido algum dinheiro o entregou a eles.

Assim termina o documento, sem nenhuma menção à morte e ressurreição de Jesus e nem ao que aconteceu a Judas depois disto. Essas narrativas mostram que o documento se alinha perfeitamente com a literatura gnóstica conhecida da época.

7.  POR QUE ESSE DOCUMENTO NÃO PODE SER RECONHECIDO COMO UM EVANGELHO AUTÊNTICO?

Antes de responder a essa pergunta, temos que considerar alguns princípios que nortearam a aceitação de um livro como autorizado e confiável, nos primórdios da igreja cristã.

Enquanto os apóstolos estavam vivos, eles eram o próprio “cânon” por serem  as testemunhas oculares  do  ministério  e  da ressurreição  de  Jesus.  A  igreja podia recorrer a eles para estabelecer a verdade sobre o ensino de Cristo. Lendas e crendices que já circulavam a respeito de Cristo e dos apóstolos podiam ser desmascaradas pelo testemunho apostólico (Jo 21.23,24; 1Jo 41-3).

Com a proliferação da literatura cristã que passou a circular entre as igrejas já no período apostólico, a igreja sentiu a necessidade de uma lista autenticada.

Quais livros deviam ser reconhecidos? O testemunho e a autoridade dos apóstolos foram fundamentais nesse reconhecimento. Eles, os apóstolos, advertiam contra os falsos documentos que já circulavam como se fossem apostólicos (pseudônimos) e, por isso, procuravam meios de autenticar os seus escritos, como, por exemplo, através de uma assinatura conhecida (1Ts 2.20; 3.17).

A autoridade que os apóstolos receberam para transmitir e completar a revelação de Jesus Cristo está evidenciada nos textos de João 14.26; 16.13 e Atos 1.1-3,8. Tão conscientes estavam eles dessa autoridade que Paulo podia dizer:

Outra razão ainda temos nós para, incessantemente, dar graças a Deus: é que, tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como palavra de homens, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está operando eficazmente em vós, os que credes (1Ts 1.8,13 – minha ênfase).

A isto os estudiosos chamam de consciência profética. É por terem essa consciência que recomendavam  que  seus  escritos  fossem lidos  nas  igrejas  (1Ts 5.27; Cl 4.16) Outros textos em que essa autoridade é reivindicada por Paulo, Pedro e João são: 1Co 2.13; 14.37; Cl 4.16; 2Pe 1.16; 1Jo 1.3 e Ap 1.3. Foram os apóstolos que transmitiram à segunda geração a confiabilidade de seu testemunho (Hb 2.3,4).

Assim, as Escrituras do Antigo Testamento mais os livros dos apóstolos e de pessoas diretamente ligadas a eles (Marcos e Lucas, por exemplo) eram aceitos sem qualquer suspeita. O problema surgiu quando começaram a aparecer esses outros livros que também pretendiam ser aceitos como tendo autoridade divina. Isto principalmente no 2º século. Então, foi necessário que a Igreja procurasse determinar quais livros eram ou não dotados de autoridade e, por conseguinte, quais deveriam ser aceitos ou não. Foi assim que surgiu o cânon.  Alguns critérios  para  essa  aceitação  foram  estabelecidos  de  modo  natural, dentre os quais podemos destacar os seguintes:

a. Princípio da autoridade profética ou apostólica

Os  profetas,  tanto  do  Antigo  como  do  Novo  Testamento  (e  os  autores  bíblicos foram profetas no verdadeiro sentido da palavra – Ef 2.20), tinham consciência de ter recebido revelação do Senhor e de estarem sob a sua influência e direção tanto quando proclamavam como quando escreviam a mensagem dessa revelação. Eles reivindicavam a mesma autoridade divina tanto para a sua palavra falada quanto para a escrita. Paulo considerava que não só o falou, mas também o que escreveu tinha a autoridade de Deus (1Co 14.37; Cl 4.16; 1Ts 5.27; 2Ts 2.15; 3.14). Por essa razão, ordenava que os seus escritos fossem lidos nas igrejas (1Ts 5.27) e que circulassem entre elas (Cl 4.16). Esse é o critério mais comumente mencionado pelos pais da igreja. De acordo com esse critério, só os escritos dos apóstolos ou de pessoas diretamente ligadas a eles e sob a sua autoridade eram aceitos. Isso coloca no 1° século o final da produção dos escritos reconhecidos, ou seja, no período apostólico.

b. Princípio da confiabilidade do livro

O  conteúdo  do  livro  canônico  precisa  ser  digno  de  confiança,  coerente  com  a  revelação anterior  já  conhecida  e  sem  erros  factuais.  As  raízes  da  aplicação  desse  princípio  podem ser  vistas  em  textos  como  Gálatas  1.8-9;  Colossenses 2.8 (e ss); 1Timóteo 6.3 (e ss); 1João 4.1-4 e 2João 7-10. Grande parte dos apócrifos foi rejeitada devido à sua falta de confiabilidade, enquanto que alguns canônicos também foram de início questionados por supostas contradições doutrinárias. Estes últimos (os antilegomena) só foram aceitos quando se entendeu devidamente que não havia qualquer razão plausível para se duvidar de sua confiabilidade.

c.  Princípio da aceitação pelas igrejas locais às quais os livros foram endereçados

Esse princípio tem sido considerado o mais importante, pois inclui todos os outros na sua aplicação. A autoridade do livro bíblico sempre foi reconhecida pela igreja à qual ele foi dirigido. Em outras igrejas, devido a fatores de distância, comunicação, má interpretação, etc., esse reconhecimento nem sempre se deu de modo imediato, unânime e definitivo, mas ele acabou acontecendo, ainda que depois de algum tempo. Milton Fisher lembra que “a plena aceitação pelos beneficiários originais, seguida por um contínuo reconhecimento e uso, é fator indispensável no desenvolvimento do cânon”.

É verdade que nenhum desses princípios é suficiente, por si só, para reconhecer a canonicidade de um texto. Certos livros não-canônicos poderiam alegar terem sido escritos por apóstolos ou profetas (caso da pseudonímia), não apresentar necessariamente incorreções teológicas ou factuais e até ser aceitos por certo tempo pela igreja. Isso de fato aconteceu em alguns casos.

É por isso que, sem dispensar tais princípios,  temos ainda de crer na providência de Deus em preservar a sua Palavra e imprimir no seu povo a percepção espiritual para aceitá-la. É o que Calvino chama de “testemunho interno do Espírito”. F. F. Bruce também afirma que a posição cristã histórica é que o Espírito Santo, que presidiu à formação de cada um dos livros, também lhes dirigiu a seleção e incorporação, continuando assim a dar cumprimento à promessa do Senhor de que ele guiaria os discípulos a toda a verdade.

Certamente este não é um ponto que os críticos não-ortodoxos levam em consideração, por não crerem no elemento sobrenatural das Escrituras. Mas ele não pode ser esquecido pelos que, além de critérios objetivos e fenomenologicamente evidenciáveis, têm como pressuposto a origem divina dos livros canônicos.

O Evangelho de Judas, assim como os demais evangelhos gnósticos, não pode ser aceito como um evangelho autêntico porque não preenche qualquer desses requisitos. Não foi escrito por apóstolo ou por alguém sob autoridade direta de apóstolo, já que data de época bem posterior (pelo menos 100 anos depois da morte do último apóstolo); o seu conteúdo é totalmente discordante de toda a revelação que encontramos nos quatro evangelhos canônicos e ele nunca  foi  aceito por  qualquer  das  igrejas  da  sua  época. Nunca  figurou  em  qualquer lista como um evangelho autêntico. Pelo contrário, foi enumerado entre os escritos de seitas heréticas, como atesta Irineu.

De igual forma, as evidências disponíveis sobre a formação e o desenvolvimento do cânon demonstram que tal fato não se deu por motivações políticas, como especulam alguns, mas por um processo natural de reconhecimento e autenticação por parte das igrejas locais, independentemente de concílios. Os concílios só fizeram reconhecer e aprovar aquilo que as igrejas, como um todo, já aceitavam. Um ou outro livro exigiu uma discussão mais circunstanciada por parte de algum concílio, mas tal discussão nunca esteve relacionada a livros pseudepígrafos, como esses gnósticos, sobre os quais sempre houve consenso de serem de origem espúria.

O cânon que hoje conhecemos e que representa o que chamamos de ortodoxia não foi estabelecido arbitrariamente, como resultado da vitória política de um grupo eclesiástico mais forte sobre outros mais fracos, como querem alguns. Para que alguém pudesse considerar o gnosticimo um ramo legítimo do cristianismo primitivo seria preciso demonstrar que havia semelhanças e concordância entre os seus pontos principais. Não é o que acontece, como se procurou mostrar  neste  trabalho.  O  combate  a  esses  grupos  e  seus  escritos  se  deveu exatamente  à  sua  completa  incompatibilidade  com  o  cristianismo  apostólico, e não por razões políticas.

Finalmente, a alegação de que o cristianismo dos primeiros séculos nunca foi um bloco monolítico só poderia ser verdadeira se os desvios e aberrações doutrinárias, como esses do gnosticismo, pudessem ser considerados formas aceitas de cristianismo, ainda que discordantes. Não é o que acontece. Se nem mesmo desvios “menores” (quando comparados aos da doutrina gnóstica), e de épocas bem posteriores, como os debatidos nos Concílios de Nicéia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e Calcedônia (451), foram tolerados, por não guardarem coerência com o cristianismo apostólico, como poderiam doutrinas pagãs, mitológicas  e  politeístas, iguais às do gnosticismo, ser consideradas variações  do cristianismo? Só mesmo a pressuposição pós-moderna de que cada uma das seitas que proliferavam nos primeiros séculos do cristianismo tinha “uma versão da verdade” (ou seja, a sua própria verdade) pode justificar essa ideia de que o cristianismo “é e sempre foi um movimento amplamente diverso”, como quer Barth Ehrman.

CONCLUSÃO

Não se pode negar que a descoberta e publicação desse Evangelho de Judas, seja ele cópia daquele a que Irineu se refere ou não, traz uma contribuição para o estudo do chamado “gnosticismo cristão”. Ele vem confirmar, com o seu amálgama de crenças de origem pré-cristã e personagens do cristianismo, que o gnosticismo nunca foi cristão. A sua visão do mundo e de Deus era e continua a ser totalmente diferente daquilo que os apóstolos e outros sob a sua autoridade  deixaram  como  os  fundamentos do  cristianismo.  Portanto, a contribuição que esse evangelho oferece não é para o cristianismo, mas para o próprio gnosticismo. Através dele é possível conhecer mais alguns aspectos desse  sistema  de  pensamento. Desses, o mais importante é a versão de que Judas não teria sido um traidor, mas um aliado de Jesus e o único que realmente compreendeu a essência e a missão do seu mestre. Essa versão era desconhecida na literatura gnóstica, até então.

Outros pontos de concordância desse evangelho com os postulados comuns da literatura gnóstica, como vistos neste trabalho, são os de que o mundo foi criado por um deus inferior e imperfeito (Saklas) e, por isso, é imperfeito; a missão de Jesus foi revelar mistérios a alguns (no caso, a Judas) enquanto outros são mantidos na ignorância (o  restante  dos  discípulos  e sua  geração continuavam servindo a um deus falso – o criador deste mundo); a morte é um meio de libertação do espírito (tanto no caso de Jesus como no de Judas e da sua geração); a ressurreição física não desempenha qualquer papel no esquema da salvação – por isso nem é mencionada, pois os gnósticos não creem nela como modo de aperfeiçoamento; a vida eterna (salvação) é vista como a migração do espírito deste corpo para o mundo espiritual, e não como a restauração do indivíduo todo (corpo e alma) ao estado de perfeição objetivado por Deus.

Por tudo isso, o documento não representa qualquer abalo nos fundamentos do cristianismo. Ele nada acrescenta nem diminui àquilo que tem sido conhecido e aceito como as doutrinas básicas do cristianismo histórico. Porém, há os que podem tirar proveito dessa descoberta. Aos estudiosos do gnosticismo, como já foi dito, ela serviu para mostrar novas facetas desse diversificado sistema de crenças e suposições que tem atravessado os séculos.

Para  aqueles  cujo  interesse  comercial  está acima  do  interesse  pela  verdade,  caso de alguns editores de revistas seculares, por exemplo, foi uma oportunidade para aumentar as suas vendas com chamadas sensacionalistas para o que, supostamente, seria um achado que desacreditaria o cristianismo. Já para os que não aceitam o caráter histórico do conteúdo dos escritos canônicos, nem o teísmo clássico que caracteriza a fé cristã, e estão à busca de ocasião para justificar o seu pluralismo teológico e defender um conceito pós-moderno de verdade, não é este o documento que viria satisfazer as suas expectativas. É de se supor que os que não suportam a “sã doutrina”, conforme a linguagem de Paulo, continuem sentindo “coceira nos ouvidos” (2Tm 4.3).

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